Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
578/10.0TBVNO.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: EMPREITADA
CUMPRIMENTO DEFEITUOSO
EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
DONO DA OBRA
BOA-FÉ
Data do Acordão: 02/25/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE OURÉM – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 428º, 1207º E 1218º DO C. CIVIL.
Sumário: I – No caso de mau cumprimento, pelo empreiteiro, da sua prestação de obra, é lícito ao dono da obra opor-lhe a excepção do contrato não cumprido.

II - Como, porém, a exceptio arranca e é materialmente alimentada pela boa fé, a bona fide exclui a sua actuação sempre que o não cumprimento, ou o mau cumprimento ou cumprimento defeituoso não seja significante e, portanto, sempre que a alegação da excepção não observe o princípio regulativo da proporcionalidade ou do equilíbrio entre as posições jurídicas daquele que opõe a excepção e daquele a quem ela é oposta.

III - O cumprimento defeituoso ou o mau cumprimento da obrigação que vincula o empreiteiro constitui este em responsabilidade, designadamente no dever de reparar os danos suportados, em consequência dele, pelo dono da obra. Mas não preclude irremediavelmente o direito do empreiteiro de receber o preço correspondente à parte da obra ou dos trabalhos que, apesar do não cumprimento daquela obrigação e da sua definitividade, realizou.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

M… pediu ao Sr. Juiz de Direito do 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Ourém que condenasse O…, Lda. a pagar-lhe a quantia de € 13 471,45, acrescida de juros de mora vincendos, contados sobre € 11 466,33.

Fundamentou esta pretensão no facto de, no exercício da sua actividade empresarial de construção civil, ter prestado à ré, na construção de um prédio urbano, serviços e de a ré não lhe ter pago as últimas três facturas, no valor de € 11.466,33, que venceram juros no valor de € 2.005,12.

A ré defendeu-se alegando que não foi fixada data de pagamento dos trabalhos, que estes só seriam pagos caso não existisse reclamação, decorrido um ano sobre a factura, que tem sido interpelada pelos compradores das fracções para suprir os defeitos dos trabalhos realizados pelo autor, que este não efectuou todas as reparações necessárias ao bom funcionamento da obra, de modo a que os compradores se sintam satisfeitos, tendo o autor, para que possa ser obrigada a pagar-lhe, que fazer os seguintes trabalhos: azulejos mal aplicados e betonados em toda a obra, degraus do patamar mal montados e que estão a cair devido a deficiente aplicação, paredes da garagem mal rebocadas e com defeito na aplicação dos blocos, vários defeitos no 1º andar esquerdo, fracção D), vendida a C…, defeitos de que já reclamou junto do autor, que este conhece e prometeu reparar, o que não fez até hoje.

O autor respondeu que os trabalhos foram devidamente prestados, não tendo existido qualquer reclamação, que os trabalhos deveriam ser pagos no prazo de vencimento das facturas – 30 dias após a sua emissão – e que nunca foi interpelado quer pela ré, quer pelos compradores, para proceder a qualquer reparação ou suprir quaisquer defeitos.

Abstida a selecção da matéria de facto e produzida prova pericial, procedeu-se à audiência de discussão e julgamento, com registo sonoro dos actos de prova levados a cabo oralmente, designadamente do depoimento de parte do autor, do qual se assentou, na acta, que admitiu que o acabamento de alguns azulejos aplicados na cozinha do apartamento pertencente a C… foi mal efectuado e ainda que na instalação sanitária comum desse mesmo apartamento algumas juntas de azulejos estão mal acabadas.

A sentença final, proferida no dia 22 de Abril de 2013 - com fundamento em que o relacionamento contratual entre o autor e a ré consubstancia um contrato de empreitada, que o autor prestou serviços à ré, designadamente na construção de um edifício, no valor de € 11.466,33, que não resultou provada a existência de qualquer defeito da responsabilidade do autor, não tendo a ré motivos para recusar a sua prestação com base na excepção do não cumprimento do contrato, e que a ré não procedeu ao pagamento do preço dos trabalhos, tendo os competentes juros de mora comerciais começado a vencer-se 30 dias após a data da emissão das facturas -, julgou a acção procedente.

É esta sentença que a ré impugna através do recurso ordinário de apelação – no qual pede a revogação dela – tendo encerrado a sua alegação com estas conclusões:

Não foi oferecida resposta.

A Sra. Juíza, no despacho de admissão do recurso, indeferiu a declaração de nulidade da sentença apelada, com fundamento na falta de fundamentação, omissão e excesso de pronúncia e contradição intrínseca, arguida pela apelante na sua alegação de recurso.

3. Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.

3.1. O Tribunal de que provém o recurso julgou não provados, na fase da audiência, os seguintes enunciados:

2.º O azulejo e os mosaicos estão mal aplicados e betonados em toda a obra.

3.º Os degraus do patamar estão mal montados e a cair, devido à sua má aplicação.

4.º As paredes da garagem estão mal rebocadas e com defeito na aplicação dos blocos.

5.º A fracção D do prédio em causa apresenta deficiências cuja reparação foi já reclamada pelo respectivo proprietário junto do autor.

3.2. O decisor de facto da 1ª instância adiantou, para justificar o julgamento referido em 2.1., a seguinte motivação:

3.3. O Tribunal de que provém o recurso julgou provados, na sua globalidade, os factos seguintes:

1.º O autor é empresário em nome individual, com actividade na área da construção civil.

2.º A ré tem por objeto social a indústria de construção civil e obras públicas, compra e venda de bens imóveis rústicos ou urbanos, revenda de adquiridos para esse fim, urbanização e construção de imóveis e sua revenda em bloco ou propriedade horizontal.

3.º No exercício da sua atividade comercial o autor prestou serviços à ré, designadamente na construção de um prédio urbano, no período de Janeiro de 2005 a Abril de 2009.

4.º Por conta dos serviços prestados o autor emitiu as seguintes facturas:

- n.º 83, datada de 30-05-2008, no valor de 3.669,93€, com vencimento em 30-06-2008;

- n.º 107, datada de 13-12-2008, no valor de 4.302,00€, com vencimento em 13-01-2009;

- n.º 115, datada de 18-05-2009, no valor de 3.494,40€, com vencimento em 18-06-2009, tudo conforme as referidas facturas, constantes de fls. 39 a 41, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, nomeadamente quanto à discriminação dos serviços efetuados.

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).

Nestas condições tendo em conta o conteúdo das alegações da recorrente, as questões concretas controversas que importa resolver são das de saber se:

a) A sentença impugnada se encontra ferida com o vício da nulidade substancial;

b) O decisor de facto da 1ª instância incorreu, na decisão da matéria de facto controvertida, num error in iudicando, por erro na avaliação da prova;

c) A decisão impugnada deve ser revogada e substituída por outra que absolva a recorrente do pedido.

3.2. Nulidade da sentença impugnada.

Como é comum, a recorrente assaca à decisão recorrida o vício grave da nulidade. Por uma multiplicidade de causas, de resto: a falta de fundamentação e, do mesmo passo, o excesso e a omissão de pronúncia e a contradição intrínseca.

A falta de motivação ou fundamentação verifica-se quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão. A nulidade decorre, portanto, da violação do dever de motivação ou fundamentação de decisões judiciais (artºs 208 nº 1 da Constituição da República Portuguesa e 158 nº 1 do CPC de 1961 e 154 nº 1 do NCPC).

Isto é assim, dado que uma das funções essenciais de toda e qualquer decisão judicial é convencer os interessados do bom fundamento da decisão. A exigência de motivação da decisão destina-se a permitir que o juiz ou juízes convençam os terceiros da correcção da sua decisão. Através da fundamentação, o juiz ou juízes devem passar de convencidos a convincentes.

Compreende-se facilmente este dever de fundamentação, pois que os fundamentos da decisão constituem um momento essencial não só para a sua interpretação – mas também para o seu controlo pelas partes da acção e pelos tribunais de recurso[1].

A motivação constitui, pois, a um tempo, um instrumento de ponderação e legitimação da decisão judicial e, nos casos em que seja admissível – como sucede na espécie sujeita -, de garantia do direito ao recurso.

Portanto, o dever funcional de fundamentação não está orientado apenas para a garantia do controlo interno - partes e instâncias de recurso - do modo como o juiz exerceu os seus poderes. O cumprimento daquele dever é condição mesma de legitimação da decisão.

Na motivação da decisão o juiz deve desenvolver uma argumentação justificativa da qual devem resultar as boas razões que fazem aceitar razoavelmente a decisão, numa base objectiva, não só para as partes, mas também – num plano mais geral – para toda a comunidade jurídica. Na motivação o juiz deve demonstrar a consistência dos vários aspectos da decisão, que vão desde a determinação da verdade dos factos na base das provas, até à correcta interpretação e aplicação da norma que se assume como critério do juízo. Da motivação deve resultar particularmente que a decisão foi tomada, em todos os seus aspectos, de facto e de direito, de maneira racional, seguindo critérios objectivos e controláveis de valoração, e, portanto, de forma imparcial[2]. Dito doutro modo: a decisão não deve ser só justa, legal e razoável em si mesma: o juiz está obrigado a demonstrar que o seu raciocínio é justo e legal, e isto só pode fazer-se emitindo opiniões racionais que revelem as premissas e inferências que podem ser aduzidas como bons e aceitáveis fundamentos da decisão[3].

A fundamentação da decisão é, pois, essencial para o controlo da sua racionalidade. Pode mesmo dizer-se que esta racionalidade é uma função daquela fundamentação. E como a racionalidade da decisão só pode ser aferida pela sua fundamentação, esta fundamentação é constitutiva dessa mesma racionalidade.

Numa palavra: a exigência de fundamentação decorre da necessidade de controlar a coerência interna e a correcção externa da decisão.

No entanto, quanto a este ponto, há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão (artº 158 nº 1 do CPC de 1961 e 154 nº 1 do NCPC)[4].

Tem-se, porém, entendido que o que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação[5]; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente: afecta o valor doutrinal e persuasivo da decisão – mas não produz nulidade[6]. Portanto, só a ausência total de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão: se a decisão invocar algum fundamento de facto ou de direito – ainda que exasperadamente errado – está afastada a nulidade, no tocante à justificação fáctica e jurídica da decisão. Assim, pelo que respeita aos fundamentos de direito, não é forçoso que o juiz cite os textos da lei que abonam o seu julgado: basta que aponte a doutrina legal ou os princípios jurídicos em que se baseou.

Depois, o tribunal não está vinculado a analisar e a apreciar todos os argumentos, todos os raciocínios, todas as considerações, todas as razões jurídicas produzidas pelas partes, desde que não deixe de apreciar os problemas fundamentais e necessários á decisão da causa[7].

O tribunal deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas, claro, aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras[8]. O tribunal deve, por isso, examinar toda a matéria de facto alegada e todos os pedidos formulados pelas partes, com excepção apenas das matérias ou pedidos que forem juridicamente irrelevantes ou cuja apreciação se tenha tornado inútil pelo enquadramento jurídico escolhido ou pela resposta dada a outras questões. Por isso é nula, a decisão que deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar, ou seja, quando se verifique uma omissão de pronúncia (artº 668 nº 1 d), 1ª parte, do CPC de 1961 e 615 nº 1 d), 1ª parte, do NCPC).

Nula é também a decisão quando conheça de questões de que não podia tomar conhecimento, portanto, quando esteja viciada por excesso de pronúncia (artº 668 nº 1 d), 2ª parte, do CPC de 1961 e 615 nº 1 d), 2ª parte, do NCPC). Por força deste corolário do princípio da disponibilidade objectiva, verifica-se um tal excesso, por exemplo, sempre que o juiz utiliza, como fundamento da decisão, matéria não alegada ou absolve num pedido não formulado.

A decisão também é nula quando os seus fundamentos estiverem em oposição com a parte decisória, isto é, quando os fundamentos invocados pelo tribunal conduzirem, logicamente, a uma conclusão oposta ou, pelo menos diferente daquela que consta da decisão (artº 669 nº 1 c) do CPC)[9]. Esta nulidade substancial está para a decisão do tribunal como a contradição entre o pedido e causa de pedir está para a ineptidão da petição inicial.

A coerência ou justificação interna da decisão reporta-se à sua coerência com as respectivas premissas de facto e de direito, dado que a decisão não pode ser logicamente válida se não for coerente com aquelas premissas.

No caso, os problemas que as partes colocaram à atenção da sentença impugnada eram os de saber se a ré estava constituída no dever de realizar ao autor uma prestação pecuniária – e a respectiva indemnização moratória – e se à recorrente era lícito opor ao direito alegado pelo autor, a excepção dilatória material do contrato não cumprido, assente no mau cumprimento ou no cumprimento defeituoso, pelo autor, da sua obrigação de lhe prestar uma obra sem defeito.

A sentença apelada, depois de expor os fundamentos de facto, concluiu que entre o autor e a ré havia sido celebrado um contrato de empreitada, que o autor tinha realizado prestação de obra que para de ele emergia desse contrato, que a ré não demonstrou a existência de qualquer defeito na obra prestada, pelo que não tinha motivos para recusar a sua prestação com base na excepção não cumprimento do contrato, e que a última se constituiu um mora no tocante à sua obrigação de pagamento do preço e no correspondente dever de indemnização pelo retardamento na realização dessa prestação pecuniária, correspondente aos juros supletivos relativos a créditos de que são titulares empresas comerciais.

Em face deste conteúdo da decisão impugnada é evidente que não pode dizer-se que aquele acto decisório não tenha elucidado as partes a respeito dos motivos da decisão, que não tenha tornado patentes os motivos determinantes dessa decisão, as razões em que apoia o seu veredicto. Nestas condições é, de todo, desrazoável dizer-se que a sentença recorrida padece de falta de fundamentação.

Identicamente, não há a mínima razão para que se conclua que a sentença tenha deixado por resolver qualquer questão que as partes tenha submetido à sua apreciação. O problema que a sentença tinha que resolver era a de saber se o autor era titular do direito de crédito alegado e se à recorrente era lícito opor àquele a excepção do contrato não cumprido. E qualquer destas questões foi decidida por inteiro – não interessa, neste plano, se bem se mal – não tendo, por isso, a sentença deixado de pronunciar-se sobre questão que devia conhecer.

Não são patentes as razões das quais decorre, no ver da recorrente, o valor negativo da sentença resultante do excesso de pronúncia ou da colisão entre os fundamentos e a decisão. Seja como for, é claro que a sentença não decidiu nem apreciou qualquer questão diversa das que foram suscitadas pelas partes nem a sua construção se mostra viciosa, por os fundamentos invocados pelo juiz conduzirem, logicamente, não ao resultado expresso na decisão – mas a resultado oposto ou ao menos diverso.

Nestas condições, a arguição da nulidade da sentença – e o fundamento correspondente da impugnação – é, de todo, manifestamente infundada.

3.3. Impugnação da decisão da matéria de facto.

A discordância mais relevante da recorrente relativamente à decisão impugnada respeita à decisão da matéria de facto. No seu ver, o decisor da 1ª instância, ao julgar não provados os pontos identificados na decisão daquela matéria sob os nºs 2 a 5, incorreu, por equívoco na valoração das provas, num error in iudicando.

Entre a matéria de direito e a matéria de facto existe uma interdependência que se verifica na sua delimitação recíproca, em especial na sua confluência para a obtenção da decisão de um caso concreto. Dado que a delimitação da matéria de facto é feita em função da matéria de direito – visto que os factos são recortados e escolhidos segundo a sua relevância jurídica, i.e., segundo a sua importância para cada um das soluções plausíveis da questão de direito, justifica-se, metodologicamente, que a exposição subsequente se abra com a determinação da natureza jurídica do acordo de vontades concluído entre a recorrente e o recorrido e sobre o modo actuação da excepção dilatória material do contrato não cumprido relativamente a prestação de contrato de empreitada defeituosa.

3.3.1. Qualificação jurídica do acordo concluído entre a recorrente a recorrida.

De harmonia a decisão da matéria de facto do tribunal de que provém o recurso – julgamento que neste ponto não sofreu impugnação – está assente que a recorrido se vinculou para com a recorrente a proceder, por um preço, à execução de serviços de construção de um prédio urbano – embora, se ignore, por não ter sido sequer objecto de alegação, em que consistiram, exactamente, tais serviços.

Nestas condições, não deve oferecer dúvida a conclusão que entre a recorrente e o recorrido foi celebrado um contrato de empreitada no qual a primeira figura na posição jurídica de dono da obra e, o segundo, na de empreiteiro (artº 1207 do Código Civil).

Desse contrato emergiram a recorrente e para o recorrido os direitos de receber a obra que constitui o seu objecto mediato realizada nos moldes convencionados e de perceber o preço acordado, respectivamente (artº 1207 do Código Civil).

Trata-se, caracteristicamente, de um contrato bivinculante e sinalagmático, visto que dá lugar a obrigações recíprocas, ficando as partes, simultaneamente, na situação de devedores e de credores e coexistindo prestações e contraprestações[10].

Nas obrigações, o devedor está adstrito a uma prestação. A inobservância do dever de prestar pode ocorrer por uma de duas vias: pela simples não realização da prestação, o que dá lugar ao incumprimento definitivo em sentido estrito (artº 798 do Código Civil); pela violação de uma situação tal que a prestação em causa não mais possa ser realizada, originando a sua impossibilidade (artº 801 nº 1 do Código Civil).

É, contudo, possível uma terceira forma de violação do direito do credor: o cumprimento imperfeito, cumprimento defeituoso ou mau cumprimento, dito também violação positiva do contrato (artº 799 nº 1 do Código Civil).

O Código Civil não tratou, ao menos com carácter de generalidade, o cumprimento imperfeito; prevê, porém, hipóteses específicas de cumprimento defeituoso em vários contratos, entre as quais se conta, precisamente, o de empreitada (artº 1218 e ss.).

De uma maneira deliberadamente simplificadora, pode dizer-se que o empreiteiro, adstrito ao dever de realizar uma obra, pode violar o seu dever de prestar por uma de duas formas: ou pelo puro e simples incumprimento ou impossibilitando a prestação (artºs 798 e 801 nº 1 do Código Civil). Existe, no entanto, uma terceira possibilidade, que, relativamente ao contrato de empreitada, é objecto de previsão específica: a de ter havido um cumprimento defeituoso ou inexacto (artº 1218 e ss. do Código Civil).

O empreiteiro não está vinculado apenas à obrigação de realizar uma obra, de obter certo resultado; ele encontra-se ainda vinculado executar uma obra isenta de vícios e conforme com o convencionado, quer dizer, sem defeitos (artºs 1218 nº 1 e 1219 nº 1 do Código Civil).

Obra defeituosa é, portanto, aquela que tiver um vício ou se mostrar desconforme com aquilo que foi acordado. O vício corresponde a imperfeições relativamente à qualidade normal das prestações daquele tipo; a desconformidade representa uma discordância com respeito ao fim acordado[11].

As situações de perturbação da prestação do empreiteiro são, assim, quatro: desconformidade da obra em relação ao que foi convencionado; vícios que excluam ou reduzam o valor da obra; vícios que excluam ou reduzam a aptidão da obra para o seu uso ordinário; vícios que excluam ou reduzam o valor da obra para o uso contratualmente previsto.

A desconformidade da obra consiste no seu desvio relativamente ao programa contratual convencionado, com inteira independência do facto de esse desvio permitir uma desvalorização ou valorização da obra; o vício implica uma apreciação negativa da obra, seja em termos de valor, seja em termos de funcionalidade normal – seja em termos de funcionalidade para o fim contratualmente previsto. Em qualquer caso, trata-se de perturbações da prestação, a que o dono da obra pode acudir com os remédios dispostos na lei para o cumprimento defeituoso. O ónus da prova da desconformidade ou do defeito, esse vincula, indiscutivelmente, o dono da obra (artº 342 nº 1 do Código Civil).

Quando não houver acordo das partes acerca do fim a que a obra se destina, atende-se, naturalmente, à função normal das obras da mesma categoria. Há, portanto, um padrão normal relativamente à função de cada obra: é com base nesse padrão que se aprecia a existência de vício. Por exemplo, pressupõe-se que as juntas dos azulejos estejam bem acabadas.

No caso de obra prestada com defeito, presume-se a sua imputabilidade ao empreiteiro, quer dizer, presume-se que procede de culpa sua (artº 799 nº 1 do Código Civil).

Portanto, ao dono da obra apenas cabe fazer a prova do defeito para que o empreiteiro fique onerado, se quiser afastar a sua responsabilidade, com a demonstração de que, afinal, o defeito não lhe é imputável. Note-se que não é suficiente, para que o empreiteiro se liberte daquele ónus da prova, a demonstração de que agiu diligentemente: exige-se, antes, que o empreiteiro – dado que tem o domínio do processo de execução da prestação - prove a causa do defeito e que ela lhe é completamente estranha, dado que só assim ficará exonerado da responsabilidade pelo defeito patenteado pela prestação da obra que executou[12].

O cumprimento defeituoso ou o mau cumprimento da obrigação que vincula o empreiteiro constitui este em responsabilidade, designadamente no dever de reparar os danos suportados, em consequência dele, pelo dono da obra. Mas não preclude irremediavelmente o direito do empreiteiro de receber o preço correspondente à parte da obra ou dos trabalhos que, apesar do não cumprimento daquela obrigação e da sua definitividade, realizou[13].

Os contratos devem ser pontualmente cumpridos (artº 405 nº 1 do Código Civil).

Se o dono da obra se constituir, no tocante ao cumprimento da obrigação de pagamento do preço, em mora, fica adstrito a uma outra obrigação: a de reparar os danos causados ao empreiteiro com o retardamento do cumprimento (artºs 804 nºs 1 e 2 e 805 nº 1 do Código Civil).

A indemnização moratória consiste, dada a natureza pecuniária da obrigação, nos juros contados desde a constituição do comprador em mora (artº 806 nº 1 Código Civil). Esses juros são os legais, salvo se antes da mora for devido juro mais elevado ou se se houver estipulado um juro moratório diferente do legal (artº 806 nº 2 do Código Civil).

Se o credor for uma empresa comercial e o crédito constituir a remuneração de uma transacção comercial, essa taxa de juro corresponde à aplicada pelo BCE na sua mais recente operação de refinanciamento, sucessivamente divulgada por aviso Direcção Geral do Tesouro (artºs 102 §§ 3º e 4º do Código Comercial e 1 e 2 da Portaria nº 597/2005, de 19 de Julho, com efeitos reportados a 1 de Outubro de 2004, ex-vi artºs 2 nº 1 e 4 nº 1 do Decreto-Lei nº 32/2003, de 17 de Fevereiro)[14].

3.3.2. Funcionamento da excepção dilatória material do contrato não cumprido relativamente a prestação de contrato de empreitada defeituosa.

Nos contratos sinalagmáticos a lei autoriza a qualquer dos contraentes a recusar a realização da sua prestação enquanto não ocorrer a prévia realização da prestação da contraparte, ou a oferta do seu cumprimento em simultâneo (artº 428 nº 1 do Código Civil). Em tal caso, a recusa do cumprimento é lícita, o que obstacula à aplicação do regime da mora e naturalmente do não cumprimento definitivo (artºs 804 e 808 do Código Civil).

A exceptio requer: um contrato bivinculante e sinalagmático; em que ambas as prestações devem ser efectuadas em simultâneo; uma delas o não seja (artº 428 nº 1 do Código Civil). A excepção visa salvaguardar até ao fim um sinalagma funcional.

Para além de corresponder a uma concretização do princípio da boa fé e de assegurar, em geral, o direito à prestação das partes, a exceptio garante que prestação e contraprestação tenham lugar em simultâneo[15].

Decerto que a lei apenas prevê o caso de não haver prazos diferentes para o cumprimento das prestações. Mas apesar disso entende-se que a exceptio, pelo que encerra de justiça e equidade, pode ser invocada, ainda que haja vencimentos diferentes, por aquele dos contraentes que deva realizar a sua prestação antes do outro; só não poderá opô-la o contraente que devia cumprir primeiro[16].

A admissibilidade da oposição da exceptio à prestação defeituosa também não deve, pois, merecer dúvida relevante. Se o credor pode recusar uma prestação parcial ou viciada, pode, por maioria de razão, não oferecer a sua opondo a exceptio (artºs 763 nº 1, 798 e 799 do CC). O esquema da excepção do contrato não cumprido é geral. Os remédios particulares postos pela lei ao serviço, por exemplo, do comprador e do dono da obra, não excluem o funcionamento da exceptio: esta mantém-se perante as pretensões que a lei confere àquela parte do contrato de empreitada.

Em sentido material, a excepção é a situação jurídica pela qual a pessoa adstrita a um dever pode, licitamente, recusar a efectivação da prestação correspondente[17]. Exemplo acabado de excepção material dilatória – dado que só detém a pretensão por certo lapso de tempo – é a excepção do contrato não cumprido.

Porque a exceptio do contrato não cumprido – ou só defeituosamente cumprido - se resolve numa excepção dilatória material – dado que o seu efeito é apenas o de a acção não poder ser desde logo procedente ou fazer depender a condenação do demandado na realização da sua prestação contra o cumprimento simultâneo da contra-prestação – não tem se ser oposta por via de reconvenção nem mesmo judicialmente, bem podendo ser actuada extrajudicialmente (artºs 487 nºs 1 e 2 e 493 nºs 1 a 3 do CPC de 1961).

A exceptio arranca e é materialmente alimentada pela boa fé: a bona fide exclui a sua actuação sempre que o não cumprimento, ou o mau cumprimento ou cumprimento defeituoso não seja significante e, portanto, sempre que a alegação da excepção não observe o princípio regulativo da proporcionalidade ou do equilíbrio entre as posições jurídicas daquele que opõe a excepção e daquele a quem ela é oposta.

Na verdade, no contexto do contrato de empreitada, deve exigir-se que o preço ou a parte do preço cujo pagamento se recusa através da invocação da excepção seja proporcional à desvalorização da obra provocada pela existência do defeito[18].

Caso isso não suceda, a oposição da exceptio deve ter-se por abusiva.

Na verdade, deve reconduzir-se ao abuso do direito, por exemplo, o desequilíbrio objectivo no exercício, comportamento abusivo cujo desvalor se objectiva na desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem e que compreende todas as situações em que se exercem poderes sanção por faltas insignificantes, como sucede quando uma parte resolva o contrato, alegando uma violação sem relevo de nota, em termos de causar a esta um grande prejuízo (artº 334 do Código Civil).

Sempre que se verifique uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências nefastas para terceiros, portanto, em que é patente um desequilíbrio no exercício de posições jurídicas, é inteiramente justificado o apelo ao abuso do direito[19]: o principal efeito do abuso será, no caso, da excepção do não cumprimento, a inibição ou a paralisação da sua invocação.

3.3.2. Parâmetros do controlo, por esta Relação, da decisão de facto da 1ª instância.

O controlo efectuado pela Relação sobre o julgamento da matéria de facto realizado pelo tribunal da 1ª instância pode, entre outras finalidades, visar a reponderação da decisão proferida.

A Relação pode reapreciar o julgamento da matéria de facto e alterar – e, portanto, substituir - a decisão da 1ª instância se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos de facto da matéria em causa ou se, tendo havido registo da prova pessoal, essa decisão tiver sido impugnada pelo recorrente ou se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por qualquer outra prova (artº 712 nºs 1, a) e b), e 2 do CPC de 1961).

Note-se, porém, que não se trata de julgar ex-novo a matéria de facto - mas de reponderar ou reapreciar o julgamento que dela foi feito na 1ª instância e, portanto, de aferir se aquela instância não cometeu, nessa decisão, um error in iudicando[20]. O recurso ordinário de apelação não perde, mesmo neste caso, a sua feição de recurso de reponderação para passar a ser um recurso de reexame.

Depois, essa reponderação tem por finalidade e é actuada sob o signo dos parâmetros seguintes:

a) Do exercício da prova – que visa a demonstração da realidade dos factos – apenas pode ser obtida uma verdade judicial, jurídico-prática e não uma verdade, absoluta ou ontológica, matemática ou científica (artº 341 do Código Civil);

b) A livre apreciação da prova assenta na prudente convicção – i.e., na faculdade de decidir de forma correcta - que o tribunal adquirir das provas que foram produzidas (artº 655 nº 1 do CPC de 1961 e 607 nº 5, 1ª parte, do NCPC).

c) A prudente obtenção da convicção deve respeitar as leis da ciência, da lógica e as regras da experiência - entendidas como os juízos hipotéticos, de conteúdo geral, desligados dos factos concretos objecto do processo, procedentes da experiência mas independentes dos casos particulares de cuja observação foram deduzidos e que, para além desses casos, pretendem ter validade para casos novos – e que constituem as premissas maiores de facto às quais são subsumíveis factos concretos;

d) A convicção formada pelo juiz sobre a realidade dos factos deve ser uma convicção subjectiva fundada numa convicção objectiva, assente nas regras da ciência e da lógica e da experiência comum ou de normalidade maioritária, e portanto, uma convicção cognitiva e não volitiva, voluntarista, subjectiva ou emocional;

e) A convicção objectiva é uma convicção argumentativa, i.e., demonstrável através de argumento capaz de se impor aos outros;

e) A apreciação da prova vincula a um conceito de probabilidade lógica – de evidence and inference, i.e., segundo um critério de probabilidade lógica prevalecente, portanto, segundo o grau de confirmação lógica que os enunciados de facto obtêm a partir das provas disponíveis: os elementos de prova são assumidos como premissas a partir das quais é possível extrair inferências; as inferências seguem modelos lógicos; as diversas situações podem ser analisadas de acordo com padrões lógicos que representam os aspectos típicos de cada caso; a conclusão acerca de um facto é logicamente provável, como uma função dos elementos lógicos, baseada nos meios de prova disponíveis[21];
f) O juiz deve decidir segundo um critério de minimização do erro, i.e., segundo a ponderação de qual das decisões possíveis tem menor probabilidade de não ser a correcta

g) O controlo pela Relação da decisão da matéria de facto não é actuado por imediação, i.e., através de numa percepção própria do material que lhe serve de base, mas através da audição de um registo sonoro ou da leitura, fria e inexpressiva, de transcrições, que torna indisponíveis todos os relevantíssimos momentos não verbais da comunicação.

3.3.3. Reponderação do julgamento da matéria de facto da 1ª instância.

A recorrente reputa de mal julgados os factos relativos aos defeitos da obra realizada pelo recorrido e que, sob os nºs 2 a 5 foram, na fase da audiência, julgados não provados. De harmonia com a alegação da recorrente esse erro resulta da avaliação imprudente das seguintes provas: perícia colegial, cujo relatório foi tirado por unanimidade; o depoimento da testemunha …, proprietário do 1º andar esquerdo, fracção D), do edifício, transcrito, em parte, na alegação do recurso; depoimento de parte do autor.

Quanto a esta última prova pessoal, não há que proceder à sua reponderação, dado que a recorrente não cumpriu, no tocante a ela, o ónus de impugnação da matéria de facto a que estava vinculado, dado que não indica a passagem da gravação em que se funda, nem procedeu à respectiva transcrição (artº 685-B nº 1, b), e 2 do CPC de 1861). Mas esta circunstância não obsta à atendibilidade daquele depoimento, no troço em que foi reduzido a escrito, na parte em que houve confissão do depoente (artºs 563 nº 1 e 712 nº 1 a) do CPC de 1961).

Relativamente aos factos que a recorrente reputa de mal julgados, a primeira dúvida que se coloca é a de saber se os defeitos, alegados por aquela, respeitam a trabalhos realizados pelo recorrido.

Na petição inicial o recorrido não especificou ou individualizou os trabalhos que realizou, tendo-se limitado a alegar que prestou à recorrente, serviços na construção de um prédio urbano. Todavia, a leitura das facturas emitidas pelo recorrido, relativas a esses trabalhos – que não foram objecto de impugnação – permitem determinar que trabalhos é que, efectivamente, foram realizados pelo apelado.

Dessas facturas não decorre, por exemplo, que entre os trabalhos realizados pelo recorrido se conte o reboco das paredes das garagens. De resto, os peritos não percepcionaram um tal defeito, tendo-se limitado a constatar que apenas algumas paredes estavam rebocadas, encontrando-se outras apenas pintadas.

Em face disto – e na ausência de qualquer outra prova -, não pode dizer-se que o decisor de facto da 1ª instância tenha errado ao julgar provado o facto relativo ao defeito do reboco das garagens.

O recorrido procedeu ao assentamento dos blocos das paredes garagem, aplicação que, de harmonia com a alegação da recorrente, foi feito com defeito. Perguntados sobre este defeito, os peritos nada disseram no tocante ao assentamento dos blocos, tendo-se limitado a observar que, em relação às paredes da sub-cave, encontraram a presença de bastante água e humidade nas paredes e pavimentos adjacentes e que se verificava, numa das arrecadações daquele piso, a queda de água na zona do tubo de queda, o que leva à presença de água e humidades nas paredes e pavimento.

Tendo presente esta prova – e na falta de qualquer outra – não é realmente possível assentar na existência de defeito na aplicação dos blocos.

A recorrente alegou que os degraus da escada estão mal montados e a cair, devido à sua má aplicação – enunciado que o tribunal da audiência julgou igualmente não provado.

Todavia, a este propósito, a única coisa que os peritos constataram – e documentaram fotograficamente no relatório – foi que alguns espelhos das escadas se estão a descolar e alguns até se encontram partidos. Não foram, porém, terminantes sobre a etiologia ou a causa desse defeito, tendo-se limitado a asseverar que uma causa possível para o revestimento de alguns degraus e/ou patamares poderá ser o modo comos os balaústres da escada foram fixados – modo de fixação que julgaram não ser possível afirmar com exactidão – mas que não se podia afirmar plenamente que o espelho descolou pelo assentamento da protecção da escada, pois poderá ser também de uma deficiente colagem no seu assentamento.

Nestas condições, face aos termos dubitativos do parecer dos peritos sobre a causa do descolamento e da fractura dos espelhos – que, em todo o caso, não equivale à mal montagem dos degraus – não é, na verdade possível, numa avaliação prudente da prova, concluir pela realidade do facto relativo à má montagem dos degraus do patamar.

A recorrente alegou que a fracção D) do prédio em causa apresenta deficiências, cuja reparação foi reclamada pelo respectivo proprietário junto do autor - alegação que o decisor de facto da 1ª instância julgou não provada.

A primeira parte desta afirmação – a relativa às deficiências - não contém um enunciado de facto – mas uma pura conclusão. A matéria de excepção – tal como a causa de pedir – deve ser integrada por factos concretos, positivos, e não por conclusões ou juízos de valor.

Depois, a prova disponível também não inculca a veracidade do facto relativo à dedução, pelo proprietário da fracção D), de reclamação junto do autor. Esse proprietário – que é a testemunha C… - ao ser perguntado se reclamou junto do autora, da ré, limitou-se a responder reclamei – resposta que não permite perceber junto de quem é que, realmente, a testemunha reclamou. Todavia, os peritos – a quem foi perguntado se a existirem defeitos na fracção D) já foram denunciados pelo proprietário à Ré, responderam que o Sr. C… – que esteve presente no dia da perícia, afirmou que se queixou à O…, queixa que – segundo o relatório da perícia - teve por objecto uma fuga na caixa de distribuição de águas na cozinha, a guarnição e rodapé de madeira da instalação sanitária comum e a humidade que existe nas paredes da suite.

Por último, o decisor de facto da 1ª instância também julgou não provado que o azulejo e os mosaicos estão mal aplicados e betonados em toda a obra.

A testemunha C… afirmou, no seu depoimento, que digamos que os azulejos da cozinha podiam estar mais perfeitos.

Por sua vez, os peritos constataram, a este propósito, que no apartamento pertencente a C… se verifica que algumas juntas dos azulejos da cozinha da parede oposta à bancada estão com um acabamento rugoso, e observaram, no relatório, que deveriam ter sido mais bem acabadas à semelhança das restantes zonas onde isso não acontece.

E – o que é mais – o autor admitiu, no seu depoimento – reconhecimento que foi documentado na acta – que o acabamento de alguns azulejos na cozinha pertencente a C… foi mal efectuado e que na instalação sanitária comum desse mesmo apartamento, algumas juntas de azulejos estão mal acabadas.

Esta declaração do recorrido, dado que consiste no reconhecimento inequívoco da realidade de um facto que o desfavorece e favorece a recorrente, é uma verdadeira confissão judicial, que, tendo sido reduzida a escrito tem, portanto, força probatória plena contra aquele (artºs 352, 355 nº 2 e 358 nº 1 do Código Civil).

É verdade que tanto esta declaração confessória – que o decisor de facto da 1ª instância desconsiderou completamente - como a perícia e o depoimento daquela testemunha só insuficientes para julgar demonstrado – como alegava a recorrente – que o azulejo e os mosaicos estão mal aplicados e betonados em toda a obra; mas é inteiramente suficiente para julgar provado que, no apartamento pertencente a C…, algumas juntas dos azulejos da cozinha e da instalação sanitária comum estão mal acabadas.

Sendo isto exacto, então há realmente razão para concluir que o decisor da 1ª instância incorreu, quanto a este último ponto – mas só quanto a este ponto - num error in iudicando e, portanto, para modificar esse julgamento, julgando-se provado que no apartamento pertencente a C…, algumas juntas dos azulejos da cozinha e da instalação sanitária comum estão mal acabadas.

Resta, porém, saber se esta modificação da decisão de facto é suficiente para garantir à recorrente a procedência do recurso e, correspondentemente, a improcedência da acção.

3.4. Concretização.

Está adquirido à certeza que o recorrido realizou a prestação de obra a que se vinculou por força do contrato de empreitada e que a recorrente, porém, não lhe pagou o preço convencionado. Para se furtar á realização desta prestação pecuniária, a recorrente alegou o cumprimento defeituoso, pelo apelado, da sua obrigação e opôs-lhe a exceptio do não cumprimento. E realmente, em consequência da reponderação por esta Relação do julgamento da matéria de facto, apurou-se que no apartamento pertencente a C…, algumas juntas dos azulejos da cozinha e da instalação sanitária comum estão mal acabadas.

Simplesmente, apesar deste vício da obra prestada pelo apelado, deve recusar-se à apelante a actuação da exceptio.

Como se notou, a excepção do não cumprimento não deve não deve admitir-se sempre que se mostre contrária à bona fide, se a excepção é uma simples concretização da boa fé, esta exclui decerto a sua actuação sempre que seja oposta a um mau cumprimento de importância escassa.

E é esse justamente o caso do recurso, já que por simples defeito das juntas de alguns azulejos, a apelante recusa pagar a totalidade do preço: € 11.466,33.

 A boa fé permitiria, decerto que o executado recusasse a realização da sua prestação, no valor correspondente à desvalorização da obra provocada por aquele com defeito – mas não seguramente de todo o preço.

O recurso não tem, pois, bom fundamento. Cumpre recusar-lhe provimento.

Síntese recapitulativa:

a) No caso de mau cumprimento, pelo empreiteiro, da sua prestação de obra, é lícito ao dono da obra opor-lhe a excepção do contrato não cumprido;

b) Como, porém, exceptio arranca e é materialmente alimentada pela boa fé, a bona fide exclui a sua actuação sempre que o não cumprimento, ou o mau cumprimento ou cumprimento defeituoso não seja significante e, portanto, sempre que a alegação da excepção não observe o princípio regulativo da proporcionalidade ou do equilíbrio entre as posições jurídicas daquele que opõe a excepção e daquele a quem ela é oposta.

A recorrente, dado que sucumbe no recurso, deverá satisfazer as custas dele (artº 527 nº1 e 2 do CPC).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso.

Custas pela apelante.

                                                                                                              14.02.25

                                                                                                              Henrique Antunes - Relator

José Avelino Gonçalves

                                                                                                              Regina Rosa


[1] Ac. do STJ de 09.12.87, BMJ nº 372, pág. 369.
[2] Michele Tarufo, Páginas Sobre Justicia Civil, Marcial Pons, 2009, pág. 53.
[3] Michele Tarufo, cit., págs. 36 e 37.
[4] Acs. do STJ de 08.07.87, BMJ nº 369, pág. 481, da RP de 06.01.94, CJ, 94, I, pág. 197 e da RL de 03.11.94, CJ, 94, V, pág. 90.
[5] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra, 1984, pág. 140, Lebre de Freitas/Montalvão Machado/Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra, 2001, pág. 703, e Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, Lex, 1997, págs. 221 e 222.
[6] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, cit., pág. 139 e 140 e Acs. da RP de 06.01.94 e da RL de 03.11.94 e 17.1.91, CJ, 94, I, págs. 197, 94, V, pág. 90 e 91, I., pág. 121, respectivamente.
[7] Ac. do STJ de 26.09.95, CJ, 95, III, pág. 22 e da RE de 24.11.94, BMJ nº 441, pág. 420.
[8] Acs. do STJ de 26.09.95, CJ, STJ, III, pág. 22 e de 16.01.96, CJ, STJ, III, pág. 43.
[9] Acs. da RC de 11.01.94, BMJ nº 433, pág. 633, do STJ de 21.10.88, BMJ nº 380, pág. 444 e de 30.05.89, BMJ nº 387, pág. 456 e da RC de 21.01.92, CJ, I, pág. 86.
[10] Galvão Telles, Manual dos Contratos em Geral, 2ª edição, págs. 402 e 403.
[11] Pedro Romano Martinez, Cumprimento Defeituoso, em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, Almedina, Coimbra, 1994, pág. 185. É portanto, à luz do fim visado pelas partes com a obra – concepção subjectivo-concreta de defeito – ou, na sua falta, à luz do uso corrente, habitual – noção objectiva do defeito – que se aprecia a existência do vício. Cfr. João Calvão da Silva, Estudos Jurídicos (Pareceres), Almedina, Coimbra, 2001, págs. 335 e 336.
[12] Pereira de Almeida, Direito Privado II (Contrato de Empreitada), pág. 73, Lebre de Freitas, O ónus da denúncia do defeito da empreitada no artº 1225 do Código Civil, O Direito, Ano 131 (1999), pág. 240 e Pedro Romano Martinez, o Incumprimento Defeituoso, cit., pág. 281; Acs. da RC de 19.04.05 e de 16.01.07, CJ, XXX, II, pág. 31 e XXXII, I, pág. 5, respectivamente, e da RP de 19.03.07, www.dgsi.pt. contra Ac. do STJ de 23.11.06, www.dgsi.pt.
[13] Ac. da RP de 11.02.11, www.dgsi.pt.
[14] José A. Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, Almedina, Coimbra, 2009, págs. 234 a 240.
[15] José João Abrantes, A Excepção do Não Cumprimento do Contrato, Coimbra, 1986, págs. 39 e ss e Ac. do STJ de 11.12.84, BMJ nº 342, pág. 357.
[16] Almeida Costa, Direito das Obrigações, 7ª edição, Almedina, Coimbra, 1998, págs. 311 e 312 e RLJ, Ano 119, pág. 143, Vaz Serra, RLJ, Anos 105, pág. 283, e 108, pág. 155, José João Abrantes, A Excepção, cit., pág. 70, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 5ª edição, págs. 38 e 349 e António Menezes Cordeiro, “Violação positiva do contrato, Estudos de Direito Civil, vol. I, Almedina, Coimbra, 1987, págs. 139 a 141; Acs. da RC de 06,03,07, www.dgsi.pt, e 06.07.82, CJ, 92, IV, pág. 35 da RL de 17.10.95, CJ, 95, IV, pág. 116 e do STJ, de 13.05.03, www.dgsi.pt.
[17] António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, Tomo I, cit., pág. 182.
[18]  Vaz Serra, Excepção de contrato não cumprido, BMJ nº 67, pág. 42 a 44, José João Abrantes, “Contrato de empreitada e excepção do não cumprimento, Cadernos de Direito Privado, nº 18, págs. 53 a 58, João Cura Mariano, Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra, 2012, 5ª edição, pág. 161; Acs. da RC de 27.10.05, da RP de 29.11.06, da RG de 06.04.12, da RC de 24.02.12, da RP de 20-03.12 e da RG de 31.05.12.
[19] Ac. da RP de 03.02.81, BMJ nº 304, pág. 469.
[20] Ac. do STJ de 14.03.06, CJ, STJ, XIV, I, pág. 130, e António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, Almedina, Coimbra, 2007, pág. 271.
[21] Michelle Taruffo, La Prueba, Marcial Pons, Madrid, 2008, págs. 42 e 43.