Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
825/15.2T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: RECURSO
PARTE VENCIDA
LEGITIMIDADE
PLURALIDADE SUBJECTIVA SUBSIDIÁRIA
Data do Acordão: 04/04/2017
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JC CÍVEL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: RECLAMAÇÃO
Decisão: INDEFERIDA
Legislação Nacional: ARTS.39, 631 CPC
Sumário: 1.- No conceito de parte vencida, previsto no art. 631º, nº 1, do NCPC, para efeito de legitimidade de recurso, a lei consagrou um critério material de legitimidade para recorrer, ou seja, a parte afectada objectivamente pela decisão, e não meramente um critério de legitimidade formal, em que não se obteve o que se pediu ou requereu;

2.- Se a A. formulou o mesmo e único pedido contra um réu, e subsidiariamente contra outro réu, nos termos do art. 39º, nº 1, 1ª parte, do NCPC, e a sentença condena quantitativamente no pretendido o segundo réu, absolvendo o primeiro, não tem a A. legitimidade para recorrer, pretendendo que se mantenha o quantitativamente decidido mas que seja condenado o primeiro réu em vez do segundo.

Decisão Texto Integral:






                                        É de considerar que:

1. As AA A (…), SA, e S (…) Lda, intentaram acção declarativa de condenação contra F (…), S.A., e L (…), pedindo que se condene a R. F (…)a pagar à 1ª A. a quantia de 119.815,09 €, e a pagar à 2ª A. a quantia de 129.031,24 € (acrescidas de juros, à taxa legal de 4 %, desde a citação e até integral pagamento); subsidiariamente, que se condene o R. L (…) a pagar a cada uma das AA as referidas quantias (acrescidas dos apontados juros).

2. A final foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a acção e, consequentemente:

- Condenou o réu L (…)a pagar à A. (…), a quantia de 119.815,09 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a citação e até integral pagamento;

- Condenou o réu L (…) a pagar à A. S (…), a quantia que vier a ser liquidada quanto ao ressarcimento do dano respeitante às peças e acessórios descritos no ponto 39. dos factos provados, até ao limite de 109.267,25 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a citação e até integral pagamento;

- Absolveu a R. F (…) do pedido, e absolveu o R. L (…) do demais contra si peticionado.

3. As AA interpuseram recurso pedindo que seja antes condenada a R. F (…), nos exactos termos ordenados, sem prejuízo de caso o recurso seja julgado improcedente ser mantida a condenação do réu L (…) nos termos da sentença recorrida.

4. Por se entender que tal recurso não seria admissível, foram ouvidas as partes. Só a R. F (…) se pronunciou, advogando a não admissibilidade do recurso.

Foi proferido despacho, pelo relator, que não admitiu o recurso.

5. As AA reclamaram para a conferência, pedindo seja admitido o recurso, com o único argumento de que o pedido formulado contra a F (…) é principal e o formulado contra o L. (…)é subsidiário, pelo que ficou vencida com a decisão proferida na 1ª instância.

A F (...) respondeu, pugnando pela manutenção do decidido.

6. No despacho reclamado escreveu-se o seguinte (transcrição integral):

“3. Cada uma das AA formulou o mesmo pedido – embora em montantes diferentes – contra a F (…) e contra o réu F (…), este ao abrigo da pluralidade subjectiva subsidiária, prevista no art. 39º do NCPC.

A sentença reconheceu e satisfez integralmente o pedido da A (…) e quase integralmente o pedido da S(…), sendo condenado o réu F (…)e absolvida a F (…).

As AA interpuseram recurso, pedindo a condenação da F (…), ao abrigo do art. 635º, nº 2, do NCPC, que todavia é norma inaplicável, pois reporta-se à delimitação objectiva da decisão quando esta contenha decisões distintas, o que não é manifestamente o caso dos autos.

Considera-se que as AA formularam um só e mesmo pedido contra os RR. Não se pode falar, pois, em pedidos subsidiários (art. 555º do NCPC).

Considera-se que as AA recorrem da parte dispositiva da sentença e que as mesmas alcançaram o que pediram – a A (…) na íntegra, a S (…) quase na íntegra -, sendo certo que em recurso pretendem seja mantida na totalidade a aludida condenação.

Desta condenação apenas é diferente a parte subjectiva, pois as AA tanto queriam a condenação de uma ré ou do outro réu, embora preferissem a condenação da F (…) em 1º lugar.

Tendo em consideração o conceito de parte vencida, previsto no art. 631º, nº 1, do NCPC, as AA não ficaram vencidas no que foi decidido.

Na verdade, vencido significa aqui afectado objectivamente pela decisão. E afectado na lição de Castro Mendes (Recursos, Ed. AAFDL, 1980, pág. 12), quer dizer quem não obteve a decisão mais favorável aos seus interesses.

Ou como explica A. Reis (CPC Anotado, Vol. V, pág. 266), é a parte prejudicada com a decisão. 

Ora, no direito nacional consagrou-se um critério material de legitimidade para recorrer, e não meramente um critério de legitimidade formal, em que não se obteve o que se pediu ou requereu. Coincidindo de modo geral ambos os critérios, pode não ser assim, em face das circunstâncias do caso concreto. Por exemplo, se forem formulados pedidos alternativos, fundados em mais que um fundamento é indiferente que tenha sido acolhido um ou outro, ainda que o autor tenha invocado um como principal e o outro como subsidiário.

O que verdadeiramente e decisivamente conta é, assim, o prejuízo causado pela decisão desfavorável (vide L. Freitas, CPC Anotado, Vol. 3º, T. I, 2ª Ed., nota 2. ao artigo 680º do anterior CPC, pág. 25/26 e Ac. do STJ de 15.1.2004, Proc.03B3904, em www.dgsi.pt).

Do exposto, resulta que as AA não têm legitimidade para pedir que em vez do réu F (...) seja condenada a F (...) , pois o seu único e mesmo pedido mostra-se reconhecido e satisfeito, tanto que pretendem que em recurso o ordenado quantitativamente no segmento decisório seja mantido (aliás a ser condenada a F (...) o réu F (...) teria de ser absolvido).

Nem se percebendo, aliás, o interesse em agir das AA contra a F (...) , preferindo que esta seja condenada em vez do réu F (...) , pois estão satisfeitas com o alcançado na decisão recorrida, nem sequer tendo dado uma única explicação que fosse, nas suas alegações de recurso, para tal preferência. 

4. Decisão

Pelo exposto, nos termos dos arts. 652º, nº 1, b), e 655º, nº 1, do NCPC, não admito o recurso das AA.”  

7. Entendemos ser de manter o despacho reclamado, pelas razões de direito nele explanadas e interpretação que leva a cabo.

Em face do teor da reclamação apresentada, apenas cabe salientar e repetir que as AA, ao contrário do que defendem, não formularam um pedido principal e outro subsidiário, tal como são pressupostos nos termos do art. 554º do NCPC, mas, sim, objectivamente um único e mesmo pedido, a coberto do aludido art. 39º, parte inicial, do NCPC, embora com subjectividade de réus.

Por outro lado, alcançado, com a decisão recorrida, objectiva e materialmente o que queriam e que pretendiam quantitativamente fosse mantido em recurso, também não se percebe o interesse em agir em recurso contra a R. F (...) , pois não está explicada a sua preferência por tal condenação.

8. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) No conceito de parte vencida, previsto no art. 631º, nº 1, do NCPC, para efeito de legitimidade de recurso, a lei consagrou um critério material de legitimidade para recorrer, ou seja, a parte afectado objectivamente pela decisão, e não meramente um critério de legitimidade formal, em que não se obteve o que se pediu ou requereu;

ii) Se a A. formulou o mesmo e único pedido contra um réu, e subsidiariamente contra outro réu, nos termos do art. 39º, nº 1, 1ª parte, do NCPC, e a sentença condena quantitativamente no pretendido o segundo réu, absolvendo o primeiro, não tem a A. legitimidade para recorrer, pretendendo que se mantenha o quantitativamente decidido mas que seja condenado o primeiro réu em vez do segundo.

9. Decisão

Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada pelas AA, assim se mantendo o despacho reclamado.

*

Custas pelas AA/reclamantes.

*

   Coimbra, 4.4.2017

  Moreira do Carmo ( Relator )

 Fonte Ramos

Maria João Areias (vencida)

Declaração de voto:

As autoras intentaram a presente ação alegando que, na sequência da derrocada de um muro do prédio do 2º Réu, veio a ruir um dos pavilhões do prédio de que a 1ª A. é locatária e a 2ª A. é arrendatária; cada uma das autoras celebrou com a 1ª Ré F (...) um contrato de seguro cobrindo, entre outros, o risco de aluimento de terras.

Em consequência, pedem:

a) A condenação da 1ª Ré, F (...) a pagar à 1ª A. a quantia de 119,815,19 € e à 2ª A. a quantia de 129.031,04 €, acrescidas de juros desde a citação;

b) “na hipótese, que apenas se admite por mera cautela e defesa de patrocínio, de se considerar pela improcedência do pedido relativamente à Ré F (...) ”, requer então a condenação do 2º Réu F (...) no pagamento das quantias referidas em a).

A ação veio a ser julgada totalmente improcedente quanto à Ré F (...) , sendo absolvida do pedido, e procedente na sua quase totalidade relativamente ao 2º Réu, que foi condenado a pagar à 1ª A. a quantia de 119.815,09 €, acrescida de juros de mora, e ainda à 2ª A, a quantia que vier a ser liquidada até ao limite de 109.267,25 €.

Diz-se subsidiário o pedido que é apresentado ao tribunal para ser tomado em consideração somente no caso de não proceder um pedido anterior – nº1 do artigo 554º CPC.

O autor manifesta preferência pelo pedido formulado em primeiro lugar (pedido principal) e, por isso é este o pedido que, em primeiro lugar, o tribunal vai analisar e ao qual vai dar resposta, só se debruçando sobre o pedido formulado em segundo lugar (pedido subsidiário) se concluir pela improcedência do primeiro[1].

O caso em apreço configura uma situação de coligação subsidiária passiva – o pedido de condenação no ressarcimento dos danos sofridos com determinado evento é deduzido a título principal contra a seguradora (com base na existência de um contrato de seguro) e, a título subsidiário, para o caso de a sua primeira pretensão vir a improceder, contra o proprietário do prédio vizinho (com fundamento no artigo 1348º do CC). Temos assim um mesmo pedido formulado contra diferentes réus e baseado em diferentes causas de pedir.

Os recursos só podem ser interpostos por quem, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencido – nº1 do artigo 631º CPC.

A legitimidade para o recurso radica na necessidade de tutela, ou seja, na utilidade que para o recorrente, advém da procedência do recurso, cujo reverso reside no prejuízo que a decisão determina na sua esfera jurídica.

A aferição da utilidade decorrente da procedência do recurso pode concretizar-se a partir de um critério formal ou material: pelo critério formal tem legitimidade para recorrer a parte que não teve o que pediu ou requereu; pelo critério material em legitimidade para recorrer a parte para a qual a decisão for desfavorável (ou não for a mais favorável que poderia ser).

O vencimento afere-se pelo decaimento face ao pedido formulado. É parte vencida a prejudicada ou afetada pela decisão e esta é a parte que não obteve em juízo aquilo que pediu.

Como sustenta Abrantes Geraldes, o autor também deve considerar-se parte vencida quando, tendo formulado um pedido principal e um pedido subsidiário, aquele seja julgado improcedente e este procedente, na medida em que, de acordo com a ordenação por si expressa na petição inicial, a decisão não deu acolhimento ao pedido principal[2].

A pretensão formulada pelas autoras a título principal – condenação da Ré seguradora no pagamento da indemnização pelos danos sofridos pelas autoras – foi julgada improcedente.

É certo que a sentença recorrida lhes reconheceu, na sua quase totalidade, o direito ao “montante” indemnizatório por si pedido.

Contudo, na petição inicial, as autoras deixaram absolutamente claro não lhes ser indiferente que a atribuição da indemnização fosse pela via da condenação da 1ª Ré ou do 2º réu, sendo facilmente apreensível o porquê da sua preferência: atendendo aos elevados montantes em jogo, a condenação da Ré Seguradora dar-lhes-ia garantias de satisfação do crédito indemnizatório que a condenação do 2º Réu, pessoa singular, não dará.

As autoras ficaram, assim, em meu entender, parcialmente vencidas.

Já quanto à “medida” do vencimento ou da “sucumbência”, as dúvidas que se possam levantar para efeitos da admissibilidade do recurso[3], hão de ser resolvidas pelo critério previsto no artigo 629º, nº1, in fine, sendo de atender unicamente ao valor da causa[4].

Assim sendo, admitiria o recurso interposto pelas autoras.

                                                                             

Maria João Areias




[1] José Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, 2ª ed., p.259.
[2] “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina 2016-3ª ed., p.41-41. Em igual sentido se pronuncia Carla Inês Brás Câmara: “Nesta medida, o autor terá legitimidade para recorrer se viu improceder o seu pedido formulado a título principal e apenas viu proceder a pretensão formulada a título subsidiário, mas já não assim, se estiverem em causa pedidos meramente alternativos, caso em que é inferente que tenha sido acolhido um ou outro” – “Recursos em Processo Civil: Regime dos Pressupostos após a Reforma de 2007”, “As Recentes Reformas na Ação Executiva e nos Recursos”, Coimbra Editora, p.247-248, e 251, nota (185). Cfr., também, José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 3º, Tomo I, 2ª ed., Coimbra Editora, p. 26.
[3] Também nos casos de litisconsórcio, em que o pedido é o de condenação solidária de ambos os réus, se só um dos réus for condenado no pedido, não se pode dizer que o pedido foi julgado procedente na sua totalidade, embora seja difícil de quantificar a medida da sucumbência. Em situações de coligação, ativa ou passiva, José Lebre de Freitas sustenta que tem de se atender ao valor do processo correspondente a cada pedido - “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 3º, Tomo I, 2ª ed., Coimbra Editora, p.14-15.
[4] Segundo Abrantes Geraldes, nos casos de dúvida objetiva que não possa ser sanada mediante o simples confronto entre o valor de referência (metade da alçada) e o resultado declarado na sentença, vale a solução do nº1, 629, in fine, atendendo-se somente ao valor da causa – “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina 2016-3ª ed., p.41-41.