Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
469/09.8T2AVR-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
Data do Acordão: 05/25/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTS. 235, 239 DO CIRE
Sumário: I - A exoneração do passivo restante corresponde à concessão de benefício aos insolventes, pessoas singulares, traduzido num perdão de dívidas, exonerando-os dos seus débitos com a perda, para os credores dos seus correspectivos créditos, devendo ser balanceados os interesses destes credores, que perdem parte dos seus créditos, com o benefício que o devedor vai obter, salvaguardando-se um valor equilibrado para o devedor ter um sustento minimamente digno.

II - No regime de exoneração do passivo restante e para efeitos do disposto no art. 239º nº 3 b), subalínea i) do CIRE, devem considerar-se excluídos do rendimento disponível os montantes tidos por razoavelmente necessários para o sustento do devedor e do seu agregado familiar, podendo tais montantes ir até três vezes o salário mínimo nacional (excepto se, fundadamente, o juiz fixar montante superior).

Decisão Texto Integral: I – Relatório

1.Nos presentes autos de insolvência, por apresentação, de R (…) solteira, residente em ..., veio a mesmo requerer a exoneração do passivo restante, nos termos do disposto nos artigos 235º e seguintes do CIRE.

Foi admitido liminarmente tal pedido.

E de seguida foi proferida decisão favorável, como segue:

“ II - Nos termos do art. 239º, nº 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas determino que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (para os efeitos em apreço designado período de cessão) o rendimento disponível que o insolvente venha a auferir considera-se cedido a fiduciário, investindo-se nessa qualidade o Sr. Administrador de insolvência nomeado nestes autos, cuja remuneração e reembolso de despesas ficam a cargo da devedora/insolvente (arts. 240º, nº 1 e 2 e 60º, nº 1 do CIRE).

III – Considerando que a insolvente apenas aufere o rendimento líquido de €905,40, bem como o critério a que alude o art.º 239.º, n.º 3 do CIRE, que exclui do rendimento disponível a afectar à satisfação dos créditos do insolvente o montante que constitua o sustento minimamente digno do devedor, entendendo o legislador ordinário como o mínimo para salvaguadar uma vivência condigna o salário mínimo nacional, determino que o rendimento disponível do devedor/insolvente, objecto da cessão ora determinada, será integrado por todos os rendimentos que à insolvente advenham a qualquer título com exclusão do correspondente ao montante do salário mínimo nacional. “.

2. A requerente interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões que se sintetizam:

a)Atenta a letra da lei, não pode deixar de ser entendido que a intenção do legislador foi equiparar o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar ao correspondente a três vezes o salário mínimo nacional;

b)Tanto é assim que a lei apenas impõe ao Juiz a necessidade de fundamentar a sua decisão quando o valor que considere minimamente digno para o sustento do devedor exceder as três vezes o salário mínimo nacional;

c)Atendendo ao actual valor do salário mínimo nacional, de 450 €, muito dificilmente conseguirá a recorrente e o seu agregado familiar composto por três pessoas, viver dignamente com tal parco montante, pois sustento minimamente digno não se pode confundir com mínimo de sobrevivência;

d)Atento o disposto no art. 824º, nº 2, do CPC, conclui-se que o legislador equiparou a legislação cível à da insolvência, pois fixou um limite mínimo de rendimento mensal equivalente a três salários mínimos nacionais, ou seja 1.350 €;

e)A decisão recorrida interpretou mal o art. 239º, nº 3, b), subalínea i), do CIRE, pelo que deve tal decisão ser revogada e substituída por outra que determine que a requerente receba sempre o equivalente a três vezes o salário mínimo nacional que em cada momento vigorar;

f)No caso de assim não se entender, então deve a requerente receber sempre uma quantia igual ao valor de duas vezes o salário mínimo nacional.

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Não houve contra-alegações.

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II – Factos Provados

Os factos provados são os que decorrem do relatório supra.

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas (arts.º 684º, nº 3 e 685º-A, do CPC).

Nesta conformidade as únicas questões a decidir são as seguintes.

-O sustento minimamente digno, na exoneração do passivo, equivale a 3 vezes o salário mínimo nacional.

-Em caso negativo, qual a proporção a fixar no caso concreto.

2. Dispõe o art. 239º do CIRE:

1. Não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido o despacho inicial (…).

2. O despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período de cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário (…) nos termos e para os efeitos do artigo seguinte.

3. Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:

b) Do que seja razoavelmente necessário para:

i) o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;

A questão posta no recurso tem a ver com a interpretação deste nº 3, b), subalínea i), sustentando a recorrente que não pode deixar de entender-se que a intenção do legislador foi a de fixar um limite mínimo relativo ao rendimento tido por razoável para o sustento digno do devedor e do seu agregado familiar, determinando que esse mínimo corresponde a três vezes o salário mínimo nacional, ou seja, presentemente, 1.350 €.

Pensamos, contudo, que não tem razão.

Cita nas alegações, em seu abono, a anotação a tal preceito legal, de C. Fernandes e J. Labareda. De facto, no CIRE Anotado, 2ª Ed., pág. 788, tais autores afirmam que na subalínea referida, o legislador adoptou um critério objectivo na determinação do que deve entender-se por sustento minimamente digno: 3 vezes o salário mínimo nacional. E que o valor assim calculado só pode ser excedido mediante decisão do juiz, devidamente fundamentada.

Não acompanhamos tal entendimento.

Na verdade, o sentido da norma, parece-nos, é o de que o "sustento minimamente digno" será fixado até 3 vezes o salário mínimo nacional.

Por outro lado, se a intenção do legislador fosse a de estabelecer o referido montante fixo, tê-lo-ia dito de modo bem mais simples e directo.

Acresce que os termos legais utilizados – do que seja razoavelmente necessário – envolvem claramente um juízo e ponderação casuística do juiz sobre o montante a fixar.

Embora sem afrontar directamente a questão, Assunção Cristas (no seu estudo

Exoneração do devedor pelo passivo restante, em Themis, Ed. 2005, pág. 174, nota 8) adopta também esta interpretação: o rendimento disponível engloba todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, excluindo os montantes que se consideram razoavelmente necessários para o sustento do devedor e do seu agregado familiar até três vezes o salário mínimo nacional, excepto se, fundadamente, o juiz determinar montante superior.
A recorrente argumenta ainda com o disposto no art. 824º nº 2 do CPC, que "estabelece que a impenhorabilidade prescrita no número anterior tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão”, ou seja, 1.350 €.

Só que o texto integral desta norma não vai no sentido da interpretação dada pela apelante. Com efeito, aí se dispõe:

A impenhorabilidade prescrita no número anterior tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento e o crédito exequendo não seja de alimentos, o montante equivalente a um salário mínimo nacional.

Este preceito traça, assim, limites à impenhorabilidade prevista no nº 1 do mesmo artigo.

Assim: Quando os 2/3 excedam o valor de três salários mínimos nacionais, a impenhorabilidade limita-se a este valor, sendo penhorável, juntamente com o terço restante, a parte dos 2/3 que o exceda. Em compensação, quando os 2/3 sejam inferiores ao valor de um salário mínimo nacional, a parte impenhorável do rendimento eleva-se, coincidindo com o valor deste, desde que o executado não tenha outro rendimento e o crédito exequendo não seja de alimentos (vide

Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 11ª Ed., pág. 214).

Por conseguinte, a recorrente está a ler a lei ao contrário, já que tal norma não estabelece aí, como sustenta, um limite mínimo de rendimento mensal de três salários mínimos, mas antes um limite máximo de impenhorabilidade (dos 2/3 fixados no nº 1), que não pode ultrapassar esse valor. O que a lei garante, sim, (fora dos casos de crédito de alimentos, ou de outros rendimentos do executado) é a impenhorabilidade de rendimento auferido inferior ao salário mínimo nacional.

No fundo, a exclusão prevista no art. 239º nº 3 b), subalínea i) do CIRE, também pode atingir montante equivalente a 3 vezes o salário mínimo nacional. Este montante funciona, então, como limite máximo (só podendo ser excedido por decisão fundamentada), competindo ao juiz fixar, com razoabilidade, como diz a lei, em princípio até esse limite, o montante que lhe pareça necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do respectivo agregado familiar.

Não vemos, por isso, motivo para qualquer equiparação objectiva entre o sustento minimamente digno e o correspondente a 3 salários mínimos nacionais (vide em igual sentido, pacificamente, os Ac. da Rel. de Lisboa, de 20.4.2010, Proc. 1621/09 e de 17.11.2009, Proc. 1974/08, e da Rel. Porto, de 2.2.10, Proc. 1180/09, de 14.1.2010, Proc.1117/09 e de 15.7.2009, Proc.268/09, todos in www.dgsi.pt).

Improcede, pois, esta parte do recurso.

3.No caso, entendeu-se adequado fixar, como sustento minimamente digno da devedora, o montante correspondente a 1 vez o salário mínimo nacional que a cada momento vigorar.

Diz a recorrente que atendendo ao actual valor do salário mínimo nacional, de 450 €, muito dificilmente conseguirá com o seu agregado familiar, composto por três pessoas, viver dignamente com tal parco montante. Assim, pelo menos, deve ser fixado em 2 salários mínimos nacionais o valor que lhe deve ser disponibilizado para o seu sustento.

No entanto, é desconhecido qualquer agregado familiar da requerente, pois não mencionou a sua existência no requerimento de apresentação à falência, quer por alegação escrita quer por junção de algum documento comprovativo. Ignora-se, por isso, por completo se a requerente tem agregado familiar, visto que não alegou nem comprovou que assim seja. Só se sabe que é solteira e que aufere 905,40 € líquidos mensais. De tal requerimento resulta ter um passivo superior a 250.000 €, e ter um activo patrimonial de 108.500 €

Com a publicação do CIRE (DL 53/04, de 18.3), o legislador explicitou qual o propósito de consagração do instituto de exoneração do passivo. De facto no preâmbulo de tal diploma referiu que:

“ 45 — O Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da «exoneração do passivo restante».

O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.

A efectiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos — designado período da cessão — ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.

A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica.”

A exoneração do passivo restante corresponde, pois, à concessão de benefício aos insolventes, pessoas singulares, traduzido num perdão de dívidas, exonerando-os dos seus débitos com a perda, para os credores, dos seus correspectivos créditos.

Pelo que devem ser balanceados os interesses destes credores, que vêm perder parte dos seus créditos, com o benefício que o devedor vai obter, salvaguardado um valor equilibrado para o devedor ter um sustento minimamente digno.    

Em função da ponderação do circunstancialismo concreto apurado e apelando ao referido critério do razoável, fixado na lei, entendemos justo fixar em uma vez e meia o salário mínimo nacional que a requerente deve dispor.  

4. Sumariando (art. 713º nº 7 do CPC):

No regime de exoneração do passivo restante e para efeitos do disposto no art. 239º nº 3 b), subalínea i) do CIRE, devem considerar-se excluídos do rendimento disponível os montantes tidos por razoavelmente necessários para o sustento do devedor e do seu agregado familiar, podendo tais montantes ir até três vezes o salário mínimo nacional (excepto se, fundadamente, o juiz fixar montante superior).

IV- Decisão

Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso da requerente R (…), e consequentemente, revoga-se, parcialmente, a decisão recorrida, fixando-se agora em uma vez e meia o salário mínimo nacional o valor que a recorrente deve dispor para o seu sustento.

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Custas pela recorrente na proporção de ½.