Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1637/10.5TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
INTERESSE EM AGIR
Data do Acordão: 06/26/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA 3º J C
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 668º Nº 1 E) CPC
Sumário: I - A expressão "condena-se a ré no pedido", quando usada numa acção de simples apreciação, significa, tão só, que se dá total abrigo às pretensões do autor, julgando-se o seu pedido procedente, não decorrendo daí a nulidade prevista no artigo 668.º n.º 1 e) CPC.

II - Tem interesse em agir o autor, proprietário de um imóvel que confronta com um da ré, que propõe uma acção que visa afastar a ambiguidade que a existência de um vão com 130 cm por 270 cm, preenchido com tijolo de vidro, na parede de fachada do prédio desta, suscita, nomeadamente em termos de uma eventual servidão de vistas.

III - Não exerce um direito potestativo o autor que pede que lhe seja reconhecido o direito a levantar uma parede que poderá tapar um vão com 130 cm por 270 cm, preenchido com tijolo de vidro, situado no prédio com que confronta o seu e que se reconheça que esse vão não é adequado a constituir um direito a servidão de vistas, por usucapião.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I

A... L.da instaurou, na comarca de Leiria, a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra B... L.da, pedindo que lhe seja reconhecido o direito:

"a) a levantar parede ou outra qualquer estrutura de qualquer material que seja, e que se encontre previsto em projecto de edificação urbana com utilidade para a Autora, aprovado pela Câmara Municipal de Leiria, que a todo o tempo possa vir a ser susceptível de tapar o vão – preenchido com tijolo de vidro, supra identificado no ponto 14 - inclusive sendo susceptível de impedir que através de tal vão passe qualquer fresta de luz natural ou outra e haja visibilidade;

b) bem como mais se requer que seja declarado que o vão existente no prédio da Ré, melhor descrito no Ponto 14, supra, que se encontra preenchido em tijolo de vidro, e através do qual passa luz natural para dentro do respectivo prédio, e existe algum grau de visibilidade, não constitui uma janela, porta, varanda, terraço, eirado ou obra semelhante, adequado a constituir a Ré no direito a servidão de vistas, por usucapião, nos termos do previsto no Código Civil n.º 1362."

Alegou, em síntese, que é proprietária do imóvel com a área total de 387,28 m2, sendo a área coberta de 198,52 m2 e a área descoberta de 188,76 m2, que se situa na Rua (...) em Leiria e que confronta a norte com um outro que pertence á ré. Na parede de fachada do prédio da desta, a ré deixou um vão com 130 cm por 270 cm, preenchido com tijolo de vidro e que constitui uma abertura pela qual entra luz e permite alguma visibilidade, ainda que não seja totalmente nítida.

Face a este quadro, pretende obter o reconhecimento judicial de que o referido vão não é adequado a permitir que se constitua, com o decurso do tempo, um direito a mantê-lo, nomeadamente impedindo que futuramente a autora fique legalmente impossibilitada de levantar uma parede que venha a tapá-lo, vedando essa entrada de luz para o prédio da ré.

Citada, a ré não contestou.

Foi proferido saneador e foram julgados confessados os factos constantes da petição inicial, que aqui se dão por reproduzidos.

Proferiu-se sentença em que se decidiu:

"Pelo exposto, julgo a presente acção totalmente procedente por integralmente provada e, em conformidade, condena-se a Ré no pedido.

Custas pela Ré."

Inconformada com tal decisão, a ré dela interpôs recurso, que foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo, findando a respectiva motivação com as seguintes conclusões:

1- Existe violação do preceituado no artigo 264.º, n.ºs 1 e 2 do C.P.C, o qual atribui exclusivamente às partes a delimitação dos termos do litígio mediante a causa de pedir e o pedido - Principio do pedido que advém do princípio do dispositivo.

2- Foi também preterido o disposto nos artigos 660.º e 661.º n.º 1 do Código de Processo Civil, que estabelecem que o juiz não pode pronunciar-se sobre mais do que foi pedido e "A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir."

3- A Autora não pediu a condenação da Ré e ao condená-la, a sentença recorrida ficou ferida de nulidade por força do artigo 668.º, n.º 1 alínea e) do Código Processo Civil, dado que o Tribunal condenou a Ré “ultra vel petitum” formulado pela Autora.

4- A Autora não invocou qualquer situação de litigiosidade, de incerteza objectiva e grave sobre o direito de que se arroga, pelo que lhe falta o necessário interesse em agir.

5- A Ré não deu causa à acção e não a contestou, pelo que ao abrigo do disposto no artigo do disposto no n.º 1 do artigo 449.º do CPC, as custas processuais deverão ser pagas pela Autora.

6- A condenação da Ré nas custas do processo viola o disposto no artigo 659.º, n.º 4 e no artigo 449.º, n.º 1 e 2 do CPC.

Termina pedindo que a sentença recorrida seja "declarada nula e proferida outra que julgue ou não a acção procedente, mas sempre com custas a cargo da Autora."

A autora contra-alegou sustentando "a total improcedência do recurso".

Face ao disposto nos artigos 684.º n.º 3 e 685.º-A n.os 1 e 3 do Código de Processo Civil[1], as conclusões das alegações de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, as questões a decidir consistem em saber se:

a) a sentença padece da nulidade prevista na alínea e) do n.º 1 do artigo 668.º;

b) há falta de interesse em agir por parte da autora;

c) as custas devem ficar a cargo da autora.


II

1.º


Estão provados os seguintes factos:

1. A Autora é uma pessoa colectiva de direito privado, sendo uma sociedade comercial que se dedica à actividade de construção civil, compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim.

2. A Ré é uma pessoa colectiva de direito privado que se dedica à actividade de construção civil, compra e venda de imóveis e/ou suas fracções e revenda dos adquiridos para esse fim; urbanizações e loteamentos; comércio de restauração e bebidas; actividades hoteleiras; confecção e venda de refeições pré-cozinhadas; comércio de produtos alimentares.

3. A Autora é dona e legítima possuidora e proprietária do imóvel com a área total de 387,28 m2, a área coberta de 198,52 m2 e a área descoberta de 188,76 m2, composto de prédio de rés-do-chão e 1º andar para habitação e logradouro, o qual é sito na Rua (...) em Leiria, e se encontra inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Leiria, sob o artigo (...), junto do 1.º Serviço Local de Finanças de Leiria e descrito sob o número (...) da mesma freguesia junto da 1.ª Conservatória do Registo Predial de Leiria.

4. A Ré é dona e legítima possuidora e proprietária do imóvel com a área total de 300 m2, a área coberta de 270 m2 e a área descoberta de 30 m2, composto de edifício destinado a escritório e comércio, o qual é sito na Rua (...), em Leiria, e se encontra inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Leiria, sob o artigo (...), junto do 1.º Serviço Local de Finanças e descrito sob o número (...) da mesma freguesia junto da 1.ª Conservatória do Registo Predial de Leiria.

5. O prédio da Ré confronta do lado virado a Sul com o prédio da Autora.

6. A Ré deu início a processo de edificação urbana junto da Câmara Municipal de Leiria, o qual tomou o n.º 610/05, para a construção de Edifício destinado a escritórios e comércio.

7. O projecto de arquitectura apresentado para o processo de edificação urbana, pela Ré à Câmara Municipal de Leiria, prevê a construção em altura, de vários cinco pisos.

8. Tal projecto de edificação urbana promovido pela Ré, prevê ainda a construção da empena Sul do respectivo edifício, no limite da confrontação confinante com o prédio da Autora.

9. Tal projecto de arquitectura foi aprovado pela Câmara Municipal de Leiria, tendo sido emitida a respectiva licença de construção.

10. O edifício projectado construir no âmbito do processo de edificação urbana supra referido e identificado como Proc. n.º 610/2005, encontra-se já construído e em fase de acabamentos.

11. O edifício licenciado no âmbito do processo de licenciamento de obras particulares n.º 610/05, propriedade da ora Ré, tem 5 pisos, com as seguintes características:

a) r/c destinado a comércio;

b) 1.º Andar destinado a comércio, gabinetes e uma garagem;

c) 2º Andar destinado a gabinetes;

d) 3.º Andar destinado a gabinetes;

e) 4.º Andar (sótão) destinado a gabinetes;

12. O mesmo imóvel tem uma altura medida no ponto médio da fachada para a Rua (...) (alçado nascente) de 9,90m.

13. A altura medida no ponto médio da fachada (alçado norte) é de 11,15m

14. Na parede de fachada do prédio da Ré, construído ao abrigo da licença de construção emitida pela Câmara Municipal de Leiria, que confronta com o imóvel da Autora, a Ré deixou um vão com as seguintes dimensões 130 cm por 270 cm.

15. A Autora interpelou a Câmara Municipal de Leira, a fim de que a mesma se pronunciasse sobre a legalidade de tal situação.

16. Tal exposição da Autora, supra referida no ponto anterior deu origem à Participação n.º 120/09, em trâmite junto da Câmara Municipal de Leiria.

17. A Câmara Municipal de Leiria respondeu à Autora.

18. De tal ofício, sobressai o seguinte: “De acordo com o constante no projecto de arquitectura aprovado por deliberação de Câmara datado de 2009/07/07, no âmbito do proc. 610/05, o vão referido na empena Sul diz respeito a uma parede em tijolo de vidro; O projecto em causa foi aprovado nos termos do artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, na redacção que lhe foi conferida pela Lei 60/07, de 4 de Setembro, devendo garantir-se o cumprimento do disposto no Código Civil e restantes condicionalismos do licenciamento inicial; Mais se refere que eventuais assuntos referentes ao direito entre particulares, nomeadamente à servidão de vistas; deverá ser solucionado entre os mesmos, e eventualmente recorrendo à via judicial.”.

19. O vão supra descrito no ponto 14, não obstante se encontrar preenchido com tijolo de vidro, não deixa de ser uma abertura, pela qual entra luz e permite alguma visibilidade, ainda que não seja totalmente nítida, sempre será de vultos e seus movimentos.

20[2]. A Autora interpelou a Ré para tapar o referido vão, que constitui o ponto 14 supra, o que fez por escrito.

21. A Ré não só não tapou o referido vão, como não deu qualquer resposta à Autora relativamente a tal matéria, até à presente data.


2.º

A ré sustenta que "a decisão ora recorrida, enferma de nulidade insanável, já que condena a Ré em objecto diverso do pedido, nos termos do disposto na alínea e), do n.º 1 do artigo 668.º do CPC" uma vez que a autora "não formulou, portanto, qualquer pedido de condenação contra a Ré, nem sequer no reconhecimento do direito que se arroga", pelo que "face ao pedido formulado pela Autora, o tribunal a quo apenas poderia reconhecer a existência ou inexistência dos direitos sobre os quais se pediu o pronunciamento do tribunal." Lembra a ré que "nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 661.º do CPC, a condenação tem de conter-se nos limites do pedido, ou seja, da pretensão material."

Nos termos do estabelecido no artigo 668.º n.º 1 e) do Código de Processo Civil, a sentença é nula quando "o juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido".

No caso dos autos a autora, como já se deixou dito, pediu que lhe fosse reconhecido o direito:

"a) a levantar parede ou outra qualquer estrutura de qualquer material que seja, e que se encontre previsto em projecto de edificação urbana com utilidade para a Autora, aprovado pela Câmara Municipal de Leiria, que a todo o tempo possa vir a ser susceptível de tapar o vão – preenchido com tijolo de vidro, supra identificado no ponto 14 - inclusive sendo susceptível de impedir que através de tal vão passe qualquer fresta de luz natural ou outra e haja visibilidade;

b) bem como mais se requer que seja declarado que o vão existente no prédio da Ré, melhor descrito no Ponto 14, supra, que se encontra preenchido em tijolo de vidro, e através do qual passa luz natural para dentro do respectivo prédio, e existe algum grau de visibilidade, não constitui uma janela, porta, varanda, terraço, eirado ou obra semelhante, adequado a constituir a Ré no direito a servidão de vistas, por usucapião, nos termos do previsto no Código Civil n.º 1362."

A Meritíssima Juíza afirmou no decisório que "pelo exposto, julgo a presente acção totalmente procedente por integralmente provada e, em conformidade, condena-se a Ré no pedido."

Olhando para os pedidos formulados pela autora à luz do disposto no artigo 4.º, não há dúvidas de que estamos na presença de uma acção de simples apreciação, visto que estas, como é sabido, têm por fim "obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto". Nestes casos, "o autor com isso se satisfaz. (…) Em todas as acções declarativas se procura obter a referida decla­ração do direito. Mas, nas acções de simples apreciação, o autor con­tenta-se com ela. Não pretende que o tribunal vá além dessa declaração. Por isso se emprega o advérbio unicamente."[3]

Com efeito, "o que caracteriza a acção de simples apreciação e a distingue da acção de condenação é a ausência de lesão ou violação do direito. A acção de condenação pressupõe um facto ilícito, isto é, que o direito já foi violado; a acção de simples apreciação é anterior à violação do direito ou tudo se passa como se o fosse. Por outras palavras, a acção de condenação representa uma reacção contra determinada violação da ordem jurídica, contra a falta de cumprimento duma obrigação; e como esta pode consistir ou na prestação duma coisa ou na prestação dum facto, a acção tem por objecto exigir a prestação que deixou de ser satisfeita. Na acção de simples apreciação não se exige do réu prestação alguma, porque não se lhe imputa a falta de cumprimento de qualquer obrigação."[4]

Trata-se, portanto, de uma acção que tem em vista "obter uma sentença que defina se o direito ou o facto existe ou não, com efeito de caso julgado"[5].

E estas acções "podem ser positivas ou negativas. São positivas quando o autor pretende que o tribunal declare a existência de um direito ou de um facto. Pelo contrário, são negativas quando o autor requer que seja decla­rado que o direito não existe ou que determinado facto não ocorreu."[6] Na situação em apreço temos, até, um primeiro pedido de apreciação positiva e um segundo de apreciação negativa.

Salienta a ré que a autora não pediu a sua condenação "e ao condená-la, a sentença recorrida ficou ferida de nulidade por força do artigo 668.º, n.º 1 alínea e) do Código Processo Civil".[7]

Ora, considerando o que acima se disse, a expressão "condena-se a Ré no pedido" usada pela Meritíssima Juíza, significa, tão só, que se dá total abrigo às pretensões da autora, julgando-se os seus pedidos procedentes. Ela deve, pois, ser lida como significando, unicamente, que se reconhece à autora, não só o seu direito que figura no primeiro dos pedidos, como também se reconhece que, o "vão existente no prédio da Ré, (…) que se encontra preenchido em tijolo de vidro, (…) não constitui uma janela, porta, varanda, terraço, eirado ou obra semelhante, adequado a constituir" esta "no direito a servidão de vistas, por usucapião, nos termos do previsto no Código Civil n.º 1362." A palavra "condena-se"[8] que se encontra no decisório, atento o contexto em que se insere[9], e até a circunstância de a ré não ter contestado associada à terminologia usada no artigo 784.º[10], tem apenas aquele sentido; ela não converte esta acção de simples apreciação numa acção condenatória e, sublinhe-se, que por essa via não se concedeu nada à autora que esteja para além do que consta nos seus dois pedidos.

Aqui chegados, conclui-se que não ocorre a apontada nulidade da sentença.


3.º

A ré também ataca a decisão recorrida na medida em que, não tendo a autora invocado "qualquer situação de litigiosidade, de incerteza objectiva e grave sobre o direito de que se arroga" falta-lhe "o necessário interesse em agir."[11]

Na petição inicial a autora justificou a propositura da acção dizendo, nomeadamente, que:

- o vão supra descrito no ponto 14, não obstante se encontrar preenchido com tijolo de vidro, não deixa de ser uma abertura, pela qual entra luz e permite alguma visibilidade, ainda que não seja totalmente nítida, sempre será de vultos e seus movimentos, situação esta última que se actualmente não diminui o gozo do prédio da autora, poderá certamente vir no futuro a afectar esse gozo.

- trata-se de uma abertura que não se encontra a respeitar os limites previstos nos artigos 1363.º, ou edificada nos termos do previsto no artigo 1364.º ambos do Código Civil.

- interpelou a ré para tapar o referido vão e esta não só não o tapou, como não deu qualquer resposta.

- a ré não reconheceu expressamente e por escrito de que sobre tal vão, não se entendia como titular de qualquer expectativa jurídica de manter o direito à luz que do mesmo sobressai, através do prédio da autora, para além do consentimento ou vontade desta.

- isso levou a perceber que a ré pretende autonomizar da vontade e consentimento da Autora, a existência do vão da forma como o mandou edificar no prédio da sua propriedade.

- pretende a autora obter o reconhecimento judicial de que o vão não é adequado a permitir que a ré se constitua com o decurso do tempo, com o direito a mantê-lo, impedindo assim que futuramente se levante uma parede ou estrutura de qualquer material que seja, que venha a tapar o vão, vedando a entrada de luz pelo mesmo, para o prédio da ré.

- pretende obter o reconhecimento judicial de que o vão não constituirá a Ré, com o decurso do tempo, na titularidade de servidão de vistas.

- não se encontra confiante de que não se tenha a ré com a intenção de vir a invocar direitos, nomeadamente servidão de vistas, por usucapião aquando do decurso do tempo suficiente para o efeito.[12]

Provaram-se, entre outros factos, que:

- a autora é dona e legítima possuidora e proprietária do imóvel com a área total de 387,28 m2, a área coberta de 198,52 m2 e a área descoberta de 188,76 m2, composto de prédio de rés-do-chão e 1º andar para habitação e logradouro, o qual é sito na Rua (...) em Leiria, e se encontra inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Leiria, sob o artigo (...), junto do 1.º Serviço Local de Finanças de Leiria e descrito sob o número (...) da mesma freguesia junto da 1.ª Conservatória do Registo Predial de Leiria.

- a ré é dona e legítima possuidora e proprietária do imóvel com a área total de 300 m2, a área coberta de 270 m2 e a área descoberta de 30 m2, composto de edifício destinado a escritório e comércio, o qual é sito na Rua (...), em Leiria, e se encontra inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Leiria, sob o artigo (...), junto do 1.º Serviço Local de Finanças e descrito sob o número (...) da mesma freguesia junto da 1.ª Conservatória do Registo Predial de Leiria.

- o prédio da Ré confronta do lado virado a Sul com o prédio da autora.

- na parede de fachada do prédio da ré, construído ao abrigo da licença de construção emitida pela Câmara Municipal de Leiria, que confronta com o imóvel da autora, a ré deixou um vão com as seguintes dimensões 130 cm por 270 cm.

- a autora interpelou a Câmara Municipal de Leira, a fim de que a mesma se pronunciasse sobre a legalidade de tal situação.

- a Câmara Municipal de Leiria respondeu à autora e nesse ofício diz-se que: “De acordo com o constante no projecto de arquitectura aprovado por deliberação de Câmara datado de 2009/07/07, no âmbito do proc. 610/05, o vão referido na empena Sul diz respeito a uma parede em tijolo de vidro; O projecto em causa foi aprovado nos termos do artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, na redacção que lhe foi conferida pela Lei 60/07, de 4 de Setembro, devendo garantir-se o cumprimento do disposto no Código Civil e restantes condicionalismos do licenciamento inicial; Mais se refere que eventuais assuntos referentes ao direito entre particulares, nomeadamente à servidão de vistas; deverá ser solucionado entre os mesmos, e eventualmente recorrendo à via judicial.”.

- o vão supra descrito no ponto 14, não obstante se encontrar preenchido com tijolo de vidro, não deixa de ser uma abertura, pela qual entra luz e permite alguma visibilidade, ainda que não seja totalmente nítida, sempre será de vultos e seus movimentos.

- a autora interpelou a ré para tapar o referido vão, que constitui o ponto 14 supra, o que fez por escrito.

- a ré não só não tapou o referido vão, como não deu qualquer resposta à autora relativamente a tal matéria, até à presente data.

Por sua vez, quanto a esta matéria, a Meritíssima Juíza considerou que "o interesse em agir da Autora (…) emerge dos factos 17. e 18.".[13]

Na acção de simples apreciação "o autor tem simplesmente em vista pôr termo a uma incerteza que o prejudica: incerteza dum direito ou dum facto."[14] "Porém, esta incer­teza tem de ser objectiva, não bastando a simples dúvida existente na cabeça do autor. A dúvida tem de projectar-se no exercício normal dos seus direitos." Por isso mesmo é que estas acções "constituem um meio de prevenir litígios, desempenhando assim uma função preventiva" e têm "a finalidade de pôr termo a uma situação de incerteza capaz de causar grave insatisfação ou dano apreciável ao autor."[15]

Significa isso que, pela própria natureza da acção, o autor não a pode propor por mero capricho ou simples curiosidade quanto a saber se lhe assiste certo direito ou se o réu não é titular de determinado direito.

Acresce que aqui, como em qualquer outra acção, o autor tem que ter interesse em agir, o qual "consiste em o direito do demandante estar carecido de tutela judicial. É o interesse em utilizar a arma judiciária – em recorrer ao processo".[16]

"Encarando a situação pelo lado negativo, pode dizer-se que, se fal­tasse o interesse processual, a acção que viesse a ser proposta seria inútil. Ora, com a exigência deste pressuposto pretende-se precisamente evitar que as pessoas sejam chamadas a juízo, sem que a actuação da parte contrária o justifique e, ao mesmo tempo, evitar que os tribunais sejam sobrecarregados com actividade que, por desnecessária, não aproveitaria a ninguém. Para que se justifique a intervenção do tribunal, não basta que o autor alegue e prove a titularidade do direito. Deve ainda convencer de que, na situação concreta, o seu direito necessita da tutela judicial que solicita."[17]

Considerando os factos provados e a motivação exposta pela autora na petição inicial para a propositura desta acção, não pode deixar de se entender que esta tem, de facto, interesse em agir. É de toda a sua conveniência que se afaste alguma ambiguidade que a existência de um vão com 130 cm por 270 cm, preenchido com tijolo de vidro, na parede de fachada do prédio da ré, suscita, nomeadamente em termos da eventual constituição de uma servidão de vistas. E não é inócuo para a autora que se defina, desde já, que o seu prédio não está onerado com tal servidão, nem é susceptível de, em virtude desse vão, vir a estar. A clarificação de uma incerteza que a esse nível possa existir justifica que se intente uma acção nos termos em que a autora o fez, sendo certo que a concreta situação de facto sempre poderia vir a permitir que se sustentasse que, com o decorrer do tempo, se tinha constituído uma servidão de vistas.

Portanto, a autora tem interesse em agir.


4.º

Finalmente a ré censura a decisão recorrida por nela ter sido condenada nas custas da acção, dizendo que "não deu causa à acção e não a contestou, pelo que ao abrigo do disposto no artigo do disposto no n.º 1 do artigo 449.º do CPC, as custas processuais deverão ser pagas pela Autora."[18]

Porém, entre a prolação da sentença e a interposição deste recurso, a ré, apresentou o requerimento das folhas 64 a 66, em que "ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 669.º do Código de Processo Civil, requerer a reforma da sentença quanto a custas", afirmando aí que "não quer é pagar as custas às quais não deu causa e a lei (Artigo 449.º n.º 1, alínea a)) diz que são devidas pela A." e concluindo que "deve ser reformada a douta sentença e condenar-se a Autora nas custas nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 449.º do CPC."

Essa reclamação foi, entretanto, objecto da decisão da folha 93, em que se indeferiu "a requerida reforma da decisão proferida nos autos quanto a custas".

O artigo 669.º n.º 1 b) permite que se requeira "no tribunal que proferiu a sentença a sua reforma quanto a custas e multa", acrescentando o seu n.º 3 que "cabendo recurso da decisão, o requerimento previsto no n.º 1 é feito na alegação."

Nessa medida, a reclamação da ré devia ter-se limitado àquela que figura nas alegações deste recurso; não se devia ter também apresentado um requerimento autónomo com igual fim.

Atenta a coincidência de fundamentação, quer no requerimento das folhas 64 a 66, quer nestas alegações de recurso, e tendo já a Meritíssima Juíza a quo tomado posição, indeferindo a pretensão da ré, deve a questão ser aqui conhecida.

Diz a ré, nas suas alegações, que "não contestou a acção" e que, por isso, "não deu causa à acção, conforme disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 449.º do CPC. Portanto, caberá à Autora suportar as custas devidas na presente acção e no recurso (cfr. artigo 449, n.º 1 do CPC)."

Assim, parece claro que esta pretensão da ré é assenta na "alínea a) do n.º 2 do artigo 449.º do CPC"[19].

Segundo o artigo 449.º n.º 1 "quando o réu não tenha dado causa à acção e a não conteste, são as custas pagas pelo autor." E diz-nos o n.º 2 a) que "entende-se que o réu não deu causa à acção quando o autor se proponha exercer um mero direito potestativo, que não tenha origem em qualquer facto ilícito praticado pelo réu".

Deste modo, importa, antes do mais, apurar se a autora exerceu algum direito potestativo, pois, se isso não tiver acontecido, falta desde logo um dos pressupostos em que radica a alegação da ré.

Ora, "os direitos potestativos[20] são, pois, direitos a uma modificação jurídica (Rechte auf Rechsanderung), modificação que, já se entende, tem lugar no campo das relações jurídicas e não no direito objectivo".[21] Na verdade, estes direitos, "sendo exercitados, permitem a produção de um efeito jurídico constitutivo, modificativo ou extintivo na esfera jurídica de terceiro, à margem de qualquer obrigação, apenas envolvendo um situação de sujeição."[22]

No caso dos autos, a decisão proferida não produz qualquer um destes efeitos; não introduz nenhuma alteração na ordem jurídica. Limita-se a pôr termo a uma incerteza, clarificando a situação jurídica de uma determinada realidade.

Portanto, a autora não exerceu um direito potestativo, pelo que, pese embora a ré não tenha contestado, esta não beneficia do disposto no n.º 2 a) do artigo 449.º, leia-se, as custas não devem ser suportadas pela autora, mas sim pela ré, como decidiu o tribunal a quo.

Aliás, atenta as características já enunciadas, a acção de simples apreciação não é conciliável com o exercício de um direito potestativo; este não se exerce por aquela forma.


III

Com fundamento no atrás exposto julga-se improcedente o recurso e mantém-se a sentença recorrida.

Custas pela ré.

                                                           António Beça Pereira

                                                               Nunes Ribeiro

                                                              Hélder Almeida


[1] São deste código todos os artigos adiante mencionados sem qualquer outra referência.
[2] Por manifesto lapso material, na sentença após o facto provado n.º 19 fez-se constar os n.º 17 e 18, não só repetindo a numeração já usada, como também não dando o devido seguimento à mesma.
[3] Pais de Amaral, Direito Processual Civil, 8.ª Edição, pág. 20.
[4] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3.ª Edição (1948), pág. 21 e 22.
[5] Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. I, pág. 113.
[6] Pais de Amaral, obra citada, pág. 20.
[7] Cfr. conclusão 3.ª.
[8] Que se admite que, utilizada numa acção de simples apreciação, não seja a mais feliz.
[9] "julgo a presente acção totalmente procedente por integralmente provada e, em conformidade … ."
[10] " … pode o juiz limitar-se a condenar o réu no pedido…". É certo que estamos numa acção ordinária, mas a questão colocava-se nos mesmos termos se se tratasse de uma acção sumária, em que, na ausência de contestação, haveria lugar à aplicação do mencionado artigo 784.º
[11] Cfr. conclusão 4.ª.
[12] Cfr. artigos 20.º a 27.º e 35.º da petição inicial.
[13] Conforme resulta do que acima já se disse, na sentença há dois factos com o n.º 17 e outros dois com o 18. Um desses conjuntos está antes do facto 19 e o outro depois. Este segundo foi objecto de correcção neste acórdão, figurando agora esses factos aqui com os n.os 20 e 21. Fica assim a dúvida quanto a saber a quais dos factos 17 e 18 se quer, realmente, referir a Meritíssima Juíza.
[14] Alberto dos Reis, obra citada, pág. 22.
[15] Pais de Amaral, obra citada, pág. 20.
[16] Manuel de Andrade Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 79.
[17] Pais de Amaral, obra citada, pág. 114.
[18] Cfr. conclusão 5.ª.
[19] Apesar de nunca chegar a dizer, de forma expressa, que a autora exerceu um direito potestativo.
[20] Ou direitos confirmativos como são designados na Alemanha, ou ainda direitos constitutivos como são apelidados em Espanha, cfr. Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. I, 1960, pág. 12.
[21] Manuel de Andrade, obra citada, pág. 12.
[22] Salvador da Costa, do Regulamento das Custas Processuais Anotado, 2.ª Edição, pág. 79.