Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
23/11.4 GAAGD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: CRIME DE TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
OBJECTOS DECLARADOS PERDIDOS A FAVOR DO ESTADO
VEÍCULO AUTOMÓVEL
Data do Acordão: 03/07/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA – ÁGUEDA – JUÍZO DE INSTÂNCIA CRIMINAL – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: ALTERADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 21º, 25º E 35º DO DL 15/93, DE 22/ 01
Sumário: 1.- O crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25º do DL 15/93, de 22/ 01, pressupõe, por referência ao tipo fundamental, que a ilicitude do facto se mostre «consideravelmente diminuída» em razão de circunstâncias específicas, mas objetivas e factuais, verificadas na ação concreta, nomeadamente os meios utilizados pelo agente, a modalidade ou as circunstâncias da ação, e a qualidade ou a quantidade dos produtos;
2.- A detenção de cocaína com o peso líquido total de 396,153 gramas que se destinava a ser vendida por terceiro a consumidores de estupefacientes, pois que bastante para 1.500 doses individuais, integra a prática de um crime de tráfico de estupefacientes do artº. 21°, º 1, do Dec. Lei nº 15/93, de 22 /01;
3.- Dado que entre a utilização do veículo do arguido e a prática do crime de tráfico não se verifica uma relação de causalidade adequada, já que sem a utilização do veículo a infração teria sido praticada na mesma, não deve ser declarado perdido a favor do Estado o veículo automóvel
Decisão Texto Integral: I – Relatório.
1.1. O arguido A..., já entretanto mais identificado nos autos e a cuja ordem se encontra na situação de prisão preventiva desde 4 de Junho de 2011 [fls. 36/50 e 369/370], foi submetido a julgamento, conjuntamente com um outro arguido, ora não recorrente, sob a aludida forma de processo comum colectivo, porquanto acusado (s) pelo Ministério Público da prática indiciária de factos que o (s) instituiria (m) na co-autoria material consumada de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido (p. e p.) pelo art.º 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
Findo o contraditório, por aresto adrede proferido, e ao que ora releva, foi decidido condenar-se o arguido enquanto autor do aludido ilícito, p. e p. pelo citado art.º 21.º, n.º 1, na pena de 5 (cinco) anos de prisão efectiva. Mais foi então determinada a perda a favor do Estado do veículo automóvel de matrícula ..., apreendido a tal arguido A....
1.2. Desavindo apenas com o segmento do acórdão que assim o sentenciou, recorre o arguido, extraindo do requerimento através do qual minutou a discordância, a seguinte ordem de conclusões:
1. A tipificação do art.º 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, visa permitir ao julgador que encontre a medida justa de punição em casos que, embora porventura de gravidade ainda significativa, ficam aquém da gravidade do ilicito justificativo do art.º 21.º e encontram resposta adequada dentro das molduras penais previstas nesse art.º 25.º.
2. A modalidade e as circunstâncias da acção neste caso justificam que o recorrente seja punido pelo crime de tráfico de menor gravidade previsto no art.º 25.º. Factores como a organização ou a logística, a modalidade ou circunstâncias da acção (tráfico ocasional ou de circunstância, tráfico habitual, a intensidade do tráfico e a repetição de vendas), isto é, o grau de perigosidade para a difusão da droga, a qualidade das substâncias ou preparados, a quantidade da droga transaccionada, os montantes pecuniários envolvidos, ou ainda a personalidade do arguido (se o arguido é ou não consumidor ou tóxico-dependente, o facto de o arguido fazer do tráfico de droga o seu modo de vida), preenchem o conceito vago de menor gravidade previsto naquela disposição legal.
3. Nenhum daqueles factores que denotam maior perigosidade e merecem, por isso, maior censura foi dado como provado, não se tendo apurado ainda que o arguido destinava o produto estupefaciente à venda a terceiros e muito menos que se dedicava de forma habitual e reiterada à venda destas substâncias fazendo disso modo de vida, não tendo sido identificado ninguém como adquirente nem tendo sido apreendido montante pecuniário na posse do arguido que indiciasse minimamente tal actividade, pelo que nos parece que as circunstâncias do crime em apreço são precisamente as circunstâncias que ditam a sua subsunção ao subtipo de crime privilegiado previsto no art.º 25.º, dada afinal a existência de uma ilicitude consideravelmente diminuída.
4. Recorde-se a versão do arguido, referindo que um terceiro lhe tinha dado a droga para transportar em troca de um valor em dinheiro. Ora, a droga foi encontrada acomodada num saco, em bruto e sem sequer se encontrava dividida em doses como é característico do produto estupefaciente preparado para venda e como já se referiu atrás, também não foram encontrados montantes pecuniários que pudessem ser associados à venda daquele produto.
5. Não parece razoável e conforme a interpretação do Tribunal a quo de que a simples detenção de cocaína é suficiente para ignorar todos os outros factores que indicam uma ilicitude consideravelmente diminuída, tanto mais que o arguido não tem quaisquer antecedentes criminais relevantes.
Cumpre relembrar que a única certeza alcançada pelo Tribunal foi a mera detenção e transporte do produto estupefaciente pelo arguido, tendo tal facto sido referido sucessivas vezes na argumentação constante do acórdão de que se recorre.
6. A conduta do recorrente deverá ser enquadrada no tipo legal do art.º 25.º, alínea a) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, sendo condenado em pena próxima dos três anos e suspensa na sua execução.
7. São exclusivamente razões de prevenção geral e especial que determina a suspensão ou não da execução da pena de prisão. Nos termos do art.º 50.º, n.º 1, do Código Penal, o Tribunal tem deste modo que formular um juízo de prognose acerca da possibilidade de a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizarem, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição, o que implica que o Tribunal deve poder concluir no sentido de haver esperança de que o arguido, em liberdade, irá aderir a um processo de socialização.
8. Tendo em conta a condição sócio-económica e cultural do recorrente, bem como as circunstâncias do contexto familiar e do contexto sócio-residencial onde cresceu; o facto de apesar das dificuldades sempre ter procurado emprego, tendo desempenhado diversas actividades desde cedo; e tendo também em consideração os relacionamentos no plano afectivo, a verdade é que o arguido, pese todas as dificuldades sempre procurou levar uma vida digna sem nunca ter recorrido à delinquência.
9. Assim, a inexistência de antecedentes criminais de relevo, a inserção familiar do arguido, o facto de o mesmo ter confessado as circunstâncias da detenção e do transporte do produto estupefaciente, a existência de elementos atrás referidos que diminuem consideravelmente a ilicitude, são factores que poderão levar o Tribunal, a fazer um juízo de prognose favorável quanto à possibilidade da censura do facto e a ameaça da prisão realizarem, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.
Mostram-se, assim, atenuadas, as razões de prevenção especial.
10. Quanto às razões de prevenção geral, apesar de alguma jurisprudência se opor à suspensão da execução deste tipo de penas, dado o seu papel na repressão ao crime de tráfico de estupefacientes e tendo em vista a tutela dos bens jurídicos com referência à estabilidade familiar e à saúde e segurança da comunidade, outra jurisprudência há que entende que às penas de prisão decorrentes de crimes de tráfico se devem aplicar exactamente os mesmos critérios de suspensão da execução da pena que se aplicam às penas aplicadas por outros crimes e que, nessa conformidade, a execução de pena não superior a cinco anos se deve suspender quando o arguido é primário, tenha confessado os factos e se verifiquem as exigências de prevenção especial Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 13 de Março de 2008, in CJ (Acs STJ), Tomo I; do Tribunal da Relação de Lisboa, de 1 de Abril de 2010, de 3 de Novembro de 2010, e de 9 de Abril de 2008, todos acessíveis no site www.dgsi.ptjtrl, bem como do Tribunal da Relação do Porto, de 17 de Setembro de 2008..
11. O veiculo automóvel apreendido e que veio a ser declarado perdido a favor do Estado, não obstante ter sido entendido que havia sido comprado pelo arguido recorrente e não obstante ter sido utilizado por este para se deslocar desde a zona do Porto até Águeda, não serviu, entende-se, de forma relevante e essencial, para a prática do ilícito.
Com efeito,
12. O ilícito poderia ter sido praticado, na mesma, pelo recorrente, acaso se tivesse deslocado de comboio ou de camionetas.
13. Ao invés do plasmado no acórdão sob censura, não emerge uma relação directa e intensa, determinante e de causalidade adequada, entre a utilização da viatura pelo recorrente e a prática do ilícito.
14. O disposto no art.º 35.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, não foi correcta e adequadamente interpretado e aplicado.
15. Sem prescindir de tudo o alegado, se o Tribunal ad quem entender não haver uma ilicitude consideravelmente diminuída suficiente para justificar a aplicação do encimado art.º 25.º, aplicando pena próxima do limite mínimo e suspensa na sua execução, o que não se concebe, deverão todos os factores supra mencionados que atenuam a ilicitude e culpa do arguido ser ponderados e, em consequência, ser o mesmo condenado pelo limite mínimo da moldura penal do art.º 21.º, em pena de prisão ademais suspensa na sua execução.
Terminou pedindo que na revogação parcial do decidido, se substitua o aresto sindicado por outro que condene o arguido pela prática de um crime p.p. pelo art.º 25.º, alínea a) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, em pena próxima dos três anos de prisão e suspensa na sua execução.
Acaso assim se não entenda, deve então o recorrente ser condenado pelo limite mínimo da moldura penal do art.º 21.º em causa, em pena de prisão igualmente suspensa na sua execução.
1.3. Cumprido o disposto pelo art.º 413.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, respondeu o Ministério Público sustentando o improvimento do recurso interposto.
1.4. Proferido despacho admitindo-o, e cumpridas as formalidades devidas, os autos foram remetidos a esta instância.
1.5. Aqui, no momento processual a que alude o art.º 416.º do apontado diploma adjectivo, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer conducente ao parcial provimento do recurso. Com efeito, anotou, embora deva subsistir o enquadramento jurídico-penal operado em 1.ª instância, já o quantum da pena a arbitrar deve ser reduzido para quatro anos de prisão; também, acrescentou, não concorrem, in casu, os pressupostos exigíveis para que fosse decretada a perda a favor do Estado do veículo apreendido ao recorrente.
1.6. Após cumprimento do estatuído pelo artigo 417.º, n.º 2, do último diploma citado, e réplica do recorrente, reiterando o antes expendido, no exame preliminar a que alude o n.º 6 deste mesmo inciso, consignou-se que nenhuma circunstância acarretava a apreciação sumária do recurso, ou obstava ao seu conhecimento de meritis, donde que a dever prosseguir seus termos, com a recolha dos vistos devidos – o que se verificou –, e submissão à presente conferência.
Cabe, então e agora, apreciar e decidir.
*
II – Fundamentação de facto.
2.1. O acórdão sob censura Atendo-nos essencialmente e quando possível no que concerne ao ora recorrente. teve por provada a seguinte factualidade:
1. No dia 3 de Junho de 2011, cerca das 22/23 horas, no decurso de uma operação de fiscalização de trânsito realizada na Rotunda das Barrosinhas, em Mourisca do Vouga, área da comarca de Águeda, militares da Guarda Nacional Republicana mandaram parar o veículo de matrícula ..., conduzido pelo arguido A..., e no qual seguia como passageiro o arguido B....
2. Aos pés do condutor, junto ao respectivo assento, encontrava-se um saco de plástico, que aquele entregou aos elementos policiais, depois de lhe ter sido solicitado.
3. No interior desse saco encontravam-se quatro embalagens acondicionadas em plástico transparente, contendo cocaína com o peso líquido total de 396,153 gramas.
4. Esse produto estupefaciente havia sido transportado pelo arguido A... desde a cidade do Porto até Águeda, e destinava-se a ser aqui entregue por ele a terceira pessoa, a pedido de um indivíduo cuja identidade não foi possível apurar, a fim de, posteriormente, ser vendido a consumidores de estupefacientes.
5. Em contrapartida por essa sua actividade, o arguido receberia pelo menos a quantia de € 250,00 e ainda dez meios gramas de cocaína.
6. Além do produto em causa, o arguido A... tinha também em seu poder:
- um telemóvel de marca Nokia, modelo 5800;
- um telemóvel Nokia, modelo N97,;
- uma nota do BCE de € 500,00;
- onze notas do BCE de € 20,00;
- três notas do BCE de € 10,00;
- uma nota do BCE de € 5,00;
- três moedas de € 1,00;
- uma moeda de € 0,20;
- quatro moedas de € 0,10;
- e uma moeda de € 0,05, num total de € 758,65.
(…)
(…)
8. O arguido A... agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de transportar e de deter o referido produto, cujas características estupefacientes conhecia, bem sabendo que tal conduta era proibida por lei.
9. O veículo automóvel em que se fez transportar permitiu a sua mobilidade e deslocação desde a cidade do Porto até Águeda.
10. Tal veículo havia-lhe sido vendido pela sociedade “ … .”, em 20 de Maio de 2011.
11. Da mencionada quantia monetária apreendida ao arguido A..., pelo menos € 125,00 haviam-lhe sido entregues pelo referido indivíduo de identidade não apurada, como adiantamento de parte da contrapartida devida pelo transporte e entrega do produto estupefaciente.
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12. O arguido A... teve um percurso de vida estruturado, junto de uma família funcional e com condições estáveis em termos socio-económicos.
13. Possui como habilitações literárias o 9.º ano de escolaridade.
14. Há cerca de 15 anos envolveu-se no consumo de estupefacientes, tendo efectuado, sem sucesso, vários tratamentos de desintoxicação, os últimos dos quais em Outubro de 2010, em Março de 2011 e entre 11 e 14 de Maio de 2011, tendo tido novas recaídas em, respectivamente, Novembro de 2010, em Abril de 2011 e durante ainda em Maio de 2011.
15. Preso preventivamente à ordem dos presentes autos desde 4 de Junho de 2011 Por lapso manifesto que se corrige, nos termos do art.º 380.º, n.ºs 1, alínea b) e 2, do Código de Processo Penal, exarou-se na peça recorrida “15-06-2011”., está sujeito a acompanhamento clínico no Estabelecimento Prisional, em articulação com o Centro de Respostas Integradas de Aveiro, encontrando-se abstinente de consumos e tomando alguma medicação para controlo da ansiedade.
16. Trabalhou como motorista e, ultimamente, como vendedor de automóveis, sem regularidade de rendimentos, mas rondando, em média, os € 800,00 por mês.
17. É solteiro, mantendo há alguns meses um relacionamento afectivo de namoro, que lhe vem trazendo alguma estabilidade.
18. Aquando da sua detenção, vivia com os pais, em casa própria destes, e com a irmã, cunhado e sobrinhos, contando com o apoio do seu núcleo familiar.
19. Não lhe são conhecidos outros processos pendentes e já sofreu as seguintes condenações:
- Por acórdão de 09-04-2002, na pena de 2 anos de prisão, suspensa por igual período, pela prática, em Novembro de 1996, de um crime de burla agravada, pena essa julgada extinta por decisão de 21-06-2004;
- Por sentença de 03-02-2004, transitada em julgado em 18-02-2004, na pena de 70 dias de multa, à taxa diária de € 2,00, pela prática, em 07-06-2003, de um crime de condução em estado de embriaguez;
- Por sentença de 12-06-2007, transitada em julgado em 27-06-2007, na pena de 7 meses de prisão, suspensa pelo período de dois anos, pela prática, em 04-08-2005, de um crime de ofensa à integridade física simples;
- Por sentença de 04-05-2010, transitada em julgado em 24-05-2010, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de € 7,00 pela prática, em 05-12-2009, de um crime de condução em estado de embriaguez.
2.2. Por outro lado, relativamente a factos não provados, consignou-se no mencionado aresto que:
Para além do que também já resulta logicamente excluído pela factualidade provada, não se provaram os seguintes factos descritos na acusação:
- O produto estupefaciente em causa destinava-se a ser vendido pelos próprios arguidos.
(…)
- Para além do referido a propósito dos € 125,00, o restante dinheiro em poder do arguido A... resultou da actividade ligada à transacção de produtos de natureza idêntica ao apreendido.
A demais matéria alegada é meramente conclusiva, de direito ou simplesmente irrelevante para a decisão da causa.
2.3. Por fim, tem o teor que segue a motivação probatória constante da mencionada decisão recorrida:
1. No que concerne aos factos provados, a convicção do Tribunal Colectivo fundou-se na análise e valoração crítica e conjugada dos meios de prova produzidos ou examinados em audiência, designadamente:
a) – As declarações prestadas pelo arguido A..., na medida em que confirmou o essencial dos factos dados como provados, quer os relativos à sua conduta, quer os atinentes às suas condições pessoais.
Já no que se refere à propriedade do veículo automóvel, pese embora o arguido tenha sustentado que o mesmo pertencia ao dono do stand onde trabalhava como vendedor de automóveis, que o importara em nome do arguido para obter benefícios em termos fiscais, o certo é que tal versão não nos pareceu suficientemente credível.
Desde logo porque o arguido não logrou explicar cabalmente a justificação que apresentou para a alegada importação do veículo em seu nome, antes demonstrando alguma hesitação. Por outro lado, não ficou sequer demonstrado que o automóvel tivesse efectivamente sido importado, uma vez que não foi junto qualquer documento comprovativo dessa importação, nem foi arrolado como testemunha o representante do referido stand, como seria natural que sucedesse. Por fim, aquela versão do arguido não encontra suporte na declaração de venda e circulação junta a fls. 74, da qual resulta, sim, que, no dia 20 de Maio de 2011, o veículo em apreço foi vendido ao arguido pela sociedade “ … .”.
Ora, a ter sido importado em nome do arguido, como este sustentou em julgamento, fica por explicar a referida venda do veículo ao mesmo.
Assim sendo, quanto à propriedade da viatura, atendeu-se ao teor do aludido documento, cujo teor não foi cabalmente infirmado por qualquer outro elemento probatório.
b) – Valorou-se igualmente o depoimento das testemunhas ……., todos militares da GNR que participaram, com maior ou menor intervenção, na operação de fiscalização em apreço e na subsequente apreensão dos bens encontrados em poder dos arguidos.
c) – Teve-se igualmente em conta o depoimento das testemunhas …, respectivamente tio do arguido e irmão da namorada deste, qualidades em que demonstraram conhecimento das condições pessoais do mesmo.
d) – Para além do já mencionado supra, valoraram-se ainda os seguintes documentos, juntos a fls.:
- 10 a 11 (auto de apreensão dos objectos encontrados em poder dos arguidos);
- 121 (declaração médica, comprovativa do tratamento de desintoxicação realizado pelo arguido em Maio de 2011);
- 123 (relatório do exame ao produto apreendido, quanto às características estupefacientes e peso líquido do mesmo);
- 186 a 193 (certificado de registo criminal do arguido A..., quanto aos respectivos antecedentes criminais);
- 257 a 259 (relatório social relativo ao mesmo arguido, atendido para as suas condições pessoais).
2. No que concerne à factualidade não provada, não foi produzida prova suficiente que a permitisse ter como demonstrada.
Com efeito, sobre o facto de o produto estupefaciente se destinar a ser vendido pelos próprios arguidos ou, pelo menos, pelo arguido A..., a versão oposta apresentada por este último, segundo a qual apenas se encontrava a efectuar o transporte da droga a pedido de um vendedor de estupefacientes do Porto, a fim de a entregar a uma terceira pessoa em Águeda, para além de não ter sido cabalmente infirmada, faz algum sentido, atenta a natureza e a quantidade do estupefaciente em causa (396,153 g de cocaína) e as circunstâncias de o arguido ser toxicodependente, ter meio de transporte por ser vendedor de automóveis, residir na zona daquela primeira cidade e não ter quaisquer contactos em Águeda.
E não invalida essa conclusão o facto de não ter comparecido ninguém no local acordado para a entrega da droga, porquanto quando os agentes da GNR para aí se deslocaram, utilizando o veículo conduzido pelo arguido, já teriam passado mais de duas horas para além da hora combinada, para além de que a intercepção do mesmo, com o natural aparato inerente a tais situações, teve lugar cerca de duzentos metros desse local (parque de estacionamento de um hipermercado), sendo, pois, altamente provável que o destinatário da droga se apercebesse de tal situação e, obviamente, não comparecesse ao encontro marcado.
Acresce que as condições pessoais de vida do arguido, designadamente económicas, descritas quer no relatório social, quer pelas testemunhas de defesa, são muito mais compatíveis com o facto de o arguido ser um mero transportador daquela droga, por conta de outrem, do que vendedor da mesma.
(…)
Quanto à proveniência do restante dinheiro apreendido em poder do arguido A..., desde logo não ficou demonstrado que ele se dedicasse à transacção de estupefacientes, afastando-se, pois, essa proveniência. Por outro lado, ainda que as regras da experiência comum possam sugerir que o arguido tenha recebido uma quantia superior aos € 125,00 como adiantamento pela sua actividade de transporte da droga, o certo é que o mesmo apresentou uma justificação para a detenção de um montante tão elevado de dinheiro como aquele que lhe foi apreendido (€ 758,65), ao afirmar que no jantar do dia dos factos, a sua irmão lhe emprestou € 500,00 para ele poder pagar as duas prestações em atraso da renda da casa que vinha ocupando com a namorada. Trata-se, é evidente, de uma justificação com alguma fragilidade, até porque o arguido não juntou documento comprovativo do arrendamento nem arrolou qualquer testemunha que pudesse atestar tais factos, designadamente a sua irmã ou o senhorio. Porém, na ausência de outros elementos que contribuam para infirmar a sua versão, subsistiram dúvidas sobre a proveniência ilícita da restante quantia monetária, pelo que não foi a mesma dada como provada.
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III – Fundamentação de Direito.
3.1. Como corolário do carácter disponível do direito ao recurso, as partes podem restringir o âmbito da impugnação a uma parte da decisão quando a parte recorrida puder ser separada da parte não recorrida, por forma a tornar possível uma apreciação e uma decisão autónomas [art.º 403.º, n.º 1, do Código de Processo Penal].
Por outro lado, sabe-se, o objecto de um recurso penal é definido através das conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso [art.ºs 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do mesmo diploma adjectivo].
Na realidade, de harmonia com o aqui disposto, e conforme jurisprudência pacífica e constante Designadamente, do Supremo Tribunal de Justiça – Acórdãos respectivos de 13 de Maio de 1998; de 25 de Junho de 1998 e de 3 de Fevereiro de 1999, in, respectivamente, BMJ´s 477/263; 478/242 e 477/271., o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19 de Outubro de 1995, in Diário da República, I.ª Série – A, de 28 de Dezembro de 1995..
São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar [ditos art.ºs 403.º, n.º 1 e 412.º, n.ºs 1 e 2]. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva In “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2.ª edição, 2000, fls. 335., “Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões.”
Nesta perspectiva, porque não ocorre qualquer circunstância conducente à aludida intervenção oficiosa, vistas as conclusões apresentadas pelo recorrente, únicas questões decidendas são I) as de apurarmos qual o enquadramento jurídico-penal que há-de atribuir-se à sua comprovada conduta delitiva; II) do quantum de pena correspondente; III) do eventual apelo a uma pena de substituição (rectius de suspensão da execução da pena de prisão), e, por fim, IV) da não declaração de perda a favor do Estado do veículo de matrícula ....
Vejamos:
3.2. O primeiro segmento da irresignação do recorrente reporta-se à qualificação dos factos provados, que considera integrarem apenas a dimensão de ilicitude definida no art.º 25.º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro.
O art.º 21.º, n.º 1, do mesmo com junto de normas, define o crime de tráfico e outras actividades ilícitas sobre substâncias estupefacientes, descrevendo de maneira assumidamente compreensiva e de largo espectro a respectiva factualidade típica: «Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver [...], plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas Tabelas I a IV, é punido com a pena de prisão de 4 a 12 anos».
Tal art.º 21.º, n.º 1 contém, pois, a descrição fundamental – o tipo essencial – relativa à previsão e ao tratamento penal das actividades de tráfico de estupefacientes, construindo um tipo de crime que assume, na dogmática das qualificações penais, a natureza de crime de perigo. A lei, nas condutas que descreve, basta-se com a aptidão que revelam para constituir um perigo para determinados bens e valores (a vida, a saúde, a tranquilidade, a coesão inter-individual das unidades de organização fundamental da sociedade), considerando integrado o tipo de crime logo que qualquer das condutas descritas se revele, independentemente das consequências que possa determinar ou efectivamente determine: a lei faz recuar a protecção para momentos anteriores, ou seja, para o momento em que o perigo se manifesta.
A construção e a estrutura dos crimes ditos de tráfico de estupefacientes, como crimes de perigo, de protecção (total) recuada a momentos anteriores a qualquer manifestação de consequências danosas, e com a descrição típica alargada, pressupõe, porém, a graduação em escalas diversas dos diferentes padrões de ilicitude em que se manifeste a intensidade (a potencialidade) do perigo (um perigo que é abstracto-concreto) para os bens jurídicos protegidos. De contrário, o tipo fundamental, com os índices de intensidade da ilicitude pré-avaliados pela moldura abstracta das penas previstas, poderia fazer corresponder a um grau de ilicitude menor uma pena relativamente grave, com risco de afectação de uma ideia fundamental de proporcionalidade que imperiosamente deve existir na definição dos crimes e das correspondentes penas.
Por isso, a fragmentação por escala dos crimes de tráfico (mais fragmentação dos tipos de ilicitude do que da factualidade típica, que permanece no essencial), respondendo às diferentes realidades, do ponto de vista das condutas e do agente, que necessariamente preexistem à compreensão do legislador: a delimitação pensada para o grande tráfico (art.ºs 21.º e 22.º do Decreto-Lei n.º 15/93), para os pequenos e médios traficantes (art.º 25.º) e para os traficantes-consumidores (art.º 26.º) Cfr. v. g., Lourenço Martins, “Droga e Direito”, editora Aequitas, 1994, pág. 123; e, entre vários, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 1 de Março de 2001, na “Colectânea de Jurisprudência”, ano IX, tomo I, pág. 234, aliás, citados no acórdão desse mesmo Supremo Tribunal de Justiça, de 17 de Abril de 2008, disponível em www.dgsi.pt n.º SJ20080417005713, que acompanharemos, porquanto assaz pertinente e traduzindo a orientação jurisprudencial unânime dos nossos Tribunais Superiores.
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O art.º 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93, epigrafado de “tráfico de menor gravidade”, dispõe, com efeito, que «Se, nos casos dos artigos 21.º e 22.º a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade e as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações», a pena é de prisão de 1 a 5 anos [alínea a)], ou de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias [alínea b)], conforme a natureza dos produtos (plantas, substancias ou preparações) que estejam em causa.
Trata-se, como é entendido na jurisprudência e na doutrina V.g., o acórdão do Supremo Tribunal, cit. de 1 de Março de 2001, com extensa indicação de referências jurisprudenciais., de um tipo caracterizado por menor gravidade em razão do grau de ilicitude em relação do tipo fundamental de art.º 21.º.
Pressupõe, por referência ao tipo fundamental, que a ilicitude do facto se mostre «consideravelmente diminuída» em razão de circunstâncias específicas, mas objectivas e factuais, verificadas na acção concreta, nomeadamente os meios utilizados pelo agente, a modalidade ou as circunstâncias da acção, e a qualidade ou a quantidade dos produtos.
A essência da distinção entre os tipos fundamental e de menor gravidade reverte, assim, ao nível exclusivo da ilicitude do facto (consideravelmente diminuída), mediada por um conjunto de circunstâncias objectivas que se revelem em concreto, e que devam ser conjuntamente valoradas por referência à matriz subjacente à enumeração exemplificativa contida na lei, e significativas para a conclusão (rectius, para a revelação externa) quanto à existência da considerável diminuição da ilicitude pressuposta no tipo fundamental, cuja gravidade bem evidente está traduzida na moldura das penas que lhe corresponde. Os critérios de proporcionalidade que devem estar pressupostos na definição das penas, constituem, também, um padrão de referência na densificação da noção, com alargados espaços de indeterminação, de «considerável diminuição de ilicitude».
A diversificação dos tipos apenas conforme o grau de ilicitude, com imediato e necessário reflexo na moldura penal, não traduz, afinal, senão a resposta a realidades diferenciadas que supõem respostas também diferenciadas: o grande tráfico e o pequeno e médio tráfico. Mas estas são noções que, antes de se constituírem em categorias normativas, surgem como categorias empíricas susceptíveis de apreensão directa da realidade das coisas. A justeza da intervenção, para a adequada prossecução também de relevantes finalidades de prevenção geral e especial, justifica as opções legais tendentes à adequada diferenciação do tratamento penal entre os grandes traficantes (art.ºs 21.º, 22.º e 24.º) e os pequenos e médios (art.º 25.º), e ainda daqueles que desenvolvem um pequeno tráfico com a finalidade exclusiva de obter para si as substâncias que consomem (art.º 26.º).
A densificação da noção de “ilicitude considerável diminuída”, tendo, embora, como referências ainda a indicação dos critérios da lei, está fortemente tributária da intervenção de juízos essencialmente prudenciais, permitidos (e exigidos) pela sucessiva ponderação da praxis judicial perante a dimensão singular das casos submetidos a julgamento.
A qualificação diferencial entre os tipos base (art.º 21.º, n.º 1) e de menor intensidade (art.º 25.º) há-de partir, como se salientou, da consideração e avaliação global da complexidade específica de cada caso – em avaliação, não obstante, objectiva e com projecção de igualdade, e não exasperadamente casuística ou fragmentária.
A construção da ilicitude e a “considerável diminuição” há-de, assim, resultar da imagem global do facto no que respeita, naturalmente, à intervenção do recorrente na actividade que está em causa, e aos limites da sua intervenção no contexto que a matéria de facto revela.
A integração diferencial entre o tipo base e o tipo de ilicitude diminuída, revertendo a elementos objectivos para prevenir disfunções qualificativas ou afectação da igualdade, deve atender, essencialmente, como se referiu, a circunstâncias modeladas pelo desenho da actividade, seja no tempo, na qualidade e quantidade dos produtos, no modo de execução, no nível e intensidade da disseminação medido pelo número dos destinatários da actividade.
O acórdão recorrido, após expender iguais considerações prévias sobre a caracterização/diferenciação dos dois tipos de crime em causa, operando, escreveu:
3.2 - No caso concreto e no que respeita à qualidade do estupefaciente traficado (cocaína), trata-se de uma droga pesada e das mais perniciosas, pelo elevado grau de dependência que cria. Com efeito, a cocaína é uma “droga dura”, visto que o seu consumo causa graves danos à saúde, sujeitando o consumidor a uma forte dependência física e psíquica, provocando uma progressiva necessidade de consumo, com o consequente processo auto-destrutivo, face à perda da capacidade de determinação. Pode criar dependência em 48 horas e, ao contrário dos opiáceos, produz um efeito excitante, eliminando os mecanismos de inibição psíquica.
A quantidade de droga em apreço é já bastante significativa (com o peso líquido de 396,153g).
Relativamente aos meios utilizados e às circunstâncias da acção, o arguido A... transportou aquela quantidade de cocaína desde um grande centro urbano (Porto) até um meio mais pequeno e afastado a cerca de 80 kms de distância (Águeda), contribuindo assim para a sua disseminação, através de uma actividade intermédia do tráfico e já não situada na base da pirâmide, ocupada pelos vendedores directos aos toxicodependentes. Acresce que o arguido levou a cabo essa actividade mediante uma determinada compensação económica.
Em suma, afigura-se-nos que a conjugação destes elementos não revela uma considerável diminuição da ilicitude do facto, recaindo a conduta do arguido A... efectivamente na previsão do art.º 21.º.”
Ressalvado o empenho posto pelo recorrente na alteração desta qualificação jurídica, tendemos a estar de acordo com o consignado.
Tónica essencial da argumentação por si aduzida aquando da interposição do recurso presente no sentido em que os factos ajuizados apontam para a emergência de uma considerável diminuição da ilicitude, tal como pressuposta pelo elencado art.º 25.º, a de que não ficou feita a prova de que destinasse o produto apreendido à venda ou a cuja prática se mostrasse associado, além de não ter antecedentes criminais de relevo. Após parecer do Ministério Público nesta instância, ainda convocou o arguido, em reforço do expendido, o diminuto montante que receberia em troca do transporte (único acto praticado, realça); a confissão assumida em audiência; a pequena quantidade de estupefaciente e o carácter isolado da sua conduta.
O alegado incorre numa menor precisão factual. Na verdade, sequer na acusação se referia que o arguido destinava o produto transportado à venda, mas apenas que “O produto em causa destinava-se à venda”, circunstância esta que o arguido sabia “ser proibida” e a que “foi indiferente” (fls. 125/6) Aliás, neste sentido excessiva inclusive se mostra a menção do acórdão recorrido quando deu como facto não provado que O produto estupefaciente em causa destinava-se a ser vendido pelos próprios arguidos.
. E, nesta perspectiva, o acórdão sob censura deu como provado que
O produto estupefaciente havia sido transportado pelo arguido A... desde a cidade do Porto até Águeda, e destinava-se a ser aqui entregue por ele a terceira pessoa, a pedido de um indivíduo cuja identidade não foi possível apurar, a fim de, posteriormente, ser vendido a consumidores de estupefacientes. Ou seja, embora não imediatamente implicado na actividade da venda do produto em análise, sabia o recorrente qual o destino que lhe iria ser dado pelo terceiro a quem se destinava, e que a mesma era penalmente vedada.
Ademais, não colhe a pretensão do recorrente.
Com efeito, nas circunstâncias referidas, a sua intervenção desenha um quadro (uma “imagem global”) do facto em que se não pode considerar a projecção de ilicitude como diminuída – e “consideravelmente diminuída” – quando se tome como referência as comparações de densidade entre o tipo base e o tipo de menor ilicitude.
Os factos provados com as circunstâncias ambientais e relativas aos termos da actuação do recorrente apontam para uma imagem global do facto que, na relatividade inescapável das comparações, vai além da projecção para que está pensado o tipo de menor ilicitude que vem também revelada na moldura penal que lhe corresponde e na ideia constitucional de proporcionalidade entre os crimes e as penas.
A sua actuação contende com o potenciar da venda (porque é disso que se trata, na realidade, malgré o seu afã em querer considerar-se como mero transportador, alheio ao destino final do bem) de um produto estupefacientes de elevada densidade qualitativa – cocaína –, numa quantidade não despicienda, pois que bastante para 1.500 doses individuais Usualmente, uma dose de cocaína corresponde a ¼ de grama., que constitui uma amostragem já bem significativa da disseminação potencial em causa, sendo irrelevante a confissão, vista a sua detenção em flagrante, e sem particular relevo (no sentido pretendido de diminuição acentuada do grau de ilicitude) a quantidade que se propunha auferir com o transporte.
Na ponderação conjugada dos elementos em causa não se afasta, pois, a sua comprovada actuação do nível de ilicitude consideravelmente diminuída que constitui o pressuposto objectivo de integração no art.º 25.º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro.
Deste modo, com a decisão recorrida, reafirmamos que o recorrente praticou o crime base de tráfico por que vem condenado, p. no art.º 21.º, n.º 1 do referido diploma.
3.3. Nesta qualificação há que introduzir a segunda questão elencada, qual seja a da determinação do quantum de pena devido.
Dispõe o art.º 40.º, do Código Penal, que «A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» – n.º 1, e que «Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa» – n.º 2.
Não tendo o propósito de solucionar por via legislativa a questão dogmática dos fins das penas, a disposição contém, no entanto, imposições normativas específicas que devem ser respeitadas; a formulação da norma reveste a «forma plástica» de um programa de política criminal cujo conteúdo e principais proposições cabem ao legislador definir e que, em consequência, devem ser respeitadas pelo juiz.
A norma do art.º 40.º condensa, assim, em três proposições fundamentais o programa político criminal sobre a função e os fins das penas: protecção de bens jurídicos e socialização do agente do crime, senda a culpa o limita da pena mas não seu fundamento.
Neste programa de política criminal, a culpa tem uma função que não é a de modelar previamente ou de justificar a pena, numa perspectiva de retribuição, mas a de «antagonista por excelência da prevenção», em intervenção de irredutível contraposição à lógica do utilitarismo preventivo.
O modelo do Código Penal é, pois, de prevenção, em que a pena é determinada pela necessidade de protecção de bens jurídicos e não de retribuição da culpa e do facto. A fórmula impositiva do art.º 40.º determina, por isso, que os critérios do subsequente art.º 71º e os diversos elementos de construção da medida da pena que prevê sejam interpretados e aplicados em correspondência com o programa assumido na disposição sobre as finalidades da punição; no (actual) programa político criminal do Código Penal, e de acordo com as claras indicações normativas da referida disposição, não está pensada uma relação bilateral entre culpa e pena, em aproximação de retribuição ou expiação.
O modelo de prevenção – porque de protecção de bens jurídicos – acolhido determina, assim, que a pena deva ser encontrada numa moldura de prevenção geral positiva e que seja definida e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, porém, na feição utilitarista preventiva, ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
O conceito de prevenção significa protecção de bens jurídicos pela tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e reforço) da validade da norma violada Cfr. Figueiredo Dias, “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, págs. 227 e segs..
A medida da prevenção, que não pode em nenhuma circunstância ser ultrapassada, está, assim, na moldura penal correspondente ao crime.
Dentro desta medida (protecção óptima e protecção mínima - limite superior e limite inferior da moldura penal), o juiz, face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresentem, fixará o quantum concretamente adequado de protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder ultrapassar a medida da culpa.
Nesta dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e os critérios desse art.º 71.º têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.
Na determinação da medida concreta da pena, o tribunal está vinculado, pois, nos termos do art.º 71.º, n.º 1, a critérios definidos em função de exigências de prevenção, limitadas pela culpa do agente.
Os tráficos de estupefacientes são comunitariamente sentidos como actividades de largo espectro de afectação de valores sociais fundamentais, e de intensos riscos para bens jurídicos estruturantes, e cuja desconsideração perturba o própria coesão social, desde o enorme perigo e dano para a saúde dos consumidores de produtos estupefacientes, como por todo o cortejo de fracturas sociais que andas associadas, quer nas famílias, quer por infracções concomitantes, ou pela corrosão das economias legais com os ganhos ilícitos resultantes das actividades de tráfico.
A dimensão dos riscos e das consequências faz surgir, neste domínio, uma particular saliência das finalidades de prevenção geral – prevenção de integração para recomposição dos valores afectados e para a afirmação comunitária da validade das normas que, punindo as actividades de tráfico, protegem tais valores.
Mas também, por isso mesmo, a dimensão da ilicitude que impõe o primado das finalidades de prevenção geral tem de estar conformada pela situação concreta e pelas variadas formulações, objectivas e subjectivas, da actividade que esteja em causa.
O nível e a densidade da ilicitude constituem, nos crimes de tráfico de estupefacientes, os elementos referenciais das exigências de prevenção geral.
Mas nas exigências das finalidades das penas, a medida da intensidade da ilicitude que determina o nível adequado de prevenção, tem de ser avaliada no âmbito específico do círculo de ilicitude pressuposto no tipo de ilícito respectivo.
Nos limites da graduação da ilicitude para que está pensado o tipo base, a abranger um largo espectro de situações, a actividade do recorrente situa-se, ainda, nos limites inferiores do perímetro do art.º 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, que pela plasticidade da moldura tem vocação para acolher uma multiplicidade de casos de média e acentuada gravidade.
Neste círculo, a ilicitude apresenta-se ainda consistente com um nível inferior na relatividade do modelo, dada a singular participação do agente no transporte do produto que todavia sabia destinado ulteriormente a venda a terceiros.
A culpa já assume um grau mais acentuado, visto que o recorrente conhecia as características do produto e a danosidade que lhe está associada.
Sem particular relevo a confissão e normal a sua integração social.
Com antecedentes criminais, embora pela prática de ilícitos de natureza distinta àquele com que ora se confronta.
Nestes termos, ponderados todos estes factores para determinação da medida da pena, considera-se adequada e proporcionada, a pena de quatro anos e seis meses de prisão.
3.4. Atento o princípio constitucional da intervenção mínima do direito penal [art.º 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa], sempre a determinação de uma sentença condenatória privativa da liberdade, deverá restringir-se aos casos de manifesta necessidade, adequação ou idoneidade e proporcionalidade, respeitando-se os respectivos pressupostos e limites de não perpetuidade das penas de prisão [art.ºs 27.º, n.º 2 e 30.º, n.º 1 da mesma Lei Fundamental], bem como as finalidades da punição.
Por sua vez, visto o disposto no art.º 50.º, n.º 1, do Código Penal, “O tribunal apenas suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”
A actual redacção deste preceito, resultante da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, alterou de 3 para 5 anos de prisão aquele primeiro pressuposto objectivo ou formal, muito embora sujeite obrigatoriamente a regime de prova os períodos de suspensão superiores a 3 anos ou quando o condenado não tiver ainda completado 21 anos, à data do cometimento do correspondente crime [art.º 53.º, n.º 3, do Código Penal].
A jurisprudência tem assim vindo a acentuar, que a suspensão da pena de prisão é uma medida penal de conteúdo pedagógico e reeducativo que pressupõe uma relação de confiança entre o tribunal e o arguido, estando na sua base um juízo de prognose social favorável ao condenado Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 9 de Janeiro de 2002, e, de 18 de Outubro de 2007, in, respectivamente, recursos n.ºs 3026/01-3.ª e 3185/07. .
Tal juízo deverá assentar num risco de prudência entre a reinserção e a protecção dos bens jurídicos violados, reflectindo-se sobre a personalidade do agente, as suas condições de vida, a sua conduta ante et post crimen e sobre todo o circunstancialismo envolvente da infracção.
Daí que a suspensão da execução surja como um nítido factor de inclusão social, optando-se, ao fim e ao cabo, por manter o condenado em liberdade, ainda que limitada por certos deveres ou condições ou mesmo sujeito a regime de prova, possibilitando que se mantenham ou incrementem as condições de sociabilidade e evitando-se os riscos de fractura familiar, social ou laboral.
Assim, essa suspensão é uma nítida opção pela socialização em liberdade do condenado, sem que isso signifique que tenha de existir uma plena certeza que este venha efectivamente a reinserir-se.
Aliás, o facto de o condenado já ter anteriormente sofrido outras condenações poderá até nem ser um obstáculo à suspensão da execução da pena de prisão, principalmente quando os crimes foram todos praticados anteriormente à primeira condenação Cfr. Acórdão do mesmo STJ, de 31 de Janeiro de 2008, in CJ (S), Tomo I..
Para o efeito, será de atender que a pena de prisão suspensa, sujeita ou não a certas condições ou obrigações, é a reacção penal por excelência que exprime um juízo de desvalor ético-social e que não só antevê, como propicia ao condenado, a sua reintegração na sociedade, que é um dos vectores dos fins das penas (função de prevenção especial de reinserção ou positiva).
Porém, outros dos seus vectores é a protecção dos bens jurídicos violados (função de prevenção geral) e, naturalmente, a protecção da própria vítima e da sociedade em relação aos agentes do crime, de modo que, responsabilizando suficientemente estes últimos, se possa esperar que os mesmos não venham a adoptar novas condutas desviantes (função de prevenção especial defensiva ou negativa).
Na protecção dos bens jurídicos, será igualmente de destacar que a reacção penal a aplicar deve, tanto quanto possível, neutralizar o efeito do delito, passando este a surgir, sem sombra de dúvidas, como um exemplo negativo para a comunidade e contribuindo, ao mesmo tempo, para fortalecer a consciência jurídica da mesma (função de prevenção geral).
Pretende-se, assim, dar satisfação ao sentimento de justiça do mundo circundante que rodeia o arguido, através do mínimo de prevenção geral de defesa da ordem jurídica Acórdão do STJ de 26 de Setembro de 2007, in recurso n.º 2579/07..
Daí que, muitas vezes, e sobrepondo-se à ressocialização, seja necessária a execução de uma pena de prisão para defesa do ordenamento jurídico, designadamente quando o comportamento desviante for revelador de uma atitude generalizada e consequente de não se tomar a sério o desvalor de certas condutas relevantemente ofensivas da vida comunitária, de acordo com os princípios constitucionais relevantes de um Estado de Direito Democrático.
Será pois na dupla perspectiva de ressocialização do condenado e de tutela do ordenamento jurídico, na vertente de obtenção da paz jurídica, que deverá ser perspectivado e efectuado aquele juízo de prognose favorável à suspensão da correspondente pena de prisão.
No entanto o ponto de partida será sempre o momento da decisão condenatória e não da prática do crime, podendo circunstâncias posteriores à prática criminosa influenciar positiva ou negativamente esse juízo de prognose Acórdão do STJ de 24 de Maio de 2001, in CJ (S), II, pág. 201.
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E isto porque é no momento em que se procede a julgamento que se poderá antever se a suspensão poderá ou não favorecer a integração do arguido na sociedade, sem pôr em causa as finalidades político-criminais de aplicação das penas.
Isto é, e em resumo, para aplicação da pena de substituição em causa é necessário, em primeiro lugar, que a pena de suspensão da execução da prisão não coloque irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias, ou seja, o sentimento de reprovação social do crime ou sentimento jurídico da comunidade; em segundo lugar, é necessário que o tribunal se convença, face à personalidade do arguido, comportamento global, natureza do crime e sua adequação a essa personalidade, que o facto cometido não está de acordo com essa personalidade e foi simples acidente de percurso, esporádico, e que a ameaça da pena, como medida de reflexos sobre o seu comportamento futuro evitará a repetição de comportamentos delituosos.
Como vem sendo enfaticamente salientado pelo Supremo Tribunal de Justiça, na concretização da pena nos crimes de tráfico de estupefacientes deve-se atender a fortes razões de prevenção geral impostas pela frequência desse fenómeno e das suas nefastas consequências para a comunidade Cfr., entre muitos outros, o seu acórdão datado de 4 de Junho de 2009, publicado na CJ (STJ), XII, II, 221..
Com efeito, os últimos dados conhecidos, fornecidos pelo Instituto Nacional de Estatística, referem um aumento constante, desde o ano de 2006, do número de mortes ocorridas por uso de drogas, em especial por overdose.
Por outro lado, o número de condenações no âmbito da Lei da Droga mantém-se elevado, bem como o número de reclusos detidos por tráfico.
De acordo com o relatório de 2009 do Instituto da Droga e da Toxicodependência, naquele ano registaram-se 1360 processos-crime findos, envolvendo 2000 pessoas, tendo sido condenadas 1684, 82% por tráfico, 17% por consumo e 1% por tráfico-consumo. No final de 2009 estavam presas 2026 pessoas condenadas por tráfico, mais 10% que no ano de 2008, representando 23% da população prisional.
Ademais, o consumo de drogas duras, concretamente de cocaína, para além de afectar a pessoa do consumidor, produz efeitos colaterais graves, gerando a desorganização social e a necessidade de assistência médica Cfr., Fernando Sequeros Sazatornil, El Trafico de Drogas Ante El Ordenamiento Jurídico (2000), 87/88., constituindo um dos factores criminógenos mais importantes, sendo causador da maior parte da criminalidade violenta contra a propriedade Cfr., Arroyo Zapatero, “Aspectos penales del tráfico de drogas”, Poder Judicial n.º 11, Junho de 1984, 22, tal como o anterior citado no Ac. do Supremo Tribunal de Justiça prolatado no processo n.º 335/06.9 JACBR.C1.S1, a 14 de Setembro de 2011, relatado pelo Ex.mo Conselheiro Oliveira Mendes..
As necessidades de prevenção geral impõem, pois, uma resposta punitiva firme, única forma de combater eficazmente o tráfico.
Neste contexto, só em casos ou situações em que a ilicitude do facto se mostre diminuída e o sentimento de reprovação social se mostre esbatido, será admissível o uso do instituto da suspensão da execução da pena de prisão Entendimento sufragado pelo STJ, v.g., nos seus acórdãos de 07.09.27, 07.10.03, 07.11.14 e de 07.11.15, proferidos no Recursos n.ºs 3297/07, 2701/07, 3410/07 e 3761/07, respectivamente..
Aliás, o crime matriz de tráfico foi balizado em matéria de punibilidade pelo legislador de 1993 de modo a impedir a aplicação de pena de suspensão da execução da prisão, o que foi alcançado mediante a fixação do limite mínimo da pena aplicável em 4 anos de prisão Ao tempo a pena de suspensão da execução da prisão só era admissível para penas aplicadas em medida não superior a 3 anos de prisão.


, sendo certo que as circunstâncias que conduziram o legislador penal àquela solução, decorrentes das necessidades de prevenção geral, se mantêm integralmente, quando não acentuado.
Discorrendo sobre a concreta questão, anotou o acórdão recorrido, que:
3.2 - Os antecedentes criminais do arguido, que em 2002 e em 2007 viu serem-lhe suspensas duas penas de prisão de 2 anos e de 7 meses de prisão, para além de também já ter sofrido mais duas condenações, em penas de multa, não são favoráveis ao referido juízo de prognose favorável sobre o seu comportamento futuro, uma vez que aquelas condenações, particularmente as duas referidas em primeiro lugar, não foram suficientes para o afastar da criminalidade, mormente do crime agora em apreço, já de acentuada gravidade.
Acresce que a condição de toxicodependente do arguido, da qual ele ainda não se libertou, se traduz num grande factor de fragilidade, que compromete seriamente aquele mesmo juízo.
Por seu lado, a própria comunidade não aceitaria a suspensão da pena, tais as exigências de prevenção geral que se notam em relação ao tráfico de estupefacientes com o relevo e significado da conduta em apreço.
A simples ameaça de execução da pena não asseguraria o preenchimento das necessidades da punição, designadamente ao nível da prevenção geral.
Na verdade, neste campo, correr-se-ia o risco de total incompreensão dessa suspensão face à actividade desenvolvida pelo arguido, quer por parte das autoridades quer por parte da comunidade, dando-se ainda um sinal que poderia ser encarado como impunidade. A decisão de suspensão de execução da pena tratar-se-ia de uma aposta não sustentada, e que viria a ser, provavelmente contraditada pelo faço de o arguido continuar, no futuro, a consumir e a traficar droga.
Como o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo sucessivamente a afirmar, a natureza do crime de tráfico de estupefacientes, com as fortes exigências de prevenção geral que determina, não permite que a simples ameaça da prisão assegure, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição, designadamente as exigentes finalidades de prevenção geral. Na concretização da pena nos crimes de tráfico de estupefacientes deve atender-se às fortes razões de prevenção geral impostas pela frequência desse fenómeno e das suas nefastas consequências para a comunidade, sendo que só em casos ou situações especiais, em que a ilicitude do facto se mostre diminuída e o sentimento de reprovação social se mostre esbatido, será admissível o uso do instituto da suspensão da execução da pena de prisão.
A suspensão da execução da pena nos casos de tráfico comum e de tráfico agravado de estupefacientes em que não se verifiquem razões ponderosas, seria atentatória da necessidade estratégica nacional e internacional de combate a esse tipo de crime, faria desacreditar as expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada e não serviria os imperativos de prevenção geral.
Nestes termos, estando-se perante crime de tráfico de estupefacientes, consubstanciado no transporte desde a cidade do Porto até Águeda, de praticamente 400 g de cocaína, não se tratando de situação de menor ilicitude e em que o sentimento de reprovação se mostre esbatido, há que afastar a aplicação do instituto da suspensão da execução da pena.
Assim, afigura-se-nos não estarem reunidas as condições para suspender a execução da pena aplicada ao arguido A....”
Fê-lo em linha com a orientação que vimos presidir ao tipo de ilícito presente no caso sub judice, e merecendo a nossa adesão, uma vez que não estamos perante situação de menor ilicitude e em que o sentimento de reprovação se mostre esbatido, há que afastar a aplicação do instituto da suspensão da execução da pena.
3.5. Resta, desta forma, ponderar da perda (ou não) do veículo apreendido ao recorrente.
Sabe-se que o regime originário da perda de objectos constante do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, segundo o qual constituía requisito essencial da declaração de perdimento a perigosidade do objecto, perigosidade objectiva e subjectiva Era do seguinte teor o texto originário do art.º 35.º, n.º 1: «São declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infracção prevista no presente diploma ou que por esta tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas ou a ordem pública, ou oferecerem sérios risco de serem utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos»., foi alterado através da Lei n.º 45/96, de 3 de Setembro, a qual introduziu nova redacção a tal art.º 35.º, n.º 1, da Lei da Droga, amputando a sua parte final Passou o texto actual do n.º 1 do artigo 35.º a ter o teor seguinte: «São declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infracção prevista no presente diploma ou que por esta tiverem sido produzidos».
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Daí que em linha com a alteração operada, o Supremo Tribunal de Justiça haja enveredado por uma interpretação de tal preceito de acordo com a qual a perda dos objectos do crime só é admissível quando entre a utilização do objecto e a prática do crime, em si próprio ou na modalidade, com relevância penal, de que se revestiu, exista uma relação de causalidade adequada, de forma a que, sem essa utilização, a infracção em concreto não teria sido praticada ou não o teria na forma, com significação penal relevante, verificada. Trata-se de orientação que tem por fundamento a necessidade de existência ou preexistência de uma ligação funcional e instrumental entre objecto e a infracção, de sorte que a prática desta tenha sido especificadamente conformada pela utilização do objecto Cfr. acórdão respectivo de 24 de Março de 2004, proferido no processo n.º 270/04., jurisprudência que conforma o texto legal com os princípios constitucionais da necessidade e da adequação, orientação que importa sufragar, por isso, sem esquecer que há ainda que ter em atenção o princípio constitucional da proporcionalidade – citado art.º 18º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa –, princípio que preside a toda a providência sancionatória Vide sobre a aplicação do princípio da proporcionalidade ao instituto da perda de objectos em ilícito contra-ordenacional Oliveira Mendes e Santos Cabral, Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas.
Vide também a propósito do tema que vimos dilucidando o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no processo n.º 06P3664, a 13 de Dezembro de 2006, por aquele Ilustre Conselheiro Oliveira Mendes. – a significar que a perda só deve ser declarada, em regra, quando se mostre minimamente justificada pela gravidade do crime e não se verifique uma significativa desproporção entre o valor do objecto e a gravidade do ilícito Em regra, visto que perante objecto de extrema perigosidade ou perante a existência de altíssimo risco da utilização daquele para a prática de outros crimes, poderá o julgador declarar a sua perda independentemente da existência de proporção entre o valor do objecto e a gravidade do ilícito, devendo para tanto sopesar, de acordo com um prudente juízo, os valores e interesses em conflito.
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Do exame da decisão proferida sobre a matéria de facto decorre que o veículo automóvel de matrícula ..., pertença do recorrente, aquando da respectiva apreensão, era por si próprio conduzido, detendo o arguido num saco de plástico com quatro embalagens acondicionadas, 396,153 gramas de cocaína, isto além de outros bens que importa aqui menosprezar.
Ora, perante a singeleza deste factualismo há que considerar inexistir qualquer ligação funcional ou instrumental entre o automóvel do recorrente e o crime de tráfico perpetrado que perpetrou, uma vez que entre a utilização daquele bem e a prática do ilícito não se verifica uma relação de causalidade adequada, consabido que sem a utilização do veículo a infracção teria sido praticada na mesma.
Com efeito, a quantidade de cocaína que o arguido tinha consigo podia ser por ele transportada por qualquer outro meio de transporte.
Entendimento concordante com o expendido num recente aresto deste Tribunal da Relação de Coimbra In processo n.º 2.965/11.8 TAVNG.C1, de 5 de Janeiro pretérito, sendo Relatora a Ex.ma Desembargadora Elisa Sales, acessível em www.dgsi.pt/jtrc., no qual se anotou:
No caso vertente, como resultou provado, muito embora o arguido João Pedro tenha conduzido a sua viatura até Coimbra, transportando na mesma as substâncias estupefacientes que vieram a ser apreendidas, condução essa que terá facilitado a deslocação, tornando-a também mais cómoda, discordamos que a viatura seja instrumento do crime, e que exista uma relação de causalidade entre a sua utilização e a prática do crime, como foi considerado pelo tribunal a quo.
Com efeito, o produto apreendido, atendendo ao seu peso e volume, era facilmente transportável, por qualquer outra forma, não sendo a utilização da viatura essencial para o cometimento do ilícito. Não foi pois, a viatura indispensável ao transporte ou à ocultação de tal produto, constituindo apenas mero meio de transporte do seu proprietário, o arguido João Pedro.”
Assim sendo, não se verificando aquele pressuposto do perdimento há que conceder provimento ao recurso neste circunspecto.
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IV – Decisão.
São termos em que decidimos considerando todo o exposto:
1. Conceder provimento parcial ao recurso do arguido A... e, em consequência, alterar a decisão recorrida no que se refere à medida da pena que lhe foi imposta, fixando-se agora a mesma em 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão.
2. Revogar o acórdão recorrido na parte em que declarou perdido a favor do Estado o veículo automóvel apreendido á ordem dos autos, com a matrícula ..., o qual deverá ser entregue ao recorrente.
Sem custas.
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Coimbra, 7 de Março de 2012-03-01