Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
238/13.0TMCBR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
BEM PRÓPRIO
BENFEITORIA
Data do Acordão: 01/09/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JUÍZO FAM. MENORES - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.1723, 1793 CC
Sumário: I – O art. 1793º, nº1 do C.Civil fixa os critérios a que se deve atender para determinar qual dos cônjuges poderá continuar a habitar a casa, sendo que se entende que esses critérios ali enumerados de forma expressa são os mais importantes, por isso mesmo sendo expressamente indicados, sendo eles dois, a saber, (i) as necessidades de cada um dos cônjuges, e (ii) o interesse dos filhos do casal.

II – No que ao critério do interesse dos filhos diz respeito, prende-se ele com a situação dos filhos menores, porque é aos filhos menores que a lei dedica a sua protecção, precisamente por se entender que é o interesse deles que é erigido por lei como critério para atribuição da casa de morada da família.

III – Não tendo o Requerente nos autos qualquer outra casa própria ou arrendada, pode qualificar-se a necessidade do mesmo relativamente à casa de morada de família de premente, na medida em que, vivendo presentemente na casa da sua atual companheira, no contexto desta relação afectiva, não tem pessoalmente qualquer título, muito menos jurídico, à habitação detida por aquela, podendo qualificar-se como inteiramente legítima a aspiração por parte do mesmo a dispor do imóvel ajuizado para nele fixar a sua residência, seja ou não alternativa à que atualmente tem (com a sua companheira).

IV – Pode recorrer-se a outros critérios, em caso de dúvida ou de situação de igualdade entre ambos os cônjuges com o recurso àqueles, podendo alinhar-se entre estes critérios suplementares o da localização da casa relativamente ao local de trabalho de um e outro (em conjugação com o facto de algum deles dispor eventualmente de outra casa em que possa estabelecer residência), e bem assim o da maior ligação de cada um dos ex-cônjuges em relação à casa em disputa.

V – É entendimento jurisprudencial prevalecente o de que a construção de uma casa pelos cônjuges em terreno que é bem próprio de um deles constitui benfeitoria, face ao que o cônjuge não proprietário do terreno fica a ter apenas um “direito de crédito” sobre o outro, quanto ao valor da benfeitoria.

VI – Na circunstância, está insofismavelmente apurada a “maior ligação” do Requerente enquanto proprietário/dono do bem, em relação à casa ajuizada, face à Requerida, a qual fixou entretanto residência permanente numa outra cidade, o que tudo serve para dizer que a globalidade do factualismo apurado permite reconhecer maior prevalência à necessidade do Requerente quanto à casa ajuizada, que foi a casa de morada de família.

Decisão Texto Integral:








Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]                                                                                                          *

1 – RELATÓRIO

S (…), residente na Rua (...) , X (...) , veio, nos termos do disposto nos artigos 988º e 990º, nº 4 do CPC, deduzir o presente incidente de alteração da atribuição da casa de morada de família contra C (…) residente na Rua (...), Y (...) .

Para tanto, alega, em síntese, que contraiu matrimónio com a requerida, tendo dessa união nascido a menor L (…). Por sentença proferida a 11 de Setembro de 2013, foi decretado o divórcio entre ambos, sendo que, anteriormente à referida acção de divórcio, foi intentada uma acção de regulação das responsabilidades parentais relativamente à menor tendo aí ficado decidido que, para efeitos do exercício das responsabilidades parentais referente ao actos de vida corrente da filha, esta continuaria a residir com a mãe na residência sita na Rua (…) X (...) .

O requerente defende, porém, a existência de circunstâncias supervenientes que alteram os factos que estiveram na base do acordo da regulação das responsabilidades parentais. Destarte, o requerente alega que a requerida decidiu ir viver definitivamente para Y (...) juntamente com a filha de ambos, a qual passou a frequentar a creche da W... em Y (...) , deixando de residir com esta na casa de morada de família que lhe tinha sido atribuída. Por outro lado, o requerente defenda que a casa de morada de família é um seu bem próprio, sendo que a requerida se recusa a entregar a chave do imóvel pese embora já não resida na aludida residência há mais de três anos.

Por fim, o requerente defende que não tem qualquer outro bem imóvel, residindo, actualmente e desde o decretamento do divórcio, com e na dependência da companheira na rua (…), X (...) , sendo certo que a casa de morada de família não tem água nem electricidade, encontrando-se vazia, fechada e a deteriorar-se.

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Designada data para a tentativa de conciliação que se revelou infrutífera, nos termos previsto no artigo 990º, nº 2 do CPC, foi proferida decisão, a título provisório, atribuindo ao requerente S (…) o direito à atribuição da Casa de Morada de família sita na Rua (…)   X (...) , pelo que a requerida C (…) deveria desocupá-la no prazo de 10 dias, entregando a respectiva chave ao requerente. Foi, ainda, proferido despacho no sentido de se proceder à notificação da requerida para contestar a acção nos termos dos artigos 990º, nº 2 e 293º do CPC.

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Regularmente notificada, a requerida deduziu oposição por excepção e impugnação. Relativamente à primeira modalidade de defesa, a requerida sustenta que o direito de habitação que lhe foi atribuído no âmbito da sentença que homologou o acordo da regulação das responsabilidades relativamente à menor se encontra na sua esfera jurídica, pelo que a casa de morada de família se encontra onerada pelo direito de habitação constituído a seu favor. Por conseguinte, defende que tal direito dever-se-á reger pelo disposto nos artigos 1484º do CC., aplicando-se com as necessárias adaptações o disposto quanto ao usufruto, pelo que este direito se extingue pelo mesmo modo que o usufruto cujas circunstâncias estão contempladas no artigo 1476º do C.C. Nesse sentido, a requerida defende que inexistindo causa que permita a extinção desse direito não se vislumbra que exista alguma justificação que permita alterar o direito de habitação para o requerente, sendo certo que o presente incidente, como segue a tramitação prevista no disposto no artigo 990º do CPC, se caracteriza por ter como fim a alteração em definitivo do destino da casa de morada de família.

No que concerne à segunda modalidade de defesa, a requerida defende que o requerente não oferece qualquer facto que possa fundamentar uma necessidade de alteração do disposto no acordo homologado por sentença sobre o destino da casa de morada de família porquanto este reside há cerca de seis anos com a sua nova companheira, ou seja, tem centrada sua vida pessoal e conjugal numa outra morada.

Por outro lado, a requerida sustenta que pese embora não se discuta a titularidade do terreno onde se encontra implantada da casa de morada de família, esta não é um bem próprio do requerente uma vez que foi construída com recurso a crédito bancário contraído por ambos.

Por fim, a requerida apregoa que a aludida casa de morada de família não se encontra ao abandono, não correspondendo à verdade de que não frequenta casa há mais de três anos. No mais, defende que conserva no interior daquele bem imóvel os seus bens pessoais bem como os da sua filha menor, sendo que o requerente não tem qualquer bem pessoal.

Pugna, a final, pela procedência da excepção arguida e, caso assim não se entenda, pela improcedência, por não provado, do presente incidente de atribuição da casa de morada de família ao requerente.

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Não se conformando com a decisão provisória proferida por despacho na tentativa de conciliação que estabeleceu a entrega provisória da casa de morada de família ao Requerente, a Requerida veio interpor recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Coimbra, o qual foi admitido, sendo que na sua apreciação o Tribunal de 2ª instância julgou procedente o recurso e revogou a decisão recorrida.

De referir que no mesmo despacho, foi designada data para inquirição das testemunhas arroladas pelas partes.

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Procedeu-se à inquirição das testemunhas arroladas, com observância do legal formalismo, conforme consta das respectivas actas. No decorrer da aludida inquirição, foi requerida oficiosamente pelo tribunal a junção aos autos de informação por parte do Banco (…) relativamente ao empréstimo bancário contraído pelo requerente e requerida por se considerar relevante para a boa decisão da causa.

                                                           *

Veio, na sequência, a ser proferida sentença, na qual após identificação em “Relatório”, das partes e do litígio, se alinharam os factos provados e se consignou que não havia factos “não provados”, sendo que relativamente aos primeiros se apresentou a correspondente “Motivação”, após o que se considerou, em suma, que relativamente à necessidade de residência no presente sustentada pelo Requerente, as circunstâncias factuais apuradas pendiam no sentido da atribuição desse direito ao Requerente, e sem o pagamento à Requerida de qualquer compensação pela privação, por parte desta, da utilização que dela vem tendo [na medida em que “tendo os cônjuges (re)construído uma moradia num terreno pertencente ao património próprio de um deles, essa construção constitui uma benfeitoria útil e não a consignação da existência de um bem comum do casal. E, sendo um bem próprio do requerente não cremos que o mesmo deverá ficar onerado ao pagamento de qualquer renda e/contribuição (até porque o mesmo já suporta o pagamento integral das prestações referentes ao empréstimo bancário) porquanto a requerida não se vê privada de um bem que integra o património comum do casal ou que é seu bem próprio”], o que se traduziu no seguinte concreto “dispositivo”:

«Decisão:

Pelo exposto, julgo a presente acção procedente, atribuindo ao requerente S (…) a utilização da casa de morada de família, sita na Rua (…), X (...) , devendo a requerida C (…) proceder à entrega das chaves do imóvel no prazo de 10 dias

Custas pela Requerida.

Registe e notifique.»

                                                           *

É com esta decisão que a Requerida não se conforma e dela vem interpor recurso de apelação, pedindo a revogação da mesma, apresentando as seguintes conclusões:

(…)

                                                           *

Por sua vez, apresentou o Requerente as suas contra-alegações a fls.198-218, das quais extraiu as seguintes conclusões:

(…)

                                                           *

Nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2QUESTÕES A DECIDIR: o âmbito do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – arts. 635º, nº4 e 639º do n.C.P.Civil – e, por via disso, por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, as questões a decidir são:

            - impugnação da matéria de facto, quanto aos pontos “provados” sob os nos “17.”, “20.”, “22.” e “23.” (relativamente aos quais pugna por que, no essencial, sejam considerados “não provados”);

- incorreto julgamento de direito/erro de decisão, ao decretar-se a entrega da casa de morada de família ao Requerente ora recorrido.

                                                           *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

3.1 – Como ponto de partida, e tendo em vista o conhecimento dos factos, cumpre começar desde logo por enunciar o elenco factual que foi considerado fixado/provado pelo tribunal a quo, sem olvidar que tal enunciação terá um carácter “provisório”, na medida em que o recurso tem em vista a alteração parcial dessa factualidade.   

            Tendo presente esta circunstância, consignou-se o seguinte na 1ª instância:

 «Resultaram apurados os seguintes factos com interesse para a decisão da causa:

1. Requerente e Requerida contraíram casamento civil, sem convenção nupcial, no dia 18 de Dezembro de 2010.

2. Requerente e requerida viveram em união de facto desde 2001.

3. Desta união nasceu a 10-12-2011 a menor L (…)

4. Em Novembro de 2012, foi intentada uma acção de regulação das responsabilidades parentais relativamente à menor L (…), acção que foi distribuída com o nº 919/12.6TMCBR.

5. No dia 8 de Março de 2013, a requerida C (…) intentou uma acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, dando origem aos autos principais com o nº 238/13.0TMCBR.

6. Por despacho proferido a 23 de Abril de 2013, a acção de regulação das responsabilidades parentais foi apensa aos autos de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, passando a ser identificada com o nº 238/13.0TMCBR-A.

7. A 31 de Janeiro de 2013 foi homologado por sentença o acordo de regulação das responsabilidades parentais relativamente à menor L (…).

8. Da cláusula nº 2 do acordo aludido em 6) consta que:

“Para efeitos do exercício das responsabilidades parentais referente aos atos de vida corrente da filha, esta continuará a residir com a mãe, aí ficando determinada a sua residência, a qual passará a ocorrer na Rua (…)229 X (...) , a partir de segunda-feira - dia 04-02-2013.”

9. Por sentença proferida a 11 de Setembro de 2013, já transitada em julgado, foi decretado o divórcio entre requerente e requerida, com a consequente dissolução do casamento celebrado entre ambos a 18 de Dezembro de 2010.

10. A 13 de Abril de 2015, a requerida C (…) requereu a alteração das responsabilidades parentais na Instância local de Y (...) , Secção cível- J2 - Comarca de Y (...) , tendo esta instância requisitado o processo nº (...) TMCBR-A ao presente tribunal, tendo estes sido apensados ao processo nº (...) T8BGC.

11. Por sentença proferida a 14 de Outubro de 2016, foi homologado o acordo de alteração da regulação das responsabilidades parentais referentes à menor L (…) tendo ficado consignado que a menor continuaria a residir durante três semanas com a progenitora em Y (...) , residindo com o progenitor uma semana por mês, regime esse que se matéria até ao início de Setembro de 2017, passando, a partir de Setembro de 2017, a mesma a residir durante o mês inteiro com a progenitora em Y (...) .

12. A requerida vive e trabalha em Y (...) .

13. A menor L (…) frequenta o Jardim-de-infância da W... em Y (...) .

14. O transporte relativamente às visitas e convívios entre o requerente e a menor L... de e para Y (...) é assegurado pelo requerente.

15. Encontra-se inscrito no registo predial a favor do requerente S (…) o prédio urbano correspondente a casa de habitação de rés-do-chão e primeiro andar, com a área de 250 m2, sito em (...) , e descrito na competente conservatória de registo predial sob a descrição (...) /19951024.

16. O prédio urbano identificado no ponto 14) foi adquirido exclusivamente pelo requerente a (…) e mulher (…) e S (…) através de escritura pública de compra e venda de 15 de Novembro de 1995.

17. Em 16 de Agosto de 2006, requerente e requerida contraíram um empréstimo no valor de €75.000,00 para a remodelação/reconstrução do prédio melhor identificado no ponto 14) junto do Banco K... , dando como hipoteca o aludido imóvel.

18. A libertação da primeira tranche do empréstimo nº 0030.00490584850 ocorreu em 30 de Agosto de 2006 no valor de €61.500,00, tendo sido efectuada mediante avaliação realizada em 25 de Julho de 2006.

19. A segunda e última libertação de tranche ocorreu em 23 de Outubro de 2008, no valor de €13.500,00, tendo sido efectuado na sequência de vistoria à obra.

20. O requerente tem suportado exclusivamente o pagamento das prestações mensais referente ao empréstimo contraído por ambos junto do Banco K... , sendo-lhe debitadas todas as despesas associadas ao referido empréstimo.

21. Durante o tempo em que viveram juntos, o requerido e a requerida residiram no imóvel sito na Rua (…), X (...) .

22. Desde o decretamento do divórcio entre o requerente e a requerida que aquele reside com a sua actual companheira na Rua (…), em X (...) , não sendo proprietário de qualquer outro imóvel.

23. Desde data não concretamente apurada, mas não antes de 16 de Setembro de 2015, que o imóvel sito na Rua (…) X (...) , não se encontra habitado nem tem sido utilizado pelo requerente ou requerida.»

                                                                       *

            3.2 – A Requerida/recorrente deduz impugnação da matéria de facto, quanto aos pontos “provados” sob os nos “17.”, “20.”, “22.” e “23.” (relativamente aos quais discorda de que os mesmos tenham sido considerados “provados”):

(…)

Quanto a nós, não existe no nosso atual sistema jurídico-legal uma qualquer impossibilidade de ser utilizada para formar a convicção probatória sobre pontos de facto que se possam considerar “favoráveis” à parte, o que tenha resultado das “declarações de parte” da mesma.

Isto sempre no quadro da livre convicção probatória – que é o paradigma do nosso sistema (cf. art. 607º, nº5 do n.C.P.Civil, expressamente mencionado no nº 3 do art. 466º do mesmo normativo).

Na verdade, é disso que se trata, quando está em causa valorar o que se adquiriu nesse contexto, por via do que foi reportado pela parte, extravasando o que fora definido como indo ser objecto do seu “depoimento de parte”, isto é, que não se traduziu em “confissão” (por definição reportada a factos “desfavoráveis”[2]).

Mas vejamos antes de mais o enquadramento geral que pode e deve ser feito nesta temática, o que vamos fazer com apoio no constante de douto estudo sobre a mesma[3], a saber:

«Constitui doutrina e jurisprudência dominantes que o depoimento de parte constitui um meio processual através do qual se pode obter e provocar a confissão judicial, sendo esta uma declaração de ciência que emana da parte e em que se reconhece a realidade de um facto desfavorável ao declarante (contra se pronuntiatio) e favorável à parte contrária a quem competiria prová-lo (Art. 352 do Código Civil).

Nessa medida, o depoimento de parte só pode incidir sobre factos desfavoráveis ao depoente. Chamado a pronunciar-se sobre esta questão, o Tribunal Constitucional no seu Acórdão nº 504/2004, Artur Maurício, DR, II Série de 2.11.2004, p. 16.093, foi perentório no sentido de que “A confissão (...) não constitui meio de prova de quem emite a declaração, mas a favor da parte com interesses contrários, ninguém podendo, por mero ato seu, formar provas a seu favor. / Não se vê que fique vedado ao legislador ordinário regular a possibilidade de limitar o depoimento de parte de forma a impedir o exercício do direito de o prestar quando o respetivo objeto seja irrelevante enquanto confissão, ou seja, quando se anteveja uma disfunção entre o meio processual e o fim tido em vista pela sua previsão.”

Todavia, ainda na vigência do Código de Processo Civil revogado, foi crescendo uma corrente jurisprudencial pugnando no sentido de que o depoimento de parte - no que exceder a confissão de factos desfavoráveis à mesma parte - constitui meio de prova de livre apreciação pelo tribunal – Artigo 361 do Código Civil.(1) Ou seja, embora configurado processualmente no sentido da obtenção da confissão, foram reconhecidas ao depoimento de parte virtualidades probatórias irrecusáveis perante um sistema misto de valoração da prova em que a par de prova tarifada existem meios de prova sujeitos a livre apreciação. 

A parte podia ser ouvida pelo juiz sob as vestes preconizadas no Art. 266.2. do CPC e como depoente de parte, estando-lhe vedado ser testemunha em causa própria (“nemo debet esse testis in propria causa”). As razões determinantes desta inadmissibilidade são essencialmente três: «receio de perjúrio; as partes têm um interesse no resultado da ação e podem ser tentadas a dar um testemunho desonesto e finalmente mesmo que as mesmas não sejam desonestas, estudos psicológicos demonstram que as pessoas têm uma maior tendência a recordar factos favoráveis do que factos desfavoráveis pelo que o depoimento delas como testemunhas nos processos em que são partes não é, por essa razão de índole psicológica, fidedigno.»(2)

Todavia, constituía dado da experiência comum que a inadmissibilidade da prestação de declarações de parte conduzia – com frequência – a assimetrias no exercício do direito à prova(3) dificilmente compagináveis com o princípio da igualdade de armas ínsito no direito à prova. Constitui exemplo paradigmático o julgamento de acidente de viação em que o autor/condutor – por ser formalmente parte - não era ouvido quanto ao relato da dinâmica do acidente enquanto o segurado (e também condutor) da Ré (Seguradora) era sempre arrolado como testemunha. Por outro lado, existem factos integrantes do thema probandum que são por natureza revéis à prova documental, testemunhal e mesmo pericial, nomeadamente «factos de natureza estritamente doméstica e pessoal que habitualmente não são percecionados por terceiros de forma direta»(4), factos respeitantes a «acontecimentos do foro privado, íntimo ou pessoal dos litigantes».(5) No que tange a este tipo de factos demonstráveis por prova tendencialmente única, a recusa do tribunal em admitir e valorar livremente as declarações favoráveis do depoente pode implicar «uma concreta e intolerável ofensa do direito à prova, no quadro da garantia de um processo equitativo e da tutela jurisdicional efetiva dos direitos subjetivos e das demais posições jurídicas subjetivas.»(6)

Se outras razões não ocorressem, tanto bastava para evidenciar a pertinência da consagração das declarações de parte como um novo meio de prova no atual Código de Processo Civil. Na Exposição de Motivos, de forma bastante sucinta, anuncia-se o novo meio de prova assim: «Prevê-se a possibilidade de prestarem declarações em audiência as próprias partes, quando face à natureza pessoal dos factos a averiguar tal diligência se justifique, as quais são livremente valoradas pelo juiz, na parte em que não representem confissão.»

(1) Neste sentido, cf. os Acórdãos do STJ de 2.10.2003, Ferreira Girão, 03B1909, de 9.5.2006, João Camilo, 06A989, de 16.3.2011, Távora Víctor, 237/04 (“(…)o depoimento tem um alcance muito mais vasto, podendo o tribunal ouvir qualquer uma das partes quando tal se revele necessário ao esclarecimento da verdade material. E se é certo que “a confissão” só pode versar sobre factos desfavoráveis à parte, não é menos verdade que o Juiz no depoimento em termos gerais não está espartilhado pela confissão, podendo colher elementos para a boa decisão da causa de acordo com o princípio da “livre apreciação da prova”), de 4.6.2015, João Bernardo, 3852/09. No Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 22.11.2011, Araújo de Barros, 2700/03, também se discorreu que: «Por decorrência do princípio da livre apreciação da prova, embora o depoimento de parte seja o meio próprio para colher a confissão judicial das partes, nada impede que dele se extraiam elementos que contribuam para a prova de factos favoráveis ao depoente ou para a contraprova de factos que lhe sejam desfavoráveis

(2) ELIZABETH FERNANDEZ, “Nemo Debet Esse Testis in Propria Causa? Sobre a (in)Coerência do Sistema Processual a Este Propósito”, in Julgar Especial, Prova Difícil, 2014, p. 27.

(3) ELIZABETH FERNANDEZ, Op. Cit., p. 22, apela aqui à ideia de «um preocupante deficit de processo equitativo.»

(4) ELIZABETH FERNANDEZ, Op. Cit., p. 37.

(5) REMÉDIO MARQUES, “A Aquisição e a Valoração Probatória de Factos (Des) Favoráveis ao Depoente ou à Parte”, in Julgar, jan-abr. 2012, Nº16, p. 168.

(6) REMÉDIO MARQUES, Op. Cit., p. 168.» 

Dito de outra forma: as “declarações da parte” podem constituir, elas próprias, uma fonte privilegiada de factos-base de presunções judiciais, lançando luz e permitindo concatenar - congruentemente - outros dados probatórios avulsos alcançados em sede de julgamento.

Isto é, «a valoração das declarações de uma parte, que forem favoráveis a essa parte, fora do esquema típico do depoimento de parte poderá ser livremente valorada pelo julgador, ainda que com o apoio em outras presunções judiciais, ou valerá como indício ou princípio de prova, conquanto apoiado noutras provas ou em presunções naturais (presunções simples ou hominis) extraídas das regras da experiência.[4]» 

Não há, assim, como denegar ou contrariar a potencialidade e centralidade das “declarações de parte” na formação da convicção do juiz.

Donde o nosso acolhimento, de pleno, à feliz síntese constante do estudo pré-citado e supra transcrito, mais concretamente no seguinte segmento:

«Num sistema processual civil cuja bússola é a procura da verdade material dos enunciados fáticos trazidos a juízo, a aferição de uma prova sujeita a livre apreciação não pode estar condicionada a máximas abstratas pré-assumidas quanto à sua (pouca ou muita) credibilidade mesmo que se trate das declarações de parte. Se alguma pré-assunção há a fazer é a de que as declarações de parte estão, ab initio, no mesmo nível que os demais meios de prova livremente valoráveis. A aferição da credibilidade final de cada meio de prova é única, irrepetível, e deve ser construída pelo juiz segundo as particularidades de cada caso segundo critérios de racionalidade.

Sintetizando, diremos que: (i) a degradação antecipada do valor probatório das declarações de parte não tem fundamento legal bastante, evidenciando um retrocesso para raciocínios típicos e obsoletos de prova legal; (ii) os critérios de valoração das declarações de parte coincidem essencialmente com os parâmetros de valoração da prova testemunhal, havendo apenas que hierarquizá-los diversamente.

Em última instância, nada obsta a que as declarações de parte constituam o único arrimo para dar certo facto como provado desde que as mesmas logrem alcançar o standard de prova exigível para o concreto litígio em apreciação.»[5]

Revertendo tudo o vindo de expor ao caso vertente, o que é que resulta?

(…)

                                                           *          

4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

O enquadramento e decisão que importa operar na situação vertente reporta-se nuclearmente ao referenciado incorreto julgamento de direito/erro de decisão, ao decretar-se a entrega da casa de morada de família ao Requerente ora recorrido.

Para bem se aquilatar um tal questão importa naturalmente aprofundar a ratio legis do normativo legal atinente, a saber, o art. 1793º, nº1 do C.Civil, o qual tem efectivamente o seguinte teor: “Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada de família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.

Como é bom de ver, este dispositivo não impede nenhum dos cônjuges ou ex-cônjuges de ter uma habitação, limitando-se a regular a situação em que, desavindos os cônjuges, se torne impossível ou insuportável a estes ou a algum deles continuarem a viver ambos na antiga casa de morada da família; para tanto, fixa os critérios a que se deve atender para determinar qual dos cônjuges poderá continuar a habitar a casa, sem impedir o outro de constituir nova habitação.

Para dirimir tal situação, há, assim, que averiguar qual a solução que os aludidos critérios legais, ali fixados de forma não taxativa – como resulta da utilização da expressão “nomeadamente” – apontam, sendo que se entende que esses critérios ali enumerados de forma expressa são os mais importantes, por isso mesmo sendo expressamente indicados, apenas havendo que recorrer a outros em caso de dúvida ou de situação de igualdade entre ambos os cônjuges com o recurso àqueles.

Assim, os critérios essenciais são dois: (i) as necessidades de cada um dos cônjuges, e (ii) o interesse dos filhos do casal.

Quanto a este último particular, o do interesse dos filhos, prende-se ele com a situação dos filhos menores, confiados à guarda de um dos pais, e que, para não ficarem sujeitos a outro trauma para além do que normalmente lhes resulta do divórcio destes, a lei entende por bem proteger de forma a que possam continuar a viver com estabilidade na habitação a que estavam habituados, sem mais mudanças para além da própria situação familiar.

Na verdade, é aos filhos menores que a lei dedica a sua protecção[6], precisamente por se entender que é o interesse deles que é erigido por lei como critério para atribuição da casa de morada da família.

Sucede que dificilmente será esta a situação dos autos, precisamente perante a ida de X (...) para Y (...) da menor filha do ex-casal formado por Requerente e Requerida, acompanhando a deslocação desta última, a cuja guarda se encontrava confiada.

Isto é, na medida em que a filha do casal, na hipótese dos autos, já não evidencia nenhum interesse pessoal, em função das suas particulares condições de vida, em continuar a dispor do imóvel ajuizado, não poderá ser em função da mesma ou da salvaguarda de quaisquer interesses atendíveis desta, que passará a solução para o caso vertente.

Assim sendo, ficava-nos o segundo critério supra enunciado – o das necessidades de cada um dos cônjuges – sendo que só caso este não se mostre apto a dirimir a questão, seria então caso de lançar mão de outros factores atendíveis, posto que aqueles dois sendo os mais importantes, não esgotam a possível solução.

Na sentença recorrida, sufragou-se o entendimento que a situação conduzia à atribuição do direito em causa ao Requerente, em detrimento da Requerida, a quem o mesmo havia sido anteriormente conferido por acordo entre as partes no contexto da regulação das responsabilidades parentais relativamente à filha menor das partes, isto ainda antes de ter lugar o divórcio entre elas.

E a nosso ver – releve-se o juízo antecipatório – bem ajuizou o tribunal de 1ª instância.

Na verdade, este dito segundo critério revela-se, por si só, apto para solucionar a questão: apenas relativamente ao Requerente/recorrido se divisa uma necessidade daquela casa, por não ter o mesmo outra casa própria ou arrendada, sendo certo que essa necessidade se pode qualificar de premente por parte do dito (relativamente à casa de morada de família), na medida em que vivendo presentemente na casa da sua atual companheira, no contexto desta relação afectiva, não tem pessoalmente qualquer título, muito menos jurídico, à habitação detida por aquela, podendo qualificar-se como inteiramente legítima a aspiração por parte do mesmo a dispor do imóvel ajuizado para nele fixar a sua residência, seja ou não alternativa à que atualmente tem (com a sua companheira); já quanto à Requerida/recorrente, tendo a mesma fixado residência permanente em Y (...) , com a filha do casal que formou com o Requerente/recorrido, naturalmente que não se vislumbra – aliás, nem ela o alegou/invocou! – qualquer necessidade por parte da mesma em ser-lhe conferida a atribuição do direito em causa.

De referir que a este propósito – e bem! – se louvou a sentença recorrida na seguinte linha de entendimento constante de douto aresto jurisprudencial[7]:

«Defendendo a possibilidade de alteração do antes acordado pelos cônjuges ou decidido judicialmente desde que tenha ocorrido alteração substancial e anormal das circunstâncias tidas em consideração, sustenta Salter Cid (A Protecção da Casa de Morada da Família no Direito Português, págs. 314/316):

“a) Que se tenha produzido uma alteração no conjunto de circunstâncias ou de representações consideradas ao tempo da adopção das medidas, o mesmo é dizer, uma alteração ou transformação do “cenário” contemplado pelos cônjuges ou pelo juiz na convenção, aprovação ou determinação das medidas cuja modificação se postula. (...);

b) Que a alteração seja substancial, quer dizer, importante ou fundamental em relação às circunstâncias contempladas na determinação das medidas judiciais ou acordadas, ainda que em si mesma ou isoladamente considerada a novidade não resulte tão extraordinária ou transcendental. (...);

c) Que a alteração ou mudança evidencie sinais de permanência que permitam distingui-la de uma modificação meramente conjuntural ou transitória das circunstâncias determinantes das medidas em questão e considerá-la, em princípio, como definitiva. (...);.

d) E, finalmente, que a alteração ou variação afecte as circunstâncias que foram tidas em conta pelas partes ou pelo juiz na adopção das medidas e influíram essencial e decisivamente no seu conteúdo, constituindo pressuposto fundamental da sua determinação. (...).»

E acrescenta:

«A alteração substancial das circunstâncias justificativas da modificação das medidas pode (...) ser motivada tanto pela ocorrência de factos novos, como pelo conhecimento de factos anteriores de significativa transcendência ignorados na sua adopção.»

Esta linha de entendimento dá-nos a perfeita justificação e fundamentação para o decidido.

Senão vejamos.

O Tribunal, dando acolhimento ao invocado pelo Requerente, reponderou a situação das partes (recorrente e recorrido), por se terem alterado os pressupostos de facto (emprego, habitação, situação da filha menor, etc.) que fundamentaram a anterior atribuição da casa de família à Requerida.

Sendo certo que, com e através de uma tal decisão, mostrou o Tribunal estar atento às concretas situações da vida real, evitando manter uma situação desajustada da realidade, com prejuízo das partes envolvidas e sem reflectir já os interesses em causa.

Ainda que assim se não entenda, outros e determinantes factores ou “razões atendíveis” é possível erigir como decisivos critérios para solucionar a questão, sendo que eles apontam no mesmo sentido.

Que foi o que se fez na sentença recorrida.

Senão vejamos, até por confronto com o que já foi doutamente explanado com relevância para este efeito pela melhor doutrina[8], o que vem sendo perfilhado em doutos arestos jurisprudenciais.[9]

É que se para tal tarefa não se encontra apoio no elemento da diferença de idade entre o Requerente e a Requerida (por objetivamente desconhecidos), nem no elemento do estado de saúde do Requerente e da Requerida (por nada ter sido alegado com relevância para esse efeito), já o mesmo se não diga quanto ao elemento da localização da casa relativamente ao local de trabalho de um e outro (em conjugação com o facto de algum deles dispor eventualmente de outra casa em que possa estabelecer residência), sendo este um factor que aponta decisivamente a favor do Requerente, em detrimento da Requerida: apurou-se que a Requerida vive e trabalha permanentemente em Y (...) , enquanto o Requerente vive, temporariamente, em zona próxima da casa ajuizada, donde a legítima conclusão de que o Requerente tem a sua dinâmica pessoal insofismavelmente mais vocacionada para, no presente, ter residência fixada nesta habitação… 

Acresce, com alguma relevância, outro factor igualmente apurado, consistente no elemento da maior ligação de cada um dos ex-cônjuges em relação à casa em disputa: não sendo esta a sede nem o momento processual próprio para decidir em definitivo qual a natureza jurídica daquela casa de habitação (bem “próprio” do Requerente, ou não[10]), por tal estar dependente de uma maior e mais extensa alegação e averiguação de facto (a ter lugar em processo de inventário para separação de meações, senão mesmo só nos “meios comuns” por eventual complexidade da questão), os dados de facto singelamente apurados dificilmente permitem sustentar preliminarmente a sua qualificação como bem “próprio” do Requerente [cf. art. 1723º, al.c) do C.Civil, atenta a intervenção formal de ambas as partes na contratação do empréstimo]; assim, importa perfunctoriamente concluir que a Requerida também contribuiu para a remodelação/reconstrução dessa casa que teve lugar durante a vivência dos mesmos em comum (primeiramente no estado de união de facto e depois no estado de casados um com o outro), por ser de conceber tal ter sido operado não só com meios económicos obtidos pelo empréstimo bancário a que se reporta a factualidade “provada”, mas igualmente com o fruto do trabalho de ambos, pelo que estamos incontornavelmente perante uma “benfeitoria” da Requerida, e não perante o instituto jurídico da “acessão” (como reclamado pelo Requerente nas suas alegações recursivas[11]), o que nos conduz à solução de a Requerida ter apenas um direito de crédito sobre o Requerido, correspetivo da situação em causa[12]; a esta luz, está insofismavelmente apurada a “maior ligação” do Requerente (face à Requerida), enquanto proprietário/dono do bem, em relação à casa ajuizada. …

O que tudo serve para dizer que, também em nosso entender, a globalidade do factualismo apurado permite reconhecer maior prevalência à necessidade do Requerente quanto à casa ajuizada, que foi a casa de morada de família…

Em contraponto, quanto à Requerida, considerando a sua residência permanente na cidade de Y (...) , mais do que uma necessidade em relação à casa ajuizada, sobreleva um comodismo e até egoísmo, isto sem embargo de a questão só poder e dever ser decidida em definitivo no inventário para separação de meações, cuja instauração, a não ter tido ainda lugar, deve ser promovida sem mais.

O que significa inapelavelmente a improcedência do recurso interposto pelo Requerida/recorrente, sem necessidade de maiores considerações.

                                                                       *

5 – SÍNTESE CONCLUSIVA

I – O art. 1793º, nº1 do C.Civil fixa os critérios a que se deve atender para determinar qual dos cônjuges poderá continuar a habitar a casa, sendo que se entende que esses critérios ali enumerados de forma expressa são os mais importantes, por isso mesmo sendo expressamente indicados, sendo eles dois, a saber, (i) as necessidades de cada um dos cônjuges, e (ii) o interesse dos filhos do casal.

II – No que ao critério do interesse dos filhos diz respeito, prende-se ele com a situação dos filhos menores, porque é aos filhos menores que a lei dedica a sua protecção, precisamente por se entender que é o interesse deles que é erigido por lei como critério para atribuição da casa de morada da família.

III – Não tendo o Requerente nos autos qualquer outra casa própria ou arrendada, pode qualificar-se a necessidade do mesmo relativamente à casa de morada de família de premente, na medida em que, vivendo presentemente na casa da sua atual companheira, no contexto desta relação afectiva, não tem pessoalmente qualquer título, muito menos jurídico, à habitação detida por aquela, podendo qualificar-se como inteiramente legítima a aspiração por parte do mesmo a dispor do imóvel ajuizado para nele fixar a sua residência, seja ou não alternativa à que atualmente tem (com a sua companheira).

IV – Pode recorrer-se a outros critérios, em caso de dúvida ou de situação de igualdade entre ambos os cônjuges com o recurso àqueles, podendo alinhar-se entre estes critérios suplementares o da localização da casa relativamente ao local de trabalho de um e outro (em conjugação com o facto de algum deles dispor eventualmente de outra casa em que possa estabelecer residência), e bem assim o da maior ligação de cada um dos ex-cônjuges em relação à casa em disputa.

V – É entendimento jurisprudencial prevalecente o de que a construção de uma casa pelos cônjuges em terreno que é bem próprio de um deles constitui benfeitoria, face ao que o cônjuge não proprietário do terreno fica a ter apenas um “direito de crédito” sobre o outro, quanto ao valor da benfeitoria.

VI – Na circunstância, está insofismavelmente apurada a “maior ligação” do Requerente enquanto proprietário/dono do bem, em relação à casa ajuizada, face à Requerida, a qual fixou entretanto residência permanente numa outra cidade, o que tudo serve para dizer que a globalidade do factualismo apurado permite reconhecer maior prevalência à necessidade do Requerente quanto à casa ajuizada, que foi a casa de morada de família.

                                                                       *

6 - DISPOSITIVO

            Pelo exposto, acordam em julgar improcedente o recurso interposto pela Requerida/recorrente, confirmando-se o sentido da decisão recorrida nos seus precisos termos.

Custas do recurso pela Requerida/recorrente.

  Coimbra, 9 de Janeiro de 2018

           

Luís Filipe Cravo ( Relator )

 Fernando Monteiro

 António Carvalho Martins


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Carvalho Martins
 
[2] Preceitua o art. 352º do Civil que “Confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária.
[3] Trata-se do que foi sustentado pelo Des. LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, in “AS DECLARAÇÕES DE PARTE. UMA SÍNTESE.”, estudo disponível no blogo do ippc.

[4] Citámos agora REMÉDIO MARQUES, “A Aquisição e a Valoração Probatória de Factos (Des)Favoráveis ao Depoente ou à Parte”, in Julgar, jan-abr. 2012, Nº16, a págs. 162-163.
[5] Trata-se do estudo melhor identificado na nota (4) supra, ora a págs. 38 do mesmo.
[6] Vide, neste mesmo sentido, o acórdão do S.T.J. de 11.12.2001, no proc. nº 01A3852, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[7] Trata-se do acórdão do T. Rel. do Porto de 25.02.2013, no proc. nº 2891/11.0TBVNG.P1, acessível em www.dgsi.pt/jtrp.
[8] Assim por PEREIRA COELHO, in RLJ, Coimbra Editora, n.º 122, Ano 1989 – 1990, págs. 137, 138, 207 e 208.
[9] Assim no acórdão do T. Rel. do Porto de 26/05/2015, no proc. nº 5523/13.9TBVNG-B.P1, e bem assim no acórdão do T. Rel. de Coimbra de 28/06/2016, no proc. nº 677/13.7TBACB.C1, ambos acessíveis em www.dgsi.pt, sendo de referir que no último destes foi precisamente Relator o aqui Exmo. Desembargador 2º Adjunto. 
[10] A jurisprudência tem-se pronunciado no seguinte sentido: «Constitui benfeitoria a moradia construída pelos cônjuges, casados em regime de comunhão de adquiridos, em terreno que é bem próprio de um deles» - acórdão do T. Rel. do Porto de 25-10-1993, no proc. nº 9310303, acessível em www.dgsi.pt/jtrp;
«I- No caso de prédio rústico, propriedade de um dos cônjuges, no qual foi implantado um imóvel já na pendência do casamento, que foi contraído sob o regime de comunhão de adquiridos, e cujo custo foi suportado por mútuo com garantia real (hipoteca) contraído por ambos os cônjuges, para efeitos de relação de bens não há que entrar em linha de conta com o regime da acessão industrial imobiliária porque a construção não foi implantada em terreno alheio (artigo 1340.º/1 do Código Civil). II- As obras realizadas (implantação do imóvel) devem ser qualificadas de benfeitorias (artigos 204.º e 216.º do Código Civil)» - acórdão do T. Rel. de Lisboa, de 12-07-2007, no proc. nº 5851/2007-8, acessível em www.dgsi.pt/jtrl; «A construção de uma casa por ambos os cônjuges em terreno próprio de um deles, deve ser descrita como benfeitoria no inventário para separação de meações» - acórdão do T. Rel. de Lisboa, de 14-01-1992, no proc. nº 0032881, também acessível em www.dgsi.pt/jtrl.
[11] Constitui benfeitoria, e não acessão imobiliária, a construção de um prédio urbano em terreno próprio do outro cônjuge, na medida em que era do conhecimento do cônjuge não proprietário que o terreno era alheio, não podendo, assim, dizer-se preenchido o requisito da sua boa fé – neste sentido o acórdão do acórdão do STJ de 27.01.1993, no proc. nº 082914, acessível em www.dgsi.pt/jstj, aliás, precursor do entendimento prevalecente do mesmo STJ (cf., inter alia, o acórdão de 20.6.2013, no processo 1219/07.9TBPMS.C1.S1, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jstj), no sentido de que “as benfeitorias e as acessões constituem fenómenos paralelos que se distinguem pela existência ou inexistência de uma relação jurídica que vincula a pessoa à coisa beneficiada”, ou seja, se a melhoria for feita pelo proprietário, comproprietário, possuidor, locatário, comodatário ou usufrutuário, trata-se de uma benfeitoria, mas se, ao invés, o melhoramento for feito por um terceiro, não relacionado juridicamente com a coisa, trata-se de uma acessão.

[12] Assim no acórdão do T. Rel. de Coimbra de 15/02/2011, no proc. nº 323/05.2TBSVV.C2, acessível em www.dgsi.pt/jtrc, aliás, doutamente citado na sentença recorrida.