Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2081/09.2TBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GREGÓRIO JESUS
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL
ACÇÃO DE REGISTO
Data do Acordão: 06/22/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: POMBAL – 2ºJUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 116º DO CÓDIGO DE REGISTO PREDIAL
Sumário: I – Não existindo litígio, pertence ao Conservador do Registo Predial a competência para, em processo de justificação (artº 116º do Código de Registo Predial), suprir, com fundamento na usucapião, a falta de título de propriedade de imóveis, tendo em vista o registo predial da descrição do imóvel.

II – Se a alegação da autora e o efeito jurídico pretendido expressos na petição inicial recortam a disputa por direito de propriedade de um imóvel que aquela procura lhe seja reconhecido por usucapião, visando para o efeito ilidir a presunção registral de que a ré já beneficia, é óbvio que está o tribunal perante um conflito a dirimir (acção declarativa de simples apreciação).

III – Como a competência em razão da matéria deve ser aferida pelo pedido formulado na petição inicial em articulação com a causa de pedir, e não pela posterior postura do réu, seja ela activa ou passiva, cabe, então, ao caso vertente uma acção comum e não uma acção de justificação (acção registral).

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO


           

A..., viúva, residente em ..., instaurou a presente acção declarativa comum, sob a forma sumária, contra B..., viúva, residente no mesmo lugar, peticionando a condenação desta a:

a) reconhecer que não é proprietária do prédio rústico de pinhal e mato, sito em..., inscrito na matriz respectiva sob o art. ..., da freguesia de ... e descrito na Conservatória de Registo Predial de ... sob o nº ...;

b) reconhecer que a autora é a legitima possuidora, com exclusão de outrem do dito prédio;

c) seja ordenado o cancelamento da inscrição ap. 5 de ... da descrição nº ... da freguesia de ..., para poder ser inscrita a aquisição a seu favor.

Para tanto, alegou, em síntese, que tal prédio lhe foi adjudicado antes do ano de 1957 por óbito dos seus pais, sendo certo que desde tal data passou a amanhá-lo, roçando o mato, varejando e colhendo a azeitona e apascentando os animais, ininterruptamente, sem oposição e à vista de todas as pessoas em geral, pelo que adquiriu o dito prédio por usucapião.

Mais afirmou que em Junho de 2009 soube que a ré tinha negociado a venda de tal imóvel porque está registado na conservatória em seu nome, mas o prédio em causa nunca foi objecto de negócio entre ela e a ré, contudo o registo existente a favor da ré impede que ela possa registar o seu direito de propriedade sobre tal prédio.

Assim, teve de recorrer a juízo para impugnar tal inscrição e poder ver ilidida a presunção decorrente do registo.

Regularmente citada, a ré não apresentou contestação.

De seguida foi proferido despacho que julgou incompetente o tribunal, em razão da matéria, absolvendo a ré da instância.

Inconformada, apelou a autora que conclui da seguinte forma as alegações que apresentou:

[………………………………………………...]

Não houve contra-alegações.

            Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

ªªª

            As conclusões da recorrente – balizas delimitadoras do objecto do recurso (arts. 684º nº 3 e 685º-A, nº 1 do Cod. Proc. Civ.) – consubstanciam uma única questão: a de saber se o Tribunal Judicial da Comarca de Pombal é, ou não, competente em razão da matéria para conhecer dos pedidos formulados pela autora.

           

ªªª

                                                               


I I – FUNDAMENTAÇÃO

DE FACTO

A materialidade a ter em conta é a que foi alegada na petição inicial pela apelante já explanada no relatório supra, de forma sincopada mas suficiente, assim nos dispensando de aqui a repetir.  


ªªª

            DE DIREITO

            Da leitura da síntese conclusiva resulta que apenas uma questão é posta à nossa consideração, qual seja a de saber se o Tribunal Judicial da Comarca de Pombal é, ou não, competente em razão da matéria para conhecer dos pedidos formulados pela autora.

            A decisão da 1ª instância, argumentando que “da exegese da petição inicial resulta que o que a autora verdadeiramente pretende, não é dirimir qualquer conflito existente ou objectivamente prestes a desencadear entre si e a ré, mas obter a justificação que lhe permita inscrição no registo a seu favor do prédio em causa nos autos”, desatendeu o pedido da autora /recorrente, entendendo que existe um processo próprio para ela fazer valer os direitos que alega assistir-lhe, o processo de justificação de registo que compete às Conservatórias do Registo Predial.

A discordância da recorrente vai no sentido de que intentou uma acção de reivindicação e não de justificação.

Vejamos, então.

A acção de justificação judicial referida no n.º 1 do artigo 116º do Código do Registo Predial (doravante CRP), aprovado pelo Decreto-Lei nº 224/84 de 06/07, cujo regime constava do Decreto-Lei nº 284/84 de 22/08, deixou de existir a partir de 01/01/02 altura em que entrou em vigor o Decreto-Lei nº 273/01, de 13/10, que alterou a redacção daquele n.º 1 e revogou aquele Decreto-Lei nº 284/84.

Deu lugar à acção de justificação relativa ao trato sucessivo da competência das conservatórias do registo predial e decisão por parte do conservador (arts. 116º a 117-H do CRP), como consequência da estratégia de desburocratização, simplificação processual, e desjudicialização de matérias que não consubstanciam um verdadeiro litígio.

Os tribunais judiciais só poderão intervir no caso de recurso da decisão final do conservador (arts. 117º-I a 117º-L do CRP) ou no caso de o processo ter sido declarado findo e os interessados haverem sido remetidos para os meios judiciais pelo conservador em consequência de oposição por aqueles deduzida ou pelo Ministério Público (n.º 6 do art. 117º-F e n.º 2 do art. 117º-H, do CRP).

Arrima-se a decisão recorrida para a incompetência declarada, fundamentalmente, no alinhamento de alguma jurisprudência, que cita e de que adiante se dará nota, que igualmente perfilhamos. É ela no sentido de que o processo de justificação relativa ao trato sucessivo, previsto no art 116º e segs. do CRP, que cabe às Conservatórias do Registo Predial, é o procedimento obrigatoriamente a seguir mas só quando inexista conflito quanto ao direito de propriedade sobre um prédio.

 “Não existindo litígio, pertence ao Conservador de Registo Predial a competência para, em processo de justificação (artº 116º do Código de Registo Predial), suprir, com fundamento na usucapião, a falta de título de propriedade de imóveis, tendo em vista o registo predial da descrição do prédio”[1].

O preâmbulo do DL nº 273/2001, de 13/10, é claro nesse sentido quanto à estratégia de “desjudicialização de matérias que não consubstanciam verdadeiro litígio”.

Temos, pois, por seguro, que só se entende a instauração da acção registral quando não lhe subjaz um concreto litígio que importe dirimir, mas tão só a obtenção de título que comprove o direito de propriedade sobre identificado prédio que legitime a “primeira inscrição” registral (cfr. arts. 116º, nº 1 e 117º-H, nº 2 do CRP).

Compulsando os autos, constata-se que a autora nos artigos 2 a 10 da petição inicial enuncia características da sua posse sobre o prédio em causa que a provarem-se demonstram a aquisição do seu direito de propriedade por usucapião. Articula, grosso modo, que o prédio rústico que identifica lhe foi adjudicado antes de 1957 na partilha por óbito de seus pais, e que exerceu desde então a sua posse em nome próprio, pública, contínua, pacífica e de boa fé, acrescentando que estando impossibilitada de proceder ao registo do prédio, a seu favor, na respectiva conservatória, tem de recorrer a juízo para ilidir a presunção do registo a favor da ré.

E nos artigos 11 a 22 alega factos demonstrativos da existência de um conflito com a ré em torno da propriedade desse prédio, nomeadamente quando refere que “a demandada tinha negociado a venda daquele prédio” já tendo recebido o sinal, a “demandada afirma que pode vender o referido prédio porque está “carregado”na Conservatória em seu nome”, “não reconhecendo a demandante como legítima possuidora do identificado prédio, pretendendo valer-se da presunção do registo”, e “não manifestando a demandada qualquer propósito de proceder voluntariamente à correcção da inscrição, de forma a permitir a inscrição do prédio a favor da verdadeira possuidora”.

Para suporte do que alega juntou certidão de teor do Serviço de Finanças de ... e da Conservatória do Registo Predial de ... da qual consta na descrição nº 190/20090924, da freguesia de ..., referente ao prédio em causa, a inscrição “Ap. 5 de ... – Aquisição” a favor da ré B..., tendo por causa partilha judicial.

Isto é, a leitura e interpretação da petição inicial feita de acordo com os critérios estabelecidos nos artigos 236º, 238º e 239º do Código Civil evidencia, a nosso ver e ao invés da conclusão plasmada na decisão recorrida, que a autora pretende dirimir um conflito real existente com a ré, e não, como se entendeu, tão só obter a justificação relativa ao trato sucessivo, para efeitos de registo, prevista naquele art. 116º, nº 1 do CRP.

Di-lo expressamente a autora, no artigo 23º da sua petição inicial, quando refere que “Tendo a demandante de recorrer a juízo a fim de impugnar tal inscrição e de poder ver ilidida a presunção de que o direito inscrito não pertence à demandada”.

Portanto, à data em que a autora intentou a acção o quadro factual existente e descrito é o de um conflito entre ela e a ré, expresso no facto de a ré não a reconhecer como proprietária do prédio e valer-se da presunção do registo feito em seu favor. Só esta circunstância de haver um registo de aquisição a favor da ré, com a presunção legal dele derivada (cfr. art. 7º do CRP), e de a autora o pretender cancelar propondo-se para o efeito ilidir aquela presunção, é mais do que suficiente para fazer ressaltar, como óbvio e natural, o confronto de duas posições antagónicas e em confronto aberto. A acção é notória expressão e denúncia desse conflito.

Por isso, não poderia a autora intentar acção registral, cuja pedra de toque, como já acentuámos, reside na ausência de conflitualidade e com o objectivo de obter a primeira inscrição, que no caso até já existe e em benefício da ré.

Assim, entendemos que a decisão recorrida denotando procurar ir ao encontro da jurisprudência que se vem revelando pacífica no âmbito desta matéria, todavia não atentou que os contornos da questão, tal como lhe são apresentados na petição inicial, divergem do quadro de inexistência de litígio que é pressuposto daquela orientação, e daí que não se possa manter.

A decisora terá sido talvez impressionada pela circunstância de a ré não ter vindo à acção deduzir oposição, extraindo desse facto a ideia de que ao fim e ao cabo inexistiria qualquer conflituosidade quanto ao reconhecimento do direito de propriedade peticionado pela autora, daí retirando a impossibilidade da opção por uma acção judicial e, consequentemente, a incompetência material do tribunal.

Mas esqueceu que a competência em razão da matéria deve ser aferida pelo pedido em articulação com a causa de pedir, e não pela posterior postura do réu, seja ela activa ou passiva.

Como acentua Manuel de Andrade[2] – citando Redenti – a competência do tribunal afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum); é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do autor.         

Assim, para determinar o tribunal competente em razão da matéria para o conhecimento da lide, tem de se atentar, sobretudo, na alegação do autor e no efeito jurídico pretendido[3], e nessa conformidade a autora traz-nos um direito de propriedade que apresenta como litigioso e pretende lhe seja reconhecido, por usucapião, visando para o efeito ilidir a presunção registral que beneficia a ré.

Como se sabe, a usucapião é a forma originária de aquisição da propriedade, prevalecendo sobre o registo, como decorre do disposto no art. 5º nº 2 al. a) do CRP. Assim sendo, o registo sucumbe perante a aquisição de um direito real através da usucapião. “A base de toda a nossa ordem imobiliária não está no registo, mas na usucapião[4].

Uma última nota.

Reagindo, diz a autora/apelante que intentou acção de reivindicação, mas não. Neste particular falece-lhe razão, a acção proposta não é uma típica acção de reivindicação.

São dois os pedidos que integram e caracterizam a acção de reivindicação: o reconhecimento do direito de propriedade (pronuntiatio), por um lado, e a restituição da coisa (condennatio), por outro (art. 1311º, do Código Civil).

No caso, a autora não formula este segundo pedido, não peticiona a restituição do prédio, mas apenas o reconhecimento pela ré do seu direito de propriedade. Como bem salientam Pires de Lima e Antunes Varela “não há, pois, acção de reivindicação, que é uma acção condenatória e não uma de simples apreciação ou declaração, se o autor, …se limita a pedir o reconhecimento do seu direito de propriedade, tornado duvidoso por qualquer circunstância. Esta acção é, sem dúvida, admitida pelo artigo 4º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Civil, mas não é de reivindicação[5].

Portanto, o que a autora pretendeu foi apenas obter uma declaração judicial da “sua” propriedade. A acção apresenta-se como acção de simples apreciação[6] e constitutiva, nos termos do art. 4º, nº 2, als. a) e c), do CPC, porquanto também com ela visa atingir uma efectiva mudança na ordem jurídica existente, declarando-se novas situações jurídicas (a vigorar para o futuro), com o que se modificam direitos fundados em situação jurídica anterior (pedido da al. c))[7].

Concluindo, existindo conflito quanto ao direito de propriedade, e não podendo almejar a autora com a presente acção obter a primeira inscrição registral, lícito é concluir que se está perante uma verdadeira acção declarativa de simples apreciação e não de justificação encoberta pela capa da acção declarativa.

E sendo assim, a competência para a apreciar pertence ao tribunal judicial e não à conservatória do registo predial.

ª

Resta sumariar em cumprimento do disposto no nº 7 do art. 713º do CPC.

I - Não existindo litígio, pertence ao Conservador do Registo Predial a competência para, em processo de justificação (artº 116º do Código de Registo Predial), suprir, com fundamento na usucapião, a falta de título de propriedade de imóveis;

II - Se a alegação da autora e o efeito jurídico pretendido expressos na petição inicial recortam a disputa por direito de propriedade de um imóvel que aquela procura lhe seja reconhecido por usucapião, visando para o efeito ilidir a presunção registral de que a ré já beneficia, é óbvio que está o tribunal perante um conflito a dirimir;

III - Como a competência em razão da matéria deve ser aferida pelo pedido formulado na petição inicial em articulação com a causa de pedir, e não pela posterior postura do réu, seja ela activa ou passiva, cabe, então, ao caso vertente uma acção comum e não uma acção de justificação (acção registral).


ªªª


III – DECISÃO


Termos em que se acorda em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar a decisão recorrida declarando-se ser o Tribunal Judicial da Comarca de Pombal competente em razão da matéria para apreciar os pedidos formulados na acção, devendo como tal substituir-se a decisão recorrida por outra que se insira no normal e adequado desenvolvimento da lide.

Custas do recurso pelo vencido a final.


[1] Ac. do STJ de 3/03/05, Proc. nº 04A4610, disponível no ITIJ; no mesmo sentido se havia pronunciado anteriormente o mesmo Tribunal pelo Ac. de 25/11/04, Proc. nº 04B3644, a RG com o Ac. de 5/05/04, Proc. nº 424/04-2, e a RL no Ac. de 17/02/05, Proc. nº 842/2005-6, e depois se pronunciou a RP nos seus Acs.  de 9/06/05, Proc. nº 0532778, e 16/03/06, Proc. nº 0631297, e a RC com os Acs. de 22/05/07, Proc. nº 2300/05.4TBPBL.C1, e 29/05/07, Proc. nº 3044/05.2TBFIG.C1, todos igualmente disponíveis no ITIJ.
[2] Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, págs. 91.
[3] Acs. do STJ de 12/01/94, 22/01/97, 26/06/01, in CJ-STJ, 1994, T1, pág. 38; 1997, T1, pág. 65; e 2001, T2, pág.129, respectivamente.
[4] Oliveira Ascensão, Direitos Reais, 1978, pág. 413.
[5] Código Civil Anotado, 2ª ed., vol. III, pág. 113.
[6] "Na acção de simples apreciação não se exige do Réu prestação alguma, porque não se imputa a falta de cumprimento de qualquer obrigação. O Autor tem simplesmente em vista pôr termo a uma situação de incerteza que o prejudica: incerteza de um direito ou de um facto" (cfr. Alberto dos Reis, Código do Processo Civil Anotado, vol. I, 1980, págs. 21-22).
[7] Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, 1981, vol. I, pág. 107 e segs, e A. dos Reis, ob. cit., pág. 23.