Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
148/116GBTMR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: AUTO DE DENÚNCIA
VALOR PROBATÓRIO
INJÚRIA
DIFAMAÇÃO
TELEFONE
DEPOIMENTO DE TESTEMUNHA
VALIDADE
Data do Acordão: 07/03/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1.º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE TOMAR
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 125.º, 243.º A 247.º DO CPP; ARTIGOS 180.º, 181.º E 194.º, N.º 2, DO CP
Sumário: I - Nada obsta à valoração do auto de denúncia, não como elemento exclusivo para provar os factos que relata, os quais terão de ser demonstrados por outra via probatória, mas como meio de confronto entre o seu conteúdo e o teor da prova oralmente produzida, porquanto, neste contexto, pode revelar-se essencial para aferir da credibilidade das declarações/depoimentos.

II - Não é ilícita a acção de quem atende o telefone em sua própria casa ou de quem o faz com autorização da pessoa que nela habita.

III - Por conseguinte, não constitui prova proibida o depoimento da testemunha que reproduz em tribunal as expressões que ouviu ao arguido, através do telefone instalado na sua residência, ofensivas da honra e consideração da assistente, mulher do depoente.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório

Nos autos de processo comum com intervenção do tribunal singular nº 148/11.6GBTMR do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Tomar, o arguido A..., identificado nos autos, foi submetido a julgamento acusado pela assistente B... da prática de um crime de injúrias p. e p. pelo artigo 181º, nº 1 do Código Penal.

A assistente deduziu pedido de indemnização contra o arguido no montante de 750 euros, acrescido de juros legais desde a notificação.

Realizada a audiência de julgamento, em 18 de Julho de 2012, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

Nestes termos e decidindo:

I) - julgo totalmente procedente por provada a acusação e, em consequência, condeno:

a) O arguido A... , pela prática em autoria material e na forma consumada de um crime de injúria p e p no artigo 181º/1 do CP, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de 9 €, o que perfaz o total de 810 euros (oitocentos e dez euros) ou, em alternativa, na pena de 60 dias de prisão subsidiária.

b) Condeno ainda o arguido no pagamento de três UC’s de Taxa de Justiça, nas custas do processo, nos termos do artigo 8º do RCP.

II)

a) Condeno o demandado A... , a pagar à demandante B... , a título de indemnização cível pela ocorrência de danos morais pela prática do crime de injúria, a quantia de 600 (seicentos euros) €, mais os juros de mora à taxa legal de 4%, a contar da data da notificação do pedido civil;

b) Custas cíveis, por ambas as partes na proporção do decaimento.

Inconformado, recorreu o arguido A... , extraindo da sua motivação de recurso as seguintes conclusões:

i. O recorrente foi condenado pela prática em autoria material e na forma consumada de um crime de injúria p e p no artigo 181/1 do CP.

ii. O tribunal deu como provado que o arguido proferiu as injurias atrás referidas, livre e conscientemente, na manifesta intenção de atingir a Assistente na sua honra e consideração, o que logrou conseguir.

iii. O Tribunal assentou a sua convicção nas provas documentais constantes dos autos nomeadamente, no auto de denúncia de fls. 3 e ss., e ainda na audição das testemunhas ouvidas em audiência de julgamento

iv. Salvo o devido respeito, o tribunal a quo julgou incorretamente os referidos factos, porquanto em relação aos mesmos não foi produzida prova.

v. O Tribunal aceitou o reconhecimento do arguido, através do reconhecimento vocal, quando este é um tipo de reconhecimento não admitido pela lei penal portuguesa.

vi. Não existe qualquer prova documental que sustente a acusação, ou que possa ligar o arguido aos supostos telefonemas, não constituindo o auto de denúncia meio adequado de prova.

vii. O arguido é acusado e condenado pelo crime de injúrias, quando as testemunhas vêm fazer depoimento sobre um eventual crime de difamação, não ficando assim provado o crime de injúrias, havendo a errada interpretação dos artigos 181° e 180°, ambos do CP.

viii. As testemunhas fizeram o seu depoimento, por tomarem conhecimento dos factos imputados ao arguido e pelos quais foi condenado, por atenderem chamadas telefónicas que eram dirigidas à Assistente, sem que o emissor tivesse conhecimento desse facto, o que é legalmente taxado como prova nula.

ix. Tendo sido utilizada na fundamentação da sentença uma prova proibida, nula é a sentença, nos termos dos arts. 32° nº 8 da CRP e arts 126°, nº 3, 122º nº 1 e 410, nº 3 do CPP.

x. Na aplicação da medida da pena, o silêncio do arguido foi valorado negativamente pelo Tribunal, o que é legal e constitucionalmente inadmissível, por violar o disposto no nº 1 do art.º 343 do CPP e art.º 32° da CRP.

Em suma, nos presentes autos, não ficou provado que o arguido tivesse cometido o crime de que vinha acusado, pelo que deve o mesmo ser absolvido da prática do ilícito típico pelo qual foi condenado.

Mesmo que o arguido tivesse cometido tal crime, o que só por mera hipótese académica se admite, nunca o seu silêncio poderia ser valorado negativamente, para efeitos da aplicação da medida da pena.

O Recorrente tem apoio judiciário nas modalidades de dispensa da taxa de justiça e demais encargos com o processo e pagamento da compensação de defensor oficioso, conforme documento junto aos autos.

Termos em que e nos demais de direito deve ser dado provimento ao presente recurso e por via dele, ser revogada a sentença recorrida, substituindo-a por douto acórdão, tudo com as demais legais consequências.

FAZENDO-SE, ASSIM, A HABITUAL E NECESSÁRIA JUSTIÇA

Notificado, o Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo o seguinte:

a. Ao remeter para a prova documental constante dos autos, a Mma. Juiz a quo faz referência ao auto de denúncia constante de fls.3 e seguintes dos autos. E, ao contrário do entendimento pugnado pelo recorrente, o auto de denúncia constitui, em sim mesmo, um meio de obtenção de prova, que, como tal pode e deve ser utilizado pelo julgador para formar a sua convicção.

2. O auto de denúncia constitui por isso um meio de obtenção prova válido, um instrumento colocado à disposição do tribunal que pode ser imediatamente utilizado para a formação da sua convicção probatória.

3. Analisando as declarações da assistente, verificamos que das mesmas não perpassa qualquer dúvida ou hesitação quanto à identificação da voz do arguido.

4. Não só a forma segura e objectiva como prestou as suas declarações o demonstra, mas porque é a própria assistente que afirma que conhece o arguido, que é amigo de um seu irmão, há mais de 10 anos!

5. Mutatis Mutandis para os depoimentos das testemunhas E... e G... , os quais declararam de forma peremptória, que conheceram a voz do arguido, pessoa que conhecem há vários anos.

6. A matéria de facto considerada provada na decisão recorrida não afronta as regras da experiência comum, antes se apresenta como plausível e possível (a. nosso ver, a única possível), quer em função da prova produzida, quer à luz das regras comuns da lógica.

7. A prova produzida, maxime, as declarações prestadas pela assistente e os depoimentos das testemunhas E... e G... porque seguros e isentos, mereceram a credibilidade da Mma. Juiz a quo e não se apresentando os mesmos como ilógicos ou utópicos, não se vislumbra como é que a sua valoração pelo tribunal a quo e a decisão a final proferida padece do invocado erro notório na apreciação da prova.

8. No caso vertente, não foi efectuada qualquer prova por reconhecimento de voz.

9. Ao valorar a circunstância de quer a assistente, quer as testemunhas E... e G... terem reconhecido, ou seja, identificado a voz do interlocutor das chamadas de que se cuida nos autos como sendo o arguido, a Mma. Juiz a quo valorou a prova pessoal, por declarações (consistente nas declarações prestadas pela assistente) e os depoimentos das aludidas testemunhas, que declararam que, quando ouviram o autor de tais telefonemas, logo reconheceram a voz do arguido, logo identificaram tal voz como sendo a voz do arguido, ora recorrente.

10. Quer nos telefonemas recebidos pela própria assistente, quer nos que foram atendidos pelas testemunhas, o arguido profere as expressões injuriosas dirigindo-se directamente à assistente, como se fosse esta a sua interlocutora.

11. No decurso de tais telefonemas, o arguido não imputa à assistente, perante um terceiro, factos desonrosos. Antes, isso sim, imputa-lhe, de forma directa, tais factos.

12. No caso vertente, não ocorreu qualquer intromissão numa conversação telefónica. O que ocorreu foi que as testemunhas atenderam telefonemas, em que o interlocutor era o arguido, e em que este se dirigiu à assistente. Nada mais.

13. O tribunal a quo não valorou negativamente o silêncio do arguido. O que se fez foi, em sede de fixação da medida concreta da pena a aplicar ao mesmo, valorar a sua postura processual que não lhe permitiu beneficiar de qualquer circunstância atenuante, o que é uma realidade totalmente distinta.

14. A decisão recorrida efectuou uma correcta apreciação da prova produzida, não violando qualquer norma jurídica.

No entanto V. Exas. Farão a habitual Justiça.

Notificada, também a assistente respondeu ao recurso, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.

Admitido o recurso e remetidos os autos a esta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não ocorreu resposta.

Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos legais foi realizada conferência, cumprindo apreciar e decidir.


***

II. Fundamentos da decisão recorrida

A decisão recorrida contém os seguintes fundamentos de facto:

Discutida a causa, resultou provado que:

1. Em data que não sabe precisar, mas certamente entre os dias 4 e 21 de Março de 2011, cerca das 16:00 horas, a assistente recebeu uma chamada no telefone com o nº ... , instalado na sua residência, sita em Rua ... São Pedro de Tomar, chamada essa que foi por si atendida, tendo a assistente reconhecido a voz do arguido, que disse: “sua vaca, sua puta, querias era ganhar dinheiro à minha custa; queres dinheiro, vai mas é trabalhar”;

2. Posteriormente a este acontecimento, no dia 21 de Março de 2011, a hora indeterminada do período compreendido entre as 20:00 e as 21:00 horas, a assistente recebeu várias chamadas telefónicas seguidas em número não concretamente apurado, no telefone da sua residência, sendo que a pessoa que as efectuou se manteve em silêncio, tendo a assistente apenas ouvido alguns ruídos e uma voz, ao longe, que identificou como sendo do seu irmão I...;

3. Ainda naquele dia 21 de Março de 2011, e no mesmo período compreendido entre as 20:00 e as 21:00 horas, a assistente recebeu mais duas chamadas telefónicas, tendo as mesmas sido atendidas, respectivamente, pelo seu marido, E... , e pelo seu filho, D... , que reconheceram a voz do emissor como sendo do arguido, tendo o mesmo dito, dirigindo-se à assistente: “vem cá agora sua vaca, sua puta, anda cá agora bater no teu irmão” e ainda “tens falta de caralho, eu sou novo chego bem para ti, sua puta, sua vaca”;

4. Estas expressões foram repetidas por 2 vezes, numa primeira chamada telefónica atendida por E... e, posteriormente, na segunda chamada atendida por D... ;

5. A assistente ficou profundamente ofendida e sentiu-se muito envergonhada e vexada perante o seu marido e filho;

6. O arguido proferiu as referidas afirmações e imputações, atrás referidas, livre e conscientemente, na manifesta intenção de atingir a assistente na sua honra e consideração, o que logrou conseguir;

7. O arguido bem sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei, tendo ele plena capacidade de auto-determinação;

8. O arguido já respondeu e foi condenado pela prática dos seguintes crimes: um crime de roubo, em que lhe foi aplicada pena de prisão suspensa a sua execução na condição deste pagar uma indemnização à ofendida;
9. O arguido já foi condenado duas vezes pela prática de crime de condução sem habilitação legal;

10. O arguido já foi condenado uma vez pelo crime de condução em estado de embriaguez;

11. Factos provados quanto ao pedido de indemnização civil: a demandante sofreu um desgosto profundo e angústia, na sequência do vexame a que foi submetida pelo demandado;

12. O que atingiu o seu bom nome, dignidade e consideração social de que goza;

13. A demandante sentiu-se indignada pelas injúrias que lhe foram dirigidas, ficando bastante nervosa, inquieta e triste;

14. Não conseguia dormir;

15. Sentiu-se ainda, insegura, ao ver a sua vida privada invadida, dado que as chamadas foram efectuadas para a sua residência;

16. Bem como, humilhada e vexada perante o seu marido e o seu filho, uma vez que estes atenderam duas das chamadas telefónicas.

FACTOS NÃO PROVADOS

Com interesse para a boa decisão da causa, não se deram como não provados quaisquer factos.


Motivação

Fazendo a análise crítica das provas produzidas a convicção do Tribunal, assentou nas provas documentais constantes dos autos nomeadamente, no auto de denúncia de fls. 3 e ss., e ainda na audição das testemunhas ouvidas em audiência de julgamento.

O arguido remeteu-se ao silêncio.

Quanto à assistente B... , apresentou um discurso credível, assente no conhecimento directo e pessoal que teve dos factos, explicando pois que é dona de uma casa, em que vive o seu irmão I... , que possui os usufrutos de tal local; ela e o marido e o irmão devido a partilhas de herança, dão-se mal; então que o arguido A... é amigo do irmão e frequenta aquela casa a convite do irmão, sendo que já se conhecem há mais de 10 anos e que em data que não se recorda bem, mas terá sido por volta de Março de 2011, talvez dia 21, que estava em casa e recebe uma chamada para o seu telefone, em sua casa (o qual é antigo) e que ouve isto que lhe foi dito para si:”puta, vaca, tu queres é caralho; eu tenho um novo e vem agora bater ao teu irmão”, isto por volta da hora do jantar, ou seja, entre as 20 horas e as 21 horas; sendo que ela reconheceu e soube que quem lhe dirigia tais expressões era o A... ; já por volta do dia 4 de Março, cerca das 16 horas, também recebeu uma chamada para sua casa que atendeu e cuja vos reconheceu como sendo do arguido o qual disse: “sua vaca, sua puta, tu queres é receber dinheiro à minha custa”, que no dia 21 de Março, há hora do jantar ainda continuaram as chamadas e que ela deixou de as atender; ficou muito envergonhada, ofendida e sentiu-se mal; nisto que chega o marido e o telefone toca de novo e ele foi atender e ouviu a mesma coisa que ela “puta, tu queres é caralho” e o filho que os foi visitar, também atende o telefone noutra vez que tocou e ouviu o mesmo que o marido.

Ouvido o marido da assistente, E... , o mesmo falou com isenção, tendo dito que ele, a mulher e o cunhado não se dão bem por causa das partilhas e que este vive numa casa que é deles, mas que tem o usufruto da mesma e ali encontra-se muitas vezes o arguido A... ; então que no dia 21.03.2011, deviam ser umas 8 horas da noite e ia para o jantar quando chega a casa e toca o telefone e vai atender e ouve “sua puta, tu queres caralho, eu sou novo para ti; podes bater no teu irmão que está aqui”; sendo que a sua mulher quando chega a casa, a encontrou sentada na sala e a chorar e ela conta-lhe o que já tinha também ouvido; ele que reconheceu a voz do arguido e ele desliga e ainda volta a ligar mais duas vezes; que nunca ninguém lhe respondeu; o filho que os foi visitar também foi atender uma das chamadas; a esposa que ficou muito triste, chorava, e ficou sem dormir tendo passado a tomar medicamentos para dormir.

O seu filho D... , também apresentou um discurso credível, consentâneo com o que ouviu e assistiu, afirmando que no dia 21 de Março, foi visitar os pais, por volta da hora do jantar; nisto ficou à espera pois os pais já lhe tinham contado que o arguido estava a fazer várias chamadas e que lhe dirigia conversas insultuosas; então quando tocou mais uma vez o telefone ele foi atender e ouviu a voz do A... a dizer: “sua puta, sua vaca, vem cá agora bater ao teu irmão, tu queres é caralho, vem cá, eu dou-to”.

A mãe que estava muito nervosa, alterada, sentiu-se muito ofendida e envergonhada e injustiçada.

Depois foi ouvida C..., a qual não ouviu nem assistiu a nada, mas que conhece e á amiga da Dª. B... e que uns dias depois disto, notou que ela estava muito triste e ela contou-lhe então que o arguido lhe tinha chamado “puta, vaca” e estava a chorar e ficou muito ofendida, triste envergonhada e que isso lhe foi contado no último Domingo de Março, quando elas foram à missa.

Depois foi ouvida a prova da defesa e falou I... , irmão da assistente, o qual apresentou um discurso de revolta e de queixa para com a irmã e o cunhado, mas que quanto à matéria dos autos, disse que não tinha presenciado que o arguido A... que é seu amigo, a chamar nomes à irmã; no entanto, também disse que a irmã quando vai a sua casa, que tem o usufruto e a irmã e o cunhado, são os donos, que ela trata mal os seus amigos que lá estejam e por isso quem lá esta, não gosta dela, porque ela os trata mal.

Por fim, foi ouvido F..., também amigo do arguido e do irmão da assistente e que disse que quando vai visitar o I... , a irmã aparece lá em casa e trata a testemunha e o A... mal, arma uma grande confusão e portanto a testemunha não gosta dela e o arguido também não; não assistiu a nada dos factos da acusação.

Vejamos, face ao acabado de transcrever supra, nenhuma das testemunhas fez uma prova por “reconhecimento de voz”, quanto à pessoa do arguido, que efectivamente não existe como tal, consagrada na nossa lei de processo penal, nos termos do disposto nos artigos 147 e 148º do CPP.

Aliás o artigo 147º/1 do CPP, começa por explicar quando é eventualmente necessário utilizar o reconhecimento como elemento de recolha de prova, ou seja, será quando houver necessidade de proceder ao reconhecimento de qualquer pessoa que não se conhece bem e que terá sido agente de um crime.

Aqui, quando a ofendida recebe as chamadas de telefone, identificou logo quem era o seu autor, soube que era do A... porque já o conhece há muitos anos e logo no dia 22 de Março de 2011, apresentou queixa contra ele (fls. 3 e ss.).

O mesmo para se identificar ainda diz “vem cá bater no teu irmão”.

Ora, sucede que o tribunal julga a prova que perante si é produzida, e desde que não haja norma especial que disponha de forma diferente, segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade julgadora.

Tal significa que, a livre apreciação da prova não é o mesmo que apreciação arbitrária da prova nem mera impressão gerada no espírito do julgador.

A prova livre, assenta nas regras da experiência comum por um lado, e por outro ou em conjugação, com a lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.

Por conseguinte, atendendo a que o tribunal já sabe que o arguido A... , é amigo do irmão da assistente, que frequenta a sua casa, o que a assistente não gosta e que já houve discussões e problemas entre o ora arguido e esta B... em ocasiões anteriores, devido precisamente a esta frequência e porque os irmãos encontram-se desavindos por causa de uma herança, é normal que um homem médio com estes conhecimentos específicos, tenha tomado o partido do seu amigo contra uma pessoa que ainda por cima já teve desavenças com esta, e por isso, mandam as regras da experiência e do dia a dia que, o mesmo tenha telefonado para a casa desta e assim encontrando um modo de a ofender, chamando-lhe aqueles nomes que são gravemente atentatórios do bom nome e reputação de qualquer um.

Foi esta a convicção do tribunal.


***

            III. Apreciação do Recurso

A documentação em acta das declarações e depoimentos prestados oralmente na audiência de julgamento determina que este Tribunal, em princípio, conheça de facto e de direito (cfr. artigos 363° e 428º nº 1 do Código de Processo Penal).

Mas o concreto objecto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da correspondente motivação, sem prejuízo das questões do conhecimento oficioso. E vistas essas conclusões as questões a apreciar são as seguintes:

- se a sentença recorrida é nula porque a convicção do tribunal se baseia em provas proibidas;

- se ocorre erro de julgamento da matéria de facto;

- se o silêncio do arguido foi valorado negativamente em violação do disposto nos artigos 343º, nº 1 do Código de Processo Penal e 32º da CRP.

Apreciando:

Segundo o recorrente a sentença recorrida na convicção expressa assente em provas nulas/proibidas, como são o reconhecimento por voz do arguido e os depoimentos das testemunhas que tomaram conhecimento dos factos porque atenderam chamadas telefónicas que eram dirigidas à assistente.

Na motivação explana que o artigo 147º, nº 1 apenas contempla o reconhecimento de pessoas e não o reconhecimento por voz. E também na motivação refere que o depoimento das testemunhas teve como razão de ciência uma escuta resultante do atendimento de chamadas telefónicas dirigidas à assistente, sem o consentimento do arguido, factos que podem tipificar o crime previsto no artigo 194º, nº 2 do Código Penal.

Em ambos os casos labora o recorrente em manifesta confusão. A prova que foi produzida em audiência e que foi tida em consideração foi prova testemunhal e exclusivamente testemunhal.

Não existe de facto reconhecimento por voz como meio de prova, mas o artigo 128º, nº 1 do Código de Processo Penal estipula que a testemunha é inquirida sobre factos de que tenha conhecimento directo. O que as testemunhas declararam no sentido de que atenderam chamadas telefónicas e que reconheceram a voz do arguido nessas chamadas não extravasa o que o meio de prova legalmente permite; são factos de que tiveram conhecimento pessoal. Do mesmo modo se passaria se estivesse em causa o reconhecimento visual do arguido em audiência de julgamento, não estaríamos perante prova por reconhecimento mas perante a declaração de facto do conhecimento pessoal da testemunha.

Por outro lado, o atendimento de uma chamada telefónica (uma das testemunhas estava na sua própria casa, a outra estava autorizada a tal, sendo filho dos moradores) nunca pode configurar um acto de escuta que supõe sempre uma intromissão de um terceiro.

Neste caso a chamada foi atendida e o arguido não cuidou de saber com quem estava a falar, para dizer o que terá dito, não existindo aqui qualquer condicionamento oculto que tenha violado a intimidade da sua vida privada e é esse o valor constitucional em causa (artigos 26º e 34º da CRP).

É manifestamente absurda a possibilidade de se considerar ilícita a acção de quem atende o telefone em sua própria casa ou de quem o faz com autorização de quem nela habita. O invocado artigo 194º, nº 2 do Código Penal invocado apenas pune a acção de intromissão no conteúdo de telecomunicação ou a tomada de conhecimento de telecomunicação, o que supõe que seja pessoa estranha à comunicação, ou seja, que a conversação não tenha sido estabelecida consigo. No caso a comunicação foi estabelecida com quem atendeu, como sempre ocorre normalmente.

Mais uma vez estamos no domínio da prova testemunhal e dentro do seu âmbito lícito.

Não ocorre pois a alegada nulidade.

O recorrente impugna a decisão proferida sobre matéria entendendo que não deviam ser considerados provados os factos que constavam da acusação e que determinaram a sua condenação como autor de crime de injúrias.

São os seguintes os argumentos que apresenta:

- nulidade da prova acima já abordada;

- o auto de denúncia não constitui meio de prova dos factos;

- as testemunhas fizeram depoimento sobre crime de difamação e não de injúrias, não ficando, pois, provado o crime de injúrias.

Com já se mencionou a prova oral produzida no que concerne às testemunhas E... (marido da assistente) e D... (filho da assistente) é perfeitamente legal e nada obstava que o seu conteúdo fosse tido em consideração para fundamentar a convicção expressa pelo Tribunal a quo.

As referidas testemunhas reproduziram o que ouviram ao telefone e que o arguido, certamente convencido de que estava a falar com a assistente, dirigiu a esta.

E do ponto de vista da credibilidade não resulta estranho que tenham reconhecido a voz como sendo o arguido se atentarmos que ela provinha de pessoa que conheciam, especialmente a primeira testemunha. A segunda até mencionou que num primeiro momento não reconheceu a voz mas depois não teve dúvidas de quem era, o que até abona em favor da credibilidade do depoimento porque seria a pessoa que teria menor conhecimento em tempo e proximidade da pessoa do arguido.

E além destes depoimentos obviamente que a convicção do Tribunal começou por assentar no depoimento da assistente que, tendo também atendido o telefone, ouviu o arguido dirigir-lhe as expressões que estão em causa.

A convicção expressa tem correspondência nos meios de prova produzidos, restando os aspectos estritamente ligados à imediação que escapam grandemente à possibilidade de serem questionados nesta instância.

Que o arguido quis dirigir as expressões à assistente, indica a forma verbal que utilizou quer quando foi atendido por esta quer quando foi atendido pelo marido e pelo filho. Em face do disposto nos artigos 180º e 181º do Código Penal, não oferece dúvidas de que o crime cometido foi o de injúrias porque em nenhum momento o arguido quis, dirigindo-se a terceiros, formular juízos ofensivos da honra e consideração desta. Aliás, a própria assistente ouviu da boca do arguido as frases ofensivas.

A tese do recorrente conduziria antes à existência de concurso de crimes e nunca à alegada falta de prova do crime de injúrias.

Quanto ao questionado auto de denúncia, é meio através do qual se dá conhecimento da prática de um crime e que impulsiona o procedimento criminal como resulta do disposto nos artigos 243º a 247º do Código de Processo Penal, tratando-se de um meio de prova documental na medida em que documenta a denúncia de determinado crime de acordo com a definição do artigo 164º nº 1 do Código de Processo Penal.
 E sendo assim, nada obsta a que o seu conteúdo seja valorado, não como meio exclusivo de provar os factos que retrata como tendo sido objecto de denúncia que terão de ser provados por outro meio, mas como meio de confronto entre o que aí se fez constar e o teor da prova oral porque nesse aspecto pode revelar-se essencial para aferir da credibilidade da prova.
E nada mais além do exposto se pode extrair da motivação exposta sobre a valoração do auto de notícia, quando menciona que a convicção do tribunal assentou nas provas documentais constantes dos autos, nomeadamente no auto de denúncia (sendo certo, o que se menciona em relação a afirmação apenas contida nas conclusões, que outra prova documental consta dos autos, como seja o certificado de registo criminal do arguido, daí a propriedade da expressão contestada "nomeadamente").

Apenas na motivação, já não nas conclusões, refere o recorrente que ocorre erro notório na apreciação da prova o que liga ao facto porque se considerou possível o reconhecimento do arguido por voz, resultando da experiência que a assistente e as testemunhas não poderiam estar em condições de efectuar esse reconhecimento.
Porque se trata de matéria do conhecimento oficioso sempre será abordada, embora não vertida nas conclusões.
O alegado vício vem previsto no artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal preceituando que «mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
c) Erro notório na apreciação da prova.»
Importa reter que para o reconhecimento deste tipo de vício apenas deve ser considerado o texto da decisão recorrida por si ou conjugada com as regras da experiência, como claramente resulta do preceito.
O erro notório na apreciação da prova é aquele que é de tal modo patente que não escapa à observação do cidadão comum, na leitura do texto da decisão recorrida ainda que conjugada com as regras da experiência comum e pode traduzir-se na violação do princípio contido no artigo 127º do Código de Processo Penal (o tribunal dá como provado facto que afronta ostensivamente as regras da experiência).
Como é sabido, o conceito de erro notório na apreciação da prova tem de ser interpretado como o tem sido o conceito de facto notório em processo civil, ou seja, como o facto de que todos se apercebem directamente, ou que, observado pela generalidade dos cidadãos, adquire carácter notório (v. por ex. Ac. do S.T.J. de 6.4.94 in Col. Jur. Acs. do STJ, II, tomo 2, 186).
Na definição de M. Simas Santos e M. Leal Henriques em Código de Processo Penal Anotado, Volume II, 2ª edição, pag. 740, existe erro notório na apreciação da prova quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária, contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto contido no texto da decisão. Mais existe esse erro quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis (cfr. também Ac. do S.T.J. de 13.10.99 in C.J., Ano VII, Tomo III, pag. 184 entre outra jurisprudência abundante).
Ora, definido o âmbito do mencionado vício e analisando o alegado pelo recorrente, ao contrário deste, não encontramos qualquer impossibilidade de reconhecer a voz de quem fala ao telefone fundada nas regras da experiência. Isso dependerá certamente de se conhecer melhor ou pior ou de não se conhecer a pessoa que fala ao telefone, aspecto que resulta evidenciado na motivação expressa.
Não se divisa, assim, que a sentença recorrida padeça do apontado vício ou de qualquer dos outros elencados no mesmo preceito.

Em conclusão, o teor da prova produzida e a sua manifesta legalidade, consentem a convicção que o Tribunal recorrido formulou e fundamentou, não se reconhecendo qualquer violação de princípios probatórios quer confrontando o teor da prova produzida, quer exclusivamente a motivação expressa, sendo de manter a decisão de facto proferida e consequentemente a condenação do recorrente.

Finalmente invoca o recorrente que o seu silêncio foi valorado negativamente para efeitos de doseamento da pena em violação do disposto nos artigos 343º do Código de Processo Penal e 32º da CRP, querendo referir-se à expressão contida na decisão em recurso "É ainda de considerar em desfavor do arguido, a postura mantida em audiência de julgamento". Não extrai, contudo, qualquer pedido de tal alegação.

Trata-se certamente de expressão infeliz, quer se refira ao silêncio do arguido que constitui um direito nos termos 343º, nº 1 do Código de Processo Penal, quer se refira a qualquer evento ocorrido na audiência de julgamento que não foi vertido nos factos provados. Em rigor não sabemos a que se refere especificamente a expressão contida nos fundamentos de direito.

Sendo certo que o silêncio não pode desfavorecer o arguido, também igualmente não o pode favorecer e nunca o arguido que se mantenha em silêncio poderá obter o tratamento favorável no doseamento da pena que poderia resultar da confissão e arrependimento, circunstâncias atenuantes apenas verificáveis mediante declarações do arguido.

E sobre o doseamento da pena, tendo em consideração o disposto nos artigos 40º e 71º do Código Penal, sempre se dirá que o dolo intenso revelado na execução continuada do crime justifica a pena aplicada.    


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IV. Decisão

Nestes termos acordam em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido A... , mantendo a sentença recorrida.

Pelo seu decaimento em recurso vai o recorrente condenado em custas, fixando-se a taxa de justiça devida em quatro UC.


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           (Maria Pilar Pereira de Oliveira - Relatora)
         (José Eduardo Fernandes Martins)