Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
18/14.6TBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA
CONTRATO DE PERMUTA
CONTRATO ADMINISTRATIVO
OBRA PÚBLICA
Data do Acordão: 12/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - INST. CENTRAL - SECÇÃO CÍVEL - J3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.212 CRP, 64 CPC, 4 ETAF
Sumário: É da competência dos tribunais administrativos a acção em que o A. exige de um Município o cumprimento de obrigações assumidas no exercício de um poder público e na prossecução de um interesse público, nomeadamente, a implantação do acesso a determinada parcela que dele ficou privada em virtude da construção de uma obra pública viária (uma ponte e respectivos acessos), prevendo-se a sua execução nos projectos de construção anexos ao protocolo celebrado entre as partes.
Decisão Texto Integral:  

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

           

            I. Em 07.01.2014, S (…), Lda., intentou a presente acção ordinária, no Tribunal Judicial de Coimbra (Vara Mista), contra o Município de Coimbra, pedindo que, na procedência da acção, se declare a A. legítima e exclusiva proprietária do prédio descrito e confrontado no art.º 1º da petição inicial (p. i.) e constituída uma servidão por destinação de pai de família a favor do mencionado prédio por sobre o prédio descrito e confrontado no art.º 16º da p. i., com o trajecto assinalado no “doc. 10”, condenando-se o Réu a tal reconhecer e, ainda, a repor a situação em que a A. se encontrava antes, reabrindo a passagem que ele tapou ao construir o muro de gavião como demonstram as fotografias juntas sob o doc. 8 e a não obstruir ou perturbar seja sob que forma ou pretexto for o direito de servidão reconhecido à A..

         Alegou, em síntese:

            a) É legítima e exclusiva proprietária e possuidora do “Prédio rústico, composto de terreno destinado a cultura arvense e mato, sito na Q (...), limites da União de freguesias de Coimbra (Sé Nova, Santa Cruz, Almedina e São Bartolomeu), na cidade de Coimbra, com a área de 23 723 m2, a confrontar do norte com próprio (parcela que foi cedida ao Réu), do sul e nascente com caminho (também parcela cedida ao Réu) e do poente com Rio Mondego, inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o art.º 19º, e descrito na Conservatória de Registo Predial de Coimbra sob o número 280/20060517 e aí inscrito a favor da autora.” – cf. documentos de fls. 5 verso a 7.

            b) O referido prédio fazia parte de um prédio maior, que era ao tempo um prédio misto composto de terreno de cultura de sequeiro e regadio, eucaliptal, pomar, salgueiros, sobreiros e mato, com a área de 54 659 m2, o qual se encontrava inscrito na matriz sob o art.º 13 da matriz rústica da freguesia de Almedina e descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial (CRP) de Coimbra, sob o n.º. 78/19640612 – cf. documento de fls. 8 verso.

            c) Com a construção dos acessos à Ponte Rainha Santa Isabel, o prédio dito em b) ficou dividido em quatro parcelas distintas com as áreas de 5 412 m2, 25 184 m2, 23 723 m2 e 340 m2 e que correspondem às letras A, B (cedida ao Réu), C (prédio descrito no art.º 1º da p. i.) e D, respectivamente - cf. documentos de fls. 8 verso a 9 verso.

                d) Em consequência dessa divisão, por contrato de permuta celebrado por escritura pública de 21.12.2006, perante a notária privativa da Câmara Municipal de Coimbra, a A. cedeu ao Réu a “parcela B” atrás referida [actualmente ocupada pelo Ponte Rainha Santa Isabel, a confrontar do norte e sul com caminho, do nascente com caminho e Sociedade Imobiliária Q (...), S. A., e do poente com Rio Mondego e Sociedade Imobiliária Q (...), S. A., inscrito na matriz rústica da freguesia de Coimbra (almedina) sob o artigo 16 e descrita na 1ª Conservatória do Registo Predial de Coimbra, sob a ficha n.º 279/20060517], passando este a ser seu legítimo e exclusivo proprietário e possuidor - cf. documentos de fls. 10 e 13 verso.

            e) Antes da construção da Ponte Rainha Santa Isabel, nomeadamente dos acessos de e para essa ponte a partir da Zona da Boavista, o prédio descrito no art.º 1º da p. i., acedia a Av. da Boavista através de uma parte da “parcela B” que se interpunha entre o prédio descrito no art.º 1º da p. i. e aquela Avenida, existindo no solo sinais de passagem desde a Av. da Boavista até ao hoje prédio da A. e que se mantiveram até à conclusão dos trabalhos da ponte.

            f) Com a construção dos acessos referidos à Ponte, deixou de ser possível esse acesso, não curando o Réu de deixar caminho de e para acesso à “parcela C”, que continuou propriedade da A., situada mais a sul da Ponte, pelo que a A. ficou impossibilitada de fazer esse acesso, encontrando-se agora o mesmo definitivamente encravado.

            g) O Réu ao licenciar um Hotel para o prédio confinante do lado sul com o prédio da A., estabelecera a obrigatoriedade de cedência de uma parcela de terreno que se destinava ao acesso ao prédio da A., o qual, por força das obras dos acessos à Ponte Rainha Santa Isabel, ficou a um nível bastante mais baixo que esses acessos, pelo que, estando o prédio dos vizinhos ao nível da praceta construída no acesso à Quinta da Boavista, era mais fácil obter por aí acesso ao prédio da A.; contudo, por força da falência da proprietária desse prédio, veio o mesmo prédio a ser vendido em hasta pública, gorando-se a hipótese prevista pelo Réu.

            Contestando, o Réu invocou a excepção de incompetência material, alegando, em síntese:

            aa) A divisão das parcelas e a construção do muro de gavião foram realizadas no âmbito da execução de uma obra pública – execução da Ponte Rainha Santa Isabel e dos Nós de Acesso – no âmbito da qual foi celebrado, em 22.10.1999, um protocolo entre A. e Réu, com vista à permuta entre ambos de parcelas de terreno – cf. o documento de fls. 30 a 32.

            bb) O protocolo em causa definia também questões e condições relacionadas com o loteamento pretendido pela A. para o conjunto das “parcelas B e A2”, identificadas na planta anexa II do protocolo (cf. Cláusula Quarta do protocolo), bem como as autorizações concedias pela A. (cf. Cláusula Quinta).

            cc) Está em discussão um eventual incumprimento do protocolo por parte dos outorgantes.

            dd) O dito protocolo celebrado com o Réu decorre de uma relação jurídica administrativa regulada por normas de direito administrativo, por razões de interesse público (construção da Ponte Rainha Santa Isabel e Nó da Boavista), que não se colocam no âmbito de relações de natureza jurídico-privada, pelo que é competente para apreciar o presente litígio o Tribunal Administrativo e Fiscal.

            Referiu ainda, designadamente, acolher o mencionado nas alíneas c) e d), supra, e que com a execução das obras de acesso à Ponte Rainha Santa Isabel, a parcela a poente, designada na planta como A4, pertencente à A., ficou sem o acesso que tinha à Av. da Boavista [conforme extracto da planta da cidade de Coimbra de 1978/documento de fls. 32] sendo certo que o acesso que existia ao referido terreno foi cortado pela construção de um ramal de aceso à Ponte.

            Concluiu, além do mais, que deverá ser absolvido da instância, com todas as legais consequências, por incompetência material da Vara Mista de Coimbra.

            Ao pronunciar-se relativamente aos documentos juntos com a contestação, a A. afirmou, nomeadamente: o protocolo celebrado teve em vista a cedência para o domínio público dos terrenos necessários à construção da aludida ponte (posteriormente designada de “Ponte Rainha Santa”, mas que ao tempo se chamava “Ponte Europa”)/cf. cláusula 5ª, alíneas a) e c) do protocolo [documento de fls. 30 e 31]; no caso de terrenos que se destinem à execução de obras públicas, a sua aquisição pela entidade pública que realiza a obra pode ser feita por processo de expropriação ou por aquisição por via de direito privado, o que sucedeu no presente caso; os designados anexos E e B [documentos de fls. 39 e 40] correspondem ao referido na alínea g), supra, e era uma solução que a A. sempre aceitou, mas que o Município, por inércia sua, “deixou fugir”; em todo o caso, se o Réu “conseguir de novo colocar em execução essa solução” e se a realizar, permitindo por essa via o acesso ao prédio da A., pelo trajecto constante do anexo E [documento de fls. 39], esta mudança do local da servidão merece a aprovação da A..

            Exercido o contraditório relativamente à arguida excepção da incompetência material - tendo a A. concluído que o tribunal comum é competente em razão da matéria -, o Tribunal a quo, por decisão de 13.5.2014, nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 576º, n.ºs 1 e 2, 577º, alínea a) e 578º do Código de Processo Civil (CPC), julgou procedente a excepção dilatória de incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria, declarando-se materialmente incompetente para conhecer do pedido deduzido contra o Réu.

            Inconformada, a A. interpôs a presente apelação, formulando as conclusões que assim vão sintetizadas:

            1ª - A causa de pedir invocada é, para o pedido de declaração do direito de propriedade, a posse de diversos proprietários, alicerçada em diversas transmissões que permitem a respectiva acessão e, para o pedido de declaração da existência de servidão de passagem, a existência de passagem antes da separação dos diferentes prédios que resultaram da divisão do prédio-mãe.

            2ª - Qualquer dos pedidos ou das causas de pedir, não carece da aplicação de quaisquer normas de direito administrativo, nem o contrato de permuta corresponde a qualquer negócio de direito público, antes é um caso de aquisição por via de direito privado, celebrada ao abrigo do disposto no art.º 11º do Código das Expropriações, sendo certo que a matéria de expropriações é exclusiva dos tribunais comuns, nos termos do art.º 38º do mesmo Código.

            3ª - A relação jurídica que se invoca como violada não é manifestamente uma relação administrativa e isto apesar de um dos sujeitos ser uma pessoa colectiva de direito administrativo, mas que actua despido da sua veste de jus imperii.

            4ª - É manifesto que sendo a causa de pedir uma posse ou uma situação de facto com relevância apenas no âmbito do direito privado, as relações dele emergentes são relações de direito privado, que não cabem no âmbito de competência dos tribunais administrativos.

            5ª - Deve atender-se apenas e tão só ao pedido formulado pelo autor (a declaração da propriedade sobre determinado prédio e a declaração de que existe a favor desse prédio uma servidão de passagem), baseado na relação material concreta por ele invocada (o facto de ao tempo da separação dos prédios existir a servidão de passagem), abstraindo dos meios de prova documentais ou outros a utilizar na interpretação desses factos.

            6ª - Aliás, a competência material do tribunal determina-se segundo os termos em que foi posta a acção, ou, por outras palavras, de acordo com o pedido e a causa de pedir formulados na acção, pelo que, para aferir da competência material da presente acção importa, antes de mais, verificar se o direito que a A. invoca e os factos que alega na petição para o fundamentar, emergem de uma relação jurídica administrativa.

            7ª - Resulta das alíneas do art.º 4º do ETAF que na relação jurídica administrativa há-de existir, pelo menos, um ente público ou um ente privado no exercício de poderes públicos, e que a mesma há-de ser regulada por normas de direito administrativo.

            Remata dizendo que a decisão impugnada viola o disposto nos art.ºs 212º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP), 1º e 4º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), 64º, do CPC e art.º 18º, n.º 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais/LOFTJ (aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13.01), devendo ser revogada e substituída por outra que julgue o tribunal comum competente em razão da matéria e ordene o prosseguimento dos autos.

            O Réu não respondeu à alegação.

            Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa verificar e decidir, apenas, qual das duas ordens de tribunais – a dos tribunais judiciais ou a dos tribunais administrativos – é a competente, em razão da matéria, para julgar a acção proposta pela A. e com a configuração que lhe é dada nos autos.

*

            II. 1. Para a decisão do recurso releva o que se descreve no antecedente relatório e ainda o seguinte[1]:

            a) No aludido protocolo celebrado, em 22.10.1999, entre o Réu (1º outorgante) e a A. (2º outorgante), após a menção “Atenta a importância da construção da Ponte Europa os dois outorgantes acordam o seguinte[2], foram incluídas, entre outras, as seguintes cláusulas:

Cláusula Primeira

            O segundo outorgante é dono e legítimo proprietário da propriedade “A”, assinalada na planta anexa (Anexo 1), designada por Q (...), com uma área aproximada de 50 000 m2.

Cláusula Segunda

            O primeiro outorgante desafectará do domínio público a área designada por “B”, assinalada na planta anexa (Anexo 1), com uma área aproximada de 3 650 m2, o que será feito imediatamente após a construção da Ponte Europa e nó da Boavista.

Cláusula Terceira

            Entre o primeiro e o segundo outorgantes será celebrada, logo após a desafectação referida na Cláusula Segunda, permuta entre a propriedade “B” e a parcela “A1”, às quais é atribuído valor igual.

Cláusula Quarta

            O primeiro outorgante desde já considera viável o loteamento conjunto, da propriedade “B” e parcela “A2”, de acordo com a planta anexa (Anexo 2) e nas seguintes condições:

a) Área bruta de construção: 4 300 m2 (para além do estacionamento privado nas condições do esquema constante do Anexo 2);

b) Usos: habitação, admitindo-se funções terciárias ao nível do r/c à cota alta;

c) Cedências: as decorrentes da solução a adoptar;

d) Obras a cargo do segundo outorgante: as correspondentes a todas as infraestruturas e tratamento do espaço público inerentes à solução a adoptar, constante do Anexo 2, incluindo muros de suporte;

e) O loteamento ficará isento das taxas urbanísticas.

Cláusula Quinta

            Com a celebração do presente protocolo, o segundo outorgante desde já autoriza ao primeiro outorgante:

a) A ocupação definitiva da área “A1” (Anexo 1), com a área de 25 184 m2 (destinada à ponte);

b) A ocupação temporária das áreas “A3” e “A4” (Anexo 1), num total de 2 470 m2 (destinadas a taludes e correcção da ribeira);

c) O espaço actualmente contíguo à Av. Urbano Duarte, até aos edifícios existentes da Q (...) (propriedade do segundo outorgante), poderá continuar a ser utilizado para estacionamento, pelo segundo outorgante, até ser necessária a sua efectiva ocupação, pelo primeiro outorgante, para a realização da obra de acessos à Ponte Europa;

d) Os limites exactos do lote, correspondente ao núcleo edificado da Q (...), poderá sofrer alguns ajustamentos relativamente ao desenho constante do Anexo 1, em função do respectivo projecto a apresentar pelo segundo outorgante. Este incluirá a ampliação das instalações existentes e estacionamento enterrado com dimensão suficiente para servir o programa a instalar.

b) Nos termos da aludida escritura, de 21.12.2006, os outorgantes deram como celebrado entre si, o dito contrato de permuta, tendo por objecto os prédios nela identificados, livres de quaisquer ónus ou encargos[3], cedendo o Réu em troca, à A., o prédio urbano/parcela de terreno, destinada à construção, com a área de 4 059 m2, sito no nó da Boavista, freguesia de Santo António dos Olivais, em Coimbra, com o artigo provisório P12336 e descrito na 1ª CRP de Coimbra sob o n.º 7206, da mesma freguesia, e cedendo a A., ao Réu, como contraprestação, o prédio rústico/parcela de terreno, então ocupada pela Ponte Rainha Santa Isabel, com a área de 25 184 m2, sito na Q (...), freguesia de Almedina - Sé Velha, em Coimbra, inscrito na matriz sob o art.º 16 e descrito na 1ª CRP de Coimbra sob o n.º 279, da mesma freguesia.

c) Consta de fls. 37, sob a designação “Anexo 1”, uma cópia do projecto de execução da obra “PONTE EUROPA/Nó da Boavista”, da responsabilidade da “JAE, Construção, S. A.”, no qual se indicam, nomeadamente, a propriedade da A./” Q (...)” com a área aproximada de 50 000 m2, a propriedade do Réu a desafectar do domínio público com a área de 3 650 m2 e a área necessária à construção da “Ponte Europa” (25 184 m2), sob a designação “A1”.

d) Consta de fls. 38, sob a designação “Anexo 2”, uma cópia, do mesmo projecto, referente à área a lotear pela A. (“propriedades A2+ B de acordo com o anexo 1”) e à “área a infrastruturar” (sic).

e) O mencionado “Anexo E”/”Planta de implantação”, reproduzido a fls. 39, de Março de 2009 e com a referência “326/12”, respeita a um projecto para a implantação do acesso à Q (...), elaborado pela “Divisão de Estudos e Projectos da Câmara Municipal de Coimbra”.

f) O aludido “Anexo B”/”Levantamento topográfico”, de fls. 40, com as mesmas data e referência, foi elaborado pela mesma “Divisão” e é relativo ao “Acesso à parcela C”. 

            2. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

            Diferentemente do que acontece no comércio jurídico privado - em cujo âmbito os contraentes são colocados em pé de igualdade, quer quanto à celebração quer quanto ao desenvolvimento ulterior do contrato -, no domínio contratual administrativo o contraente particular fica submetido, na execução das prestações contratuais, à disciplina do interesse público, falando-se, a propósito, de uma especial cláusula de sujeição do contraente particular ao interesse público.[4]

            Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais (art.º 1º, n.º 1, do ETAF, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19.02) - compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais (art.º 212º, n.º 3, da CRP).

Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público (art.º 4º, n.º 1, alínea f), do ETAF, na redacção da Lei n.º 107-D/2003, de 31.12).

            São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional (art.ºs 64º, do CPC e 18º, n.º 1, da LOFTJ, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13.01[5]) - os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais (art.º 211º, n.º 1, da CRP).             

3. Sabemos que a competência material do tribunal se afere em função dos termos em que o autor fundamenta ou estrutura a pretensão que quer ver reconhecida[6] e que o meio de tutela jurisdicional pretendido pelo autor (i. é, o pedido) se encontra necessariamente correlacionado com o facto concreto que lhe serve de fundamento/causa de pedir.

Assim, ao determinar o tribunal competente em razão da matéria para o conhecimento da lide, temos de atentar, sobretudo, na alegação do A. e no efeito jurídico pretendido.

4. Para julgar litígios decorrentes de actos de gestão pública são competentes os tribunais administrativos, competência que lhes falta para o julgamento de litígios que emergem de actos de gestão privada.

Sobre a distinção gestão pública/gestão privada abundam os elementos doutrinais e jurisprudenciais.

            Marcello Caetano considera gestão pública a actividade da Administração regida pelo direito público e a gestão privada como a actividade da Administração que decorre sob a égide do direito privado[7].

Desenvolvendo esta ideia e partindo do princípio de que o direito público que disciplina a actividade da administração é quase todo ele constituído por leis administrativas, define gestão pública como a actividade da Administração regulada por normas que conferem poderes de autoridade para a prossecução de interesses públicos, disciplinam o seu exercício ou organizam os meios necessários para esse efeito; por seu lado, os actos de gestão privada surgem no âmbito da actividade desenvolvida pela Administração no exercício da sua capacidade de direito privado, procedendo como qualquer outra pessoa no uso das faculdades conferidas por esse direito, ou seja, pelo direito civil ou comercial.[8]

Segundo Antunes Varela, actos de gestão pública são aqueles que, visando a satisfação de interesses colectivos, realizam fins específicos do Estado ou de outro ente público e assentam sobre o jus auctoritatis da entidade que os pratica, enquanto de gestão privada são os actos que, embora praticados pelos órgãos, agentes ou representantes do Estado ou de outras pessoas colectivas públicas, estão sujeitos às mesmas regras que vigorariam para a hipótese de serem praticados por simples particulares (o Estado ou a pessoa colectiva pública intervém como simples particular, despido do seu poder público).[9]

Afonso Queiró, depois de reflectir que a Administração nem sempre surge perante os particulares com a mesma roupagem, pois uma vez assume uma posição de desigualdade e outras vezes uma posição de igual para igual, sublinha que, na primeira hipótese, a Administração actua numa situação de privilégio, de supremacia, não necessitando de socorrer-se da via judicial para satisfazer as necessidades da sua esfera de acção, bastando-se com a sua própria força e autoridade, ainda que contra a vontade dos particulares, eventualmente discordantes. Na segunda hipótese, a administração porta-se como um mero particular, socorrendo-se dos meios ou formas de acção jurídica fornecidos pelo direito privado.[10]

No acórdão do Tribunal de Conflitos de 05.11.1981[11] considerou-se que a solução do problema da qualificação como de gestão pública ou de gestão privada, dos actos praticados pelos titulares de órgãos ou agentes de uma pessoa colectiva pública, reside em apurar: se tais actos se compreendem numa actividade da pessoa colectiva em que esta, despida do poder público, se encontra e actua numa posição de paridade com os particulares a que os actos respeitam, e, portanto, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular, com submissão às normas de direito privado, ou se, contrariamente, esses actos se compreendem no exercício de um poder público, na realização de uma função pública, independentemente de envolverem ou não o exercício de meios de coerção e independentemente, ainda, das regras, técnicas ou de outra natureza, que na prática dos actos devem ser observadas.

5. É de notar que ao falar-se de actos que se compreendem na realização de uma função pública pretende-se focar apenas os actos que integram, eles mesmos, essa realização, não abrangendo os actos que apenas se destinam a permiti-la, isto é, actos instrumentais à realização de actos de gestão pública.

6. Do exposto, resulta existir consenso quanto ao essencial, isto é, são actos de gestão pública, os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração no exercício de um poder público, ou seja, no exercício de uma função pública, sob o domínio de normas de direito público, ainda que não envolvam ou representem o exercício de meios coercivos; actos de gestão privada, os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração em que esta aparece despida do poder público, e, portanto, numa posição de paridade com os particulares a que os actos respeitam, e, daí, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular, com inteira submissão às normas de direito privado e às mesmas jurisdições.[12]           

7. A A. pretende o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre determinada parcela de terreno mas é evidente que o Réu nunca questionou a sua existência, com a configuração decorrente dos supra referidos protocolo e contrato de permuta.

A celebração do mencionado contrato de permuta envolveu, por parte do Réu/Município, a prática de um acto em que predomina ou sobressai a gestão privada e a mera conjugação de interesses privados atinentes à titularidade de bens dominiais. A escritura de permuta em causa, nos moldes em que foi feita, bem poderia ter lugar no âmbito do domínio meramente privado, sendo que o mencionado contrato não contém nenhuma prerrogativa que atribuísse ao Réu uma posição de supremacia em relação à A.; as partes contrataram numa posição de paridade, não se verificando dependência ou subordinação da recorrente à prática de actos unilaterais por banda do Réu, que interveio desprovido do seu Jus imperii, i. é, em pleno pé de igualdade com o outro contraente.

Porém, no tocante ao cerne do litígio, ou seja, quanto à pretensa constituição de uma servidão por destinação de pai de família a favor da mencionada “parcela C” [não, obviamente, a adquirida pela A. por efeito do aludido contrato de permuta - o que não se questiona e decorre dos elementos juntos aos autos, designadamente, do documento de fls. 9] por sobre a “parcela B” [esta, sim, objecto do contrato de permuta e que constituiu a “contrapartida” dada pela A.] e com o trajecto assinalado no “doc. 10” [documento de fls. 20], “condenando-se o Réu a tal reconhecer e, ainda, a repor a situação em que a A. se encontrava antes, reabrindo a passagem que ele tapou ao construir o muro de gavião e a não obstruir ou perturbar o direito de servidão reconhecido à A.”, afigura-se, salvo o devido respeito por entendimento contrário, que se trata de matéria envolvendo o interesse público inerente à construção e à existência de infra-estruturas viárias afectas à comunidade em geral e que, in casu, encontram a sua justificação e conformação no aludido protocolo e nos diversos elementos, que lhe estão associados, relativos ao projecto de execução da(s) respectiva(s) obra(s) [cf., sobretudo, II. 1. alíneas c), e) e f), supra].

 Ou seja, a matéria atinente à execução da obra “Ponte Rainha Santa Isabel e Nó da Boavista”, inclusive no tocante às respectivas vias de acesso, envolveu, necessariamente, procedimentos de gestão pública tendo também por objecto o acesso à dita “parcela C” (da A.) e, nessa definição (projecto de execução) e subsequente execução/conformação, prevalece o interesse público, a promover pelo Réu no uso das prerrogativas legais inerentes ao exercício de poderes públicos.

8. Ademais, voltando ao mencionado contrato de permuta, verifica-se, também, que as partes (A. e Réu) vieram a adquirir as correspondentes parcelas livres de quaisquer ónus ou encargos [cf. II. 1. alínea b), supra], pelo que, situando-nos no domínio da legislação privatística, sempre seria de afastar a existência da invocada relação de serventia (cf. art.ºs 1543º e 1549º, do Código Civil).[13]

9. A conclusão a extrair do pedido deduzido e da correspondente factualidade [configurada na p. i. e melhor explicitada nos documentos juntos aos autos e aquando da audiência contraditória da A. (fls. 43)/art.º 415º, n.º 1, do CPC], é a de que o Réu actuou, então, na qualidade de ente público e por força do exercício das respectivas funções, estando em causa o eventual incumprimento do protocolo (e respectivos projectos anexos) subscrito no âmbito de uma relação jurídica administrativa (regulada por normas de direito administrativo) e por razões de interesse público (construção da “Ponte Rainha Santa Isabel e Nó da Boavista”), que não se colocam no âmbito de relações de natureza jurídico-privada.

O protocolo em causa terá de ser visto como um contrato administrativo, traduzindo um acordo de vontades pelo qual é constituída uma relação jurídico-administrativa, tendo sido celebrado pelo Réu Município de Coimbra na sua veste de entidade pública e no exercício de poderes públicos.

Atenta a estrutura da relação jurídica em apreço, é evidente que ao projectar e ao executar a obra pública “Ponte Rainha Santa Isabel” e respectivos acessos[14], o Réu (também através do seu órgão executivo, a respectiva Câmara Municipal) - enquanto órgão de direito público e que prossegue interesses predominantemente públicos ou colectivos -, praticou diversos actos de gestão pública, tendo como objecto a prossecução do interesse público, de acordo com as normas de direito administrativo [maxime, no quadro de competências dos órgãos municipais fixado pelo DL n.º 169/99, de 18.9, designadamente, no seu art.º 64º].

Podendo-se afirmar a prevalência do interesse público sobre os interesses privados em presença[15], excluída está a competência dos tribunais comuns em matéria cível para o julgamento da causa, concluindo-se, assim, que a competência material para a apreciação da presente acção cabe aos tribunais administrativos – cabe, pois, a estes tribunais apreciar e decidir, na versão da A., a questão atinente ao invocado encravamento da sua dita parcela em consequência da execução da referida obra pública por parte do Réu, de modo a poder ser exercido o direito da A. de aceder à mesma (cf., v. g., os art.ºs 23º a 25º da p. i.) e/ou, na perspectiva do Réu, se ocorreram as vicissitudes descritas nos art.ºs 21º e seguintes da contestação, nomeadamente, as relativas à execução do acesso à “parcela C” previsto no protocolo, e foi construído o acesso (da referida parcela à Av. da Boavista), deixando de estar encravada, e bem assim, em derradeira análise, as consequências daí decorrentes para a esfera jurídica das partes.

            10. No fundo, a causa de pedir configurado nos autos, i. é, o acto ou facto jurídico concreto donde emerge o direito que a A. invoca e pretende fazer valer[16], decorre ou emerge do dito protocolo, o qual compreende, necessariamente, os respectivos “anexos” e, em parte, também se projecta no aludido “contrato de permuta”, sendo que este mesmo contrato jamais poderá ser desligado daquele primeiro acordo[17], que o prevê e justifica e que, no reconhecimento e na concretização do interesse em litígio, deverá assumir decisiva relevância.[18]

            Dizer que a A. parte do mencionado contrato de permuta e nele faz radicar os seus pretensos direitos, traduzirá, por um lado, entendimento manifestamente enviesado e distorcido do descrito relacionamento contratual e, por outro lado, uma tentativa de fazer ignorar que o protocolo, que acompanhou e “ditou” todo o relacionamento das partes, é um contrato administrativo, agindo o Réu nas vestes de autoridade pública, visando o prosseguimento do interesse público [evidenciado, desde logo, no texto que precede a enumeração das cláusulas do mencionado protocolo - cf. II. 1. a), supra] e a satisfação de necessidades predominantemente públicas.[19]

            11. Em conclusão, a relação jurídica estabelecida entre a A. e o Réu, no tocante à concreta questão do litígio, tem, pois, natureza administrativa, já que o Réu, na sua configuração e execução, agiu no exercício de um poder público e na prossecução de um interesse público; consequentemente, a competência para o julgamento da presente acção cabe aos tribunais administrativos, nos termos do art.º 1°, n.° 1, do ETAF.[20]

            Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.

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            III. Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação e confirma-se a decisão recorrida.

            Custas da apelação pela A./apelante.

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17.12.2014

           

           

Fonte Ramos ( Relator)

Maria João Areias

Fernando Monteiro

           

                                              

           

           


[1] Tendo em conta os diversos documentos juntos aos autos, designadamente, a fls. 10, 13 verso, 30, 37, 38, 39 e 40.
[2] Sublinhado e itálico ora introduzidos.
[3] Idem.
[4] Cf. o acórdão do STJ de 19.11.1998-processo 830/98, apud acórdão do STJ de 26.6.2001, in CJ-STJ, IX, 2, 129.
[5] Idêntica é a estatuição do art.º 40º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26.8, em vigor desde 01.9.2014 (cf. os art.ºs 188º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26.8 e 118º, do DL n.º 49/2014, de 27.3).
[6] Vide, entre outros, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, págs. 91 e 95 e os Acórdãos do STJ de 12.01.1994, 22.01.1997, 20.5.1998 e 26.6.2001, in CJ-STJ, II, 1, 38 e V, 1, 65; BMJ, 477º, 389 e CJ-STJ, IX, 2, 129, respectivamente.
[7] Manual de Direito Administrativo, tomo I, 10 edição, pág. 44 e nota (1).
[8] Ibidem, tomo I, pág. 431.
[9] Das Obrigações em Geral, Vol. I, 1991, pág. 643.
[10] Cf., designadamente, Direito Administrativo, págs. 66 e 67 e Lições de Direito Administrativo, Vol. I, 1976, págs. 184 e seguintes.
[11] Publicado no BMJ, 311º, 195.
[12] Vide, sobretudo, o citado acórdão do STJ de 26.6.2001.
   Sobre a matéria, vide ainda, numa perspectiva histórica (a partir do 3º quartel do séc. XIX…), Prosper Weil, O Direito Administrativo, Almedina, 1977, sobretudo, págs. 67, 68 e 77.
[13] Vide Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. II, 3ª edição, Coimbra Editora, 1987, pág. 635.

   A esta problemática se referirá o Réu, na contestação, quando diz que a A. bem sabia que o acesso existente, de acordo com as plantas anexas ao protocolo celebrado com o Município, ficaria vedado, E que seria construído um novo acesso definitivo à parcela em causa, conforme resulta das mesmas plantas e, por último, e em conclusão, que a Autora sabia que, com a construção da ponte e do nó de acesso, a parcela em causa deixaria de ter o acesso existente, não podendo, por isso, alegar a constituição de servidão por destinação do pai de família entre os dois prédios (cf. os art.ºs 17º, 18º e 29º da contestação).
[14] Na definição de Marcello Caetano, ob. cit., Vol. II, pág. 1001, são obras públicas “os trabalhos de construção, grande reparação e adaptação de bens imóveis, feitos total ou parcialmente por conta da Administração para fins de utilidade pública”.
[15] Cf., entre outros, o acórdão do Tribunal de Conflitos de 16.12.2004-processo 04/04, publicado no “site” da dgsi.
[16] Vide Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 111.
[17] Ainda que da permuta em causa decorram igualmente efeitos que apenas relevam no domínio privado – cf. a “nota 20”, infra.

[18] De resto, a A./recorrente bem sabe que o arrazoado da alegação de recurso - designadamente, o excerto “o despacho ora recorrido não entende a diferença entre o caso presente e o Ac. do Tribunal de Conflitos que cita [aludido na “nota” seguinte], em que o protocolo invocado era, ele próprio, a causa de pedir, pelo que a situação teria de ser diversa” - não corresponde à melhor leitura dos factos dos autos e é avesso à realidade…
[19] Cf., a propósito, o acórdão do Tribunal de Conflitos de 30.6.2011-processo 01/11, publicado no “site” da dgsi.

[20] Importa aqui referir que era claramente diferente a situação emergente do dito “contrato de permuta” apreciada e decidida por acórdão desta Relação de 01.7.2014 (no qual interveio, como adjunto, o aqui relator) que julgou competente em razão da matéria o tribunal judicial recorrido, e veio a ser confirmado por acórdão do STJ de 25.11.2014-processo 22/14.4TBCBR.C1.S1, pois, como ficou explanado neste aresto, “na base ou no fundamento da pretensão da A. está o contrato de permuta celebrado com o Município, negócio de âmbito patentemente privado e do qual derivaram relações disciplinadas pelo direito privatístico. Com efeito, compulsando a petição inicial vê-se que a A. demanda o R., em razão do contrato de permuta de terrenos que celebraram entre si, permuta realizada livre de quaisquer ónus ou encargos, pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia que despendeu com a remoção do subsolo do terreno, das infra-estruturas ali implantadas pela PT. É sobre os contornos deste contrato de permuta que se deverá desenvolver a discussão do pleito introduzido pela A. em juízo. (…) As (eventuais) deliberações camarárias e o protocolo firmado (…) não são objecto de discussão nesta causa (…)”.