Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
261/19.1T8CTB-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FELIZARDO PAIVA
Descritores: TRANSAÇÃO JUDICIAL
SUA INTERPRETAÇÃO
QUANTIA INDEMNIZATÓRIA
RETENÇÃO DO IRS
Data do Acordão: 11/27/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO – JUÍZO DO TRABALHO DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 238º C. CIVIL; ARTº 1º, 2º, Nº 1, ALÍNEA A), Nº 2 E Nº 3, ALÍNEAS B) E E), E Nº 4, AL. B) DO CÓDIGO DO IRS.
Sumário: I –Estando em causa uma transação judicial, homologada por decisão transitada em julgado, na respetiva interpretação deverá atender-se ao disposto no artigo 238.º do CC, nos termos do qual, nos negócios formais, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (n.º 1), embora esse sentido, que não tenha correspondência no texto do documento, já possa valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade (n.º 2)”.
II - Nada tendo as partes mencionado quanto à natureza, líquida ou ilíquida, da quantia acordada, deve-se entender, de acordo com aqueles princípios ou regras gerais, que a quantia em questão é ilíquida, pois se as partes pretendessem que a mesma fosse líquida deveriam tê-lo mencionado expressamente.

III - Esta jurisprudência mantém inteira validade em face da actual redacção dos artº 1º, 2º, nº 1, alínea a), nº 2 e nº 3, alíneas b) e e), e nº 4, al. b) do Código do IRS, sendo que as entidades empregadoras estão obrigadas a reter o imposto devido (artº 99º, nº1, al. a) do citado código); e a compensação global não se encontra incluída nos casos previstos no artº 2º-A do CIRS que delimita negativamente os rendimentos da categoria A (rendimentos do trabalho dependente).

Decisão Texto Integral:






Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Na execução com vista ao pagamento coercivo da quantia de 5.996,84€, de que os presentes autos são apensos, em que é exequente N... e executada S..., veio aquela alegar que a executada foi condenada a pagar-lhe por sentença homologatória de transacção firmada entre as partes, uma compensação pecuniária global no valor de 20.000€, sendo que a executada apenas lhe liquidou o montante de €14.048,00.

Citada para a causa, veio a embargante deduzir os presentes embargos, alegando que liquidou efectivamente à aqui embargada a quantia de €14.048,00, e reteve na fonte a quantia de €5.952,00, a título de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, o que perfaz o valor total de €20.000,00, tendo assim cumprido o que entre as partes foi acordado.

Pede por isso que os embargos deduzidos sejam julgados procedentes, com a sua absolvição do pedido.

Notificada para o efeito, contestou a embargada exequente no sentido da improcedência dos embargos, sustentando que em termos contabilísticos, a embargante processou a referida compensação pecuniária global, que fora condenada a pagar à exequente, como sendo uma retribuição salarial mensal desta, o que não é de todo o caso, pois, a R., ora executada, foi condenada a pagar à A., ora exequente, uma compensação pecuniária global e não um vencimento de trabalho.

Pelo que, após o total descontado, no montante de €5.952,00 (cinco mil novecentos e cinquenta e dois euros) a ora exequente apenas recebeu €14.048,00 (catorze mil e quarenta e oito euros).

Ora tal processamento contabilístico não está correto e é ilegal, tendo sido aplicada a taxa de retenção de 41,3% como de uma remuneração mensal se tratasse, que não era, pois tratou-se de uma “compensação pecuniária de natureza global pela cessação do contrato de trabalho.”

II – Saneado o processo, prosseguiram os autos sem elaboração de base instrutória/temas de prova e, tendo as partes expressamente prescindido da realização da audiência de discussão e julgamento, veio a ser proferida sentença em cuja parte dispositiva se lê:

“Nestes termos, e em face do exposto, decido julgar os presentes embargos de executado totalmente procedentes e, em consequência, declaro extinta a execução e ordeno o levantamento imediato da penhora efetuada nos autos.”

III – Não se conformando com o decido veio a exequente embargada apelar alegando e concluindo:

...

Não foram apresentadas contra alegações.

Nesta Relação o Exmo. PGA emitiu parecer no sentido da improcedência da apelação.

IV. A 1ª instância deu como provada a seguinte factualidade:

1) A execução tem por base transacção celebrada em audiência de julgamento, que foi homologada por sentença.

2) Na transacção, a Trabalhadora e a Entidade Empregadora transigiram quanto ao objecto da acção como segue: “1 - A Entidade Empregadora S... reconhece a ilicitude do despedimento, com os fundamentos exarados na sentença de fls. 709 e seguintes. 2 - A Trabalhadora N... reduz o pedido para a quantia de €20.000,00 (vinte mil euros), a título de compensação pecuniária de natureza global pela cessação do contrato de trabalho. 3 - A referida quantia será paga no prazo de cinco dias, por meio de transferência bancária, para a conta da Autora, com o IBAN (…)”.

3) Assim, a aqui Executada procedeu no dia 25-09-2019 ao processamento contabilístico da compensação – cfr. Doc. 1 junto.

4) Assim, a Executada pagou à Exequente a quantia de €14.048,00 e reteve na fonte a quantia de 5.952,00, a título de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares

5) A quantia retida pela ora Executada foi entregue aos cofres do Estado em 18/10/2019 - cfr. Doc. n.º 2 junto.

6) No âmbito da Acção de Impugnação Judicial da Regularidade e Licitude do Despedimento peticionou a Trabalhadora a condenação da Entidade Empregadora: “a) A pagar à A. as retribuições que deixou de receber desde 30 dias antes da propositura da presente acção até ao trânsito da sentença que declare a ilicitude do despedimento. b) A pagar à A. a indemnização por antiguidade a que alude o n.º 3 do art.º 392º do CT, por força da norma remissiva do nº 8 do art. 63º do CT, que deve ser fixada no valor de € 8.054,00 (oito mil e cinquenta e quatro Euros). c) A pagar à Autora os créditos laborais em falta, nomeadamente as elencadas nos arts. 183º, 197º, 203º, 205º da P.I. no total de € 2.425,12 (dois mil quatrocentos e vinte e cinco Euros e doze cêntimos); d) A pagar à Autora os créditos laborais, referentes às diferenças salariais em falta das retribuições pagas a título de trabalho suplementar, trabalho em dias de descanso e feriados, cujo cálculo se relega para execução de sentença. e) A pagar à Autora da quantia de €20.000,00 (vinte mil Euros), a título de danos morais, acrescido de juros legais contados desde a citação até efectivo e integral pagamento. f) Deve a Ré ser condenada nos pagamentos à A. dos juros legais devidos nos termos do disposto no art. 269º do Código do Trabalho, desde a data em que deveria ter recebido estes montantes em débito à Autora até ao seu pagamento integral. g) Deve a Ré ser condenada no pagamento de custas processuais e de custas de parte.”.

IV – Considerando as conclusões das alegações que, como se sabe, delimitam o objecto do recurso, importa decidir se as partes acordaram no pagamento de uma quantia líquida ou ilíquida a título de compensação pecuniária de natureza global pela cessação do contrato de trabalho, mais concretamente, importa saber se tal compensação estava ou não sujeita a IRS e à sua retenção na fonte.

Conforme resulta dos factos provados, as partes acordaram na acção declarativa na redução do pedido para a quantia de €20.000,00 (vinte mil euros), a título de compensação pecuniária de natureza global pela cessação do contrato de trabalho, não discriminando que parte ou partes do pedido esse montante se destinava a ressarcir, nem esclarecendo se o mesmo era líquido ou ilíquido.

Ora, conforme se refere na sentença impugnada, “estando em causa uma transacção judicial, homologada por decisão transitada em julgado, na respectiva interpretação deverá atender-se ao disposto no artigo 238.º do CC, nos termos do qual, nos negócios formais, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (n.º 1), embora esse sentido, que não tenha correspondência no texto do documento, já possa valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade (n.º 2)”.

Por outro lado, todas as dúvidas que eventualmente acabem por surgir na determinação do conteúdo das declarações de vontade exaradas na transacção terão de ser esclarecidas com recurso aos critérios legais de interpretação referentes aos negócios jurídicos adiantados pelo disposto no artigo 236.º, n.º1, do Cód. Civil, que consagra a denominada teoria da impressão do destinatário, apenas com esta limitação:- para que tal sentido possa valer é preciso que seja possível a sua imputação ao declarante, isto é, que este possa razoavelmente contar com ele (art.º 236º, n.º1, in fine, do C.C.).

Em cumprimento desta imposição legal tem o julgador de ter em conta que a declaração deve valer com o sentido que um destinatário razoável, colocado na posição de real declaratário, lhe atribuiria; considera-se real declaratário nas condições concretas em que se encontra e tomam-se em conta os elementos que ele conheceu efectivamente mais os que uma pessoa razoável, quer dizer, normalmente esclarecida, zelosa e sagaz, teria conhecido e figura-se que ele raciocinou sobre essas circunstâncias como o teria feito um declaratário razoável (Prof. Mota Pinto; Teoria Geral do Direito Civil; pág. 419); e a normalidade do declaratário que a lei toma como padrão, exprime-se não só na capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante (Prof. Pires de Lima e Antunes Varela; Cód. Civil Anot.; Vol. I; pág. 153).

Quando a interpretação conduza a um resultado duvidoso, deve o problema ser resolvido nos termos do art.º 237.º do CC: “(…) nos negócios gratuitos prevalece o sentido menos oneroso para o disponente e, nos negócios onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações. Este o único critério consagrado no Código, para a hipótese de, no termo da actividade interpretativa, se nos deparar um resultado equívoco ou ambíguo”. Ou seja, se de acordo com os critérios mencionados, a declaração negocial comporta ainda dois ou mais sentidos, com igual valor, a dúvida deverá resolver-se, nos negócios onerosos, tendo em conta o que conduzir a um maior equilíbrio das prestações.

No caso, como se disse, as partes não especificaram a que parte ou partes do pedido se destinava ressarcir a quantia que acordaram a título de compensação global pela cessação do contrato de trabalho.

Na acção declarativa a autora formulou os pedidos supra referidos em 6) dos factos provados.

A 1ª instância seguiu, por se tratar de um caso similar, o decidido no acórdão do STJ de 25.02.2009 , disponível em www.dgsi.pt, onde se escreveu o seguinte: “a interpretação meramente literal desta última cláusula, maxime quanto ao prazo e modo de pagamento da quantia, parece inculcar o entendimento de que a importância efectivamente a receber pelo autor seria a indicada na cláusula 1.ª, isto é, que aquela importância de €285.000,00 seria líquida, pois que, se as partes quisessem que à quantia acordada fossem efectuados descontos legais, v. g. a título de IRS, teriam consignado na transacção alguma referência aos mesmos.

Porém, tal interpretação assume diminuta relevância, na medida em que o clausulado quanto ao prazo e modo de pagamento não poderá deixar de ser interpretado em articulação com a cláusula 1.ª que delimita a quantia a pagar. Assim, só depois de se concluir qual era, nos termos da cláusula 1.ª, a quantia efectivamente a receber pelo autor, é que funcionará a cláusula 2.ª. Apresenta-se, assim, irrelevante, na determinação da quantia efectiva a receber pelo autor, o estipulado na cláusula 2.ª. Ainda tendo em vista a interpretação da vontade das partes, importa ter presente que a transacção foi efectuada em 10 de Fevereiro de 2006.

E, de acordo com o disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do Código do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) (7), consideram-se rendimentos do trabalho dependente todas as remunerações pagas ou postas à disposição do seu titular, provenientes do trabalho por conta de outrem prestado ao abrigo de contrato individual de trabalho ou de outro a ele legalmente equiparado.

O n.º 3, alínea e), do mesmo artigo, considera ainda rendimentos do trabalho quaisquer indemnizações resultantes da constituição, extinção ou modificação de relação jurídica que origine rendimentos do trabalho dependente, incluindo as que respeitem ao incumprimento das condições contratuais ou sejam devidas pela mudança de local de trabalho, sem prejuízo do disposto no n.º 4. Por sua vez, o n.º 4.º, do art. 2.º, tem o seguinte teor: “Quando, por qualquer forma, cessem os contratos subjacentes às situações previstas nas alíneas a), b) e c) do n.º 1, mas sem prejuízo do disposto na alínea d) do mesmo número, quanto às prestações que continuem a ser devidas mesmo que o contrato de trabalho não subsista, ou se verifique a cessação das funções de gestor, administrador ou gerente de pessoa colectiva, as quantias auferidas, a qualquer título, ficam sempre sujeitas a tributação na parte que exceda o valor correspondente a uma vez e meia o valor médio das remunerações regulares com carácter de retribuição sujeitas a imposto, auferidas nos últimos 12 meses, multiplicado pelo número de anos ou fracção de antiguidade ou de exercício de funções na entidade devedora, salvo quando nos 24 meses seguintes seja criado novo vínculo profissional ou empresarial, independentemente da sua natureza, com a mesma entidade, caso em que as importâncias serão tributadas pela totalidade.”. Por outro lado, o art. 99.º do mesmo Código, na redacção introduzida pela Lei n.º 16-A/2002, de 31 de Maio, estabelece – à semelhança do que também veio a estabelecer o art. 2.º-A, do Decreto-Lei n.º 42/91, de 22 de Janeiro, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 194/2002, de 25 de Setembro –, que as entidades devedoras de rendimentos de trabalho dependente são obrigadas a reter o imposto no momento do seu pagamento ou da sua colocação à disposição dos respectivos titulares. Das referidas normas decorre, como princípio geral, a sujeição a IRS dos rendimentos do trabalho dependente e a necessidade de as entidades devedoras desses rendimentos cumprirem as obrigações fiscais, no caso através da retenção do imposto. Daí que, nada tendo as partes mencionado quanto à natureza, líquida ou ilíquida, da quantia acordada, se deva entender, de acordo com aqueles princípios ou regras gerais, que a quantia em questão é ilíquida, pois, se as partes pretendessem que a mesma fosse líquida deveriam tê-lo mencionado expressamente .

Acresce que não poderá deixar de se ter presente que se, porventura, as partes tivessem acordado, quanto à forma e prazo de pagamento da quantia, não o pagamento através de cheque e no prazo de 10 dias, mas através de depósito em tribunal, não poderia o contador deixar de proceder aos descontos legais, maxime quanto ao IRS, pelo que sempre haveria de ter-se a quantia acordada como ilíquida”.

Esta jurisprudência mantém inteira validade em face da actual redacção dos artº 1º, 2º, nº 1 alínea a), nº 2 e nº 3, alíneas b) e e), e nº 4, al. b) do Código do IRS, sendo que as entidades empregadoras estão obrigadas a reter o imposto devido (artº 99º, nº1, al. a) do citado código); e a compensação global não se encontra incluída nos casos previstos no artº 2º-A do CIRS que delimita negativamente os rendimentos da categoria A (rendimentos do trabalho dependente).

Ora, no caso dos autos, sendo omissa a transacção quando à iliquidez ou liquidez da quantia acordada a título de compensação global, encontrando-se na sua origem créditos de natureza laboral , outra alternativa não restava à empregadora embargada do que cumprir a lei e proceder, como procedeu, à respectiva retenção do imposto.

De todo o exposto, deve concluir-se que a quantia acordada a título de compensação global pela cessação do contrato de trabalho é ilíquida.

Se as partes pretendessem que a mesma fosse líquida deveriam tê-lo mencionado expressamente, o que não foi o que sucedeu, a que acresce o facto de, estando todas quantias peticionadas na acção declarativa sujeitas ao pagamento de IRS, por se considerarem quantias resultantes de trabalho dependente, sempre a autora teria razoavelmente de supor ou contar que a compensação global estaria sujeita a tributação.

VI – Termos em que e delibera julgar a apelação totalmente improcedente, com integral confirmação da sentença impugnada.

Custas a cargo da apelante.

Coimbra, 27 de Novembro de 2020

(Joaquim José Felizardo Paiva)

(Jorge Manuel da Silva Loureiro)

(Paula Maria Mendes Ferreira Roberto)