Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
694/96.0TXPRT-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ESTEVES MARQUES
Descritores: LIBERDADE CONDICIONAL
PRESSUPOSTOS
Data do Acordão: 04/07/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 42º E 61ºDO CP
Sumário: 1.A liberdade condicional visa a suspensão da reclusão, de forma a criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, assim permitindo que o recluso ganhe o sentido de orientação social que, necessariamente, o período de encarceramento enfraqueceu.
2. O remanescente da pena a cumprir – em consequência da revogação da liberdade condicional – não é uma nova pena, mas sim a execução da parte de pena cujo cumprimento foi interrompido com a concessão da liberdade condicional, depois revogada.
3.O facto de ter sido revogada a liberdade condicional não implica que o arguido não possa vir a beneficiar de uma nova liberdade condicional durante o cumprimento do remanescente da pena.
4. Os períodos temporais fixados no artº61º CP para a concessão da liberdade condicional têm de ser acatados, mesmo no caso de execução do remanescente da pena resultante da revogação da liberdade condicional, desde que estejam preenchidos os respectivos pressupostos.
5 No caso de cumprimento do remanescente da pena, em consequência da revogação da liberdade condicional, o cálculo das datas para a concessão de nova liberdade condicional deve ser feito tendo em conta igualmente a pena que esteve na sua origem, nos termos do art. 479º nº 2 CPP.
6. Assim quando se perfizerem os 5/6 do cumprimento da pena, contados nos termos acima referidos, a instância deve ser renovada para efeitos de apreciação da concessão da liberdade condicional.
Decisão Texto Integral: 7

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

RELATÓRIO
O arguido J foi condenado por decisão transitada em julgado, na pena única de 15 anos e 10 meses de prisão.
Por decisão do TEP de Coimbra, datada de 04.05.14, foi-lhe concedida nessa data a liberdade condicional.
Por decisão do TEP do Porto de 06.02.08, foi-lhe revogada a referida liberdade condicional, determinando-se a execução da pena de prisão ainda não cumprida.
O arguido foi capturado para cumprimento do remanescente da pena em 06.06.16.
Entretanto em autos de Processo Gracioso de Concessão de Liberdade Condicional do TEP, o Mmº juiz decidiu não conceder a liberdade condicional ao arguido, consignando na parte final da sua decisão o seguinte:

“ Renovação da instância pelos 2/3 da pena – 2011.01.25 – cumprindo-se oportunamente o disposto no artº 484º do CPP”.

É deste segmento do referido despacho que o arguido interpõe recurso, concluindo a sua motivação nos seguintes termos:
“I. O recorrente foi condenado pelo Tribunal Judicial de Silves (Processo Comum Colectivo n.º …/99.2TBSLV - 2.º Juízo) em cúmulo jurídico, pela prática de 25 crimes de furto, sendo 3 qualificados, na pena única de prisão de 15 Anos e 10 Meses.

II. Perfaz 5/6 do cumprimento da pena em 22-09-2010.
III. Este marco temporal é determinado nos termos das normas constantes dos artigos 479.º e 2.º do CPP.
IV. Isto é, acrescendo o período de tempo em que o arguido esteve em liberdade condicional (dois anos, um mês e dois dias) às datas encontradas na liquidação formulada pelo Tribunal Judicial de Silves (Tribunal de condenação) notificada ao arguido e comunicada ao TEP de Coimbra em 28-04-2000.
V. Qualquer outra forma de contagem do tempo de prisão corresponderá, com o devido respeito, a uma interpretação correctiva e arbitrária da lei, sem fundamentação de direito, em violação expressa da norma (art.º 2.º) que abre o CPP e que impõe que “A aplicação de penas (....) só tenha lugar em conformidade com as disposições (....}."do Código de Processo Penal.
VI. A aplicação de penas autónomas, na interpretação que faz das normas penais e processuais penais, viola os princípios basilares da constituição penal portuguesa.
- Viola o princípio da legalidade;
- Viola o princípio do caso julgado;
- Viola o princípio do estado de direito democrático;
- Viola o princípio ne bis in idem;
- Viola o princípio do tratamento mais favorável ao arguido.
VII. Ignora o Acórdão do STJ n.º 3/2006, de Fixação de Jurisprudência no sentido da obrigatoriedade da concessão da LC aos 5/6 da pena de prisão superior a 6 anos (verificado o requisito formal - o consentimento do condenado) mesmo que no decurso do cumprimento este se tenha ausentado ilegitimamente do EP.
VIII. Este Acórdão considera que o outro entendimento (aquele que autonomiza penas de prisão) corresponderá a um "castigo" e a uma pena sem lei.
IX. Este importante Acórdão de fixação de jurisprudência, aponta, claramente, o cerne da divergência que existe:
- o que a lei estabelece e
- o que os Senhores Magistrados pensam que deveria ter sido legislado.
X. Mas este debate deve ser desviado para o lugar próprio, que é a doutrina e a política legislativa.
XI. Já o Procurador António Manuel Beirão, formador do Centro de Estudos Judiciais durante 10 anos, a propósito de "Questões práticas sobre a contagem das penas de prisão" em artigo publicado na Revista do MP (Ano 25, Out/Dez 2004, Nº l00) defendia que em caso de dúvida, nesta matéria, deve dar-se prevalência ao entendimento que seja mais favorável ao condenado, diz-nos mesmo: in dúbio pro recluso.
Termos em que, se deverá dar procedência ao presente recurso, revogando a Decisão recorrida no segmento que ordena a "Renovação da instância pelos 2/3 da pena - 2011.01.25 - cumprindo-se oportunamente o disposto no art.2 484.2 do CPC." e substituída por outra que reconheça, no caso, a renovação da instância aos 5/6 da pena única de prisão - 2010.09.22 - nos termos dos artigos 486º e ss do Código de Processo Penal.”.
Respondeu o MP, concluindo que o recurso deve ser julgado improcedente.
A Exmª Procuradora-Geral Adjunta nesta Relação, emitiu douto parecer concluindo igualmente pela improcedência do recurso.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.



FUNDAMENTAÇÃO


A questão suscitada no presente recurso consiste em saber se o cumprimento do remanescente da pena de prisão resultante da revogação da liberdade condicional que anteriormente havia sido concedida ao arguido deve ser entendida como uma pena autónoma para efeitos de cálculo das datas para a concessão da liberdade condicional.
Vejamos.
A concessão da liberdade condicional assenta num juízo de prognose, decorrente da análise de vida anterior do arguido, da sua personalidade, a evolução da mesma no decurso da execução da pena de prisão, de tal modo que possibilite concluir que o arguido, em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, sendo que a execução da pena de prisão, se deve orientar no sentido da reintegração social do recluso (artigos 61° e 42°, do CP).
Medida de excepção no cumprimento da pena, a liberdade condicional visa a suspensão da reclusão, de forma a criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, assim permitindo que o recluso ganhe o sentido de orientação social que, necessariamente, o período de encarceramento enfraqueceu.
Implica pois, toda uma simultaneidade de circunstancialismos, necessariamente verificáveis, e que são, no fundo, o alcance da finalidade da execução da própria pena, ou seja, esta, por si própria, terá de revelar a capacidade ressocializadora do sistema, com vista a prevenir a prática de futuros crimes (cfr. artº 61º a 63º CP).
E uma vez concedida, nos termos do artº 57º CP, aplicável por força do artº 64º nº 1 CP, a pena é considerada extinta, se não for revogada.
Quer dizer o arguido cumpre a parte final da sua pena mediante a forma de liberdade condicional.
Tendo essa liberdade condicionada sido revogada, determina o artº 64º nº 2 CP “ a execução da pena de prisão ainda não cumprida”.
Ora essa pena de prisão é justamente aquele remanescente que lhe faltava cumprir aquando da concessão da liberdade condicional, que o arguido, mercê da revogação demonstrou não ser da mesma merecedor.
Daí que o legislador tenha entendido que nesses casos, a consequência será o cumprimento da prisão não cumprida.
A questão que se suscita no recurso consiste em saber se esse cumprimento deverá ser considerado uma pena autónoma para efeitos de contagem dos prazos com vista à concessão da liberdade condicional a que alude o artº 61º CP.
Pois bem estabelece o artigo 64º nº 2 CPP que a revogação da liberdade condicional determina a execução da pena de prisão ainda não cumprida, sendo que nos termos do nº 3 do mesmo preceito, relativamente à pena de prisão que vier a ser cumprida pode ter lugar a concessão de nova liberdade condicional nos termos do artigo 61.º.
Ora daqui resulta desde logo claro que:
- a pena a cumprir não é uma nova pena, mas sim a execução da parte de pena cujo cumprimento foi interrompido com a concessão da liberdade condicional depois revogada;
- o facto de ter sido revogada a liberdade condicional, não implica que o arguido não possa vir a beneficiar de uma nova liberdade condicional durante o cumprimento do remanescente da pena.
Assim os períodos temporais fixados no artº 61º CP para a concessão da liberdade condicional têm de ser acatados, mesmo no caso de execução do remanescente da pena resultante da revogação da liberdade condicional, desde que estejam preenchidos os respectivos pressupostos.
Por outro lado o disposto no artº 63º nº 4 CP não é aqui aplicável, pois conforme consta do preceito está reservado para os casos de liberdade condicional em caso de execução sucessiva de várias penas, o que não é, como vimos, a presente situação.
Na verdade aqui cuida-se tão só de, uma vez revogada a liberdade condicional, executar a parte ainda não cumprida da pena de prisão em que foi originariamente condenado o arguido.
Significa isto a nosso ver que tal remanescente não pode de modo algum considerar-se como uma nova pena, mas apenas a parte que falta cumprir de uma pena e que agora se reinicia.
Acresce que o próprio legislador previu o prosseguimento da prisão em caso de revogação da liberdade condicional e respectiva renovação da instância, estabelecendo expressamente no artº 486º nº 1 CPP, que: “Quando a liberdade condicional for revogada e a prisão houver ainda de prosseguir por mais de um ano, são remetidos novos relatórios e parecer, nos termos do artigo 484º, até dois meses antes de decorrido o período de que depende a concessão”.
Ora se é assim não pode a liquidação ser feita como se esse remanescente constituísse uma pena nova, desligada da pena originária, como foi feito no caso vertente em que as datas foram calculadas como se a pena que falta cumprir fosse uma pena autónoma.
O cálculo das datas para a concessão da liberdade condicional deve antes ser feito tendo em conta igualmente a pena que esteve na sua origem nos termos do artº 479º nº 2 CPP, segundo o qual, quando a prisão não for cumprida continuamente, ao dia encontrado segundo os critérios do nº 1 acresce o tempo correspondente às interrupções.
Daí que, como bem observa o recorrente quando se perfizerem os 5/6 do cumprimento da pena, contados nos referidos termos, deverá a instância ser renovada para efeitos de apreciação da concessão da liberdade condicional.

DECISÃO

Pelo exposto e sem necessidade de mais considerações, acordam os Juízes desta Relação, em conceder provimento ao recurso, e, consequentemente, revogam a decisão recorrida no segmento impugnado, devendo proceder-se a nova liquidação da pena nos termos anteriormente referidos e ter-se em devida conta que quando se perfizerem 5/6 da pena, deverá a instância ser renovada para efeitos da apreciação da concessão da liberdade condicional.
Sem tributação.
Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (artº 94º nº 2 CPP).
Tribunal da Relação de Coimbra, 7 de Abril de 2010.