Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
71/11.4GBACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: PROCESSO SUMÁRIO
SENTENÇA POR ESCRITO
NULIDADE
Data do Acordão: 09/28/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ALCOBAÇA - 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: ANULADA
Legislação Nacional: ART.º 389º-A, N.º 5, DO C. PROC. PENAL
Sumário: Em processo sumário, tendo sido aplicada pena privativa de liberdade, em sentença elaborada com consagração escrita apenas do dispositivo, tal sentença padece de nulidade (de conhecimento oficioso), uma vez que não contém, na forma prevista na lei (cfr. art.º 389º-A, n.º 5, do C. Proc. Penal), os elementos estruturantes referidos nas alíneas a) a c), do n.º 1, do citado normativo.
Decisão Texto Integral: I. Relatório:
1. No 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Alcobaça, após julgamento em processo sumário, o arguido A..., devidamente identificado nos autos, foi condenado, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 2 (dois) anos de prisão.
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2. Inconformado com a sentença, o arguido interpôs recurso, tendo formulado na respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:
1.ª - Por douta sentença do Tribunal Judicial de Alcobaça datada de 05 de Abril de 2011, foi o arguido condenado, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de dois anos de prisão.
2.ª - Além dos factos constantes da douta acusação pública, que o arguido confessou, de forma livre, integral e sem reservas, e que consubstanciam a prática pelo mesmo de um crime de condução sem habilitação legal,
3.ª - O arguido é uma pessoa com problemas de saúde, nomeadamente deficiência no braço, pelo que,
4.ª - Recebe a ajuda e cuidados de pessoas amigas e vizinhos.
5.ª - Por todo o exposto, considera-se exagerada a condenação na pena de dois anos de prisão que o tribunal a quo aplicou ao arguido, devendo esta ser reduzida ao arguido ou substituída por uma pena não privativa da liberdade.
Deve, assim, a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que condene o arguido numa pena de prisão inferior à aplicada pelo tribunal a quo ou substituída por uma pena não privativa da liberdade.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a sentença recorrida e substituída por outra que condene o arguido numa pena de prisão por período inferior ao que foi aplicado pelo tribunal a quo (dois anos) ou ser aplicada uma pena não privativa da liberdade.
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3. O Ministério Público rematou a resposta ao recurso nos termos infra transcritos:
1. Vem o presente recurso interposto pelo arguido A... da douta sentença de fls. 36 a 39 que o condenou pela prática, em autoria material, de 1 (um) crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 2, do D.L. n.º 2/98, de 2 de Janeiro, na pena de 2 (dois) anos de prisão;
2. Resultando do dispositivo da douta sentença um lapso material, cuja correcção importa efectuar e que resulta claro do próprio contexto da douta sentença proferida oralmente, tal erro apenas “dá direito à rectificação da referida declaração”, por força do estatuído no artigo 249.º, do Código Civil e 380.º, n.ºs 1, al. b) e 2, do Código de Processo Penal;
3. Pelo que o dispositivo da douta sentença deverá ser rectificado e dele deverá passar a constar:
“Em face de todo o exposto, o Tribunal decide condenar A... pela prática, em autoria material, de 1 (um) crime de condução de veículo sem habilitação legal, que é previsto e punido pelo artigo 3.º, n.º 2, do D.L. n.º 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 2 (dois) anos de prisão”.
4. Debatendo-se, como se debate no recurso interposto, uma questão de direito, o recorrente devia ter referido, expressamente, nas conclusões das suas alegações as disposições violadas e/ou, em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deveria ser aplicada;
5. Não o tendo feito, deverá o presente recurso interposto pelo recorrente ser rejeitado se, depois de previamente convidado a sanar tal deficiência - caso se entenda ser necessário -, o não fizer, em conformidade com a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, proferida no Acórdão n.º 320/2002, de 9 de Julho de 2002, in D.R. I.ª. Série de 7 de Outubro de 2002;
Mesmo assim, sem no entanto conceder,
6. Atendendo e fazendo apelo a critérios de justiça, adequação e proporcionalidade, atendendo ao grau de ilicitude; ao dolo directo; às suas condutas anteriores, plasmadas no seu certificado de registo criminal; à ausência total de um projecto de vida por parte do arguido; à total ausência de suporte familiar por parte do mesmo; à ausência de quaisquer hábitos laborais, regulares e contínuos; à sua tendência para manter condutas socialmente desajustadas e contrárias às normas legais; à inexistência de circunstâncias que legitimem a atenuação especial da pena; que o limite máximo da pena não pode ultrapassar a medida da culpa e às fortes exigências de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir, mostra-se adequada a pena de 2 (dois) anos de prisão;
7. A suspensão da execução da pena de prisão não é apenas facultativa, tratando-se antes, de um poder-dever dependendo dos pressupostos formais e materiais estipulados na lei;
8. É pressuposto material da aplicação do instituto da suspensão da execução da pena de prisão a verificação de um prognóstico favorável pelo Tribunal, relativamente ao comportamento do condenado, tendo em atenção a sua personalidade e as circunstâncias do facto, no sentido de que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para o afastar da criminalidade, satisfazendo, simultaneamente, as exigências de prevenção geral, ínsitas na finalidade da punição, previstas no artigo 40.º, do Código Penal;
9. Não existe um juízo de prognose favorável a favor do arguido A... quando este - apesar de averbar no seu certificado de registo criminal 10 (dez) condenações anteriores pela prática de 14 (catorze) crimes de natureza rodoviária, em penas de multa, em penas de prisão suspensa, as quais foram revogadas, em virtude de ter cometido crimes da mesma natureza durante o período de suspensão daquelas penas de prisão; em penas de prisão efectivas e, inclusivamente, por crimes da mesma natureza cometidos durante o período da concessão de liberdade condicional de que beneficiava e que, por via disso, foi inclusivamente, revogada - volta a cometer o 15 (décimo quinto) crime de natureza rodoviária de cuja prática vem agora condenado, embora por sentença ainda não transitada em julgado;
10. Pelo que não restava outra solução à douta sentença a quo senão optar pela sua condenação na pena de 2 (dois) anos de prisão, pena essa que não podia ter suspenso na sua execução, face à inexistência de quaisquer factos que pudessem conduzir a tal, razão pela qual nela se não violou o disposto nos artigos 40.º, 50.º, 70.º e 71.º, todos do Código Penal.
Em consequência, caso seja julgada improcedente a questão prévia suscitada, deverá o presente recurso ser julgado improcedente, devendo ser integralmente mantida a douta sentença a quo.
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4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, elaborou douto parecer (fls. 91 a 98), cujo teor, em parte, passamos a reproduzir:
2. QUESTÃO PRÉVIA.
Nos autos foi, em processo sumário, proferida sentença oralmente, nos termos do art. 389.º-A do CPP, na redacção dada pela lei 26/2010 de 30-10, sendo que apenas o dispositivo foi ditado para a acta, de acordo com o disposto no n.º 2 do mesmo artigo (cfr. fls. 36-39 dos autos).
Foi no mesmo sentido, da opção pela sentença oral, dado cumprimento ao disposto no n.º 4 do citado artigo.
Ora, verifica-se que na sentença o tribunal na 1.ª instância aplicou uma pena privativa da liberdade. E nestas situações manteve a lei a solução em tudo semelhante ao regime anterior da sentença ser proferida de forma escrita e não oral, a nosso ver, pois que, sendo verbal, era sempre ditada integralmente para a acta.
Na verdade, de acordo com o actual regime legal, estando prevista como regra geral a oralidade da sentença nos termos do art. 389.º-A, n.ºs l, 2 e 3, prevê-se, no entanto, uma excepção no n.º 5 do mesmo art. 389.º-A do seguinte modo:
Se for aplicada pena privativa da liberdade ou, excepcionalmente, se as circunstâncias do caso o tornarem necessário, o juiz, logo após a discussão elabora a sentença por escrito e procede à sua leitura.” (sublinhados nossos).
Tendo aplicado uma pena de prisão efectiva nestes autos, tinha o tribunal que proferir sentença “por escrito e proceder à sua leitura”.
Como qualificar esta falha, sendo certo que a mesma se encontra gravada em suporte digital?
O n.º 3 do art. 389.º-A comina de forma expressa de nulidade a sentença que não seja documentada nos termos do art. 363.º e 364.º, para as situações em que a sentença é proferida oralmente.
Porém, no caso, salvo melhor opinião, a sentença tinha sempre que ser feita por escrito, assumindo esse formalismo tal como está previsto no art. 94.º do CPP.
Estaremos então perante uma situação de sentença inexequível, por não estar reduzida a escrito tal como é exigência legal expressa, de acordo com o disposto no art. 468.º, al. b) do CPP. Ou, dito de outra forma, estamos perante uma situação de uma decisão penal “inexequível rectius inexistente”, conforme a qualifica Paulo P. de Albuquerque no seu Comentário do CPP, 4.ª edição, pág. 1234.
Contudo, a situação face aos novos enxertos que sucessivamente vêm sendo feitos na legislação processual penal verifica-se que não estaremos perante uma situação de evidência de inexistência de sentença, porque afinal de contas a mesma existe face a esta última alteração legal, revestindo uma das formas legalmente possíveis, embora não a forma dos actos aplicável ao caso em concreto, tal como se referiu.
É ainda certo que consta da acta de audiência o respectivo dispositivo da sentença e o arguido apresentou recurso da mesma.
Estaremos então perante uma nulidade de sentença, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 379.º, n.º 1, al. a), do CPP, que era suprível nos termos do art. 414.º, n.º 4 do mesmo diploma legal.
Na verdade, não consta da sentença na forma legal, o que está previsto nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do art. 389.º-A, na sua conjugação com o artigo 379.º, n.º 1, já referidos.
3. APRECIAÇÃO:
Quanto ao objecto do recurso (….), face a tudo o que ficou exposto, caso não seja deferida a questão prévia suscitada pelo Ministério Público e sendo conhecido o recurso, acompanhando, como se disse na generalidade a resposta do Ministério Público na 1.ª instância, somos de parecer que o recurso do arguido apenas deverá proceder na determinação da exacta medida da pena de prisão aplicada, no mais devendo improceder».
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5. Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP, o arguido não exerceu o seu direito de resposta.
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6. Colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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II. Fundamentação:
1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso:
Conforme Jurisprudência constante e pacífica, são as conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações que delimitam o âmbito dos recursos, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso, indicadas no art. 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
No caso dos autos, as conclusões circunscrevem o recurso à questão da medida da pena e se ao arguido deve ser aplicada pena não privativa da liberdade.
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2. Realizado o julgamento, a julgadora do tribunal de 1.ª instância proferiu a sentença oralmente, tendo a mesma, segundo se refere, ficado documentada no sistema de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no tribunal - início da gravação: 00:00:01; fim da gravação: 00:15:52, nos termos dos n.ºs 1 e 3, do art. 389.º-A, do Código de Processo Penal.
Em seguida, «pela Mm.ª Juiz e nos termos do art. 389.º-A, n.º 2, do CPP, foi ditado para a acta o seguinte dispositivo:
Pelo exposto, julgo a acusação totalmente procedente, por provada e, em consequência:
a) Condeno o arguido A... pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei 2/98, de 3 de Janeiro na pena de dois anos de prisão;
B) Condeno o arguido nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça devida em 0,5 UC, já reduzida a metade (cfr. artigos 344.º, n.º 2, al. c), 513.º, n.º 1, do CP e art. 8.º do RCP».
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3. Questão prévia:
A Lei n.º 26/2010, de 30 de Agosto, introduziu um novo regime na elaboração da sentença proferida em processo sumário.
Efectivamente, diz-nos o n.º 1 do artigo 389.º-A do Código de Processo Penal:
«A sentença é logo proferida oralmente e contém:
a) A indicação sumária dos factos provados e não provados, que pode ser feita por remissão para a acusação e contestação, com indicação e exame crítico sucintos das provas;
b) A exposição concisa dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão;
c) Em caso de condenação, os fundamentos sucintos que presidiram à escolha e medida da sanção aplicada;
d) O dispositivo, nos termos previstos nas alíneas a) a d) do n.º 3 do artigo 374.º.
2. O dispositivo é sempre ditado para a acta.
3. A sentença é, sob pena de nulidade, documentada nos termos dos artigos 363.º e 364.º.
4. É sempre entregue cópia da gravação ao arguido, ao assistente e ao Ministério Público no prazo de 48 horas, salvo se aqueles expressamente declararem prescindir da entrega, sem prejuízo de qualquer sujeito processual a poder requerer nos termos do n.º 3 do artigo 101.º.
5. Se for aplicada pena privativa da liberdade ou, excepcionalmente, se as circunstâncias do caso o tornarem necessário, o juiz, logo após a discussão, elabora a sentença por escrito e procede à sua leitura».
Alargou-se, assim, o princípio da oralidade, como princípio estruturante do processo penal, agora extensível à fase da sentença, uma vez que a decisão final do processo é, por regra, uma sentença oral, verificando-se, deste modo, uma inversão do esquema processual até agora vigente nesta fase processual.
A lei impõe que a sentença oral fique documentada, nos termos dos artigos 363.º e 364.º do CPP, ou seja, integralmente registada no sistema de gravação do Tribunal.
Fica, deste modo, devidamente assegurado o exercício constitucional do direito de recurso, porquanto, os sujeitos processuais referidos no n.º 4 do artigo podem, em tempo adequado, obter cópia da gravação da sentença.
Todavia, nos casos, excepcionais, contemplados no n.º 5 do artigo citado, a sentença deve ser escrita, ocorrendo, deste modo, uma cedência do princípio da oralidade, à luz de compreensíveis exigências ditadas pela natureza da pena imposta ao arguido.
Como é proficientemente referido no Acórdão deste Tribunal da Relação de 18-05-2011 (proferido no proc. n.º 137/10.8GASBC.C1, relatado pelo Ex.mo Sr. Desembargador Mouraz Lopes), sendo aplicada pena privativa de liberdade, é necessário ter em consideração no programa de execução subsequente todo o condicionalismo que o tribunal ponderou, nomeadamente, algumas das razões que sustentam o processo justificativo que consubstancia a fundamentação e que determinaram a aplicação dessa pena.
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Volvendo ao caso dos autos, confrontamo-nos com uma invalidade, porquanto existe uma patente desconformidade entre o acto praticado a as respectivas disposições legais. Concretizando, apenas o dispositivo da sentença foi ditado para acta, quando, por ter sido imposta ao arguido pena privativa de liberdade, se impunha, por força do disposto no n.º 5 do artigo 389.º-A, a elaboração, também por aquela forma, da totalidade daquela peça processual.
Dito de outro modo: a Mm.ª Juíza do tribunal a quo proferiu oralmente a totalidade da sentença, assentando na acta apenas o dispositivo, olvidando o disposto no referido preceito legal, que impunha, na específica situação, a sua elaboração por escrito.
E que tipo de invalidade se verifica? Nulidade ou inexistência jurídica?
Começa-se por referir que, de acordo com o sistema do Código de Processo Penal (cfr. artigos 118.º, 119.º e 120.º e demais normas dispersas no mesmo diploma), as invalidades dos actos processuais estão previstas de forma tipificada e taxativa, ou mesmo em absoluto, pelo menos quanto aos moldes em que cada espécie de invalidade poderá ser declarada e quanto aos efeitos decorrentes dessa verificação e declaração (ficando, naturalmente, de fora os casos de inexistência de actos processuais, categoria admitida pela doutrina e jurisprudência e cuja consagração legal foi tida por desnecessária face à evidência da invalidade absoluta e irredimível dos actos afectados pela mesma).
Como sabemos, a nulidade dita relativa consente a sua sanação. O acto relativamente nulo pode ser convalidado.
A nulidade absoluta é insanável, necessitando, no entanto, de ser declarada. Pode ser arguida ou declarada oficiosamente. O acto praticado tem existência jurídica, embora defeituosa, e ainda que o vício seja insanável; e, consequentemente, a falta de anulação deixa-o subsistir. No processo, a nulidade absoluta é coberta pela impossibilidade, depois de findo aquele, de a fazer reviver, no seu todo ou parcialmente. A decisão judicial com trânsito em julgado não se anula, como se não declara a nulidade de actos dum processo que findou com decisão irrevogável (Manuel Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, lições proferidas no ano lectivo de 1954-1955, pág. 267 e 268).
Dito por outras palavras: no direito processual os actos nulos só podem ser anulados até ao trânsito em julgado da decisão final. Com a formação de caso julgado, mesmo as nulidades arguíveis em qualquer estado do procedimento, incluindo os vícios da própria sentença, tornam-se insidicáveis. O valor da segurança jurídica acaba por sobrepor-se à justiça processual, inviabilizando qualquer modificação da sentença definitiva.
Diversamente, a categoria da inexistência afasta-se do princípio geral da tipicidade das nulidades e de igual princípio geral da sua sanação.
Embora a lei só aluda de forma expressa e explicita aos vícios de nulidade e irregularidade, seria tecnicamente inconcebível, para além de profundamente iníquo, deixar sem tutela invalidades de acto processual bem mais graves do que a lei prevê como constituindo nulidades.
A redução das nulidades aos casos previstos na lei e a impossibilidade de aplicar analogicamente as normas dos outros ramos de direito aos casos omissos criam espaço suficiente para o germinar da inexistência. Não seria compreensível deixar sem tutela situações mais graves do que as previstas pelo legislador. Intransponíveis ideais de justiça material justificam que nestes casos, apesar da falta de previsão legal, o acto seja destruído e o processo remetido para o caminho original (João Conde Correia, Contributo para a Análise da Inexistência e das Nulidades Processuais Penais, Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, 1999, pág. 119).
A função da categoria da inexistência não é outra senão a de ultrapassar, usando as palavras de Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, tomo II, 2.ª edição, Editorial Verbo, 1999, pág. 88), a barreira da tipicidade das nulidades e da sua sanação pelo caso julgado: a inexistência é insanável. A inexistência do acto, de facto, impede de modo irremediável a produção dos efeitos próprios do acto perfeito, como acontece nas nulidades e irregularidades.
No âmbito material, em princípio, a distinção entre inexistência e nulidade apresenta-se assim: se o acto contém o mínimo de elementos ou de requisitos indispensáveis para a sua existência jurídica, mas está inquinado de vícios de formação, estamos perante a figura da nulidade; se falta esse mínimo, estamos perante a figura da inexistência jurídica (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, Coimbra, 1952, vol. V, pág. 117).
Ou, segundo refere, com maior completude, João Conde Correia (ob. cit.), a inexistência consiste numa imperfeição da fattispecie. O acto praticado, embora se identifique com determinado modelo legal, não lhe corresponde na íntegra, faltando-lhe, pelo menos, um dos seus elementos. Apesar de ter existência jurídica o direito não o considera válido. Por seu turno, no caso de inexistência, nem sequer se pode falar em imperfeição da fattispecie. A anomalia é tão grande que o acto nem sequer é comparável com o seu esquema normativo, não alcançando aquele mínimo imprescindível para poder ser reconhecido como tal e ter vida jurídica. Nas nulidades absolutas o acto, ainda que imperfeito, é idóneo para produzir os efeitos jurídicos que a lei lhe atribui. Na existência jurídica o acto é inidóneo para a produção de quaisquer efeitos jurídicos, não os devendo, em caso algum produzir.
Não tem sido consensual na doutrina, a marcação da fronteira dos actos concretos de nulidade e de inexistência jurídica.
Todavia, como observa João Conde Correia (ibidem, pág. 121), não deve perder-se de vista que a inexistência jurídica corresponde a um recurso excepcional, utilizado para repor a justiça em situações extremas, que quase ultrapassam as figuras do imaginável. Importa, portanto, utilizar a figura criteriosamente, apenas em casos de gravidade superior àqueles que se encontram previstos na lei como causa de nulidade.
Tem-se dito, com certa unanimidade, que a sentença é inexistente, inter alia, se não houver um documento em que se achem representados os respectivos elementos (Alberto dos Reis, citando Betti, idem, pág. 118); se proferida verbalmente quando a lei exige forma escrita (Francisco Luso Soares, Direito Processual Civil, Almedina, Coimbra, 1980, pág. 505, e Paulo Cunha, Processo Comum de Declaração, 2.º, págs. 354 e 355, Gil Moreira dos Santos, Noções de Processo Penal, 2.ª edição, pág. 209);
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Na situação que os autos revelam, existe manifesta violação da disposição contida no artigo 389.º-A, n.º 5, do CPP; por ter sido imposta ao arguido uma pena privativa de liberdade (pena de dois anos de prisão), deveria ter sido elaborada sentença por escrito.
Ao invés, descurando aquela norma, a Mm.ª seguiu o modelo geral, tendo documentado a sentença nos termos dos artigos 363.º e 364.º do CPP, e ditado para a acta a parte do dispositivo.
Não obstante, embora conscientes da dificuldade da solução, entendemos que o acto em análise (sentença), apesar de patentemente imperfeito, por não corresponder, na íntegra, ao modelo definido no artigo 389.º-A, n.º 1, do CPP, ainda assim tem existência jurídica.
Secundando a posição do Sr. Procurador-Geral Adjunto, que se nos afigura a mais conforme, afinal de contas a sentença existe face à alteração da Lei n.º 26/2010, de 30-10, revestindo uma das formas legalmente possíveis do processo sumário, ainda que não o modelo que deveria ter sido aplicável ao caso concreto.
Mas, sobretudo, a sentença não é omissa quanto a todos os elementos exigidos no artigo 389.º-A, do CPP. Dela consta a identificação do arguido e o dispositivo contendo a disposição incriminadora aplicável, a concreta decisão condenatória, a ordem de remessa de boletins ao registo criminal e a data e a assinatura do membro do tribunal.
A sentença padece de nulidade, (cfr. artigo 389.º-A e 379.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do CPP, uma vez que, sem margem para qualquer dúvida, não contém, na forma prevista na lei, os elementos estruturantes referidos nas alíneas a) a c) do n.º 1 do primeiro dos referidos artigos.
Esse vício é de conhecimento oficioso, como actualmente decorre com suficiente clareza do inciso, que sublinharemos a bold, contido no n.º 2 do artigo 379.º: «As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, sendo lícito ao tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º» (neste sentido, v.g., Acórdãos do STJ de 31-05-2001, proferido no Proc. n.º 260/01; 08-11-01 (Proc. n.º 3130/01) e 14-05-03 (Proc. n.º 518/03), todos publicados, em sumário, no Boletim Interno do STJ, n.ºs 51, 55 e 71, respectivamente; 02/02/2005, Colectânea de Jurisprudência, tomo I, pág. 188; 18-01-2007 (06P4806); 12-09-2007 (07P2583); e 17-10-2007 (07P3399), in www.dgsi.pt.).
Uma última nota: mesmo que de inexistência jurídica se tratasse, o acto praticado (consagração escrita apenas do dispositivo) seria destruído e o processo remetido para o caminho original, ou seja, para elaboração de nova sentença, com observância do dispositivo legal aplicável.
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III - Dispositivo:
Posto o que precede, acordam os Juízes que compõem a 5.ª Secção Criminal da Relação de Coimbra em declarar a nulidade da sentença, devendo, no tribunal de 1.ª instância, proceder-se à elaboração de nova decisão final que observe o disposto no artigo 389.º-A, n.º 5, do Código de Processo Penal.
Sem tributação.
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Processado e revisto pelo relator, o primeiro signatário, que assina a final e rubrica as restantes folhas (art. 94.º, n.º 2 do CPP).
Coimbra, 28 de Setembro de 2011

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(Alberto Mira)

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