Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2010/21.5T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CRISTINA NEVES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
ACÇÃO INTENTADA CONTRA O FGA E OS RESPONSÁVEIS CIVIS
NATUREZA DA OBRIGAÇÃO DO FGA
PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 02/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 305.º; 323.º; 334.º; 519.º, 1; 521.º; 524.º E 593.º, 1, DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGOS 4.º; 15.º; 47.º, 1; 49.º, A) E C); 54.º, 1 E 3 E 62.º, DO DECRETO LEI N.º 29/2007, DE 21 DE AGOSTO
CONSIDERANDOS 14.º E 18.º DA 5.ª DIRECTIVA DE SEGURO AUTOMÓVEL
Sumário: I- Nas acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação - quando o responsável seja conhecido e não beneficie de seguro válido e eficaz, interposta contra o Fundo de Garantia Automóvel e os responsáveis civis (artsº 47 e 62 do D.L. 291/2007 de 21 de Agosto) - a obrigação daquele é subsidiária, como garante perante o lesado, da obrigação de indemnização dos responsáveis civis pelos danos causados, com os limites definidos nas alíneas a) a c) do artº 49 do SORCA.

II- A excepção de prescrição invocada pelos responsáveis civis aproveita ao FGA, ainda que esta a não haja invocado, pelo que extinta a obrigação do responsável civil, com ela se extingue a posição do seu garante encabeçada pelo FGA.

Decisão Texto Integral:

Proc. Nº  2010/21.5T8LRA-C1-Apelação

Recorrente: AA

Recorridos: Fundo de Garantia Automóvel

              BB

  CC

Juiz Desembargador Relator: Cristina Neves

Juízes Desembargadores Adjuntos: Teresa Albuquerque

                                        Falcão de Magalhães

                                       


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Acordam os Juízes na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra



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RELATÓRIO

AA intentou acção declarativa de condenação contra o Fundo de Garantia Automóvel, peticionando a condenação deste Fundo a pagar-lhe uma indemnização no montante de € 167.816,86€ pelos danos patrimoniais sofridos e no montante de € 43.985,24€ pelos danos não patrimoniais sofridos em consequência de acidente de viação, ocorrido em 5 de Outubro de 2014, causado por veículo sem seguro de matrícula ..-..-JL

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Citado, veio o R. FGA, invocar a sua ilegitimidade passiva por preterição de litisconsórcio necessário com os responsáveis civis, o condutor BB e o proprietário CC.

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Deduzido incidente de intervenção principal dos acima referidos, admitida esta intervenção e citados para a causa, vieram os RR. intervenientes deduzir, entre outras, a excepção peremptória de prescrição pelo decurso do prazo previsto no artº 498 do C.C.


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Notificado para responder, querendo, a esta excepção, veio o A. alegar que o FGA sempre reconheceu a sua responsabilidade e que a “relação do Autor é com a Ré, FGA, sendo solidariamente responsáveis com esta, o condutor e proprietário do veículo, apenas, para efeitos de reembolso”, razão pela qual considera não estar prescrito o seu direito.

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Após, foi proferido despacho no qual se julgou a excepção peremptória invocada procedente e se absolveu todos os RR. do pedido.

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Inconformado com esta decisão, dela apelou o A., concluindo da seguinte forma:

“CONCLUSÕES

a. Vem o presente recurso interposto da decisão proferida que julgou procedente a exceção de prescrição e absolveu “os réus FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL e BB e CC dos pedidos formulados por AA.”

b. Em síntese, concluiu o douto Tribunal que, “A interrupção da prescrição quanto ao FGA não pode aproveitar aos restantes réus uma vez que, como já referimos, não são demandados para mero efeito de reembolso, mas sim como devedores principais e as causas de interrupção da prescrição são sempre pessoais.”

c. E que, “Estando em causa um litisconsórcio necessário, como neste caso, a prescrição do direito quanto a um dos devedores – no caso do devedor principal – aproveita ao FGA ainda que não a tenha invocado na contestação”

d. A douta sentença constitui fundamento e dá azo a situações de injustiça, contrárias aos fins do Direito.

e. Desde logo, pela própria função de garante que é atribuída ao Fundo de Garantia Automóvel (FGA), por força do DL n.º 291/2007 de 21 de agosto;

f. O artigo 47º prescreve que, “A reparação dos danos causados por responsável desconhecido ou isento da obrigação de seguro em razão do veículo em si mesmo, ou por responsável incumpridor da obrigação de seguro de responsabilidade civil automóvel, é garantida pelo Fundo de Garantia Automóvel (…)”;

g. Cabe, portanto, ao FGA garantir a satisfação de indemnizações por lesões quando o responsável não beneficie de seguro válido ou eficaz e uma vez satisfeita a indemnização – pelo FGA – fica este sub-rogado nos direitos do lesado;

h. Efetivamente, os restantes réus são demandados para mero efeito de reembolso,

i. Considerar o contrário, como a douta sentença fez, desvirtua a gênese do DL supra referido, torna incongruente a presença do FGA em ações judiciais, e, para os lesados, indiferente a existência, ou não, de seguro automóvel – quando o mesmo é obrigatório!

j. A intervenção dos responsáveis civis ao lado do FGA tem em vista razões de economia e celeridade processual, mais concretamente, entre elas, facilitar ao lesado a satisfação do seu direito, permitindo-lhe optar entre o património do lesante faltoso e a indemnização meramente substitutiva do fundo e definir, logo na medida do possível e sem mais dispêndio processual, os pressupostos fácticos e jurídicos em que se há-de basear o direito de sub-rogação – neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, no Processo n.º 10/07.7TBMAI.P1, de 12-10-2010, disponível em www.dgsi.pt.

k. Isto porque, a solidariedade que existe é imprópria ou imperfeita, atendendo a que no plano das relações externas – entre os responsáveis, neste caso, entre o FGA e os restantes devedores civis – a responsabilidade dos obrigados é solidária, uma vez que o lesado pode exigir a qualquer dos responsáveis (lesante ou Fundo) a satisfação do seu crédito.

l. O que não pode ser discutido nos presentes autos é tão-só a relação interna dessa solidariedade, isto é, a questão da sub-rogação do Fundo dada a sua função de garante, relação que não se encontra prejudicada, estando o FGA em tempo de exercer o seu direito de regresso contra os responsáveis civis, numa outra ação.

m. Além disso, dispõe o artigo 303º CPC a necessidade de invocação da prescrição.

n. Do artigo 573º CPC epigrafado “Oportunidade de dedução da defesa” resulta que toda a defesa deve ser deduzida na contestação e que depois desta só podem ser deduzidas as exceções que a lei expressamente admita passado esse momento ou de que deva conhecer oficiosamente. o. Sucede que, na sua contestação o FGA não invocou a prescrição.

p. Admitir que a invocação da prescrição por aqueles aproveita o FGA – quando este não a invocou, como reconhece a douta sentença – seria desvirtuar a exigência dessa invocação plasmada no Código Civil, deixando ao FGA a possibilidade, até, de não apresentar defesa, tornando inútil a sua citação para efeitos de contestação.

q. Aliás, colocaria em causa o próprio artigo 574º CPC, porque de acordo com a douta sentença, só sobre o condutor e proprietário é que recai o ónus de impugnação.

r. De acordo com a decisão o FGA não precisa de contestar, porque a contestação do proprietário e condutor vai sempre aproveitar-lhe.

s. Existem, portanto, regras processuais e consequências diferentes para as partes que estão em juízo, em litisconsórcio.

t. No caso sub judice, o A. foi vítima de um acidente de viação, em 2014, contra um veículo ligeiro de mercadorias que não possuía seguro automóvel válido e o FGA, assume, desde logo, a responsabilidade pelo sinistro em causa.

u. Não falamos, apenas, numa assunção meramente formal, mas numa assunção verdadeiramente material, caracterizada pela prática de atos confessórios do reconhecimento da obrigação de indemnizar – como escreve na sua contestação e como resulta da sentença – através do pagamento de adiantamentos ao aqui Recorrente, por conta da indemnização final, e ao acompanhamento clínico que lhe presta.

v. Além disso, foi junta aos autos a notificação judicial avulsa contra o FGA que sempre interromperia a sua prescrição.

w. Em suma, falamos da renúncia, do FGA, à prescrição, em face da prática de factos positivos que demonstram inequivocamente que assume a responsabilidade perante o A., não podendo vir “dar o dito pelo não dito”, pois se assumiu a responsabilidade não pode agora a sentença impor-lhe uma negação desse facto e a interrupção dessa conduta.

x. Que a interrupção e a renúncia da prescrição não possam aproveitar aos restantes réus, é algo que aceitamos e acolhemos, mas as consequências dessa situação são apenas as do direito de regresso do FGA contra o condutor e proprietário.

y. E tal relação não está em causa, porquanto o último adiantamento é datado de março de 2020, conforme documento junto pela R. FGA, em 28-07-2021, através de requerimento com a referência n.º 39563076, e,

z. Como ensinava Vaz Serra (RLJ, 99, 360): “A sub-rogação supõe o pagamento... e, portanto, o terceiro que paga pelo devedor só se sub-roga nos direitos do credor com o pagamento”. Porquanto encontra-se em tempo o FGA de exercer o seu direito sobre o condutor e proprietário.

aa. Aliás, de outro modo, cremos que o FGA não procederia a adiantamentos sem, antes, se salvaguardar.

bb. Não podemos considerar que os presentes autos terminem, quanto ao FGA, porquanto este assumiu uma obrigação para com o ora Recorrente.

cc. Considerar a prescrição quanto ao FGA – que não há prescrição quanto a este - contradiz o princípio da verdade material, da segurança e certeza jurídica e põe em contradição os vários diplomas legais

dd. Mas, por mera cautela, sempre se dirá que, a considerar-se a prescrição, os seus efeitos operam para o efeito e os adiantamentos liquidados foram prestados voluntariamente pelo FGA, com as consequências previstas no nr.º 2 do artigo 304º do CC.

ee. Decorre da leitura da contestação do FGA, uma confissão expressa e irrevogável.

ff. Pese embora a confissão no âmbito do litisconsórcio necessário alcance meramente o efeito previsto no n.º 2 do artigo 288º CPC, tal reconhecimento sempre valerá como elemento probatório que o tribunal deverá apreciar livremente, ficando sujeito à regra da livre apreciação da prova, nos termos do artigo 361º do CC. Neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça - Processo: 07B4125 e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa – PROC 4206/06.0YXLSB.L1-7 de 23-11-2010.

gg. O efeito prático da douta sentença lesa o conceito de justiça e deixa desprotegida uma vítima que confiou no sistema de justiça.

hh. Além disso, atua, assim, com abuso de direito o FGA, na modalidade supra identificada, que assume a responsabilidade pelo sinistro em causa, procede a pagamentos por conta da indemnização final, acompanha o Recorrente em consultas médicas, não invoca a prescrição em sede de contestação, confessa a sua responsabilidade e, no fim, é lhe imposto que saia da ação com aproveitamento numa exceção que não invocou e a que renunciou.

ii. Perante estes dados de facto, verifica-se que o ora Recorrente podia confiar na sua proteção.

jj. A douta sentença proferida é inadmissível e contrária aos mais elementares princípios da justiça e do direito.

kk. Motivo pelo qual, deve a sentença recorrida ser revogada e ser proferida outra em conformidade com esta posição do FGA nas relações entre as vítimas e aqueles que está a garantir.

Termos em que, V. Ex.ª Venerandos Desembargadores, acolhendo as conclusões que antecedem e dando provimento ao recurso farão a tão costumada JUSTIÇA!”


***


Foram interpostas contra-alegações pelo R. CC, pugnando pela improcedência do recurso, concluindo da seguinte forma:

“1ª- O recorrente alega e considera, sumariamente, que não ocorreu a prescrição porque a mesma interrompeu-se quanto ao Réu FGA, o qual será responsável pela indemnização, sendo os restantes Réus unicamente demandados para efeitos de reembolso das quantias que o FGA tiver que pagar.

2ª- Não sufragamos tal entendimento, como se demonstra na Presente Resposta com os fundamentos que da mesma se extraem e que vão de encontro à generalidade da Jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, mormente do S.T.J e deste Venerando Tribunal.

3ª-A sentença em recurso fundamentou e decidiu o seguinte: “Deste modo, a interrupção da prescrição quanto ao FGA não pode aproveitar aos restantes réus uma vez que, como já referimos, não são demandados para mero efeito de reembolso, mas sim como devedores principais e as causas de interrupção da prescrição são sempre pessoais. Assim, prescrita a obrigação do devedor principal, e também do réu CC, e estando em causa um litisconsórcio necessário, há ainda, que apurar se a prescrição aproveita também ao FGA, que não a invocou. Por outro lado, também entendemos que, estando em causa um litisconsórcio necessário, como neste caso, a prescrição do direito quanto a um dos devedores – no caso do devedor principal – aproveita ao FGA, ainda que a não tenha invocado na contestação (embora tenha declarado pretender beneficiar da mesma em audiência prévia, caso se tenha por verificada).Está, pois, verificada a exceção perentória de prescrição, a qual tem como consequência a absolvição do pedido (cf. Arts. 576º, ns. 1 e 3 do CPC). Assim, por tudo o exposto, julgo procedente a exceção da prescrição e absolvo os réus FUNDO GARANTIA AUTOMÓVEL, e BB e CC, dos pedidos formulados por AA.”

4ª-A questão essencial no presente recurso é saber se a Prescrição do direito do Autor, ora recorrente, relativamente aos responsáveis civis, aproveita, nos mesmos termos, ao Fundo de Garantia Automóvel, sem necessidade de ser por este invocado.

5ª-O FGA, não é um devedor, não é um responsável civil. Caracteriza-o uma posição de independência e acessoriedade face às regras da responsabilidade civil, advindo a sua intervenção da falta de contrato de seguro válido e eficaz ou do desconhecimento da existência de um contrato de seguro por ser desconhecido o responsável civil.

6ª-Assim, ao FGA incumbe o ressarcimento dos danos resultantes de acidentes, conforme estabelecido no artigo 47º do DL 291/2007, de 21/08.

7ª-Concomitantemente dispõe ainda a “Lei do Seguro Obrigatório” que as ações destinadas à efetivação de responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quando o responsável civil seja conhecido e não beneficie de seguro válido e eficaz, devem obrigatoriamente ser propostas contra o FGA e o responsável civil, sob pena de ilegitimidade (art. 62º do DL 291/2007, de 21/08).

8ª - Responderá, consequentemente, em sede subsidiária ou acessória e não como devedor principal, direto ou solidário, ficando sub-rogado perante o terceiro, nos direitos do lesado, tudo bem distante, aliás, da figura do devedor solidário e do regime das obrigações solidárias, nomeadamente quanto ao seu estatuto prescricional e de regresso entre devedores, com regulação nas normas dos artigos 497º, 521º, n.º 1 e 522º, n.º 1 do e 524º do CC.

9ª-Enquanto no direito de regresso se está perante um novo crédito, cujo objeto não se identifica com o do crédito extinto, na sub-rogação mantém-se o mesmo direito de crédito em que apenas ocorre transmissão da titularidade.

10ª-Neste sentido decidiu recentemente este Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, no Processo 1288/14.5TBCLD.C2, de 13/11/2019, em que numa situação em tudo idêntica a esta, mas em que foi o FGA que invocou a prescrição e o responsável civil, o não fez, fundamenou da seguinte maneira: “ Se fosse ao contrário – isto é, se, por ex., estivesse invocada e estabelecida a prescrição em relação ao 2.º R. e o FGA não tivesse invocado a prescrição – é que, a nosso ver, faria sentido invocar a natureza da obrigação de garantia do FGA e, por identidade de razão com o disposto no art. 651.º do C. Civil, dizer que, extinta a obrigação principal, também ficava extinta a obrigação do FGA (…)”

11ª-No mesmo sentido vão as normas específicas de natureza processual, ao imporem o litisconsórcio necessário passivo entre o Fundo e o responsável civil, contrariando as regras próprias do regime de solidariedade (artigo 512º, n.º 1, 517º Código Civil e 32º do Código de Processo Civil), o que só encontra fundamento na natureza “subsidiária” /“ acessória “da obrigação do Fundo e na salvaguarda dos efeitos jurídicos da sub-rogação legal.

12ª-Do ponto de vista processual vem ainda ao encontro do regime substantivo, convergindo, a mencionada norma do artigo 62 do DL n.º 291/2007, de 21/08, ao impedir o prosseguimento da ação contra o Fundo, quando desacompanhado do responsável civil, já que configura uma situação de ilegitimidade superveniente, por preterição de litisconsórcio necessário passivo. 13ª-O Fundo de Garantia Automóvel surge, assim, como comparte com os alegados lesantes na ação e responde com estes, não porque se verifiquem quanto a ele os pressupostos da responsabilidade civil, mas tão só como mero garante de uma obrigação de terceiro e, por este motivo, o litisconsórcio necessário passivo entre ele e o responsável civil configura-se como um verdadeiro litisconsórcio unitário.

14ª-Este litisconsórcio corresponde a situações em que o objeto do processo é um interesse indivisível, pelo que sobre ele não podem ser proferidas decisões divergentes.

15ª-Neste contexto, as razões que impõem o litisconsórcio necessário passivo na presente ação teriam, naturalmente, que conduzir, a nosso ver, à absolvição, em conjunto, dos responsáveis civis e por consequência do Fundo de Garantia Automóvel, pois caso contrário estaríamos perante uma situação de ilegitimidade superveniente, por preterição de litisconsórcio necessário passivo.

16ª-Veja-se neste sentido, entre muitos outros, o AC. Do STJ de 3/04/2014, proferido no Processo nº 56/07.6TVPRT.P1.S1, que pode ser consultado em www.dgsi.pt: “I - Nos acidentes de viação, quando o responsável seja desconhecido ou não beneficie de seguro obrigatório válido ou eficaz, a intervenção do FGA e dos responsáveis civis configura uma situação de litisconsórcio necessário passivo. (…) II - Por conseguinte, a absolvição dos responsáveis civis, acarreta necessariamente a absolvição do FGA, à luz do art. 683.º, n.º 1, de CPC, uma vez que não pode ficar sub-rogado no direito do autor sobre aqueles.”

17ª- No que concerne às alegadas, interrupção da prescrição; não invocação da prescrição e renúncia à prescrição, que o Recorrente arrazoa, também não lhe assiste qualquer razão. Efetivamente,

18ª- A prescrição tem como fundamento a negligência do credor no exercício do direito durante um período de tempo no qual seria expectável que ele o exercesse se nisso estivesse interessado, e que por razões de certeza e de segurança nas relações jurídicas, atribui-se presuntivamente à inércia do credor o significado de que quis renunciar ao direito ou considera-se que este já não merece tutela, libertando-se o devedor do cumprimento.

19ª- O FGA, não invocou expressamente na sua contestação, a exceção da prescrição, mas na audiência prévia, declarou aderir à invocada Exceção alegada pelos contestantes/ responsáveis civis.

20ª-A não invocação, a interrupção ou renúncia à prescrição, ora chamada à colação pelo recorrente,- prescrição enquanto fundamento da extinção do direito e suas consequências relativamente ao FGA- é irrelevante à solução encontrada, já que, com ou sem invocação, interrupção ou renúncia, a declaração de extinção da obrigação de indemnização do responsável civil ao lesado, em acidente de viação, aproveita, nos mesmos termos, ao FGA (na esteira do supra exposto).

21ª- Face ao estatuto de mero garante do FGA, uma vez extinta, por prescrição ou outra causa, a obrigação de indemnização a cargo do responsável civil, extinta também fica a correspondente obrigação de garantia do FGA, na medida em que a obrigação de garante do FUNDO está condicionada pela existência, verificação e quantificação da obrigação do responsável civil (cf. neste sentido o a. do STJ de a. 23-09-2008, em www.dgsi.pt/jstj.nsf/ proc. n.º 08A1994, e acs. da Relação do Porto de 12-02-2008 e 27-01-2009, em www.dgsi.pt/jtrp.nsf/ procs. n.ºs 0726212 e 0827674, respetivamente).

22ª-Pelo que, por ausência de fundamento, não deve sequer ser conhecida a suscitada questão da não invocação, interrupção ou renúncia da prescrição.

23ª- Neste sentido se invoca a doutrina do Acórdão do STJ, proferido em 23/09/2008, no proc. n.º 08A1994, in www.dgsi.pt: “(…) Crê-se ser incontornável (…) que se o titular do direito à indemnização perdeu o direito de a exigir do responsável devedor, isto é, o direito de acionar a obrigação garantida, não se encontra fundamento para que ainda possa ser exercitado o direito consubstanciado pela obrigação de garantia (cfr. neste sentido, o Ac. deste Supremo de 06/07/2004, proc. 04B296), obrigação que está condicionada pela existência, verificação e quantificação do responsável civil. A declaração de extinção da obrigação de indemnização do responsável civil ao lesado, em acidente de viação, aproveita, nos mesmos termos, ao Fundo de Garantia Automóvel”.

24ª-No mesmo sentido o Acórdão do STJ, proferido em 12/05/2016, no proc. n.º 6147/12.3 TBVFR-A.p1.S1,in www.dgsi.pt: “V – A prescrição invocada, com sucesso, pelos responsáveis civis aproveita ao FGA (…)” e ainda, o Acórdão do TRP, proferido em 12/08/2008, no proc. n.º 0726212, in www.dgsi.pt: “1- O FGA é apenas garante da obrigação do responsável, estando a sua obrigação de indemnizar condicionada pela existência, verificação e quantificação desse responsável. 2 – Extinta por prescrição a obrigação de indemnização a cargo do responsável civil, fica extinta a correspondente obrigação de garantia do FGA.” Por conseguinte, tendo em conta a natureza e a finalidade da garantia, legal e obrigatória, declarada que foi extinta a obrigação do responsável civil, não pode subsistir a obrigação que garantia aquela mesma responsabilidade.”

25ª-No presente processo, tal como no caso em apreço no Acórdão supra referido, o A./ Recorrente, só quase oito anos após o sinistro é que demandou os lesantes/responsáveis civis, e, se bem se alcança, sem que tenha aduzido qualquer justificação para tamanha delonga, e assim sendo sibi imputet, não pode o Fundo, como mero garante, ser responsabilizado por uma obrigação daqueles já prescrita.

26ª-O Tribunal de 1ª instância, ao decidir como decidiu, julgando procedente a exceção de prescrição do direito invocado pelo recorrente contra os Réus CC e BB, fez uma correta interpretação da lei e do direito, no seguimento do entendimento da generalidade da jurisprudência dos Tribunais superiores, mormente do S.T.J e deste venerando Tribunal, 27ª-Considerando também, como é entendimento geral da Jurisprudência, que a declarada prescrição, aproveita ao FGA, sem necessidade de ser por este invocada.

28ª- Razões por que terão que falecer os argumentos e o pedido formulado pelo Recorrente, por manifestamente contrário à lei e ao direto, negando-se provimento ao Recurso, mantendo-se na integra e sem qualquer censura a sentença Recorrida,

Por ser legal e de Inteira JUSTIÇA.”


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Por sua vez o Fundo de Garantia Automóvel veio interpor contra-alegações, concluindo do seguinte modo:

“CONCLUSÕES:

1. Doutamente, o Tribunal a quo absolveu todos os Réus do pedido.

2. Declarando prescrito o direito do Autor relativamente aos devedores principais – o proprietário e o condutor do veículo alegadamente sem seguro e causador do acidente – absolveria também o Fundo de Garantia Automóvel, posto que este deixou de ser garante do pagamento de qualquer dívida…

3. Pugna o Autor pela condenação do FGA desacompanhado dos responsáveis civis, defendendo que a isso obrigam as suas atribuições legais de garante do pagamento de indemnizações!

4. Contudo, se é certo que o Autor requereu atempadamente a notificação judicial avulsa do FGA, não o fez relativamente aos verdadeiros responsáveis – o proprietário e o condutor do veículo sem seguro.

5. Invocada por estes a prescrição, foi a mesma declarada.

6. Em sede de audiência prévia, salientou o FGA que a sua posição processual não é de responsável, muito menos de devedor principal, mas tão só a de garante do pagamento da indemnização em que os responsáveis civis viessem a ser condenados.

7. Em douto despacho saneador / sentença, foi proferida decisão que julgou procedente a prescrição e absolveu os chamados (devedores principais) do pedido e, em consequência, absolveu também o FGA, posto que a prescrição do direito quanto aos devedores principais tem de aproveitar ao FGA, com mero papel de garante da indemnização que for devida por aqueles.

8. Não sendo devida indemnização, nada há a garantir!

9. Os art.º 48.º e 49.º do DL 291/2007, de 21/08, não obrigam o FGA a satisfazer direitos prescritos!

10. Inexiste qualquer fundamento para a pretensão do Autor de ver o FGA condenado sozinho, quando foi ele próprio que não cuidou de assegurar a interrupção do prazo prescricional quanto aos verdadeiros responsáveis, deixando que o mesmo decorresse até final.

11. Inexiste, de igual modo, qualquer erro de apreciação ou julgamento, devendo a douta decisão de fls. manter-se na íntegra.

12. A douta decisão de fls. não violou quaisquer preceitos legais.

Termos em que deverá ser negado provimento ao recurso.

Assim se fará JUSTIÇA!”


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QUESTÕES A DECIDIR


Nos termos do disposto nos artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial. Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.

            Tendo este preceito em mente, a única questão a decidir consiste em apurar:
a) Se em acção intentada pelo lesado contra o FGA e os responsáveis civis, a invocação do prazo de prescrição por estes aproveita ao FGA.
b) Se, no caso de se entender que a prescrição aproveita ao FGA, existe abuso de direito por parte deste R. 


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MATÉRIA DE FACTO


A matéria de facto a considerar para a decisão da presente acção é a seguinte:

1- O acidente entre o motociclo com a matrícula ..-..-TL, propriedade do A. e conduzido pelo mesmo e o veículo ligeiro de mercadorias, com a matrícula ..-..-JI, ocorreu em 05/10/2014.

2-O A. promoveu a notificação judicial avulsa do FGA, realizada em 08/07/2019.

3. A presente acção interposta apenas contra o FGA deu entrada em 26 de Maio de 2021.

4-Admitida a intervenção dos RR. CC e BB, foram estes citados em 13 e 14 de Janeiro de 2022, respectivamente.


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DO DIREITO

A decisão sob recurso considerou que o decurso do prazo de prescrição em relação aos responsáveis civis aproveita ao R. FGA por este ser “o garante subsidiário. A obrigação principal é sempre do causador do dano”, pelo que “a interrupção da prescrição quanto ao FGA não pode aproveitar aos restantes réus uma vez que, como já referimos, não são demandados para mero efeito de reembolso, mas sim como devedores principais e as causas de interrupção da prescrição são sempre pessoais.” Mais acrescenta que “estando em causa um litisconsórcio necessário, como neste caso, a prescrição do direito quanto ao um dos devedores – no caso do devedor principal – aproveita ao FGA ainda que a não tenha invocado na contestação” pelo que “ a prescrição do direito invocado pelo autor contra estes 2 réus também aproveita ao FGA.”

Contrapõe o recorrente que a exigência de intervenção dos responsáveis civis releva apenas para efeitos de reembolso, pelo R. FGA, pelo que haja pago, vinculando-os desde logo à decisão, existindo um regime de solidariedade imperfeita entre os demandados.

Nesta medida, considera que a prescrição do direito contra os responsáveis civis não determina a extinção do direito contra o FGA, que não invocou a prescrição e que confessou ter já efectuado pagamentos parcelares ao A. por conta da indemnização que lhe seria devida.

Invoca ainda o instituto do abuso de direito, caso se considere que a excepção de prescrição aproveita ao R. FGA. que a não invocou e que efectuou já pagamentos ao A., reconhecendo a sua obrigação.

Se a prescrição invocada pelos responsáveis civis aproveita ao FGA, que efectuou já pagamentos ao A. lesado.

A presente acção visa apurar a responsabilidade pelos danos sofridos pelo A. lesado em acidente de viação, no qual foi incumprida a obrigação imposta ao proprietário do veículo nele interveniente de celebrar seguro que cobrisse a responsabilidade civil do proprietário e dos legítimos detentores e condutores do veículo (cfr. artºs 4 e 15º do D.L. nº 291/2007 de 21/08.

O nosso ordenamento civil, por via do D.L. nº 291/2007 de 21 de Agosto (doravante SORCA), que transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio (5ª Directiva sobre o seguro automóvel), estipula a obrigatoriedade de celebração de um seguro imposta aos responsáveis civis que cubra os riscos decorrentes da circulação de veículos automóveis. Visa-se assegurar, como decorre expressamente do preâmbulo deste diploma, um elevado e completo “sistema de protecção dos lesados por acidentes de viação”, baseado em dois pilares essenciais: o pilar-seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e o pilar-FGA.

Conforme resulta do considerando 14 da 5ª Directiva de Seguro Automóvel, a União Europeia impõe aos Estados-Membros a obrigação de “prever a existência de um organismo que garanta que a vítima não ficará sem indemnização, no caso do veículo causador do sinistro não estar seguro ou não ser identificado. É importante prever que a vítima de um sinistro ocorrido naquelas circunstâncias se possa dirigir directa e prioritariamente a esse organismo.”, uma vez que, conforme se refere no considerando 18, “no caso de um acidente causado por um veículo não segurado, o organismo que indemniza as vítimas de acidentes por veículos não seguros ou não identificados está melhor colocado do que a vítima para intentar uma acção contra a parte responsável.”

Em consonância com esta Directiva, estatui o art.º 47º, nº 1, do SORCA que “a reparação dos danos causados por responsável desconhecido ou isento da obrigação de seguro em razão do veículo em si mesmo, ou por responsável incumpridor da obrigação de seguro de responsabilidade civil automóvel, é garantida pelo Fundo de Garantia Automóvel (…)”.

Nestes casos, conforme decorre do disposto no artº 49, do supra-citado Diploma, o Fundo de Garantia Automóvel garante, “até ao valor do capital mínimo de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, a satisfação das indemnizações por:

a) Danos corporais, quando o responsável seja desconhecido ou não beneficie de seguro válido e eficaz, ou for declarada a insolvência da empresa de seguros;

b) Danos materiais, quando o responsável, sendo conhecido, não beneficie de seguro válido e eficaz;

c) Danos materiais, quando, sendo o responsável desconhecido, deva o Fundo satisfazer uma indemnização por danos corporais significativos, ou tenha o veículo causador do acidente sido abandonado no local do acidente, não beneficiando de seguro válido e eficaz, e a autoridade policial haja efectuado o respectivo auto de notícia, confirmando a presença do veículo no local do acidente.”

A função do Fundo de Garantia Automóvel é então a de garante da obrigação de indemnização dos responsáveis civis pelos danos causados com os limites definidos nas alíneas a) a c) do artº 49 do SORCA. Não é um responsável directo, cumpre uma obrigação do responsável civil, pelo que a sua obrigação é subsidiária e de mera garantia da obrigação que impende sobre aqueles.[1]

Corolário da subsidiariedade da intervenção deste FGA, conforme assinala ALBUQUERQUE MATOS, consiste “na forma como o legislador perspectiva o direito ao reembolso do fundo, uma vez satisfeita a indemnização aos lesados: sub-rogação”.[2]

Pagando a indemnização ao lesado, fica o FGA legalmente sub-rogado nos direitos do lesado, cabendo-lhe o direito a obter o reembolso do que haja pago do responsável ou responsáveis pelo acidente, conforme resulta do disposto no artº 54 nº1 e 3 do SORCA.

Decorre do disposto no artº 593, nº1, do C.C. que o efeito da sub-rogação consiste no ingresso do sub-rogado na posição do credor originário pelo que haja pago. No entanto, conforme refere o Ac. do TRP de 11/01/2022 (ct.) “o artigo 54.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 291/2007 tem como pressuposto que a indemnização cujo pagamento desencadeia o mecanismo da sub-rogação foi fixada no confronto do FGA, do lesado e do(s) responsável (eis) civil (is).”, quando conhecidos.

Estas características de subsidiariedade e de garantia da obrigação do FGA e o eficaz exercício do direito de sub-rogação legal que lhe assistem, justificam as regras de legitimidade constantes do SORCA, quando não tenha sido cumprida a obrigação do seguro, mas o responsável civil seja conhecido.

Exceptuadas as situações em que é desconhecida a pessoa do responsável civil, decorre do disposto no artº 62 do SORCA o litisconsórcio necessário passivo do Fundo de Garantia Automóvel e do responsável civil nas acções destinadas à efectivação de responsabilidade civil por acidente de viação (causado por responsável conhecido que não beneficie de seguro válido e eficaz).

A exigência de litisconsórcio necessário visa não só garantir ao lesado o direito imediato à satisfação do seu direito de crédito pelo FGA, sem ter de accionar previamente o responsável civil, mas essencialmente facultar ao FGA os meios de defesa de quem interveio no acidente de viação, uma vez que a obrigação do FGA apenas existe se existir a obrigação do responsável civil. Nestes termos, se considera que os montantes pagos pelo FGA ao lesado, por eventual acordo entre este FGA e o lesado, sem intervenção do lesante e sem que este seja demandado e condenado nesse pagamento, não podem posteriormente ser exigidos ao lesante, por não abrangidos pela sub-rogação legal constante do artº 54 do SORCA.[3]

Por assim ser, a condenação do FGA e dos responsáveis civis é solidária. No entanto, se nas relações externas o regime de solidariedade permite ao lesado exigir de qualquer um dos demandados (FGA, ou responsável civil) a satisfação integral do seu crédito (cfr. artº 519, nº1, do C.C.), nas relações internas a relação de solidariedade é imprópria, ou imperfeita, pela inaplicabilidade da regra prevista no artº 524 do C.C. Se o FGA fica sub-rogado nos direitos do lesado pelo que haja pago, a nenhum dos responsáveis civis que haja satisfeito o pagamento da indemnização, assiste o direito de regresso contra o FGA, precisamente porque a sua obrigação é a de mero garante.[4]

Esta função de mero garante da obrigação dos responsáveis civis e a inaplicabilidade do disposto no artº 521 do C.C. ao FGA, decidem a questão objecto do nosso recurso, ou seja, se a prescrição invocada pelos responsáveis civis, aproveita ao FGA.

A resposta só pode ser positiva.[5] Com assinala o Ac. do STJ de 23/09/2008[6] embora a propósito do D.L. 522/85 de 30/12, mas com plena aplicabilidade ao caso em apreço, por do D.L. 291/2007 não resultar alteração relevante “O sub-rogado há-de cumprir uma “prestação de terceiro”, (…) o que, no reverso, significa que a sub-rogação tem sempre como pressuposto ser o cumprimento feito por terceiro ao credor originário, aqui, ao lesado, não merecendo diferente tratamento o facto de se estar perante uma sub-rogação legal”. A obrigação do Fundo existe na exacta medida e proporção em que existir a obrigação dos responsáveis civis, pelo que extinta a obrigação destes responsáveis pela procedência de alguma excepção peremptória, a obrigação do Fundo não subsiste, por não ser um devedor directo, mas mero garante.

A tal não obsta o acto de interrupção da prescrição relativamente ao FGA (nos termos previstos no artº 323, nº1, do C.C.). Como se sabe a interrupção da prescrição tem natureza pessoal, restringindo os seus efeitos àquele a quem foi dirigido o acto. Existindo diversos obrigados, a interrupção da prescrição dirigida apenas a um deles, deixa incólume os direitos dos demais obrigados de invocar a prescrição.

Ocorre, no entanto, que o FGA, conforme já referimos, não é um obrigado directo pelo pagamento da indemnização mas apenas um garante deste pagamento.

Quer isto dizer que qualquer acto interruptivo da prescrição em relação ao Fundo, em nada interfere no decurso do prazo em relação aos responsáveis civis, como não impede que invocada a prescrição por estes responsáveis civis a obrigação do Fundo se extinga com a extinção da obrigação destes.

Já o contrário não é verdadeiro, Não invocada a excepção de prescrição pelos responsáveis civis, não pode o FGA invocar um meio de defesa a que estes renunciaram (cfr. artº 302 do C.C.), por conforme se refere no Ac. do STJ de 12/05/2016, “não intervém munido de um interesse próprio,” conforme o exige o artº 305 do C.C. O fundamento da previsão contida neste preceito legal consiste na necessidade de acautelar os direitos de terceiros (fiadores, terceiro que constituiu hipoteca para garantia da obrigação, etc), por não poderem ser prejudicados por eventual renúncia do devedor. Ou seja, não só é irrelevante a interrupção da prescrição em relação ao FGA, como é irrelevante o pagamento de quantias por conta de indemnização que viesse a ser devida ao lesado, pelo FGA, não constituindo qualquer confissão do direito do autor, precisamente por a obrigação do Fundo ser de garantia da obrigação do responsável civil, apenas e na medida em que esta existir.

Volvendo ao Ac. do STJ de 23/09/2008 (cit.) “se o titular do direito à indemnização perdeu o direito de a exigir do responsável devedor, isto é, o direito de accionar a obrigação garantida, não se encontra fundamento para que ainda possa ser exercitado o direito consubstanciado pela obrigação de garantia (cfr. neste sentido, o ac. deste Supremo de 06/7/2004 – proc. 04B296)  (…) perante a subsidiariedade da obrigação de garantia, a responsabilidade do garante haverá de aferir-se pela existência e pela medida da obrigação garantida, de sorte que, extinta a obrigação do responsável civil, com ela se extingue a posição de seu garante encabeçada pelo FGA.

Assente assim que a prescrição invocada pelos responsáveis civis aproveita ao Fundo de Garantia Automóvel.

Resta-nos apreciar o segundo fundamento de recurso: a existência de abuso de direito por parte do FGA

Invoca o apelante o abuso de direito pelo Fundo de Garantia Automóvel, por o autor ter confiado em que este satisfaria a indemnização devida pelo acidente em que sofreu danos, pelo que a decisão que considerou que o Fundo beneficiava da extinção da obrigação dos responsáveis civis, viola a função social deste Fundo e deixa sem protecção a vítima de um acidente ocorrido com veículo sem seguro.

Face a esta argumentação é manifesta a falta de fundamento da excepção peremptória aqui invocada pelo apelante. O abuso de direito verifica-se quando alguém exerce um direito de forma ilegítima, ou seja, quando “exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.” (artº 334 do C.C.)

Mas que direito aqui exerceu o FGA?

Nenhum, pois que não invocou, nem poderia ter invocado, a prescrição do direito do A. A extinção da sua obrigação, decorre apenas da extinção da obrigação principal de que era garante e é independente de qualquer manifestação de vontade do Fundo. Ou seja, a apelação visa que seja declarado abusivo não o exercício de qualquer direito, mas antes o benefício que resultou para o Fundo da extinção do seu direito contra os responsáveis civis. 

A decisão é injusta e deixa sem protecção o lesado? Também não, porque o fundamento da prescrição consiste precisamente no decurso do tempo e no seu efeito nas relações jurídicas. Visa afinal titular o interesse do devedor, pela “negligência do titular do direito em exercitá-lo durante o período de tempo tido como razoável pelo legislador e durante o qual ser legítimo esperar o seu exercício, se nisso estivesse interessado. Negligência que faz presumir ter ele querido renunciar ao direito, ou pelo menos o torna (o titular) indigno de protecção jurídica (dormientibus non succurrit jus)”[7].

Nada impedia o lesado de ter demandado os responsáveis civis antes de decorrido o prazo de prescrição, como nada o impedia de, á semelhança do inutilmente efectuado em relação ao FGA, interromper o prazo de prescrição em relação aos responsáveis civis.

Se o não fez, por incúria, sibi imputet. 

Improcede a apelação interposta, confirmando-se a decisão recorrida.


*


DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da relação, em julgar improcedente a apelação, mantendo a decisão recorrida nos seus precisos termos.
***
 
Custas pela apelante (artº 527 do C.P.C.).


Coimbra 28 de Fevereiro de 2023



[1] Neste sentido, o Ac. desta Relação de Coimbra de 28/01/2015, proferido no proc. nº 895/12.5TAGRD.C1, de que foi relator Vasques Osório, os Acs, do TRP de 11/01/2022, proferido no proc. 1989/20.9T8PNF.P1, de que foi relatora Márcia Portela e de 08/10/2020, proferido no proc. nº  818/13.4TBMTS.P1 de que foi relator Filipe Caroço e o Ac. do STJ de 12.5.2016, proferido proc. 6147/12.3TBVFR-A.P1.S1, de que foi relatora Fernanda Isabel Pereira, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[2] MATOS, Filipe Albuquerque, “O Fundo de Garantia Automóvel. Um organismo com uma vocação eminentemente social”, Direito e Justiça, Vol. 1, 2011, (págs. 559-581), pág. 562.

[3] Neste sentido, ainda o Ac. do TRP de 11/01/2022, proferido no proc. 1989/20.9T8PNF.P1, de que foi relatora Márcia Portela, disponível in www.dgsi.pt.

[4] cfr. Ac. do STJ de 12/07/2011, proferido no proc. 5762/06.9TBMTS.P1.S1, de que foi relator Nuno Cameira, disponível in www.dgsi.pt

[5] Ac. do S.T.J. de 12.5.2016, proferido no proc. 6147/12.3TBVFR-A.P1.S1, de que foi relatora Fernanda Isabel Pereira. No mesmo sentido Ac. desta Relação de 13/11/2019, proferido no proc. nº 1288/14.5TBCLD.C2, de que foi relator Barateiro Martins, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
[6] Proferido no proc. nº  08A1994, de que foi relator Alves Velho, disponível para consulta in www.dgsi.pt.
[7] Ac. do STJ de 22/09/2016, proferido no proc. nº 125/06.9TBMMV-C.C1.S1, de que foi relator Joaquim Piçarra.