Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1129/18.4T8GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: COMPRA E VENDA
VEÍCULO AUTOMÓVEL
ACÇÃO DECLARATIVA
REVELIA
SENTENÇA
PRINCÍPIO DA SIMPLIFICAÇÃO
PAGAMENTO
CONFISSÃO
PROMESSA UNILATERAL
CLÁUSULA CUM POTUERIT
Data do Acordão: 01/29/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - GUARDA - JL CÍVEL - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS.218, 354, 778 CC, DL Nº 55/75 DE 12/12, ARTS.567, 607 CPC
Sumário: 1 - Se o réu citado não contestar e for caso de se considerarem confessados os factos alegados na petição, nos termos do artigo 567.º do C.P.C., o juiz na sentença, ao abrigo do disposto no n.º 3 deste artigo, pode limitar-se a declarar que «Os factos provados são os alegados na p. i. porque confessados pelo Réu, que não contestou».

2 - Numa ação declarativa, o pagamento de um veículo automóvel a um terceiro pode ser provado entre as partes através da confissão do réu resultante da não impugnação da afirmação desse facto.

3 - O facto provado «O Réu prometeu devolver/pagar a referida importância ao Autor, logo que a sua situação económica/financeira o permitisse» constitui uma promessa unilateral do réu no sentido de pagar quando pudesse.

4. -O silêncio do autor perante tal promessa não dá origem a uma cláusula contratual cum potuerit (n.º 1 do artigo 778.º do Código Civil), isto é, não vinculou o autor perante o réu no sentido do primeiro só poder exigir o pagamento ao segundo quando este último tivesse condições económico-financeiras para pagar a dívida.

Decisão Texto Integral:



I. Relatório

a) O autor instaurou a presente ação declarativa de condenação contra o réu com o fim de obter a condenação deste a pagar-lhe a quantias de EUR 24.211,34 e juros vincendos desde a data da entrada na secretaria da ação no tribunal.

Alegou, em suma, que a pedido do Réu, fez, em 12/02/2001, um pagamento referente à compra de uma viatura para uso deste último, da marca (...) , no montante de 2.000.000$00 (dois milhões de escudos) ou EUR 19.952,00, para concretizar o pagamento imediato da viatura, através de dois cheques da sua conta bancária.

O Réu prometeu devolver/pagar a referida importância ao Autor, logo que a sua situação económica/financeira o permitisse.

Apesar das várias promessas de pagamento por parte do R., durante todos estes anos, certo é que, este, nunca pagou ao Autor o montante supra referido.

Tem ainda direito a receber os juros dos últimos cinco anos.

Regularmente citado, por carta registada com AR, o Réu não contestou a ação.

Foi proferido despacho a julgar os factos confessados.

O Autor alegou por escrito defendendo estar-se perante um contrato de mútuo não cumprido e, como tal, pela procedência do pedido de capital e juros desde a entrada da ação ou, em alternativa, desde a citação.

Foi proferida sentença com este dispositivo:

«Pelo exposto o tribunal decide julgar a ação provada e procedente e em consequência condena o Réu a pagar ao A. a quantia peticionada a título de capital, acrescida de juros de mora legais (4%) desde a citação, e apenas dos 5 anos anteriores, e vincendos até efetivo e integral pagamento».

b) É desta decisão que vem interposto o recurso por parte do Réu, cujas conclusões são as seguintes:

(…)

c) O autor contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão sob recurso com base na seguinte argumentação:

(…)

II. Objeto do recurso

Tendo em consideração que o âmbito objetivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (artigos 639.º, n.º 1, e 635.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, começando pelas questões processuais, prosseguindo com as questões de facto e terminando com a aplicação do direito material, as questões que este recurso coloca são as seguintes:

1 – Em primeiro lugar cumpre verificar se devem ser admitidos os documentos juntos com as alegações de recurso.

2 – Em segundo lugar, cumpre verificar se ocorre violação do disposto no n.º 3 do art. 607.º do C.P.C., porquanto o tribunal recorrido ao remeter para a petição inicial não transcreveu na sentença os factos que declarou provados, não sendo, por isso, possível sindicar tal decisão, em sede de recurso, ainda que a matéria de facto não tenha sido impugnada, bem como proceder à aplicação da regra da substituição do tribunal recorrido, sendo caso disso.

3 – Em terceiro lugar, cumpre verificar se a sentença padece de nulidade, nos termos do n.º 1 al. b) do ar. 615.º do C. P. C., já que não especifica os fundamentos de facto e de direito que permitam concluir que os referidos cheques foram descontados e que o valor titulado pelos mesmos saiu efetivamente do património do Autor a favor do património do Réu.

4 – Em quarto lugar, cumpre verificar se a sentença padece de nulidade, nos termos do n.º 1, al. b), do artigo 615.º do C. P. C., porquanto ocorre erro de julgamento sobre a matéria de facto, quando a Mmª. Juíza, sem qualquer suporte na prova produzida, considerou «(…)provou-se que o A. entregou dinheiro a um terceiro a pedido do Réu, para aquisição de um bem para estes, (…)», uma vez que o Autor não alegou que tenha entregue dinheiro à M (…), S.A.

5 – Em quinto lugar, cumpre verificar se o pagamento da viatura à empresa M (…) S.A. só pode ser provado ou por confissão desta última, que não existe, porque esta empresa não é parte na ação, ou através do respetivo recibo – documento – emitido pela dita empresa, que também não existe.

6 – Em sexto lugar, se se pode concluir que os recibos emitidos (n.º 41141 de 2000/12/28 e 41349 de 2001/01/10,) pela empresa M (…), S.A., referentes à compra do veículo, mostram que o pagamento foi feito através dos cheques n.º (…) da C (…), no valor de 100.000$00 e 3.000.000$00, respetivamente.

7 – Em sétimo lugar, cumpre verificar se, nos termos do artigo 640.º, n.º 1, als. a), b) e c) do C.P.C., a matéria de facto e de direito deve ser alterada na parte em que a Mmª Juíza considerou que «(…) o A. entregou dinheiro a um terceiro a pedido do Réu,(…)», uma vez que os factos alegados pelo autor. na p.i., nomeadamente nos artºs 2º, 3º e 6º, apenas permitem dar como provado que o Autor entregou a um terceiro (a M (…), S.A.) os dois cheques mencionados no artº 3º da p.i., o que se prova através da alegação feita naqueles dois artigos da p.i., razão pela qual, quanto a esta questão de facto, a Mmª. Juíza a quo apenas podia ter decidido dar como provado que «O Autor entregou os cheques nºs (…) a um terceiro a pedido do Réu».

8 – Em oitavo lugar, cumpre verificar, em sede de subsunção jurídica, se existem factos que permitam concluir pela existência de um contrato de mútuo, porquanto não terá sido alegada pelo Autor nem demonstrada a transferência do valor titulado pelos cheques, quer ao mutuário, quer para o terceiro vendedor do automóvel, o que implica absolvição do réu quanto ao pedido.

9 – Por fim, se a falta de fixação de prazo certo para o réu devedor proceder à restituição e a falta de alegação e prova da data em que ocorreu a interpelação necessária para fixar a data do vencimento da obrigação de restituição por parte do devedor, implicam alteração da decisão.

III. Fundamentação

a) Inadmissibilidade dos documentos juntos com as alegações de recurso

Vejamos se devem ser admitidos os documentos juntos com as alegações de recurso.

Trata-se de dois recibos e uma fatura cujo teor indica terem sido emitidos pela empresa M (…), S.A., e referem-se à compra do veículo referido na petição, datados dos anos 2000 e 2001.

Face ao disposto nos artigos 651.º, n.º 1 e 425.º do Código de Processo Civil, depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento e os que se tornaram necessários em virtude do julgamento em 1.ª instância.

Os documentos em questão já existiam à data da instauração da ação e podiam ter sido juntos no decurso desta se o réu tivesse contestado.

Verifica-se também que a junção dos documentos na fase do recurso não se tornou necessário em virtude do julgamento em 1.ª instância, pois a questão à qual os documentos pretendem responder já estava colocada na petição inicial, pelo que não surgiu pela primeira vez em virtude do julgamento em 1.ª instância.

Por conseguinte, a junção dos documentos nesta fase infringe o disposto nas mencionadas normas do C.P.C., pelo que não são admissíveis.

No final será proferida decisão de não admissão.

b) Questões de natureza processual colocadas pelo recurso

1 – Vejamos se ocorre violação do disposto no n.º 3 do artigo 607.º do C.P.C., porquanto o tribunal recorrido ao remeter para a petição inicial não transcreveu na sentença os factos que declarou provados, não sendo, por isso, possível sindicar tal decisão, em sede de recurso, ainda que a matéria de facto não tenha sido impugnada, bem como proceder à aplicação da regra da substituição do Tribunal recorrido, sendo caso disso.

Verifica-se que o tribunal recorrido fixou a matéria de facto através da seguinte afirmação:

«Os factos provados são os alegados na p. i. e sumariados no relatório da sentença, porque confessados pelo Réu, que não contestou».

A resposta a esta questão é negativa por três ordens de razões:

Em primeiro lugar, a afirmação «Os factos provados são os alegados na p. i. e sumariados no relatório da sentença, porque confessados pelo Réu, que não contestou» transmite, de modo claro e preciso, a informação que as partes carecem de possuir sobre quais os factos que foram, todos ou alguns, utilizados na sentença relativamente à aplicação do direito.

Isto é, com tal afirmação as partes ficam a saber que os factos provados são todos os que estão afirmados na petição inicial.

Não existe aqui qualquer dúvida.

Por isso, se o réu citado não contestar e for caso de se considerarem confessados os factos alegados na petição, a remissão feita na sentença afirmando que os factos provados são os alegados na petição, permite ao recorrente impugnar tal factualidade e ao tribunal da Relação apreciá-la e substituir-se ao tribunal recorrido (artigo 665.º do C.P.C.), se for caso disso.

Em segundo lugar, a atividade processual produzida até à elaboração da sentença revestiu-se de simplicidade, pois o réu não contestou, não existindo, por isso, factualidade controvertida.

Tal simplicidade implica que a mesma se estenda a todo o processo, incluindo a sentença, por inexistirem interesses processuais suscetíveis de demandar um tratamento mais complexo. 

Em terceiro lugar, a própria lei reconhece e implementa este tipo de simplicidade.

Assim, no n.º 3 do artigo 567.º do CPC, o legislador determina que «Se a resolução da causa revestir manifesta simplicidade, a sentença pode limitar-se à parte decisória, precedida da necessária identificação das partes e da fundamentação sumária do julgado».

Ou seja, nesta situação processual, o legislador dispensa o relatório e a transcrição dos factos provados.

E no n.º 6 do artigo 663.º do mesmo código, a respeito da elaboração do acórdão pelo tribunal da Relação, determina que «Quando não tenha sido impugnada, nem haja lugar a qualquer alteração da matéria de facto, o acórdão limita-se a remeter para os termos da decisão da 1.ª instância que decidiu aquela matéria».

Aqui está outra manifestação do mesmo princípio, da simplificação dos atos quando se mostra que uma maior complexidade é desnecessária.

Concluindo, se o réu citado não contestar e for caso de se considerarem confessados os factos alegados na petição, nos termos do artigo 567.º do C.P.C., o juiz na sentença, ao abrigo do disposto no n.º 3 deste artigo, pode declarar que «Os factos provados são os alegados na p. i. porque confessados pelo Réu, que não contestou».

2 – Vejamos se a sentença padece de nulidade, nos termos do n.º 1 al. b) do ar. 615.º do C. P. C., já que não especifica os fundamentos de facto e de direito que permitam concluir que os referidos cheques foram descontados e que o valor titulado pelos mesmos saiu efetivamente do património do Autor a favor do património do Réu.

Nos termos do n.º 1, al. b), do ar. 615.º, do C. P. C., a sentença é nula quando «Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão».

Trata-se aqui, como nas restantes nulidades de sentença, de um vício de natureza processual que respeita, por conseguinte, à observação das formalidades dos atos processuais, não de um vício emergente da aplicação do direito substantivo ao caso.

Por conseguinte, esta nulidade processual tem a ver com a forma prescrita na lei processual, sem olhar ao conteúdo, à matéria substantiva de que trata o processo, no caso a compra e venda de um veículo, quem o adquiriu e quem o pagou e respetivas relações jurídicas assim geradas.

Verifica-se que a sentença especifica os fundamentos de facto, pois remeteu para os factos constantes da petição e especifica os fundamentos de direito, pois contém um exercício formal de subsunção dos factos provados ao direito que entendeu ser o aplicável.

Como se disse, a falta de fundamentação da sentença é um vício de natureza processual que tem a ver com a forma do acto «sentença» prescrita na lei processual, mas não com a matéria substantiva de que trata o processo.

Como referiram os autores Antunes Varela, J. Miguel Bezerra, Sampaio Nora, «A segunda causa de nulidade contemplada na disposição é a falta de fundamentação da sentença. Para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito» ([1]).

Na jurisprudência o entendimento é o mesmo como se vê pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-12-2005 (Araújo Barros), em www.dgsi.pt, com referência ao n.º 05B2711:

«Para que uma decisão careça de fundamentação (incorrendo na nulidade prevista na alínea b) do nº 1 do artigo 668º do C.Proc.Civil) não basta que a sua justificação seja deficiente, incompleta ou não convincente: é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito» (sumário).

No mesmo sentido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-1-2014 (Gabriel Catarino), no processo n.º 1032/08.6TBMTA, em www.dgsi.pt:

«III - Só a total falta de fundamentação – e não a fundamentação deficiente, acrática e errática – induz a nulidade da decisão por falta de fundamentação (al. b) do n.º 1 do art. 615.º ex vi dos arts. 666.º e 679.º, todos do CPC)».

Não ocorre, pois, tal nulidade ([2]).

3 – Vejamos se a sentença padece de nulidade, nos termos do n.º 1, al. b), do artigo 615.º do C. P. C., porquanto ocorre erro de julgamento sobre a matéria de facto, quando a Mmª. Juíza, sem qualquer suporte na prova produzida, considerou «(…)provou-se que o A. entregou dinheiro a um terceiro a pedido do Réu, para aquisição de um bem para estes, (…)», uma vez que o Autor não alegou que tenha entregue dinheiro à Matos & Prata S.A.

Como acabou de se indicar, a sentença é nula, nos termos do n.º 1, al. b), do ar. 615.º, do C. P. C., quando «Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão».

Pelas razões acabadas de mencionar não ocorre a apontada nulidade.

A questão do alegado erro de julgamento é uma questão de natureza substantiva e como tal objeto apropriado de recurso, mas não se arguição de nulidade.

Improcede, por isso, esta nulidade apontada à sentença.

4 – Vejamos se o pagamento da viatura à empresa M (…) S.A. só podia/pode ser provado ou por confissão desta última, que não existe, porque esta empresa não é parte na ação, ou através do respetivo recibo – documento – emitido pela dita empresa, que também não existe.

Esta questão é tratada nesta parte do acórdão por se afigurar que coloca uma questão relativa à matéria de facto e estas questões devem ser tratadas antes da indicação dos factos provados e não provados.

Sobre a questão em si, cumpre referir que numa ação declarativa como a presente, entre um autor e um réu, o pagamento de um veículo automóvel a um terceiro pode ser provado entre as partes através da confissão do réu, resultante da não impugnação da afirmação sobre o pagamento.

Com efeito, a confissão como meio de prova só é inadmissível nos casos mencionados no artigo 354.º (Inadmissibilidade da confissão) do Código Civil, onde se prescreve que «A confissão não faz prova contra o confitente:

a) Se for declarada insuficiente por lei ou recair sobre facto cujo reconhecimento ou investigação a lei proíba;

b) Se recair sobre factos relativos a direitos indisponíveis;

c) Se o facto confessado for impossível ou notoriamente inexistente».

No caso dos autos, a inadmissibilidade da confissão só existiria se o negócio relativo à compra e venda do veículo carecesse de ser realizado na forma escrita e esta forma fosse exigida como condição de existência do próprio negócio.

Não é o caso, pois a compra e venda de veículos pode ser feita verbalmente, uma vez que não é exigido formalismo escrito, como resulta, por exemplo, do disposto no n.º 1 do artigo 25.º do DL n.º 55/75, de 12 de fevereiro, relativo à documentação para registo de veículos automóveis, onde se refere que «O registo posterior de propriedade adquirida por contrato verbal de compra e venda pode ser efetuado em face de: …».

Improcede, por conseguinte, este fundamento do recurso.

5 – Vejamos se pode concluir-se nos autos que os recibos emitidos (n.º 41141 de 2000/12/28 e 41349 de 2001/01/10,) pela empresa M (…), S.A. referentes à compra do veículo, mostram que o pagamento foi feito através dos cheques n.º (…) da C (…), no valor de 100.000$00 e 3.000.000$00, respetivamente.

Esta questão ficou prejudicada pela decisão acima tomada no sentido de não admitir os documentos juntos na fase do recurso.

Sempre se dirá, no entanto, o seguinte:

Está provado, por confissão do réu, que o autor entregou à empresa proprietária do veículo os dois cheques referidos na petição inicial e consta também da petição que «O montante referido em 3 e 4 foi efetuado para o ora Réu poder comprar/levantar do Stand, a viatura da marca (...) , de cor cinzenta, ligeiro de mercadorias, com a matrícula, (...) , da Firma M (…), S.A. com sede, na (...) ».

A forma como o negócio foi contabilizado na escrita da empresa M (…), S.A., é questão diversa.

Ou seja, não há incompatibilidade entre a entrega dos referidos dois cheques e o modo como foi representado na contabilidade daquela firma o negócio respeitante ao veículo.

Por conseguinte, os mencionados documentos, mesmo que considerados como historicamente reais, como integrantes da contabilidade da dita empresa, não implicariam, só por si, a convicção de que os dois cheques referidos pelo autor não serviram para efetuar o aludido pagamento do veículo.

Em segundo lugar, os documentos em causa são de livre apreciação e face à eventual contradição entre eles e a confissão do réu, sempre teria de subsistir esta última por ter força probatória plena, uma vez que de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 567.º do C.P.C. onde se determina que «Se o réu não contestar (…), consideram-se confessados os factos articulados pelo autor», isto é, os factos em causa ficam provados.

Por conseguinte, mesmo que os documentos fossem admitidos e admitidos como «bons», não teriam capacidade para alterar a factualidade resultante da falta de contestação.

6 – Vejamos agora se, nos termos do artigo 640.º, n.º 1, als. a), b) e c) do C.P.C., a matéria de facto e de direito deve ser alterada na parte em que a Mmª Juíza considerou que «(…) o A. entregou dinheiro a um terceiro a pedido do Réu,(…)», uma vez que os factos alegados pelo autor. na p.i., nomeadamente nos artºs 2º, 3º e 6º, apenas permitem dar como provado que o Autor entregou a um terceiro (a M (…) S.A.) os dois cheques mencionados no artº 3º da p.i., o que se prova através da alegação feita naqueles dois artigos da p.i., razão pela qual, quanto a esta questão de facto, a Mmª. Juíza a quo apenas podia ter decidido dar como provado que “O Autor entregou os cheques nºs (...) e (...) a um terceiro a pedido do Réu”.

O artigo 640.º do C.P.C. respeita a alteração da matéria de facto.

A parte transcrita isto é, «(…) o A. entregou dinheiro a um terceiro a pedido do Réu,(…)», respeita à fundamentação jurídica, não à parte da sentença relativa aos factos provados.

Por conseguinte, não se trata de impugnar um facto declarado provado, mas sim de discordar de uma afirmação constante da fundamentação jurídica da sentença e quanto a esta situação não funciona o mecanismo processual da impugnação da matéria de facto, mas sim o recurso quanto aos fundamentos jurídicos alinhados para concluir pela decisão.

Mas ainda se dirá que o autor no artigo 1.º da petição afirmou que «O Autor, em 12/02/2001, fez a pedido do ora Réu um pagamento referente à compra de uma viatura para uso deste último, da marca (...) ».

Por isso, a afirmação de que «(…) o A. entregou dinheiro a um terceiro a pedido do Réu,(…)», está de acordo com os factos alegados e provados.

Improcede, por isso, o presente argumento.

7 – Segue a indicação dos factos provados.

d) Matéria de facto – Factos provados (os alegados na p.i.)

1- O Autor, em 12/02/2001, fez a pedido do ora Réu um pagamento referente à compra de uma viatura para uso deste último, da marca (...) .

2- Para o efeito, na presença e a pedido do Réu, o Autor, passou dois cheques da sua conta pessoal, do antigo B (…), (agora N (…)), a favor da empresa, M (…)S.A. (...) , no montante de 2.000.000$00 (dois milhões de escudos para concretizar o pagamento imediato da viatura.

3- Mais concretamente, um Cheque com o n.º (…)no montante de (dois milhões de escudos) e um segundo cheque com o n.º (…), também no montante de dois milhões de escudos, o que perfaz um montante global de 4 milhões de escudos.

4- O Autor pagou na vez do réu à empresa M (…), o montante global representado por dois cheques, que na moeda atual perfaz o montante de, 19.952,00€.para integral pagamento da referida viatura.

5- O montante referido em 3 e 4 foi efetuado para o ora Réu poder comprar/levantar do Stand, a viatura da marca (...) , de cor cinzenta, ligeiro de mercadorias, com a matrícula, (...) , da Firma M (…), S.A. com sede, na (...) .

6 - Estes dois cheques, para efetivo pagamento, foram entregues na presença e a pedido do ora Réu, a um dos Administradores da empresa, mais precisamente, ao Sr. J (…)

7- Nessa altura, o ora Réu atravessava uma grave crise económica ou financeira a qual não lhe permitia ter crédito perante a empresa supra referida para poder comprar a dita viatura.

8- Essa foi uma das principais razões para que o ora Réu, pedisse ao Autor, que pagasse por aquele à Firma M (…), S.A (...) , a importância referente à viatura supra referida em 5º.

9- O Réu prometeu devolver/Pagar a referida importância ao Autor, logo que a sua situação económica/financeira o permitisse.

10- Acontece, porém, que apesar das várias promessas de pagamento por parte do R., durante todos estes anos, certo é que, este, nunca pagou ao Autor o montante supra referido, apesar de ter feito a última promessa há bem pouco tempo.

11- Por motivos que só o Réu poderá explicar, este resolveu emigrar para Inglaterra, trabalhando como cozinheiro neste país. No entanto, nada disse ao Autor sobre o assunto durante este espaço temporal.

12- No entanto, sempre que Réu regressa à sua aldeia, nas férias, prometia, e voltava a prometer ao Autor, que não iria ficar a dever-lhe um cêntimo. Que estivesse descansado que não lhe iria ficar a dever o que lhe devia.

13- Certo é que, até esta data, nunca pagou e além de não pagar ultimamente deixou de falar ao ora Autor.

e) Apreciação das restantes questões objeto do recurso.

1 – Vejamos, em sede de subsunção jurídica, se existem factos que permitam concluir pela existência de um contrato de mútuo, porquanto não terá sido alegada pelo Autor nem demonstrada a transferência do valor titulado pelos cheques quer ao mutuário quer para o terceiro vendedor do automóvel, o que implica absolvição do réu quanto ao pedido.

Não assiste razão ao recorrente.

Como já se referiu, provou-se, isto é, consta dos factos alegados e confessados por falta de contestação, que o autor pagou por conta do réu, à empresa vendedora do veículo, a importância de 4.000.000$00 (EUR.19.952,00) e que o fez através da entrega dos dois cheques.

Por conseguinte, está assente factualmente que o autor realizou esse pagamento por conta, a favor ou na vez do réu.

2 – Por fim, cumpre verificar se a falta de fixação de prazo certo para o réu devedor proceder à restituição e a falta de alegação e prova da data em que ocorreu a interpelação necessária para fixar a data do vencimento da obrigação de restituição por parte do devedor, implicam alteração da decisão.

Assiste razão, em parte, ao réu recorrente.

Provou-se que «O Réu prometeu devolver/pagar a referida importância ao Autor, logo que a sua situação económica/financeira o permitisse», mas nunca o fez, muito embora tenha declarado por diversas vezes ao autor que iria pagar.

Não é adequada à factualidade provada a afirmação feita na sentença no sentido de ter existido interpelação em data não alegada («Não tendo havido a fixação de prazo certo, impunha-se a interpelação do devedor para pagar, o que se provou ter ocorrido, embora em data não alegada nem provada,…»).

Com efeito, o que resulta dos factos provados é que o réu prometia ao autor pagar, mas ignora-se se essas promessas foram feitas depois de prévia interpelação por parte do autor ao réu ou se era o réu que espontaneamente se dirigia ao autor dizendo-lhe que iria pagar.

Neste segundo caso, não ocorre interpelação.

Não existiu, por isso, interpelação.

A interpelação só ocorreu com a citação para esta ação, pois aqui é manifesta a pretensão do autor sobre o réu.

Por conseguinte, na hipótese da ação proceder, os juros só são devidos desde a citação, ou seja, desde a interpelação.

Nesta parte, assiste razão ao réu, cumprindo revogar a sentença nesta parte, na parte relativa à condenação em juros vencidos antes da citação.

Vejamos agora a questão da existência ou não existência da cláusula cum potuerit (quando o devedor puder).

Sobre esta matéria, o artigo 778.º (Prazo dependente da possibilidade ou do arbítrio do devedor) do Código Civil, determina o seguinte:

«1. Se tiver sido estipulado que o devedor cumprirá quando puder, a prestação só é exigível tendo este a possibilidade de cumprir; falecendo o devedor, é a prestação exigível dos seus herdeiros, independentemente da prova dessa possibilidade, mas sem prejuízo do disposto no artigo 2071.º

2. Quando o prazo for deixado ao arbítrio do devedor, só dos seus herdeiros tem o credor o direito de exigir que satisfaçam a prestação».

Em sede de matéria de facto, como já se disse, provou-se o seguinte:

«O Réu prometeu devolver/pagar a referida importância ao Autor, logo que a sua situação económica/financeira o permitisse.

Coloca-se a questão de saber se esta afirmação corresponde a uma cláusula contratual cum potuerit.

A resposta é negativa, pelas seguintes razões:

O contrato inscreve-se na categoria mais ampla do negócio jurídico que, na definição do Prof. Manuel de Andrade consiste num «...facto voluntário lícito cujo núcleo essencial é constituído por uma ou várias declarações de vontade privada, tendo em vista a produção de certos efeitos práticos ou empíricos, predominantemente de natureza patrimonial (económica), com ânimo de que tais efeitos sejam tutelados pelo direito – isto é, obtenham a sanção da ordem jurídica – e a que a lei atribui efeitos jurídicos correspondentes, determinados, grosso modo, em conformidade com a intenção do declarante ou declarantes (autores ou sujeitos do negócio)» ([3]).

Mais adiante, a folhas 39, o mesmo Autor refere que «...na formação do contrato uma das declarações (singulares ou plurais) antecede, por pouco que seja, a outra ou outras. É uma das partes que se adianta a propor à outra (ou outras) a conclusão do contrato. Esta primeira declaração tem nome de oferta ou proposta. Se do outro lado (ou lados) se anui à proposta tem lugar a aceitação, e com ela (em dados termos) fica perfeito o contrato».

Para que possamos estar perante uma vinculação com força jurídica, perante um acordo de vontades reciprocamente vinculativo, torna-se necessário que previamente tenha existido uma relação de bilateralidade, uma junção, comunhão ou fusão de vontades no mesmo sentido, no que respeita às declarações negociais emitidas com vontade vinculativa recíproca.

No caso concreto, a factualidade provada revela apenas uma promessa do réu, isto é, «O Réu prometeu devolver/Pagar a referida importância ao Autor, logo que a sua situação económica/financeira o permitisse».

Trata-se de uma declaração de vontade unilateral do réu sobre a qual não existiu, tanto quanto os factos provados revelam, pronúncia do autor.

Isto é, sobre esta promessa o autor nada disse.

Como o autor nada disse, não se pode concluir do seu silêncio que quis vincular-se a essa promessa, transformando a promessa unilateral do réu numa obrigação da sua parte para com o réu.

Para a promessa unilateral do réu passar a valer como cláusula contratual, para ser incorporada no contrato com o sentido de um compromisso bilateral, tinha de ter sido «feita sua» pelo autor, isto é, o autor teria de ter declarado ao réu algo como isto: «Está bem, aceito que pagues apenas quando puderes pagar», ou, «Está bem, pagarás quando puderes».

Só que este compromisso do autor perante o réu não existiu.

E o silêncio do autor perante a promessa do réu não tem valor declarativo, pois, nos termos do artigo 218.º do Código Civil, «O silêncio vale como declaração negocial, quando esse valor lhe seja atribuído por lei, uso ou convenção».

Concluiu-se, por conseguinte, que o facto provado «O Réu prometeu devolver/pagar a referida importância ao Autor, logo que a sua situação económica/financeira o permitisse» constitui uma promessa unilateral do réu pagar quando pudesse.

O silêncio do autor perante tal promessa não deu origem a uma cláusula contratual cum potuerit (n.º 1 do artigo 778.º do Código Civil), isto é, não vinculou o autor perante o réu, no sentido do primeiro só poder exigir o pagamento ao segundo quando este último tivesse condições económico-financeiras para pagar a dívida.

Não vem impugnada no recurso a qualificação jurídica do contrato como mútuo, pelo que nada se dirá sobre esta matéria, pelo que cumpre apenas revogar a sentença na parte em que condenou no pagamento de juros antes da citação, mantendo-se quanto ao restante.

IV. Decisão

Considerando o exposto:

1 – Não se admitem os documentos juntos pelo réu com as alegações de recurso. Custas do incidente pelo réu, com taxa de justiça pelo mínimo.

2 – Julga-se o recurso parcialmente procedente e revoga-se a sentença na parte em que condenou o réu a pagar juros a partir de data anterior à citação, sendo devidos apenas desde a citação, mantendo-se a sentença na restante parte.

3 – Custas pelo Autor e Réu na proporção do vencimento e decaimento.


*

Coimbra, 29 de janeiro de 2019

Alberto Ruço ( Relator)

Vítor Amaral

Luís Cravo


[1] Manual de Processo Civil, 2.ª edição revista e atualizada. Coimbra Editora, 1985, pág. 687.
[2] Verifica-se que é raro o recurso onde não é arguida uma nulidade de sentença. Ora, ressalvando os casos de omissão de pronúncia ou de excesso de pronúncia, serão raros os casos em que uma sentença padece de nulidade, dado que as causas de nulidade têm natureza formal e a forma é quase sempre observada. Por isso, a arguição das nulidades de sentença, salvo os casos apontados, não passa de um desperdício de tempo e de meios, quer para o recorrente, quer para o tribunal.
[3] Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II., Coimbra,1987, pág. 25.