Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2763/08.6TBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: SERVIDÃO LEGAL
CONSTITUIÇÃO
SERVIDÃO POR DESTINAÇÃO DO PAI DE FAMÍLIA
Data do Acordão: 10/16/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE POMBAL – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 1543º, 1544º, 1545º, 1546º E 1547º DO C. CIVIL.
Sumário: I – Servidão legal é aquela que pode ser coactivamente imposta – mesmo que o não tenha sido.

II - A usucapião e a destinação do pai de família não originam servidões legais, não lhes sendo, por isso, aplicável o regime próprio das servidões legais.

III - A constituição da servidão por destinação do pai de família exige a prova de que os sinais que tornam patente a serventia prestada por um prédio a outro existiam à data da separação ou da divisão do prédio.

IV - O conteúdo da servidão constituída por usucapião é delimitado pela posse que conduziu a essa constituição.

V - Assente a obrigação de indemnizar mas sendo indeterminado o respectivo quantum, deve relegar-se para momento ulterior a sua liquidação, que deve ser efectuada em incidente da acção declarativa.

Decisão Texto Integral:                 Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

Os réus, A… e cônjuge P… apelaram da sentença da Sra. Juíza de Direito do 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Pombal, que, julgando parcialmente procedente a acção declarativa de condenação, com processo comum, sumário pelo valor, contra eles proposta por J… e cônjuge, M…, os condenou a:

                A) - Reconhecer que os AA. J… e esposa, M… são donos e legítimos possuidores do prédio descrito no artigo 1.º da petição inicial.

B) - Reconhecer que a faixa de terreno identificada a vermelho na planta topográfica de fls. 107, com as características descritas na Matéria de Facto Provada, em especial nos seus pontos 12) e 13), configura uma servidão de passagem constituída por destinação de pai de família a favor do prédio dos AA., descrito no artigo 1º da petição inicial e que onera o prédio dos RR., descrito em 1) da Matéria de Facto Provada.

C) - Retirar todos os objectos e materiais por si colocados naquela faixa de terreno que constitui servidão de passagem constituída a favor do prédio descrito no artigo 1º da petição inicial.

D) - Repor o leito daquela servidão de passagem no estado em que se encontrava à sua intervenção na configuração da mesma até Abril de 2007, de forma a torná-la transitável em toda a sua extensão e largura;

E) - Absterem-se de, no futuro, a lavrar ou por qualquer meio destruir o leito da servidão de passagem constituída com a configuração descrita.

F) - Absterem-se de praticar quaisquer actos que perturbem ou impeçam o livre acesso, por parte dos AA. ao seu prédio descritos no artigo 1º petição inicial.

G) - Indemnizarem os AA. por todos os prejuízos relevantes, já previsíveis mas ainda não determináveis, nem passíveis de contabilização, que resultaram e venham a resultar da dificuldade de acesso ao seu prédio, por via da conduta dos RR., sendo esta a liquidar em execução de sentença.

Os recorrentes pedem, no recurso, que se revogue a sentença recorrida, substituindo-a por outra que reconheça os direitos dos RR., condenando os AA. a absterem-se de praticar condutas ofensivas dos direitos de propriedade dos RR., deixando de passar a sul do seu terreno e acedendo à sua propriedade pelo caminho público, que confina a norte com a Travessa de Santo António ou caso assim não se entenda, acederem os AA. à sua propriedade, pela dita faixa de terreno, mantendo-se a largura do seu leito, da curva de entrada da faixa de terreno e a largura da restante extensão ser de 3,50m e de 3,00m, respectivamente, adequada aos fins que pretendem.

Os apelantes extraíram da sua alegação estas conclusões:

                2. Factos provados.

                O Tribunal de que provém o recurso julgou provados os seguintes factos:

Não foi oferecida resposta.

               

3. Fundamentos.

                3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

                Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684º, nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).

O objecto do recurso é, portanto, triplamente delimitado. Antes de mais, esse âmbito é desde logo determinado pelos casos julgados formados na instância recorrida. Assim, é claro que o recurso ordinário não pode incidir sobre matéria sobre a qual se formou caso julgado, pelo que se, por exemplo, transitou em julgado a decisão da 1ª instância que não atendeu a arguição da ineptidão da petição inicial, nenhum tribunal de recurso pode voltar a pronunciar-se sobre essa excepção dilatória[1].                  

                O objecto do recurso é constituído por um pedido e um fundamento: o pedido consiste na revogação da decisão impugnada e o fundamento na invocação de uma vício de procedimento – error in procedendo – ou no julgamento – error in iudicando.

                Na espécie do recurso, os recorrentes não se limitam a pedir a revogação da decisão recorrida: eles propõem-se mesmo obter, no recurso, desta Relação, outros efeitos jurídicos – o reconhecimento dos seus direitos, e a condenação dos AA. a absterem-se de praticar condutas ofensivas dos direitos de propriedade dos RR., deixando de passar a sul do seu terreno e acedendo à sua propriedade pelo caminho público, que confina a norte com a Travessa de Santo António ou caso assim não se entenda, acederem os AA. à sua propriedade, pela dita faixa de terreno, mantendo-se a largura do seu leito, da curva de entrada da faixa de terreno e a largura da restante extensão ser de 3,50m e de 3,00m, respectivamente, adequada aos fins que pretendem.

                Notamos, porém, que os recorrentes já haviam formulado no articulado em que deduziram a sua defesa tais pedidos que configuram, nitidamente, uma verdadeira reconvenção (artº 274º, nº 1 do CPC). Realmente, os recorrentes remataram o seu articulado de contestação pedindo a condenação dos autores a absterem-se de praticar condutas ofensivas dos seus direitos de propriedade, deixando de passar a sul do terreno dos réus e acendendo à sua propriedade pelo caminho público que confina a norte com o seu terreno, pela rua da Cavada, ou, caso assim se não entenda, acederem pelo terreno dos réus, abstendo-se de praticar actos ilícitos lesivos dos direitos de propriedade dos réus, com a extensão e largura que tem actualmente.

                A reconvenção consiste, tipicamente, numa acção declarativa – condenatória, constitutiva ou de mera apreciação – proposta através da contestação, pelo réu contra o autor, e que provoca, no caso de ser admissível, uma acumulação, no processo pendente, de acções cruzadas ou sincrónicas – a acção inicial e a acção reconvencional.

Numa palavra: a reconvenção é a demanda do demandado (artº 274º, nº 1 do CPC).

                Simplesmente, instados, na audiência preliminar, pela Sra. Juíza de Direito, a esclarecer se efectivamente pretendiam deduzir reconvenção e, em caso afirmativo, a aperfeiçoar o seu articulado, através da indicação do valor do pedido reconvencional, e a pagar a taxa de justiça respectiva, os réus declararam que não pretendiam aperfeiçoar o seu articulado nem pagar a taxa de justiça.

Acto, contínuo, a Sra. Juíza de Direito, decidiu que se considerava que não foi deduzida formalmente reconvenção, pelo que se consideravam não escritos desde já, os supra indicados pedidos no sentido da condenação dos autores.

                Esta decisão não foi nem é no único recurso interposto – aquele que foi interposto da sentença final – objecto de impugnação, e, por isso, transitou em julgado (artº 677º do CPC).

Ergo, está irrepetivelmente decidido, neste processo, por força do caso julgado formal que se formou sobre aquela decisão, que os réus não deduziram reconvenção e que aqueles pedidos se consideram não escritos – e como tal, inexistentes (artº 672º do CPC).

                Portanto, os apontados pedidos dos recorrentes não constituem objecto admissível do recurso. E esta conclusão permanece inteiramente exacta mesmo que se devesse entender – o que não é, decididamente, o caso – que os pedidos formulados no recurso pelos recorridos são distintos dos deduzidos na instância recorrida.

                Uma vez que o direito português consagra o modelo de recurso de reponderação, o âmbito do recurso encontra-se objectivamente delimitado pelas questões colocadas ao tribunal recorrido, pelo que, em regra, não é possível solicitar ao tribunal ad quem que se pronuncie sobre uma questão que não se integra no objecto da causa, tal como foi apresentada na 1ª instância.

                Como o pedido e a causa de pedir apenas podem ser alteradas na 2ª instância se houver acordo das partes – eventualidade mais que rara – o recurso para a Relação só pode visar a reapreciação do pedido ou pedidos oportunamente formulados na 1ª instância (artº 272º do CPC). Isto significa que o tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre pedidos que não foram formulados na 1ª instância.

                Os recorrentes afirmam, aliás, repetidamente, nas conclusões com que remataram a sua alegação, que o tribunal recorrido incorreu num error in iudicando – mas num erro de julgamento apenas da questão de direito: no seu ver, a sentença impugnada, fez uma incorrecta aplicação do Direito aos factos dados como provados, equivocou-se na subsunção dos factos ao direito. Quer dizer: a impugnação não tem por objecto – de harmonia com declaração expressa dos próprios recorrentes - a questão de facto. Em todo o caso, deve notar-se que os impugnantes não pedem a reponderação do julgamento da matéria de facto e, o que é mais, ainda que fosse esse o caso, não cumpriram o ónus de impugnação da decisão dessa matéria a que a lei de processo é terminante em adstringi-los (artº 695º-B, nºs 1, 2 e 4 do CPC).

                A sentença impugnada foi peremptória na declaração de que os recorridos são titulares do direito real menor de servidão de passagem – com início na R. de Santo António, numa extensão de 5,50m, com a largura inicial de 4,20 m, que depois sofre um alargamento em virtude da curva da mesma quando flecte para poente, retomando na linha recta a meio, a largura de cerca de 4,20 m, numa extensão de 18m - que, a benefício do seu prédio, grava o prédio dos recorrentes. Servidão de passagem que, segundo a decisão recorrida, foi constituída por destinação do pai de família ou, caso assim se não entenda, por usucapião.

                Os recorrentes discordam, sustentando, de um aspecto, que o prédio dos recorrentes nunca esteve encravado – dado que tinham acesso a ele pelo lado norte – e de outro que a servidão, com a extensão com que foi declarada pela sentença apelada, excede as necessidades normais do prédio dominante – o dos recorridos – sendo suficiente a extensão definida no negócio jurídico processual, concluído entre as mesmas partes, com que, provisoriamente, foi composta a providência cautelar que correu termos sob o nº 2195/07: a largura de 3,50m, na curva, e de 3,00m na parte restante.

                Maneira que as questões concretas controversas que importa resolver são as de saber se realmente se monstra constituída, e por que título, a favor do prédio dos recorridos uma servidão de passagem, que onera o prédios dos recorrentes, e se o conteúdo dessa servidão, tal como foi definida na sentença impugnada, excede as necessidades normais do prédio dominante.

                A resolução destes problemas vincula, naturalmente, ao exame dos modos de constituição da servidão representados pela usucapião e pela destinação do pai de família, e do seu conteúdo.

                3.2. Constituição da servidão por usucapião e por destinação do pai de família.

De harmonia com a máxima, servitus fundus utililis, esse debet, as servidões prediais traduzem, vincadamente, uma relação entre prédios: a servidão deve traduzir uma utilidade real de um prédio em favor de outro, ampliando as qualidades naturais de um prédio – o serviente – para outro - o dominante (artºs 1543º e 1544º do Código Civil)[2].

                Sendo a servidão um direito real, ainda que menor, é, evidentemente, inerente à coisa, acompanhando-o em todas as suas vicissitudes. Daí que não possa ser separada dos prédios a que pertence (artº 1545º, nºs 1 e 2 do Código Civil). Além de inseparáveis, as servidões prediais estão ainda sujeitas ao princípio da indivisibilidade: a servidão onera todo o prédio dominado a favor de todo o prédio dominante (artº 1546º do Código Civil).

                Descritivamente, a classificação mais relevante das servidões prediais é a que as cinde em legais e voluntárias; as primeiras derivam da lei; as segundas são constituídas no exercício da autonomia privada (artº 1547º, nº 2 do Código Civil). As servidões legais, porque podem ser constituídas, na falta de constituição voluntária, por sentença judicial ou decisão administrativa, dizem-se coactivas ou judiciais.

                Note-se que as servidões legais não resultam imediatamente da lei. A expressão servidão legal, não designa casos em que a servidão é um efeito da lei, sem o concurso de um acto jurídico – mas sim os casos em que a lei concede ao titular do prédio dominante o direito – potestativo – de exigir a constituição da servidão. Neste caso, uma de duas: ou o titular do prédio serviente colabora na constituição da servidão ou se recusa – mas em ambos os casos, se fala de servidão legal. A recusa de colaboração do prédio dominado pode ser ultrapassada por recurso ao tribunal, ou, nalguns casos, às entidades administrativas (artº 1547º, nº 2 do Código Civil).

Quer dizer: servidão legal é aquela que pode ser coactivamente imposta – mesmo que o não tenha sido. Se as partes, por contrato, por exemplo, regularem a situação, a lei não deixa de considerar existente uma servidão legal, como comprovadamente decorre da circunstância da extinção por desnecessidade das servidões legais, qualquer que tenha sido o título da sua constituição (artº 1569º, nº 3 do Código Civil).

                Significa isto que, verificando-se os pressupostos que permitam a imposição de uma servidão legal, a servidão que se constituir se deve sempre considerar legal, mesmo que não tenha sido coactivamente actuada.

                Em termos técnicos, pode assentar-se que na servidão legal de passagem, surgem dois momentos distintos: o direito potestativo de, por recurso à via judicial, fazer surgir a servidão; a servidão, propriamente dita, uma vez constituída. Na falta de constituição voluntária, a servidão surgirá por via coactiva.

                Exemplo de servidão legal é a servidão de passagem.

                Esta deriva da faculdade que os titulares de prédios que não tenha comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la, têm de exigir a sua constituição sobre os prédios rústicos vizinhos (artº 1550º, nº 1 do Código Civil).

Quando não haja materialmente comunicação com a via pública, o encrave diz-se absoluto; é relativo quando essa comunicação exista, mas seja economicamente inviável.

Em qualquer dos casos, para o efeito de lhe conceder a servidão legal de passagem, o prédio considera-se encravado. O problema do encrave, e dos direitos de passagem que dele emergem, dão lugar a limitações sérias ao direito de propriedade e a conflitos graves entre titulares daquele direito real.

                Um traço importante da constituição das servidões legais é a indemnização devida ao proprietário do prédio dominado. Esta indemnização pode ser simples ou agravada, conforme o encrave tenha sido involuntário ou não (artºs 1552º e 1554º do Código Civil).

                Contudo, o dever de indemnizar do proprietário do prédio dominante só existe perante a constituição judicial ou equivalente da servidão. Tratando-se, porém, de servidões constituídas por usucapião ou destinação do pai de família, não há lugar a qualquer indemnização.

É que tanto a usucapião como a destinação do pai de família não são modos voluntários de constituir servidões e, portanto, quando constituídos por um qualquer desses modos, não são servidões legais.

                Este último ponto é extraordinariamente significante, v.g., em vista do modo de extinção da servidão representado pela desnecessidade (artº 1569º, nºs 2 e 3 do Código Civil).

As servidões legais, seja qual for o título, extinguem-se pela desnecessidade superveniente, o mesmo sucedendo, por expressa declaração da lei, com as servidões constituídas por usucapião.

Tratando-se, porém, de servidão destinada pelo pai de família, não lhe é aplicável uma tal causa de extinção[3].

                O encrave é requisito, de resto, primordial, da servidão legal de passagem (artº 1550º do Código Civil).

Exige-se, para a constituição dessa servidão legal, a existência de um prédio encravado, absoluta ou relativamente.

Prédio encravado é – como já se fez notar - tanto aquele que não tenha comunicação com a via pública, nem condições de a estabelecer sem excessivo incómodo ou dispêndio, como o que tenha comunicação insuficiente com a via pública, por terreno seu ou alheio (artºs 1550º, nº 2 e 1555º, nº 1 do Código Civil).

Portanto, não se considera encravado o prédio cujo proprietário tenha comunicação suficiente com a via pública, por terreno seu ou alheio, por confrontar com um outro prédio seu bem servido de acesso àquela via ou ser titular duma servidão de passagem através de prédio alheio.

                Quando a divisão do prédio importe o seu encrave, mas, do mesmo passo, a constituição de uma servidão por destinação do pai de família, não chega verdadeiramente a haver encrave: no momento do isolamento do prédio restabelece-se, em simultâneo, a comunicação suficiente com a via pública por terreno alheio, não se aplicando, portanto, o regime da servidão por encrave mas por destinação do pai de família (artºs 1550º e 1554º do Código Civil).

                Se, em vista do encrave, se invoca a aquisição da servidão de passagem por usucapião e se a posse conducente à usucapião é anterior ao encrave, este nunca chegou a existir: por força da eficácia retroactiva da usucapião à data do início da posse, verifica-se que sempre houve comunicação com a via pública, embora por prédio alheio.

                Quer dizer, o regime da servidão legal de passagem não é aplicável por ausência de encrave, sempre que este seja resultado da divisão do prédio que, em simultâneo, constitua uma servidão por destinação do pai de família ou sempre que, posteriormente, seja invocada a servidão bastante, com fundamento numa posse anterior.

                Seja como for, a constituição da servidão por usucapião ou por destinação do pai de família não pode ser considerada voluntária, em paralelo com a constituição por negócio jurídico: na usucapião, a servidão é imposta por uma parte à outra; na destinação do pai de família – como melhor se detalhará - há um facto jurídico stricto sensu.

                Estas duas formas de constituição da servidão não originam, pois, servidões legais. Assim, por exemplo, o regime próprio das servidões legais de passagem – v.g. o relativo ao encrave do prédio – não se aplica, em nenhum dos seus pontos, às servidões constituídas por usucapião ou por destinação do pai de família.

Estas servidões, não gozando do regime das servidões legais, não são elas próprias servidões legais[4].

                De harmonia com a publicidade de que sejam acompanhadas, as servidões prediais são aparentes e não aparentes: as primeiras, ao contrário das segundas, revelam-se por sinais exteriores permanentes (artº 1548º do Código Civil).

Esta distinção é importante em vista da regra de que só as servidões aparentes podem ser constituídas por usucapião (artºs 1548º, nº 1 e 1293º, b), a contrario, do Código Civil)[5].

                As servidões prediais podem, naturalmente, ser constituídas por usucapião (artº 1547º do Código Civil).

                A usucapião é, sabidamente, a constituição do direito real correspondente a certa posse, desde que esta se prolongue, com certas características, pelo período legalmente fixado. A usucapião é um modo de aquisição originária de direitos reais: quando opere, é indiferente a anterior titularidade da coisa, bem como quaisquer outros ónus que o titular legítimo anterior teria de suportar.

                A usucapião requer: uma posse pública e pacífica; correspondente a um direito usucapível; por um período de tempo legalmente bastante.

A usucapião não é automática, antes assume um funcionamento potestativo. O beneficiário da usucapião terá de a invocar.

Exige-se, portanto, um posse de boa fé – quer dizer, uma posse que, não sendo na sua origem violenta, se constituiu pensando o possuidor que tinham ele próprio o direito real de servidão – pacífica – i.e., adquirida sem violência – pública, portanto, exercida de modo a ser conhecida por qualquer interessado, e contínua, o mesmo é dizer, sem ter conhecido qualquer causa de extinção (artºs 1257º, nº 1, 1260º, nºs 1 e 3, 1261º, nºs 1 e 2 e 1262º do Código Civil).

Essa situação possessória, desde que seja pacífica e pública, é boa para usucapião, quer dizer, para a constituição ou aquisição originária, facultada ao possuidor, do direito real correspondente a essa posse. E caso essa situação possessória dure, sem qualquer interrupção ou suspensão, pelo lapso de tempo marcado na lei, segue-se a aquisição, originária, daquele direito (artºs 1287º, 1289º, nº 1, 1292º, 1296º e 1316º do Código Civil).

                Como a usucapião opera com efeitos retroactivos, reportados ao início da posse, considera-se que o direito real constituído o foi no momento em que se iniciou a posse boa para a usucapião invocada (artºs 1288º e 1317º, c) do Código Civil).

                Existe porém, uma forma específica de constituição das servidões: a destinação do pai de família.

                A servidão constitui-se por destinação do pai de família quando, havendo em dois prédios, pertencentes ao mesmo dono, ou em duas fracções de um só prédio, sinais aparentes e permanentes de serventia de um em relação a outro, venham a ser separados[6].

A servidão constitui-se, então, nos precisos termos em que, por decisão do anterior proprietário comum, havia transferência de utilidades de uma parte para a outra ou de um prédio para outro, excepto se, na separação, se decidir outra coisa (artº 1549º do Código Civil).

                Os seus requisitos são, pois:

                - Dois prédios do mesmo dono ou duas fracções do mesmo prédio;

                - Sinais visíveis e permanentes que revelem serventia de um para com outro;

                - A separação dos dois prédios ou fracções;

                - A inexistência de declaração contrária à servidão, no documento relativo à separação[7].

                A existência de sinais visíveis e permanentes constitui, claramente, característica quer da servidão aparente, única que é susceptível de aquisição por usucapião, quer da constituição da servidão por destinação do pai de família[8].

                Por sinais entende-se tudo aquilo que possa conduzir à revelação de qualquer coisa ou facto, principalmente indícios que revelem a existência de obras destinadas a facilitar e a tornar possível a servidão. Na servidão de passagem poderão ser, por exemplo, a existência de um trilho de terra batida ou empedrada, de sulcos de rodados de tracção animal deixados pelo decorrer dos tempos, em pedras existentes no caminho, tranqueiros, cancelas, pontes, etc.[9]. A servidão de passagem tornar-se-á aparente desde que se faça um caminho, uma ponte ou se abra uma porta.

                Esses sinais hão-de ser visíveis, permanentes e inequívocos, pois só deste modo poderão indicar a existência de servidão aparente. Não é indispensável que os sinais existem em ambos os prédios ou em ambas as fracções dele, dado que a lei refere terminantemente os sinais postos em um ou em ambos: quer os sinais existam no prédio dominante, no dominado ou ambos, basta que as obras ou sinais tornem a servidão patente[10].

                Além de visíveis ou aparentes, os sinais devem ser permanentes, revelando uma situação estável, que foram postos com intenção de assegurar a serventia de um prédio para o outro, com carácter de permanência[11].

                Não se exige, porém, que os sinais reveladores da serventia tenham sido postos pelo antigo titular do direito real de propriedade ou por algum dos seus antecessores: esses sinais podem, por isso, ter sido postos pelo proprietário mas igualmente, por exemplo, pelo usufrutuário ou pelo arrendatário; para que a servidão se constitua basta que o último proprietário do prédio tenha conhecimento da sua existência e tenha consentido na sua manutenção.

Essencial é sempre que os sinais que tornam patente a serventia prestada por um prédio a outro existam à data da separação ou da divisão do prédio.

                Desde que a serventia só se transforma em servidão – de harmonia com o princípio clássico que exclui a servidão sobre coisa própria (nemini res sua servit) – quando os prédios ou as fracções do mesmo prédio se separarem é axiomático que os sinais que a revelam devam existir ao tempo da sua fragmentação.

                3.3. Conteúdo da servidão.

                O regime concreto de cada servidão deve resultar do respectivo título constitutivo, entendido, naturalmente, não como documento, mas como o facto ou conjunto de factos, de que a servidão tira a sua existência e seu modo de ser[12].

É o que decorre directamente da lei, ao dispor que as servidões são reguladas, no que respeita à sua extensão[13], pelo respectivo título (artº 1564º do Código Civil); na sua falta ou insuficiência, aplicam-se as regras supletivamente dispostas na lei, das quais se extrai o princípio do melhor aproveitamento económico possível seja do prédio serviente seja do dominante: a servidão deve satisfazer as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante, com o menor sacrifício possível do prédio dominado (artºs 1565º, nº 2, 1566º, nº 2 e 1568º, nºs 1 e 2 do Código Civil).

                Interessa à economia do recurso reter este ponto: o princípio regulativo da extensão ou do modo de exercício da servidão representado pelo melhor aproveitamento económico possível, tanto do prédio dominante como do dominado é puramente subsidiário, no sentido de que só intervém para solucionar dúvidas que o título não resolva (artº 1565º, nº 2, proémio, do Código Civil).

Dito doutro modo: a delimitação positiva do conteúdo positivo da servidão é dada, em primeiro lugar, pelo título e, só subsidiariamente, por actuação daquele princípio regulativo.

                Quer isto dizer que se o título da servidão regular de forma suficiente e clara a extensão ou modo do seu exercício, não há que actuar aquela regra subsidiária: a extensão e o modo de exercício da servidão são, irrefragavelmente, as que forem dadas pelo respectivo título constitutivo.

Assim, por exemplo, se se constitui, por usucapião ou por destinação do pai de família, uma servidão de passagem para trânsito de pessoas, de animais e veículos – v.g., máquinas agrícolas – com localização X, a largura Y e com o comprimento Z, não há que fazer actuar, para delimitar o conteúdo positivo dessa servidão, o princípio apontado: por força do título constitutivo – a usucapião ou destinação do pai de família – a servidão tem necessariamente aquele conteúdo. No caso da servidão constituída por usucapião, a servidão terá o conteúdo definido pela posse que conduziu à aquisição do direito correspondente; da mesma maneira, tratando-se de servidão constituída por destinação do pai de família, a servidão terá o conteúdo que for definido pelos sinais visíveis e permanentes, sejam eles quais forem.

                Este viaticum habilita-nos, com suficiência, à resolução das questões concretas controversas, objecto do recurso.

                3.4. Concretização.

                Na petição inicial, os recorridos invocaram a titularidade do direito real menor de servidão de passagem, tendo alegado como título constitutivo dela a usucapião. Todavia, na resposta, invocaram, para esse mesmo direito real menor, título diverso: a destinação do pai de família.

                A destinação do pai de família e a usucapião são duas formas de constituição daquele direito real menor e, portanto, a verificação da existência de qualquer dos títulos constitutivos correspondentes é suficiente para fundamentar o pedido de reconhecimento dele.

As causas de pedir em que se resolvem são, pois, concorrentes (artº 1547º do Código Civil).

Os recorridos não apresentaram uma das causas de constituição daquele direito real como subsidiária da outra – mas como concorrentes ou alternativas.

Nesta eventualidade, o tribunal pode fundamentar a declaração do direito do caso em qualquer delas.[14]

                A sentença impugnada foi terminante na declaração de que o prédio dos apelados se encontra onerado com uma servidão de passagem, constituída por destinação do pai de família. A servidão teria sido constituída por esse modo já que o dono do prédio, do qual foram autonomizados os prédios dos recorrentes e dos recorridos, procedeu à sua divisão, determinando que o prédio dos primeiros tinha direito de passagem sobre os dos segundos, com a configuração já apontada.

                É exacto – de harmonia com a matéria de facto apurada na instância recorrida – que, no ano de 1984, os anteriores titulares do direito real de propriedade sobre prédio matricialmente inscrito sob o artº …acordaram na sua divisão material em duas parcelas, que logo individualizaram e demarcaram, e que uma faixa de terreno, cuja configuração foi logo definida, seria destinada à passagem de pessoas, animais e veículos.

                A divisão de coisa comum pode ser feita amigavelmente ou nos termos da lei de processo; a divisão amigável está sujeita á forma exigida para a alienação onerosa da coisa (artº 1413º, nºs 1 e 2 do Código Civil).

Por isso, ao tempo em que se procedeu à divisão material do prédio – 1984 – era exigível, para essa divisão, escritura pública (artº 80º, j) do Código de Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei nº 47 619, de 31 de Março de 1967, já então alterado pelos Decretos-Leis nºs 513-F/79, de 24 de Dezembro, 193-A/80, de 18 de Junho e 194/83, de 17 de Maio, entretanto revogado pelo artº 7º do Decreto-Lei nº 207/95, de 14 de Agosto).

                Contudo, não estando demonstrado que a divisão do prédio observou a forma prescrita na lei, segue-se que ela é nula, nulidade que pode ser invocada a todo o tempo por qualquer interessado e declarada de ofício pelo tribunal (artº 220º do Código Civil).

Sendo a divisão nula, segue-se que ela não operou, por si, a transferência do domínio, nem, por maioria de razão, a constituição da servidão por destinação do pai de família.

                A destinação do pai de família é nula quando nulo for o acto de divisão ou de separação. É essa, de resto, a razão pela qual a lei postula a existência de documento (artºs 1549º do Código Civil).

                Contudo, não é necessário que a separação de domínios se dê por título negocial; a divisão pode perfeitamente dar-se por qualquer outro título, designadamente por usucapião. E é esse nitidamente o caso do recurso: a divisão do prédio resultou da aquisição por usucapião, pelos sucessores do primitivo dono dele, como clara e cristalinamente decorre da sentença proferida na acção que correu termos sob o nº …, no 2º Juízo do Tribunal recorrido, que declarou que o prédio dos recorridos se autonomizou, por usucapião, do prédio rústico matricialmente inscrito sob o artº ...

                Simplesmente, a servidão não pode, no caso, ter-se por constituída por destinação do pai de família.

Por esta razão simples – mas sólida - é que não está demonstrada a verificação, no caso, do segundo dos requisitos de que a lei faz depender esse título de constituição da servidão: a existência de sinais visíveis e permanentes que revelem serventia de uma parte do prédio para a outra, ao tempo da separação de domínios. Para que a servidão se tivesse por constituída por este título era necessário demonstrar que a serventia foi aberta pelo anterior proprietário do prédio ou, pelo menos, que tinha existência actual no momento – retroagido à data do início da posse - em que se operou a divisão do imóvel.

                Todavia, é indubitável, em face da matéria de facto julgada provada instância recorrida, que a servidão se deve ter por constituída por usucapião.

                Realmente, os recorridos demonstraram a existência de uma posse pública e pacífica, correspondente ao direito real menor de servidão de passagem por um período superior a 20 anos. Como a usucapião não é automática, mas potestativa, mas os recorridos a invocaram, segue-se que adquiriram, originariamente, aquele direito real menor (artºs 1251º, 1255º, 1261º, 1262º, 1287º, 1288º, 1296º e 303º, ex-vi artº 1292º, do Código Civil).

Os recorrentes obtemperam que o prédio dos recorridos nunca foi encravado. O reparo não é relevante: a existência de encrave, absoluto ou relativo, é requisito da servidão legal de passagem.

Todavia, no caso, dado que a servidão se deve ter por constituída por usucapião, não estamos face a uma servidão legal.

Como decorre das considerações já expostas, quando haja uma servidão constituída por usucapião não há nada que permita operar distinções, consoante haja ou não prédio encravado.

A usucapião tanto pode ser invocada pelo beneficiário encravado como pelos restantes: em ambos os casos tem exactamente os mesmos efeitos. O mesmo sucede, aliás, com a servidão constituída por destinação do pai de família: esta tem exactamente o mesmo rosto, no encrave ou fora dele.

                Os apelantes objectam, enfim, que a sentença impugnada distanciou-se ou desconsiderou a imposição legal referente ao “menor prejuízo para o prédio serviente”, in casu, o dos recorrentes.

No seu ver, a largura da passagem – 3,50m na curva e 3,00m na parte restante – fixada, provisoriamente, no contrato processual de transacção, concluído na providência cautelar, é suficiente para satisfazer as necessidades do prédio dos recorridos.

                Mas a objecção não procede. Por mais que uma razão.

                Nos termos gerais, o objecto da providência cautelar não é a situação jurídica acautelada – mas consoante a sua finalidade, a garantia da situação, a regulação provisória ou a antecipação da tutela que for requerida no respectivo procedimento. É justamente esta distinção entre os objectos da providência cautelar e da acção principal que justifica que a decisão proferida no procedimento cautelar – ainda quando seja puramente homologatória do contrato processual de transacção concluído pelas partes – não é vinculativa na acção principal (artº 383º, nº 4 do CPC).

De resto, no caso, no negócio jurídico processual com que foi composta a providência cautelar, as partes – prevenindo a dúvida sobre a sua eficácia sobre a situação jurídica acautela – imprimiram, expressamente, carácter provisório à composição disponibilizada por aquele negócio, convencionando appertis verbis, que o fim do litígio era meramente provisório e até que estivesse decidida a acção que tinha por objecto o direito acautelado.

Depois – razão infinitamente mais relevante - na usucapião o direito é adquirido nos exactos termos em que a posse que a ela conduziu foi exercida. Nestas condições, tendo a posse sido exercida sobre um troço do solo com a extensão de 5,50m, com uma largura inicial de 4,20m, que depois sofre um alargamento em virtude da curva, retomando, na linha recta a largura de cerca de 4,20, numa extensão de 18m – a extensão da servidão – rectius – o seu conteúdo, é exactamente esse: a servidão segue pelo lugar e com a dimensão pré-determinada pela posse[15].

                Em face do seu título constitutivo – a usucapião – não há, no caso, qualquer dúvida sobre o conteúdo nem o modo de exercício da servidão. Ergo, não há que fazer intervir o princípio regulativo do melhor aproveitamento económico possível, tanto do prédio dominante como do dominado.

                Decorre clara e cristalinamente da matéria de facto apurada na instância recorrida que os recorrentes violaram o direito de real de gozo de que os recorridos são titulares: a conduta dos apelantes é ilícita, dado que dela resultou a violação daquele direito real e aqueles actuaram com dolo – dado que representaram um facto que preenche a violação do direito – subjectivo - real dos apelados e decidiram-se por uma actuação contrária ao direito.

Além disso, aquela conduta é passível de um juízo de censurabilidade, que resulta do reconhecimento de que, nas circunstâncias concretas em que actuaram, os recorrentes poderiam ter conformado a sua conduta de molde a assegurar a respeitar o direito dos recorridos, respeito que lhe era exigível nesses mesmos condicionalismos.

                Os apelantes constituíram-se, por isso, no dever de indemnizar os apelados do dano que, de forma ilícita e com culpa, lhes infligiram (artº 483º, nº 1 do Código Civil).

Na espécie do recurso, esse dano não se mostra quantificado.

                Constitui ocorrência ordinária, o juiz chegar à sentença e verificar que, devendo condenar o demandado, o processo não lhe fornece, porém, os elementos necessários para determinar o objecto ou a quantidade da condenação.

Em face desses factos, só lhe resta uma solução jurídica: proferir uma condenação genérica, quer dizer, condenar o réu no que se vier a liquidar (artº 661º, nº 2 do CPC).

A condenação genérica no cumprimento de uma prestação pode, assim, dar lugar à incerteza ou à iliquidez da obrigação.

A obrigação é incerta quando a respectiva prestação não se encontra determinada ou individualizada; é ilíquida quando a sua quantidade não se encontra determinada.

A iliquidez pode referir-se quer a prestações pecuniárias quer a prestações de dare.

É axiomático que as obrigações ilíquidas não podem ser realizadas de forma coactiva, pela razão evidente de que não se pode executar o património do devedor antes de determinar a quantia devida ou pedir a entrega de uma coisa antes de saber a quantidade que deve ser prestada (artº 47º, nº 5 do CPC).

Assim, tem de ser liquidada a condenação em quantia ilíquida (artº 661º, nº 2 do CPC).

A regra é esta: a liquidação há-de fazer-se no processo de declaração que tenha por objecto o direito à prestação e, portanto, só pode reservar-se para momento ulterior, em última extremidade, quando não seja possível fazê-lo naquele processo (artº 378º, nº 1 do CPC).

No caso, não oferece dúvida a existência da obrigação de indemnizar a que os apelantes estão adstritos; desconhece-se, porém, o respectivo quantum.

A única solução admissível é a condenação do responsável na obrigação de indemnização – e a remessa da fixação do respectivo valor para momento posterior.

Portanto, diversamente da solução normal para as situações de non liquet – que é o proferimento de uma decisão onerada com a prova – a incerteza sobre a quantia devida justifica apenas que se relegue para momento ulterior a sua quantificação (artºs 516º do CPC e 346º, 2ª parte, do Código Civil).

Esta solução parece decorrer da circunstância de, na determinação do quantum da obrigação, não se poder ficcionar o facto contrário àquele que devia ser provado como fundamento da decisão do tribunal[16].

Este pensamento transparece nitidamente na solução disposta na lei para o caso de, mesmo no incidente ulterior específico da liquidação, a prova produzida pelas partes se mostrar insuficiente para fixar a quantia devida: quando isso sucede, incumbe-se o juiz de a completar, mediante indagação oficiosa e, nomeadamente, através da produção de prova pericial (artº 380º, nº 4 do CPC).

Mesmo aqui, a persistência do non liquet sobre a quantidade da obrigação não dá lugar à intervenção da regra de julgamento representada pelo ónus da prova e ao consequente desfavorecimento da pretensão do credor, antes se impõe ao tribunal o dever de ultrapassar a deficiência, mediante iniciativa própria.

Caso os diversos critérios supletivamente dispostos na lei não se mostrem suficientes para determinar o valor daquele preço, recorrer-se-á então – e só então - à ultima ratio de julgamento também nela indicada: a equidade.

No caso, sabe-se que os recorridos têm o direito a ser indemnizados dos danos que lhe foram causados pelos apelantes, mas ignora-se o quantum exacto desse dano; deve condenar-se o devedor na indemnização que se vier a liquidar.

Neste segmento, o único reparo que se pode fazer à sentença impugnada é o de ter relegado a liquidação para execução de sentença: essa liquidação deveria ter lugar, não em execução de sentença, mas em incidente desta acção declarativa, na qual foi proferida a sentença de condenação genérica (artº 378º, nº 2 do CPC)[17].

                O recurso não dispõe, portanto, de bom fundamento.

Cumpre, por isso, julgá-lo improcedente.

                Expostos todos os argumentos, afirma-se em síntese que:

a) Servidão legal é aquela que pode ser coactivamente imposta – mesmo que o não tenha sido;

                b) A usucapião e a destinação do pai de família não originam servidões legais, não lhes sendo, por isso, aplicável o regime próprio das servidões legais;

                c) A constituição da servidão por destinação do pai de família exige a prova de que os sinais que tornam patente a serventia prestada por um prédio a outro existiam à data da separação ou da divisão do prédio;

                d) O conteúdo da servidão constituída por usucapião é delimitado pela posse que conduziu a essa constituição;

                e) Assente a obrigação de indemnizar mas sendo indeterminado o respectivo quantum, deve relegar-se para momento ulterior a sua liquidação, que deve ser efectuada em incidente da acção declarativa.

               

Os recorrentes sucumbem no recurso.

Deverão, por isso, satisfazer as custas dele (artº 446º, nºs 1 e 2 do CPC).

Dada a pouca complexidade do tratamento processual do objecto do recurso, a respectiva taxa de justiça deve ser fixada nos termos da Tabela I-B que integra o RCP (artº 6º, nº 2 deste diploma legal e 8º, nº 1 e 9º, nº 1 da Lei nº 7/2012, de 13 de Fevereiro).

                4. Decisão.

                Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso.

                Custas pelos recorrentes, devendo a taxa de justiça ser fixada nos termos da Tabela I-B, integrante do RCP.

                                                                                                                            

                                                                                                              Henrique Antunes (Relator)                            

                                                                                                              José Avelino Gonçalves

                                                                                                              Regina Rosa        

[1] Ac. do STJ de 04.02.93, CJ, STJ, I, pág. 137.
[2] Mota Pinto, RDES, Ano 21, pág. 128.
[3] Neste sentido, cfr. Acs. da RP de 16.11.93, CJ XVIII, V, pág. 214 e de 10.01.80, CJ, V, I, pág. 8, José de Oliveira Ascensão, Direito Civil, Reais, Coimbra Editora, 1983, pág. 439 e Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 2ª edição, vol. III, Coimbra, pág. 676; contra, cfr., M. Tavarela Lobo, Mudança e Alteração da Servidão, Coimbra, 1984, pág. 152.
[4] António Menezes Cordeiro, “Servidões legais e direitos de preferência”, Parecer, CJ, XVII, I, pág. 64.
[5] Luís A. Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 2ª edição, 1997, pág. 428.
[6] Alguma doutrina distingue, neste título de constituição da servidão, a destinação do pai de família e destinação do antigo proprietário; no primeiro caso têm-se em vista a separação do prédio em que existem os sinais; no segundo, a alienação do prédio que gozava já juridicamente de autonomia. A distinção é meramente descritiva, visto que a um e outro caso não corresponde uma diversidade de regime.
[7] Ac. da RL de 05.07.00, CJ, XXV, IV, pág. 87.
[8] Ac. da RC de 02.11.88, CJ, XIII, V, pág. 65.
[9] Pires de Lima, Lições de Direito Civil (Direitos Reais), publicadas por David Augusto Lourenço, 4ª edição, pág. 374 e Rodrigues Bastos, Direito das Coisas, IV, pág. 129.
[10] Os sinais visíveis podem ser equívocos e, portanto, insuficientes para demonstrar a relação de serventia entre ambos os prédios. Essa equivocidade congénita dos actos relevadores do seu exercício pode, porém, ser destruída por recurso a elementos estranhos aos próprios sinais, através de qualquer meio de prova. Cfr. Pires de Lima Servidões Prediais, exposição de motivos, BMJ nº 164, pág. 13 e RLJ Ano 72, pág. 415 e Ano 80, pág. 187, e Ac. da RC de 02.11.88, cit.
[11] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, pág. 582.
[12] José de Oliveira Ascensão, Direito Civil, Reais, Coimbra Editora, 1983, pág. 101 e 303.
[13] Embora o que esteja verdadeiramente é o conteúdo do direito real de servidão e não a extensão desta; como cada direito de servidão tem um conteúdo, falar da extensão deste, carece, verdadeiramente, de sentido.
[14] Miguel Teixeira de Sousa, O Concurso de Títulos de Aquisição da Prestação, Coimbra, 1988, pág. 240 e ss.
[15] É, aliás, esta mesma razão que explica que a disposição do artº 1553º do Código Civil – de harmonia com o qual, quando haja lugar à constituição de uma servidão legal de passagem, esta deve ser concedida através do prédio ou prédios que sofram menor prejuízo, e pelo modo e lugar menos inconveniente para os prédios onerados – apenas é aplicável às servidões constituídas por sentença judicial ou similar. No caso de contrato, o princípio é o mesmo, embora, evidentemente, por força do princípio da autonomia privada, essa definição esteja na inteira disponibilidade das partes. Mas já não assim perante a usucapião: neste caso, a servidão seguirá pelo lugar pré-determinado pela posse.
[16] Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, Lex, Lisboa 1998, pág. 110.
[17] De harmonia com o artº 21 nº 3 do DL nº 38/2003, de 8 de Março, o novo regime da condenação genérica aplica-se às sentenças proferidas em processo pendentes em 15 de Setembro de 2003. Portanto, o regime anterior só é aplicável às sentenças proferidas antes daquela data.