Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
91832/12.3YIPRT-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: COMPENSAÇÃO DE CRÉDITOS
EXIGIBILIDADE
Data do Acordão: 02/24/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - INST. CENTRAL - SECÇÃO CÍVEL - J4
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.847 CC.
Sumário: 1.- Ocorre exigibilidade judicial do contra-crédito (art. 847º, nº 1, a), do CC) quando ao credor respectivo assiste o direito de exigir em tribunal o cumprimento, seja através de acção executiva, por dispor de título executivo, seja de acção declarativa para reconhecimento da existência e exigibilidade da obrigação.

2.- Havendo impugnação do crédito activo, por parte do A., a compensação desse crédito só opera se o mesmo for reconhecido por sentença.

3.- Para efeito do funcionamento do mecanismo da compensação, a exigibilidade judicial do contra-crédito e o reconhecimento judicial do mesmo são realidades distintas, sendo a primeira requisito da declaração de compensação e a segunda condição da sua eficácia.

Decisão Texto Integral:

I – Relatório

1.E (…), Lda, com sede na Marinha Grande, requereu injunção contra P (…), Lda, com sede no Porto, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia total de 81.408,71 €, sendo 75.592,57 € de capital e 5.563,14 € de juros, por fornecimento de embalagens para hotelaria/cosmética, na sequência de contrato entre ambas celebrado. 

Na contestação, veio a R. impugnar e invocar a excepção de compensação, alegando ter um crédito sobre a A. no montante de 192.000 €, com base em incumprimento do mesmo contrato, uma vez que a A. o resolveu ilicitamente.

A A. respondeu, pugnando, além do mais, pela inadmissibilidade da compensação deduzida, uma vez que o crédito invocado pela R. é meramente hipotético e incerto, já que ainda não foi reconhecido judicialmente e a A., aliás, não o aceita.

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Após, foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a dita excepção de compensação, e determinou o prosseguimento dos autos para julgamento.

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2. A R. recorreu, tendo apresentado as seguintes conclusões:

(…)

3. A A. contra-alegou, tendo concluído como segue:

(…)

II – Factos Provados

Os factos provados são os que dimanam do relatório supra.

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 639º, nº 1, e 635º, nº 4, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, a única questão a resolver é a seguinte.

- Compensação de créditos.

2. Dispõe o art. 847º do Código Civil que:

1. Quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer delas pode livrar-se da sua obrigação por meio de compensação com a obrigação do seu credor, verificados os seguintes requisitos:

a) Ser o seu crédito exigível judicialmente e não proceder contra ele excepção, peremptória ou dilatória, de direito material;

b) Terem as duas obrigações por objecto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade.

2. (…)

Na sentença recorrida entendeu-se que não se encontrava preenchido o requisito de exigibilidade no que concerne ao contra-crédito invocado pela R. O fundamento para tal conclusão baseou-se no argumento que a existência de um crédito emergente de responsabilidade civil, contratual ou extracontratual (a que corresponde uma obrigação de indemnizar) pressupõe a apreciação de diversos factos (acto gerador do dano, culpa, nexo de causalidade, etc.) que constituem pressupostos dessa responsabilidade e que terão que ser analisados e apreciados pelo julgador. Nessa conformidade, tendo em conta que a A. não aceitou a existência do contra crédito invocado pela R. e que não foi alegado o prévio reconhecimento judicial da responsabilidade civil e respectivo montante creditório/indemnizatório excepcionado, considerou-se que não se encontrava reunido tal pressuposto da admissibilidade da compensação excepcionada, a qual, por isso, foi julgada inadmissível.

O cerne da questão cinge-se apenas em saber se está ou não verificado o aludido requisito da exigibilidade judicial do contra-crédito invocado pela R. Trata-se de uma questão controvertida na jurisprudência.

Quanto a este requisito substantivo da exigibilidade judicial do crédito, uma corrente jurisprudencial – seguida pela decisão – defende que só é judicialmente exigível o crédito já reconhecido, cujo credor esteja em condições de obter a sua realização coactiva, instaurando a respectiva execução (veja-se, nesse sentido, o Ac. Rel. Porto, de 19/01/2006, Proc. 0536641, segundo o qual só podem ser compensados os créditos em relação aos quais o declarante esteja em condições de obter a realização coactiva da prestação – isto é, de os executar, querendo, já que a execução é o meio de obter coercivamente a satisfação do direito do credor. Assim, para operar a compensação não bastaria invocar um crédito hipotético e controvertido, antes se impondo que a existência do crédito esteja reconhecida no momento em que a compensação é invocada, pois só assim se poderia afirmar ser o crédito do compensante “exigível judicialmente”. Este aresto é aquele em que a recorrida assenta a sua posição - note-se, porém, que este acórdão foi revogado pelo STJ, e já não corresponde à posição do seu relator, como este assumiu expressamente no Ac. Rel. Porto de 11.9.2008, infra referido. No mesmo sentido, cfr. os Acs. Rel. Lisboa, de 6.7.2005, Proc.4154/2005, este tirado no âmbito de uma oposição à execução, de 10.12.2009, Proc.7605/08.0YIRPRT, referido na decisão recorrida. Ainda no mesmo sentido o Ac. do STJ de 18.12.2008, Proc. 08B3884, e da Rel. Porto, de 3.11.2010, Proc.8607/08.1YYPRT, este último igualmente tirado no âmbito de uma oposição à execução, mas em que o opoente/compensante invoca uma responsabilidade extracontratual do exequente/compensando, ambos, também, referidos na decisão recorrida, ambos os arestos fazendo, para o efeito, a distinção entre obrigação de prestar, decorrente da mera celebração do contrato, que, uma vez provado, permitirá concluir pela existência do crédito, e a existência de um crédito emergente de responsabilidade civil, a que corresponde uma obrigação de indemnizar, que pressupõe a apreciação de diversos factos (acto gerador do dano, culpa, nexo de causalidade, etc.) que constituem pressupostos dessa responsabilidade e que terão que ser analisados e apreciados pelo julgador. Todos os referidos acórdãos estão disponíveis em www.dgsi.pt).

Em oposição a esta perspectiva defende outra corrente jurisprudencial que o requisito substantivo da exigibilidade judicial do crédito nada tem a ver com um prévio reconhecimento judicial ou extrajudicial desse crédito, considerando que a exigibilidade em questão se reporta, diversamente, à possibilidade de o compensante impor à outra parte a realização coactiva do seu crédito (veja-se neste sentido, Acs. do STJ, de 14.2.2008, Proc.07B4401, desta Rel. Coimbra, de 3.12/2009, Proc.436/07.6TBTMR, da Rel. Lisboa, de 13.11.2008, Proc. 2511/2008-6, tirado no âmbito de uma execução à oposição, da Rel. Porto, de 9.5.2007, Proc.0721357, de 14.2.2008, Proc.0736864, todos disponíveis em www.dgsi.pt, de 10.3.2008, CJ, T. II, pág. 173, de 11.9.2008, CJ, T. IV, pág. 171, e de 19.1.2010, Proc.139152/08.8YIPRT, em www.dgsi.pt).

Ora, perante esta querela jurisprudencial, propendemos para considerar que pode o demandado na acção declarativa deduzir a excepção de compensação, mesmo que o seu invocado contra-crédito não esteja ainda reconhecido, judicial ou extrajudicialmente.

Com efeito, afigura-se-nos que o requisito substantivo da exigibilidade judicial do crédito não se reporta a créditos já reconhecidos por via judicial, bastando ver, desde logo, a hipótese em que o contra-crédito esteja reconhecido pela contraparte, caso em que será desnecessário um reconhecimento judicial.

Como ensina Antunes Varela, “Diz-se judicialmente exigível a obrigação que, não sendo voluntariamente cumprida, dá direito à acção de cumprimento e à execução do património do devedor”, (cfr. Das Obrigações em Geral, Vol. II, 2ª Ed., pág. 168).

Ou seja, a obrigação é judicialmente exigível quando o credor puder exigir o seu cumprimento através de acção executiva, se já estiver munido de título executivo, ou, no caso contrário, através de acção declarativa para obtenção de sentença que condene o devedor no cumprimento. Na verdade a inexistência de título executivo não constitui impedimento a que a obrigação possa ser exigível, apresentando-se o credor, nesse caso, a peticionar, em acção declarativa, o respectivo cumprimento.

Assim, será na acção declarativa, onde é deduzida a compensação, por via de excepção ou de reconvenção, que devem ser verificados os respectivos requisitos, designadamente o da exigibilidade judicial do invocado contra-crédito, de molde a poder concluir-se quanto à admissibilidade da invocação e existência desse contra-crédito para eficaz compensação (salvo no caso em que o contra-crédito já foi invocado e está a ser discutido noutra acção judicial ainda pendente).

Assim sendo, nem a inexistência de reconhecimento judicial do pretendido contra-crédito, nem a circunstância de o mesmo ser impugnado e, por isso, se mostrar controvertido, impedem, por regra, a invocação da compensação, devendo, então, ser produzida prova (com consideração da factualidade pertinente na fase própria do processo) da existência do crédito e da sua exigibilidade no processo onde a compensação é deduzida, termos em que a compensação operará ou não, levando à extinção, total ou parcial, do crédito peticionado, na medida em que venha, a final, a ser reconhecida a existência e exigibilidade desse invocado contra-crédito.

Como se nota impressivamente no Ac. da Rel. Porto de 9.5.2007, atrás mencionado, ao qual aderimos, a exigibilidade judicial do crédito e o reconhecimento judicial do mesmo, para efeitos do funcionamento do mecanismo da compensação, são realidades distintas, sendo a primeira requisito da declaração de compensação e a segunda condição da sua eficácia.

Quer isto significar, para o nosso caso, que a compensação deve ser admitida, tratando-se até, como se trata, da discussão da mesma relação contratual base entre a A. e a R.

3. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) Ocorre exigibilidade judicial do contra-crédito (art. 847º, nº 1, a), do CC) quando ao credor respectivo assiste o direito de exigir em tribunal o cumprimento, seja através de acção executiva, por dispor de título executivo, seja de acção declarativa para reconhecimento da existência e exigibilidade da obrigação;

ii) Havendo impugnação do crédito activo, por parte do A., a compensação desse crédito só opera se o mesmo for reconhecido por sentença;

iii) Para efeito do funcionamento do mecanismo da compensação, a exigibilidade judicial do contra-crédito e o reconhecimento judicial do mesmo são realidades distintas, sendo a primeira requisito da declaração de compensação e a segunda condição da sua eficácia.

IV – Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, assim se revogando a decisão recorrida, e consequentemente se admitindo a compensação de créditos deduzida pela R.

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Custas pela A.

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Coimbra, 24.2.2015

Moreira do Carmo ( Relator )

Fonte Ramos

Maria João Areias