Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
222/14.7T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: AÇÃO PAULIANA
LEGITIMIDADE PASSIVA
DOAÇÃO
USUFRUTO
COMUNHÃO CONJUGAL
BENS COMUNS
SANEADOR SENTENÇA
Data do Acordão: 07/12/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JC CÍVEL - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 610, 611, 612 CC, 30, 595, 740 CPC
Sumário: 1. - Em impugnação pauliana, têm legitimidade passiva para a ação os transmitentes (doadores), ainda que algum destes não figure como devedor, e os adquirentes (donatários) no negócio que se visa impugnar, por envolver diminuição da garantia patrimonial do crédito.

2. - Se ao tempo da doação impugnada os doadores eram casados entre si no regime da comunhão geral de bens, só posteriormente ocorrendo separação de pessoas e bens entre eles, o património declarado doar fazia parte da respetiva comunhão conjugal.

3. - Os doadores, por efeito da doação, transmitem a propriedade da coisa ou a titularidade do direito para os donatários, não podendo dizer que mantêm ainda “plenos direitos de propriedade” sobre os bens doados, ainda que com reserva de usufruto, simultâneo e sucessivo.

4. - Se o direito de usufruto não foi objeto de partilha na subsequente separação de pessoas e bens dos doadores, continua, por isso, a constituir direito comum dos cônjuges.

5. - O preceito do art.º 740.º, n.º 1, do NCPCiv. permite que, em execução movida contra um só dos cônjuges, sejam penhorados bens/direitos comuns do casal, se não forem conhecidos bens suficientes próprios do executado, sendo o respetivo consorte citado para efeitos de separação de bens, sob pena de a execução prosseguir sobre os bens/direitos comuns.

6. - Mostrando-se verificados na fase do saneamento dos autos todos os pressupostos de procedência da ação pauliana e não havendo exceções a decidir que obriguem à produção de provas, é caso de conhecimento imediato de meritis, observado o princípio do contraditório.

Decisão Texto Integral:







Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:


***

I – Relatório

Banco (…) S. A.”, com os sinais dos autos,

intentou ([1]) ação declarativa condenatória, com processo comum, contra

1.ºs – CA (…)  e CM (…),

2.º - CF (…)

3.ª – E (…) e

4.º - CP (…), todos também com os sinais dos autos,

pedindo que seja decretada a ineficácia em relação a si da alienação dos prédios que identifica, condenando-se os RR. a reconhecerem ao A. o direito de executar tais imóveis no património daqueles (aludiu aos 1.ºs e 2.º), para pagamento do seu crédito (quantias peticionadas em duas ações executivas).

Para tanto, alegou, em síntese, que:

- celebrou com a sociedade “F (…), Lda.” um denominado “contrato de empréstimo”, no montante de € 100.000,00, dois “contratos de abertura de crédito em conta corrente”, até ao limite de € 100.000,00, cada um, e um “contrato de remessa de exportação”, este até ao montante de € 150.000,00;

- e celebrou com a sociedade “I (…)Lda.” um “contrato de abertura de crédito em conta corrente”, até ao limite máximo de € 100.000,00;

- para garantia do cumprimento das responsabilidades emergentes desses contratos, as referidas sociedades entregaram ao A. livranças em branco, avalizadas pelos 1.º e 2.º RR., as quais tal A. preencheu em consequência do incumprimento e resolução dos referidos contratos, instaurando ações executivas para obter o pagamento coercivo da importância global de € 205.339,25;

- nestas execuções não foram encontrados bens (da titularidade das ditas sociedades ou dos referidos RR.) suficientes para pagamento do crédito;

- porém, após o incumprimento contratual, os 1.ºs e 2.º RR. doaram à 3.ª R. e ao 4.º R. diversos imóveis, reservando para si o respetivo direito de usufruto, doações que o A. impugna, por envolverem perda da garantia patrimonial do seu crédito (art.º 610.º do CCiv.), visando a ineficácia dessas transmissões em relação a si, para execução dos respetivos bens no património daqueles RR. até satisfação do seu crédito.

Contestou a 1.ª R., CM (…), excecionando a sua ilegitimidade e impugnando diversa factualidade alegada pelo A. – afirmou encontrar-se separada judicialmente de pessoas e bens, nunca ter mantido qualquer relacionamento com o A., manter a livre disponibilidade sobre o seu património e desconhecer, sem dever de conhecer, a relação controvertida entre A. e demais RR. –, de molde a concluir pela sua absolvição da instância e pela improcedência da ação.

Também os demais RR. contestaram (estes conjuntamente), alegando:

- não invocar o A. a impossibilidade de ressarcimento do seu crédito;

- ter o 1.º R. marido doado os imóveis aos seus descendentes, por sofrer de doença grave e pretender aproveitar regime fiscal favorável, motivando-se o 2.º R. no facto de trabalhar em país (Bósnia) fustigado pelas minas terrestres e temer pela sua vida;

- residirem os 3.ª e 4.º RR. na Suécia, desconhecendo a situação financeira dos demais RR.;

- inexistir dolo na transmissão dos imóveis, antes litigando o A. de má-fé, devendo ser condenado, por isso, em multa e indemnização, enquanto a ação deve improceder.

Observado o princípio do contraditório – quanto à matéria de exceção invocada e quanto à discussão de facto e de direito na perspetiva do imediato conhecimento de meritis –, vieram as partes manter as posições veiculadas em sede de articulados, concluindo os 1.º, 2.º, 3.ª e 4.º RR. por deverem os autos prosseguir para produção de provas.

Porém, dispensada a audiência prévia e saneado o processo – foi julgada improcedente a deduzida exceção de ilegitimidade passiva –, conheceu-se imediatamente de facto e de direito, proferindo-se saneador-sentença, com o seguinte dispositivo:

«(…) julgo procedente, por provada, a presente ação e, em consequência:

a) declaro ineficaz, em relação ao autor, (…) o contrato de doação celebrado em 13 de junho de 2012 entre os 1.ºs réus, CA (…) e CM (…), na qualidade de doadores, e a 3.ª ré, E (…), e o 4.º réu, CP (…), na qualidade de donatários;

b) declaro ineficaz, em relação ao autor, (…) o contrato de doação celebrado em 13 de junho de 2012 entre o 2.º réu, CF (…), e a 3.ª ré, E (…)

c) declaro ineficaz, em relação ao autor, (…) o contrato de doação celebrado em 13 de junho de 2012 entre o 2.º réu, CA (…) e o 4.ª réu, CP (…)

d) condeno os réus, (…), a reconhecer ao autor, (…) o direito de executar os imóveis objeto desses contratos de doação no património da 3.ª ré, E (…) e do 4.º réu, CP (…) até ao limite do seu crédito, de 205.339,25€ (…) e juros legais.» (sic, fls. 815, com negrito retirado).

Inconformada, recorre apenas a 1.ª R., apresentando alegação e as seguintes

Conclusões

(…)

O A. contra-alegou, pugnando, por sua vez, pela improcedência do recurso e confirmação do julgado.


***

O recurso foi admitido como de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, tendo neste Tribunal ad quem sido mantidos o regime e o efeito fixados.

Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.


***

II – Âmbito do Recurso

Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso, nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil atualmente em vigor (doravante NCPCiv.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 ([2]) –, cabe saber ([3]):

a) Se a 1.ª R./Apelante é parte ilegítima;

b) Se a decisão proferida padece de inconstitucionalidade e ilegalidade, ao atingir o direito de propriedade da Recorrente;

c) Se o estado do processo não permitia decisão de meritis;

d) Não estando demonstrado o requisitório da impugnação pauliana.


***

III – Fundamentação

         A) Da factualidade julgada provada

Na 1.ª instância foram considerados provados os seguintes factos:

«1.º Em 19 de julho de 2011, o autor celebrou com a sociedade “F (…) Lda.” o “contrato de empréstimo” com o n.º 44-00052-64, nos termos do qual aquele concedeu a esta um empréstimo no montante de 100.000,00€ – cfr. documento de fls. 29 a 34, cujo teor aqui dou por integralmente reproduzido.

2.º Para garantia do pagamento do capital, juros, comissões e demais encargos resultantes desse contrato, a sociedade “F (…), Lda.” entregou ao autor uma livrança avalizada pelo 1.º e 2.º réus – cfr. “cláusula adicional” do mesmo documento.

3.º Por documento denominado de “contrato de abertura de crédito em conta corrente” com o n.º 050-00074-96, datado de 29 de julho de 2011, o autor declarou abrir a favor da sociedade “F (…) Lda.” um crédito até ao limite máximo de 100.000,00€ – cfr. documento de fls. 35 a 40, cujo teor aqui dou por integralmente reproduzido.

4.º Para garantia do pagamento do capital, juros, comissões e demais encargos resultantes desse contrato, a sociedade “F (…) Lda.” entregou ao autor uma livrança avalizada pelo 1.º e 2.º réus – cfr. “cláusula adicional” do mesmo documento.

5.º Por documento denominado de “abertura de crédito em conta corrente” com o n.º 462750550000493, datado de 25 de fevereiro de 2010, o autor declarou abrir a favor da sociedade “F (…), Lda.” um crédito até ao limite máximo de 100.000,00€ – cfr. documento de fls. 41 a 46, cujo teor aqui dou por integralmente reproduzido.

6.º Para garantia do pagamento das obrigações emergentes desse contrato, a sociedade “F (…), Lda.” entregou ao autor uma livrança avalizada pelo 1.º e 2.º réus – cfr. “declaração do(a/s) avalista(s)” do mesmo documento.

7.º Para garantia do cumprimento das obrigações constituídas ou a constituir junto do autor, emergentes do limite para desconto de remessas de exportação, até ao montante de 150.000,00€, contratado em 25 de julho de 2011, bem como das renovações ou prorrogações, a sociedade “F (…), Lda.” entregou ao autor uma livrança avalizada pelo 1.º e 2.º réus – cfr. “autorização” de fls. 47 a 50, cujo teor aqui dou por integralmente reproduzido.

8.º Em face no não pagamento das obrigações emergentes dos citados contratos a partir de março de 2012, o autor procedeu ao preenchimento das livranças e instaurou execução contra, além do mais, o 1.º réu, para cobrança coerciva do seu crédito - cfr. requerimento executivo de fls. 52 a 56 e informação de fls. 777 a 780, cujo teor aqui dou por integralmente reproduzido.

9.º Por documento denominado de “contrato de abertura de crédito em conta corrente” com o n.º 050-00078-88, datado de 30 de setembro de 2011, o autor declarou abrir a favor da sociedade I (…)a, Lda.” um crédito até ao limite máximo de 75.000,00€ – cfr. documento de fls. 58 a 63, cujo teor aqui dou por integralmente reproduzido.

10.º Para garantia do pagamento do capital, respetivos juros, comissões e demais encargos resultantes desse contrato, a sociedade “I (…) Lda.” entregou ao autor uma livrança avalizada pelo 1.º e 2.º réus – cfr. “cláusula adicional” do mesmo documento.

11.º Em face do incumprimento deste contrato a partir de março de 2012, o autor procedeu ao preenchimento da livrança, pelo valor de 86.672,39€, e instaurou execução contra, além do mais, o 1.º e 2.º réus, para cobrança coerciva desse montante e legais acréscimos – cfr. certidão judicial de fls. 253 a 750, cujo teor aqui dou por integralmente reproduzido.

12.º A dívida do 1.º e 2.º réus ao autor ascende a 205.339,25€.

13.º No dia 13 de junho de 2012, os 1.ºs réus declararam doar à 3.ª ré e ao 4.º réu:

- a fração autónoma identificada sob a letra “N”, correspondente a 1.º andar destinado a habitação, descrita na Conservatória do Registo Predial de Alcobaça sob o n.º 1621/19921110-N;

- 1/35 indiviso do prédio urbano composto de edifício constituído por casa do guarda, casas de banho e arrecadações, descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcobaça sob o n.º 1623/19901122 - cfr. “título de doação” de fls. 86 a 91 e certidões prediais de fls. 92 a 110, cujo teor aqui dou por integralmente reproduzido.

14.º No dia 13 de junho de 2012, o 2.º réu declarou doar à 3.ª ré o prédio urbano, composto de parcela de terreno para construção, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Leiria sob o n.º 5737/20040326 - cfr. “título de doação” de fls. 111 a 113 e certidão predial de fls. 234 a 237, cujo teor aqui dou por integralmente reproduzido.

15.º No dia 13 de junho de 2012, o 2.º réu declarou doar ao 4.º réu o prédio urbano, composto de parcela de terreno para construção, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Leiria sob o n.º 5736/20040326 - cfr. “título de doação” de fls. 116 a 118 e certidão predial de fls. 119 e 120, cujo teor aqui dou por integralmente reproduzido.».

B) Da (i)legitimidade da 1.ª R./Apelante

Esgrimiu a 1.ª R./Recorrente, na sua contestação, encontrar-se separada do 1.º R., judicialmente de pessoas e bens – sem precisar a data respetiva –, sendo totalmente alheia ao A. e ao relacionamento comercial dos autos, nunca ter mantido relacionamento com tal A., sendo que mantém a livre disponibilidade sobre o seu património, desconhecendo a relação controvertida, assim concluindo pela sua ilegitimidade e decorrente absolvição da instância.

Com tal contestação juntou documentos da Conservatória do Registo Civil de Viseu ([4]), de que resulta que a 1.ª R. contraiu casamento com o 1.º R. em 19/07/1964, no regime da comunhão geral de bens, sendo a respetiva separação de pessoas e bens, por mútuo consentimento, decretada em 04/07/2013, não constando, naturalmente, da respetiva relação de bens a partilhar os declarados doar (i) «fração autónoma identificada sob a letra “N”, correspondente a 1.º andar destinado a habitação, descrita na Conservatória do Registo Predial de Alcobaça sob o n.º 1621» e (ii) «1/35 indiviso do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcobaça sob o n.º 1623», pois que anteriormente objeto de transmissão a outrem (por ambos os 1.ºs RR.), ainda na pendência/constância da comunhão conjugal, em 13/06/2012 (declaração de doação aos 3.ª e 4.º RR.) ([5]).

Assim sendo, é líquido que ao tempo das declarações de transmissão dos 1.ºs RR. (doação dos dois imóveis primeiramente aludidos, a favor dos 3.ª e 4.º RR.), eram eles casados entre si no regime da comunhão geral de bens, pelo que tal património declarado doar fazia, naturalmente, parte da comunhão conjugal de ambos (cfr. art.º 1732.º do CCiv.), nada se mostrando em contrário.

Por isso, ambos se apresentaram a transmitir gratuitamente esses bens para os 3.ª e 4.º RR., só mais de um ano depois ocorrendo a sobrevinda separação de pessoas e bens.

Na decisão recorrida, a propósito da questão da (i)legitimidade, expendeu-se:

«Ser parte legítima (passiva) na ação é ter poder de dirigir a defesa oponível com a pretensão deduzida em juízo, por outras palavras, é ser a pessoa que pode opor-se à procedência da pretensão, por a sua esfera jurídica ser diretamente atingida pela providência requerida (artigo 30.º, n.ºs 1 e 2, do Novo Código de Processo Civil).

O artigo 30.º, n.º 3, do Novo Código de Processo Civil determina que, na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida tal como a mesma é configurada pelo autor.

Visto o que em teoria deve considerar-se e compulsada a petição inicial, o certo é que o autor articula a matéria factícia que constitui a causa de pedir tendo por referência que a 1.ª ré mulher é titular da relação material controvertida, porque responsável pessoal pelos atos (doações) que visaram impedir a satisfação do seu crédito.

Se assim é, a questão da efetiva existência do direito invocado pelo autor deve ser colocada no âmbito da apreciação do mérito da ação, não devendo ser colocada no quadro do pressuposto processual da legitimidade passiva para a ação.».

E parece claro, salvo o devido respeito, que nada há a censurar nesta parte à decisão recorrida, se atendermos aos critérios legais em matéria de legitimidade processual.

Com efeito, estamos no âmbito de ação de impugnação pauliana, em cujo âmbito se pretende impugnar, para além do mais, as duas aludidas transmissões patrimoniais efetuadas pelos 1.ºs RR. a expensas da sua então comunhão conjugal, tendo declarado doar dois imóveis integrantes do então património comum.

Assim, questionadas tais transmissões realizadas, conjuntamente, por ambos os 1.ºs RR., com vista à peticionada declaração de ineficácia em relação ao A., para o efeito pauliano desejado por tal A./credor, não poderia a ação deixar de ser intentada contra ambos os transmitentes, sob pena – aí, sim – de ilegitimidade passiva, por falta de um deles na lide, cujo efeito jurídico pretendido a ambos terá, em caso de procedência da impugnação, de vincular, sem o que não se alcançaria o necessário efeito útil normal.

Donde, pois, que, neste contexto, não fizesse sentido, ante os pedidos da ação, a levantada questão recursória de ilegitimidade da R./Apelante, pois que para tais pedidos têm todos os RR. legitimidade ([6]), como decidido aquando do saneamento do processo, de nada servindo à Recorrente insistir na sua ilegitimidade, que, na verdade, não faz sentido invocar.

Improcedem, pois, salvo o devido respeito, as conclusões em contrário da Recorrente.

C) Da inconstitucionalidade e ilegalidade da decisão, por atingimento do direito de propriedade da Recorrente

Embora na sua contestação a 1.ª R./Apelante se tenha limitado a uma defesa por exceção dilatória de ilegitimidade passiva (invocou apenas a sua ilegitimidade para a causa), sabendo que nesse articulado devia concentrar toda a sua defesa, sob pena de preclusão de outros meios de defesa/exceções que pretendesse invocar posteriormente, exceto se de conhecimento oficioso do Tribunal (cfr. art.º 573.º, n.ºs 1 e 2, do NCPCiv.), já na sua peça recursória vem suscitar diversas questões, quer referentes a si, quer referentes aos demais RR., estes nem sequer recorrentes.

Assim, começa a Apelante por invocar o seu direito de propriedade, que considera atingido pela decisão recorrida quanto aos dois imóveis em que foi doadora, defendendo que “tem plenos direitos de propriedade” sobre os bens “que foram objeto dos contratos de doação referidos nos autos”, sendo que nada deve ao A., nem é executada em qualquer processo.

Ora, desde logo, cabe dizer que a Recorrente já não “tem plenos direitos de propriedade” sobre os dois imóveis de que era titular com o 1.º R. e que integravam a comunhão conjugal de ambos, pela simples razão de que, como vem provado – sem controvérsia –, os declarou doar (com o 1.º R.) aos 3.ª e 4.º RR., assim os transmitindo a estes (embora com reserva de usufruto, simultâneo e sucessivo, para a parte doadora), anteriormente à separação ocorrida de pessoas e bens entre tais doadores, sendo certo que da posterior separação de bens entre os cônjuges nada resulta no sentido de a Apelante permanecer com direitos sobre tais imóveis (da relação de bens e acordo de partilha juntos aos autos, como exarado nos aludidos documentos de fls. 167 v.º a 173, apenas constam duas verbas como integrantes do património conjugal – o prédio urbano descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Leiria sob o n.º 7427/20130529 e um veículo automóvel –, que, na partilha, ficaram “atribuídos ao cônjuge mulher”, e nada mais.

Assim, a partilha é omissa quanto ao aludido “usufruto, simultâneo e sucessivo, para a parte doadora”, donde que, salvo o devido respeito, haja de concluir-se que continua a tratar-se de direito comum dos 1.ºs RR., pois que não se mostra que haja sido objeto de qualquer partilha (cfr. art.ºs 1439.º a 1444.º do CCiv.), sendo, porém, claro que a nua propriedade já não pertence aos doadores desde que foi outorgada a doação.

Acresce que o preceito do art.º 740.º, n.º 1, do NCPCiv. permite mesmo que, em execução movida contra um só dos cônjuges, se penhore bens/direitos comuns do casal, se não forem conhecidos bens suficientes próprios do executado, sendo o respetivo consorte citado para efeitos de separação de bens, sob pena de a execução prosseguir sobre os bens comuns.

No caso, não sendo o património doado já bem comum, à exceção do dito direito de usufruto, só a Apelante e marido saberão dos motivos da não partilha, de si possível, do direito de usufruto, de modo a que ficasse a caber apenas a um deles (já que não se trata de direito inegociável, como resulta do disposto no art.º 1444.º, n.º 1, do CCiv.).

Assim sendo, falha – com o todo o devido respeito – a argumentação da Recorrente no sentido de haver obstáculo à ação pauliana decorrente de direito seu de propriedade plena, que houvesse sido atingido quanto aos dois imóveis previamente por si alienados.

Conhecida a regra nemo plus juris in alium transfere potest quam ipse, vale aqui uma formulação de algum modo paralela, pelo que ninguém que transmita direitos para outrem pode continuar, uma vez transferidos, a entendê-los como próprios (seus), como se a transmissão operada não existisse ou não produzisse efeitos jurídicos ([7]).

Inexiste, pois, a nosso ver, violação do direito de propriedade, seja no plano constitucional ou civilístico, podendo, eventualmente, a Apelante, se em tempo, no âmbito do respetivo processo executivo, suscitar a aplicação do disposto no art.º 740.º do NCPCiv. quanto ao não partilhado direito (comum) de usufruto, sendo que não está, obviamente, em causa o direito da parte de doar, como doou, bens/direitos integrantes do seu património, doação essa que não resulta posta em causa na sua validade, mas apenas ficando sujeita a possíveis/limitados condicionamentos de eficácia, decorrentes, todavia, de normas legais vigentes e imperativas, as dos art.ºs 610.º e segs. do CCiv., direcionadas, sob certos pressupostos, à proteção do credor que veja diminuída a garantia patrimonial do seu crédito.

D) Da necessidade de prosseguimento dos autos

Invoca a Apelante – sem impugnar a decisão da matéria de facto proferida pela 1.ª instância – necessidade de prosseguimento dos autos para produção de provas, por o estado do processo não permitir ainda o conhecimento de mérito, resultando violado, a seu ver, o disposto no art.º 595.º, n.º 1, do NCPC..

Complementa não estarem provados factos demonstrativos dos requisitos cumulativos que do art..º 610.º do CCiv., reportando-se à existência de dolo, intenção de prejudicar ou afetar os interesses do credor (al.ª a) daquele art.º), bem como à impossibilidade ou agravamento de satisfação do crédito (al.ª b) do mesmo preceito).

Importa, pois, saber se, como ajuizou, o Tribunal a quo, estão provados todos os factos de que depende a procedência da ação, ou, como defende, ao invés, a Apelante, tal não acontece, obrigando ao prosseguimento dos autos para produção de provas.

Na decisão em crise fundamentou-se assim:

«Assim e confrontando com o caso em apreço, os pressupostos da impugnação pauliana são os seguintes:

- a existência de um crédito;

O autor tinha – e tem - sobre o 1.º e 2.º réus um crédito, no valor total de 205.339,25€, titulado por livranças que estes avalizaram, para garantia do reembolso de contratos de empréstimo, de abertura de crédito em conta corrente e de remessas de exportação celebrados com duas sociedades, as quais não cumpriram as correspondentes obrigações de reembolso, dando origem ao vencimento dos contratos.

(…)

- a anterioridade do crédito em relação à celebração do ato;

O crédito do autor é anterior aos negócios impugnados.

Nos termos do disposto no artigo 28.º, §1, da Lei Uniforme Relativa a Letras e Livranças (LULL), o crédito resultante do aceite constitui-se no momento da subscrição da letra, mediante a qual o sacado se obriga a pagar a letra – e o subscritor de uma livrança é responsável da mesma forma que o aceitante de uma letra (artigo 78.º da LULL) -, e a do avalista com a prestação do aval por, como decorre do artigo 30.º do mesmo diploma, este assumir, solidariamente, a responsabilidade do pagamento do título avalizado.

Isto porque a livrança subscrita ou avalizada titula o direito nela incorporado nascido da “relação subjacente”, anterior ao preenchimento da livrança, que apenas vem corporizar nesta o anterior crédito que lhe dá origem.

Ora, como resulta dos factos provados, os contratos de doação foram celebrados em 13 de junho de 2012. Já os contratos de empréstimo, de abertura de crédito em conta corrente e de remessas de exportação datam 2010 e 2011, tendo sido nesses anos que foram entregues ao autor as livranças avalizadas pelo 1.º e 2.º réus. Tais contratos de doação são, por isso, posteriores à data constituição do crédito do autor.

- resultar do ato a impossibilidade para o credor de obter a satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade;

Os negócios em causa – contratos de doação –, na medida em que implicaram a transferência imediata da propriedade dos prédios dos 1.ºs e 2.º réus para a 3.ª e o 4.º réus (cfr. artigo 954.º, alínea a), do Código Civil), reduziram o património daqueles e, nessa medida, diminuíram a garantia geral do crédito que aqueles constituíam.

Com a transferência da propriedade dos imóveis, os 1.ºs e o 2.º réus deixaram de ser donos dos prédios em questão e os respetivos adquirentes não eram sujeitos passivos das obrigações contraídas para com o autor, portanto este viu agravada a impossibilidade de obter o pagamento do seu crédito, assim estando objetivamente prejudicado no seu direito e expectativas.

Os réus defendem-se, dizendo que o autor não demonstra a impossibilidade de ressarcimento do seu crédito, tanto assim que as execuções instaurados pelo autor ainda estão a correr termos.

Sucede que não era sobre o autor que recaía o ónus de provar a impossibilidade de obter a satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade; era aos réus (devedores e terceiros interessados na manutenção dos atos) que incumbia provar a existência de bens penhoráveis de igual ou maior valor aquando da celebração dos negócios impugnados. É o que decorre do artigo 611.º do Código Civil.

Ora, essa prova – da suficiência do património dos réus devedores – não foi feita, sendo que tal nem sequer foi alegado pelos réus nas suas contestações.

Assim, também este requisito se tem por verificado.

Como referido, se o ato impugnado tiver a natureza de ato oneroso, a impugnação só procede havendo má-fé, mas se o ato for gratuito a impugnação procede ainda que o terceiro tenha procedido de boa-fé, uma vez que o crédito é anterior ao ato.

(…)

No caso dos autos, os negócios impugnados são contratos de doação, em que os 1.ºs réus e o 2.º réu figuram como doadores e a 3.ª ré e o 4.º réu, netos e filhos daqueles, respetivamente, figuram como donatários.

Por essa razão, ou seja, por estarmos perante contratos gratuitos, não há que averiguar se os réus agiram de má-fé.».

Ora, apreciando, terá de atentar-se no disposto no aludido art.º 610.º do CCiv., que prevê os requisitos da ação pauliana.

O primeiro requisito (al.ª a) desse art.º) é o da anterioridade do crédito face ao ato de alienação patrimonial (doação).

E, como evidenciado pela 1.ª instância, a doação (datada de em 13/06/2012) é posterior ao invocado e apurado crédito do A..

Assim, tem de concordar-se que não releva para a solução do caso dos autos a verificação quanto à (in)existência de dolo, que só importaria se o crédito fosse posterior ao ato de diminuição patrimonial (doação).

Ocorrendo, pois, anterioridade do crédito face à doação, não cabe indagar do dolo na celebração desta transmissão patrimonial.

Donde que, verificado, desde já, este requisito da ação pauliana, não se justificasse omitir decisão e relegar o caso para produção ulterior de provas.

Já o segundo requisito (al.ª b) do mesmo normativo) reporta-se ao resultado para o credor traduzido na impossibilidade de satisfação integral do seu crédito ou agravamento de tal impossibilidade.

Quanto a este requisito, em sede de ónus probatório (art.º 611.º do CCiv.), quis o legislador deixar claro que:

a) Cabe ao credor a prova do montante do seu crédito; e

a) Cabe à contraparte (devedor/terceiro) a prova da existência de bens penhoráveis de igual ou maior valor.

Assim, na economia da ação e do respetivo ónus alegatório e probatório, demonstrada a existência e o montante do crédito do A., cabia aos RR. alegar, desde logo – sem o que não o poderiam provar –, existirem bens dos devedores/obrigados, penhoráveis, de igual ou maior valor.

Ora, se nada foi alegado neste sentido, nada também poderia ser provado, inexistindo motivo para abstenção de decisão imediata de fundo.

Quanto, por fim, ao requisito da má-fé, também tem razão o Tribunal a quo, pois que, sendo o ato a impugnar de natureza gratuita (como a doação dos autos), “a impugnação procede, ainda que um e outro agissem de boa fé” (art.º 612.º, n.º 1, do CCiv., reportando-se ao devedor e ao terceiro envolvidos no negócio/ato).

Em suma, estão verificados todos os requisitos de procedência da ação pauliana, motivos não havendo para relegar a decisão do caso para fase ulterior, por tal decisão não depender da produção de outras provas, não tendo sido deduzida matéria de exceção que o justificasse ou impusesse.

Donde que também não faça sentido, salvo sempre o devido respeito, esgrimir, de forma algo infundamentada e inconsequente, com princípios jurídicos, como os da audiência contraditória – as exigências do contraditório não deixaram de ser adequadamente observadas, na medida do necessário –, do ónus probatório – foi devidamente atuado, como visto –, do inquisitório e do acesso ao direitos e aos tribunais em termos de liberdade de produção de prova – integrados os pressupostos de procedência da ação e inexistindo matéria de exceção relevante a conhecer, nenhumas outras provas se impunha obter/produzir –, não podendo acolher-se a argumentação em contrário.

A apelação tem, portanto, de improceder, sendo de manter a decisão recorrida.

                                               ***

IV – Sumário (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):

1. - Em impugnação pauliana, têm legitimidade passiva para a ação os transmitentes (doadores), ainda que algum destes não figure como devedor, e os adquirentes (donatários) no negócio que se visa impugnar, por envolver diminuição da garantia patrimonial do crédito.

2. - Se ao tempo da doação impugnada os doadores eram casados entre si no regime da comunhão geral de bens, só posteriormente ocorrendo separação de pessoas e bens entre eles, o património declarado doar fazia parte da respetiva comunhão conjugal.

3. - Os doadores, por efeito da doação, transmitem a propriedade da coisa ou a titularidade do direito para os donatários, não podendo dizer que mantêm ainda “plenos direitos de propriedade” sobre os bens doados, ainda que com reserva de usufruto, simultâneo e sucessivo.

4. - Se o direito de usufruto não foi objeto de partilha na subsequente separação de pessoas e bens dos doadores, continua, por isso, a constituir direito comum dos cônjuges.

5. - O preceito do art.º 740.º, n.º 1, do NCPCiv. permite que, em execução movida contra um só dos cônjuges, sejam penhorados bens/direitos comuns do casal, se não forem conhecidos bens suficientes próprios do executado, sendo o respetivo consorte citado para efeitos de separação de bens, sob pena de a execução prosseguir sobre os bens/direitos comuns.

6. - Mostrando-se verificados na fase do saneamento dos autos todos os pressupostos de procedência da ação pauliana e não havendo exceções a decidir que obriguem à produção de provas, é caso de conhecimento imediato de meritis, observado o princípio do contraditório.

                                               ***

V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação, na improcedência da apelação, em manter a decisão recorrida.

Custas da apelação pela R./Recorrente.

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinatura eletrónica.


Coimbra, 12/07/2017

Vítor Amaral (Relator)

         Luís Cravo

         Fernando Monteiro


([1]) Em 07/10/2014 (cfr. fls. 26 dos autos em suporte de papel).
([2]) Com entrada em vigor em 01/09/2013 (cfr. art.ºs 1.º e 8.º, ambos daquela Lei n.º 41/2013).
([3]) Caso nenhuma das questões resulte prejudicada pela decisão de outras.
([4]) Cfr. documentos de fls. 167 v.º a 173 dos autos em suporte de papel.
([5]) Já os demais imóveis em causa (cfr. pontos 14. e 15. do factualismo apurado) foram transmitidos pelo 2.º R., em nada respeitando, pois, à 1.ª R./Apelante.
([6]) São, claramente, quem (também a 1.ª R./transmitente) tem interesse direto em contradizer, interesse esse que se exprime pelo prejuízo que lhes advém da procedência da ação, cabendo-lhes o interesse relevante na relação controvertida tal como configurada pelo demandante (cfr. art.º 30.º, n.ºs 1 a 3, do NCPCiv.), de molde a evitarem a procedência/condenação nos pedidos formulados, para o que terão de poder, obviamente, defender-se, por impugnação e/ou por exceção, e discutir a matéria litigiosa.
([7]) Não se percebe, na verdade, o alcance da afirmação da Recorrente no sentido de continuar a manter, “na presente data, direitos de propriedade sobre os bens que ainda lhe pertencem por direito, já que nada deve a ninguém” (cfr. art.º 11.º da alegação de recurso), esquecendo os efeitos da respetiva doação consumada, negócio jurídico de que resulta a “transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito”, para os donatários, como claramente decorre do art.º 954.º, al.ª a), do CCiv..