Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
427/13.8TBPMS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE
PAGAMENTO
DÍVIDA DE CÔNJUGES
COMUNICABILIDADE
PROVEITO COMUM
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 12/15/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA, LEIRIA, INSTÂNCIA CENTRAL, SECÇÃO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 1691.º DO CC
Sumário: Cabe aos credor alegar e provar a existência do proveito comum do casal ou de qualquer outro dos requisitos de comunicabilidade da dívida previstos no referido art.º 1691.º do Código Civil.
Decisão Texto Integral:

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

A... , intentou a presente acção declarativa com forma de processo comum contra B... e mulher C... , já todos identificados nos autos, formulando os seguintes pedidos:

a) Declarar-se a nulidade do contrato de mútuo por vício de forma;

b) Condenar-se os réus a restituírem a quantia de 50.000,00 €, acrescida dos respectivos juros ou frutos civis vencidos à taxa de 4% ao ano, no montante de 20.493,15 € e dos vincendos a partir de 01.04.2013, à mesma taxa até efectivo pagamento.

Para tanto, alega que em 10 de Setembro de 2002, o réu pediu emprestado a “D.... , L.da”, a quantia de 50.000,00 €, para custear as despesas com as obras de ampliação e remodelação da casa para residência da sua família, para o que foi emitido, à ordem do réu marido o cheque do Finibanco n.º 1.. , no valor de 50.000,00 €, que o réu recebeu e depositou na sua conta, no dia 13 de Setembro de 2002.

O réu obrigou-se a restituir tal quantia até ao dia 31 de Dezembro de 2002, bem como a pagar juros à taxa de 10%, ao ano, o que não fez.

Em 30 de Dezembro de 2003 “ D... , L.da”, cedeu à autora, o referido crédito.

Como o referido mútuo não foi celebrado por escritura pública, é o mesmo nulo, devendo, por isso, ser restituída a quantia mutuada, acrescida de juros, enquanto frutos civis, que a autora limita à taxa de 4%, ao ano.

Mais alega a autora que os réus são casados no regime da comunhão geral de bens, o que já se verificava em 10 de Setembro de 2002 e o cheque acima referido foi depositado em conta comum de ambos os réus e a quantia nele referida, foi utilizada nas obras de ampliação e remodelação da casa de morada da sua família, que é pertença de ambos os réus, do que deriva, igualmente, a responsabilidade da ré, pelo pagamento da quantia mutuada, que, para além do mais, autorizou e consentiu o referido empréstimo.

Contestando, no que ao presente recurso interessa, alegou a ré a sua ilegitimidade, com o fundamento em nunca ter solicitado nem à ora autora, nem à referida primitiva credora, qualquer empréstimo, nem nunca ter tido intervenção em qualquer conversa quanto ao alegado empréstimo, nem lhe foi entregue qualquer quantia, nem autorizou tal empréstimo, nem dele beneficiou fosse de que modo fosse, bem como referiu que a alegada quantia não foi utilizada em qualquer obra de ampliação e remodelação da casa de morada de família, que pertencia a ambos os réus; em função do que pugna pela sua absolvição da instância.

Respondendo, a autora, reitera, quanto a tal, o que já havia alegado na petição inicial, pugnando, em consequência pela condenação da ré, nos termos peticionados.

Teve lugar audiência prévia, no decurso da qual foi proferido despacho saneador, que julgou improcedente a excepção de ilegitimidade da ré, por se tratar do mérito da causa e se fixou o objecto do litígio e se enunciaram os temas de prova.

Realizou-se a audiência de julgamento com observância do legal formalismo, com recurso à gravação dos depoimentos prestados, finda a qual foi proferida a sentença de fl.s 157 a 169, na qual se seleccionou a matéria de facto dada como provada e não provada e respectiva fundamentação e a final se decidiu o seguinte:

“Nos termos e fundamentos expostos,

1. Julgo a presente acção parcialmente procedente e, em consequência,

2. Condeno o 1.º Réu B... a entregar à Autora A... a quantia de €50.000,00 (cinquenta mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde a citação até integral pagamento.

3. Absolvo o 1.º Réu B... da restante quantia pedida.

4. Absolvo a 2.ª Ré C... de todo o pedido formulado pela Autora.

5. As custas são a cargo da Autora e do 1.º Réu, na proporção do decaimento.“.

Inconformada com a mesma, interpôs recurso a autora A... , recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (cf. despacho de fl.s 211), rematando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

1 - O que nestes autos releva é saber se a quantia de €50.000,00 (cinquenta mil euros) que o credor primitivo emprestou ao 1.º Réu integrou o património comum de ambos os RR. e se, tal quantia, reverteu em proveito comum de ambos.

2 - E aqui seguimos de perto os ensinamentos do Prof. Pereira Coelho, no sentido de que o proveito comum não se afere pelo resultado mas antes pela aplicação da quantia que originou a dívida, ou seja, o que releva é a finalidade que o devedor tinha em vista quando contraiu tal dívida, devendo tal finalidade beneficiar o casal.

3 - Ao depositar a quantia de 50.000,00 € (cinquenta mil euros) na conta comum do casal para cuja movimentação a 2.ª Ré havia dado o prévio consentimento, tal quantia integrou-se de imediato no património comum do casal, enriquecendo-o nessa medida, pouco importando já para a questão em apreço, quais os pagamentos ou investimentos efectuados a partir daquela conta e quem a movimentou, se o 1.º ou a 2.ª R.

4 - O proveito comum do casal a que alude o art. 1691.º, n.º 1, al. c) do C. Civil, afere-se pelo fim objectivamente visado pelo agente, ou seja, pela aplicação da dívida no interesse de ambos os cônjuges ou da sociedade familiar em geral, visto aos olhos de uma pessoa média e, portanto, à luz das regras da experiência e das probabilidades normais. (vide Ac. do Tribunal da Relação de Gumarães, Processo n.º 181/07-1, de 22/02/2007, in www.dgsi.pt)

5 - O simples depósito de 50.000,00 € (cinquenta mil euros) proveniente do empréstimo contraído por um dos cônjuges na conta titulada por ambos os cônjuges é um facto constitutivo do proveito comum do casal e da comunicabilidade da dívida proveniente do empréstimo. Caberia ao outro cônjuge provar o contrário.

6 - Nas palavras de Pires de Lima e Antunes Varela, na anotação ao artigo 342.º do Código Civil, in Código Civil Anotado, pág. 306, aquele que invoca determinado direito tem de provar os factos que normalmente o integram; a parte contrária terá de provar, por seu turno, os factos anormais que excluem ou impedem a eficácia dos elementos constitutivos.

(…)

Nos casos de dúvida sobre se determinado elemento é facto constitutivo ou se é a sua falta que representa um facto impeditivo, o n.º 3 do artigo 342.º dá um critério supletivo, optando pela primeira solução.

7 - Os factos das alíneas a), b), c) e d) constantes da matéria não provada foram, no nosso entender, incorrectamente julgados e valorados não se atendendo nem valorando os depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas pela Autora.

8 - Sobre aqueles factos apenas foram inquiridas as testemunhas:

- G...

- H...

- E...

9 - Da prova produzida em julgamento quer a testemunha G... , que presenciou o momento em que o credor primitivo entregou ao 1.º R. o cheque da quantia de €50.000,00 (cinquenta mil euros) e assistiu à conversa havida entre ambos, quer a testemunha H... quer ainda a testemunha E... que melhor que ninguém pode relatar os factos tal como aconteceram pois foi ele quem emprestou a referida quantia ao 1.º Réu, resulta que, a quantia foi pedida pelo 1.º Réu para custear as obras de ampliação e remodelação da casa de família e foi utilizada nessas obras de melhoramento.

10 – No seu depoimento G... que presenciou o 1.º Réu a pedir o empréstimo dizendo que era para reparar a casa.

11 - No seu depoimento H... referiu que ao fornecer a pedra para obras na vivenda do Réu, há uns 10/12 anos atrás, lhe foi referido pelo cunhado do Réu ( J... ) que quem tinha financiado as obras tinha sido um canadiano mas que não soube logo quem era, só mais tarde veio a saber que era o senhor E... mais referindo que tal conversa ocorreu no tempo das obras e confirmou também ao Tribunal que era nessa casa que os Réus viviam.
12 – E... referiu de forma isenta as circunstâncias em que o empréstimo foi pedido, para que finalidade e esclareceu ainda que a 2.ª Ré dele teve conhecimento. Esclareceu também que, por seu naturalizado canadiano é por isso conhecido como “o canadiano”. Mais referiu ter feito o cheque no nome da empresa “ D... ” e que tal valor se destinava a colmatar os trabalhos na vivenda onde o 1.º Réu vive com esposa, 2.ª Ré. Foi o 1.º Réu que lhe disse que tal valor era para utilizar na casa de família.
13 – A testemunha E... referiu ainda que, o valor das obras foi superior a 100.000,00 € esclarecendo que os acabamentos eram muito bons e que foram feitas com requinte. Mais disse que, foi acrescentado escritório, foi arranjada toda a casa, a casa era de rés-do-chão e passou a ter um 1.º andar, foram feitos uns anexos sendo uma casa bastante grande e com luxo.
14 – A testemunha I... questionado acerca do valor estimado das obras referiu que não fazia ideia mas que era uma casa grande, valores como cento e muitos mil euros, duzentos mil, eram números grandes.

15 - Não poderia o douto Tribunal a quo concluir que, uma vez que os Réus recorreram ao crédito bancário para fazerem obras não se vê a necessidade de recorrerem a mútuo junto de particulares.

16 - Do que acima ficou dito conclui-se que, todas as testemunhas arroladas pela Autora foram capazes de concretizar que o empréstimo foi pedido pelo 1.º R. para a realização de obras na casa de família dos Réus e que a 2.ª Ré teve conhecimento desse mesmo empréstimo e do fim a que se destinava.

17 - Pelo que, os factos descritos nas alíneas a), b), c) e d) da matéria dada como não provada deverão declarar-se provados, designadamente:

a) - o 1.ª Réu formulou o pedido de empréstimo para custear as despesas com as obras de ampliação e remodelação da casa para residência da sua família; (1.º P.I.)

b) - o 1.ºRéu incorporou a quantia de €50.000,00 (cinquenta mil euros) no património comum do seu casamento; (11.º P.I.)

c) - a referida quantia foi utilizada nas obras de ampliação e remodelação da casa de morada de família que é pertença de ambos os Réus; (13.º P.I.)

 d) - o empréstimo em causa e estipulação de juros teve o consentimento da 2.ª Ré. (14.º P.I.)
18 - Na douta sentença recorrida não se fez correcta interpretação e aplicação do disposto nos artigos 1690.º, 1691.º, 342.º n.ºs 2 e 3 e 349.º, todos do Código Civil, normas que foram violadas.


Pelo exposto, e pelo d. suprimento de V.ªs Ex.ªs, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, revogar-se a d. sentença na parte em que absolveu a 2.ª Ré de todo o pedido formulado pela Autora e condenar-se a 2.ª Ré solidariamente com o 1.º Ré a entregar à Autora a quantia de €50.000,00 (cinquenta mil euros) acrescida de juros de mora à taxa legal de 4%, contados desde a citação até integral pagamento, com as legais consequências legais.
Assim decidindo se fará JUSTIÇA

Contra-alegando, a ré, pugna pela manutenção da decisão recorrida, defendendo que a prova produzida foi correctamente apreciada, não se devendo, por isso, alterar a matéria de facto tida por provada e não provada e aplicada a lei, em conformidade.

Colhidos os vistos legais, há que decidir.    

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado no artigo 635, n.º 4 do nCPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, são as seguintes as questões a decidir:

A. Incorrecta análise e apreciação da prova – reapreciação da prova gravada, relativamente aos factos constantes das alíneas a) a d), dos factos considerados como não provados, que devem passar a ser considerados como provados e;

B. Se a ré também é responsável pelo pagamento da dívida peticionada nos autos, por a quantia mutuada ter revertido em proveito comum de ambos os réus.

É a seguinte a matéria de facto dada por provada na decisão recorrida:

1. Em 10 de Setembro de 2002, o 1.º Réu pediu emprestado a E... , sócio-gerente da sociedade “ D... , Lda.”, a quantia de €50.000,00 [1.º P.I.].

2. Para satisfação do pedido do 1.º Réu, “ D... , Lda.” (representada por E... ) emitiu à ordem do 1.º Réu o cheque do Finibanco n.º 1.. no valor de €50.000,00 [2.º P.I.].

3. Cheque que o 1.º Réu recebeu e depositou na sua conta no dia 13 de Setembro de 2002 [3.º P.I.].

4. O 1.º Réu recebeu tal quantia, obrigou-se a restituí-la até ao dia 31/12/2002 e a pagar os respectivos juros à taxa de 10% ao ano, a partir de 31 de Dezembro de 2002 [4.º P.I.].

5. O 1.º Réu não restituiu a “ D... , Lda.” a referida quantia nem lhe pagou quaisquer juros [5.º P.I.].

6. No dia 30/12/2003 “ D... , Lda.” cedeu à Autora o referido crédito [6.º P.I.].

7. Os Réus são casados no regime da comunhão geral de bens e já eram em 10/09/2002 [10.º P.I.].

8. O cheque acima mencionado foi depositado na conta comum de ambos os Réus [12.º P.I.].

9. O objecto social da sociedade comercial por quotas “ D... , Lda.” é “construção civil, compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim” [33.º Cont.].

10. Os Réus encontram-se separados de pessoas e bens por mútuo consentimento homologado a 16 de Maio de 2013 [54.º Cont.].

*

B. Factos Não Provados

Não resultaram provados os seguintes factos:

a) Que o 1.º Réu formulou o pedido de empréstimo para custear as despesas com as obras de ampliação e remodelação da casa para residência de sua família [1.º P.I.].

b) Que o 1.º Réu incorporou a referida quantia de €50.000,00 no património comum do seu casamento [11.º P.I.].

c) Que a referida quantia foi utilizada nas obras de ampliação e remodelação da casa de morada da sua família que é pertença de ambos os Réus [13.º P.I.].

d) Que o empréstimo em causa e estipulação de juros teve o consentimento da 2.ª Ré [14.º P.I.].

e) Que o sócio-gerente da sociedade “ D... , Lda.”, acordou no final do ano de 2002 com o 1.º Réu que o montante de €50.000,00 que lhe tinha entregue através de um cheque desta sociedade ficaria por conta de projectos de construção civil que este iria continuar a elaborar [39.º Cont.].

f) Que na sequência desse acordo, o 1.º Réu elaborou os seguintes projectos de construção civil, a pedido de E... , (sócio gerente da “ D... , Lda.”), orçamentados nos seguintes valores [40.º a 43.º Cont.]:

- Um projecto de um bloco habitacional de 8 pisos, em nome de F... , no ano de 2005, cujo preço foi de € 15.000,00 euros;

- Um projecto de Condomínio habitacional de 15 moradias individuais, em nome de A... , Autora nos presentes autos, no ano de 2006, cujo preço foi de € 48.000,00;

- Um projecto para 2 (duas) moradias individuais e um destaque, em nome de E... , no ano de 2007, cujo preço foi de € 6.800,00;

- Um destaque em nome da Sociedade M ... – Compre e venda de Imóveis, SA, no ano de 2007, cujo preço foi de € 350,00;

- Um projecto em nome de Y... – Construção Civil, Unipessoal, Lda., actualmente transformada em sociedade anónima, em que é Administradora A... , aqui Autora, e seu procurador E... –, no ano de 2009, cujo preço foi de € 3.200,00.

g) Que o montante de cada projecto era para abater no adiantamento que lhe tinha sido efectuado por E... , através de um cheque de uma sociedade de que este era sócio-gerente [44.º Cont.].

h) Que o Réu marido já solicitou, por diversas vezes, ao sócio gerente da “ D... , Lda.”, E... , que se fizesse o encontro de contas [62.º Cont.].

A. Incorrecta análise e apreciação da prova – reapreciação da prova gravada, relativamente aos factos constantes das alíneas a) a d), dos factos considerados como não provados, que devem passar a ser considerados como provados.

Alega a autora que o Tribunal incorreu em erro de julgamento ao dar como não provados os factos em referência, devendo, na sua óptica, os mesmos serem dados como provados, estribando-se, para tal, nos depoimentos prestados pelas testemunhas G... , H... , E... , I... e no depoimento prestado pela própria ré.

Contrapondo, esta, que a matéria de facto dada por assente e não provada é de manter, com base nos depoimentos das mesmas testemunhas.

Posto isto, e em tese geral, convém, desde já, deixar algumas notas acerca da produção da prova e definir os contornos em que a mesma deve ser apreciada em 2.ª instância.

Toda e qualquer decisão judicial em matéria de facto, como operação de reconstituição de factos ou acontecimento delituoso imputado a uma pessoa ou entidade, esta através dos seus representantes, dependente está da prova que, em audiência pública, sob os princípios da investigação oficiosa (nos limites e termos em que esta é permitida ao julgador) e da verdade material, se processa e produz, bem como do juízo apreciativo que sobre a mesma recai por parte do julgador, nos moldes definidos nos artigos 653, n.º 2 e 655, n.º 1, CPC – as já supra mencionadas regras da experiência e o princípio da livre convicção.

Submetidas ao crivo do contraditório, as provas são pois elemento determinante da decisão de facto.

Ora, o valor da prova, isto é, a sua relevância enquanto elemento reconstituinte dos factos em apreço, depende fundamentalmente da sua credibilidade, ou seja, da sua idoneidade e autenticidade.

Por outro lado, certo é que o juízo de credibilidade da prova por declarações, depende essencialmente do carácter e probidade moral de quem as presta, sendo que tais atributos e qualidades, como regra, não são apreensíveis mediante o exame e análise das peças ou textos processuais onde as mesmas se encontram documentadas, mas sim através do contacto directo com as pessoas, razão pela qual o tribunal de recurso, salvo casos de excepção, deve adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido.

Quanto à apreciação da prova, actividade que se processa segundo as regras da experiência comum e o princípio da livre convicção, certo é que em matéria de prova testemunhal (em sentido amplo) quer directa quer indirecta, tendo em vista a carga subjectiva inerente, a mesma não dispensa um tratamento a nível cognitivo por parte do julgador, mediante operações de cotejo com os restantes meios de prova, sendo que a mesma, tal como a prova indiciária de qualquer outra natureza, pode e deve ser objecto de formulação de deduções e induções, as quais partindo da inteligência, hão-de basear-se na correcção de raciocínio, mediante a utilização das regras de experiência e conhecimentos científicos, tudo se englobando na expressão legal “regras de experiência”.

Estando em discussão a matéria de facto nas duas instâncias, nada impede que o tribunal superior, fundado no mesmo princípio da livre apreciação da prova, conclua de forma diversa do tribunal recorrido, mas para o fazer terá de ter bases sólidas e objectivas.

Não se pode olvidar que existe uma incomensurável diferença entre a apreciação da prova em primeira instância e a efectuada em tribunal de recurso, ainda que com base nas transcrições dos depoimentos prestados, a qual, como é óbvio, decorre de que só quem o observa se pode aperceber da forma como o testemunho é produzido, cuja sensibilidade se fundamenta no conhecimento das reacções humanas e observação directa dos comportamentos objectivados no momento em que tal depoimento é prestado, o que tudo só se logra obter através do princípio da imediação considerado este como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes de modo a que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da decisão.

As consequências concretas da aceitação de tal princípio definem o núcleo essencial do acto de julgar em que emerge o senso; a maturidade e a própria cultura daquele sobre quem recai tal responsabilidade. Estamos em crer que quando a opção do julgador se centre em elementos directamente interligados com o princípio da imediação (v. g. quando o julgador refere não foram (ou foram) convincentes num determinado sentido) o tribunal de recurso não tem grandes possibilidades de sindicar a aplicação concreta de tal princípio.

Na verdade, o depoimento oral de uma testemunha é formado por um complexo de situações e factos em que sobressai o seu porte, reacções imediatas, o contexto em que é prestado o depoimento e o ambiente gerado em torno de quem o presta, não sendo, ainda, despiciendo, o próprio modo como é feito o interrogatório e surge a resposta, tudo isso contribuindo para a convicção do julgador.

A comunicação vai muito para além das palavras e mesmo estas devem ser valoradas no contexto da mensagem em que se inserem, pois como informa Lair Ribeiro, as pesquisas neurolinguísticas numa situação de comunicação apenas 7% da capacidade de influência é exercida através da palavra sendo que o tom de voz e a fisiologia, que é a postura corporal dos interlocutores, representam, respectivamente, 38% e 55% desse poder - “Comunicação Global, Lisboa, 1998, pág. 14.

Já Enriço Altavilla, in Psicologia Judiciaria, vol. II, Coimbra, 3.ª edição, pág. 12, refere que “o interrogatório como qualquer testemunho, está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá também aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras”.

Então, perguntar-se-á, qual o papel do tribunal de recurso no controle da prova testemunhal produzida em audiência de julgamento?

Este tribunal poderá sempre controlar a convicção do julgador na primeira instância quando se mostre ser contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos. Para além disso, admitido que é o duplo grau de jurisdição em termos de matéria de facto, o tribunal de recurso poderá sempre sindicar a formação da convicção do juiz ou seja o processo lógico. Porém, o tribunal de recurso encontra-se impedido de controlar tal processo lógico no segmento em que a prova produzida na primeira instância escapa ao seu controle porquanto foi relevante o funcionamento do princípio da imediação.

Tudo isto, sem prejuízo, como acima já referido, de o Tribunal de recurso, adquirir diferente (e própria) convicção (sendo este o papel do Tribunal da Relação, ao reapreciar a matéria de facto e não apenas o de um mero controle formal da motivação efectuada em 1.ª instância – cf. Acórdão do STJ, de 22 de Fevereiro de 2011, in CJ, STJ, ano XIX, tomo I/2011, a pág. 76 e seg.s e de 30/05/2013, Processo 253/05.7.TBBRG.G1.S1, in http://www.dgsi.pt/jstj.

Tendo por base tais asserções, dado que se procedeu à gravação da prova produzida, passemos, então, à reapreciação da matéria de facto em causa, a fim de averiguar se a mesma é de manter ou de alterar, em conformidade com o disposto no artigo 662, do nCPC., pelo que, nos termos expostos, nos compete apurar da razoabilidade da convicção probatória do tribunal de 1.ª instância, face aos elementos de prova considerados (sem prejuízo, como acima referido de, com base neles, formarmos a nossa própria convicção).

Vejamos, então, a factualidade posta em causa pelos ora recorrentes, nas respectivas alegações de recurso.

Incorrecta análise e apreciação da prova – reapreciação da prova gravada, relativamente aos factos constantes das alíneas a) a d), dos factos considerados como não provados, que devem passar a ser considerados como provados.

Para melhor esclarecimento e facilitar a decisão desta questão, passa-se a transcrever o teor de tal factualidade:

“a) Que o 1.º Réu formulou o pedido de empréstimo para custear as despesas com as obras de ampliação e remodelação da casa para residência de sua família [1.º P.I.].

b) Que o 1.º Réu incorporou a referida quantia de €50.000,00 no património comum do seu casamento [11.º P.I.].

c) Que a referida quantia foi utilizada nas obras de ampliação e remodelação da casa de morada da sua família que é pertença de ambos os Réus [13.º P.I.].

d) Que o empréstimo em causa e estipulação de juros teve o consentimento da 2.ª Ré [14.º P.I.]. “.

É a seguinte a respectiva motivação (cf. fl.s 159 e 160):

“Os factos relativos às finalidades do empréstimo concedido e consentimento da 2.ª Ré (1.º, 11.º, 13.º e 14.º P.I.) resultaram não provados pelos seguintes motivos:

Com efeito, a testemunha G... referiu nada saber esclarecer sobre o que acordaram sobre as finalidades do empréstimo; a testemunha H... referiu ter tido conhecimento da remodelação da casa do 1.º Réu, mas para além de generalidades não foi capaz de esclarecer se o dinheiro do empréstimo aí foi efectivamente aplicado; a testemunha E... (irmão da Autora, o sócio gerente do credor primitivo, a quem o 1.º Réu pediu o empréstimo) referiu ter emprestado €50.000,00 ao 1.º Réu para este poder colmatar obras de remodelação que se encontrava a fazer na sua vivenda, mais referindo que a 2.ª Ré sabia disso porque estava presente e ouviu tal conversa, no entanto, para além do evidente interesse do seu depoimento, precisamente por ter sido o autor da cessão de crédito à Autora sua irmã, o seu depoimento foi vago e genérico, não foi capaz de concretizar exactamente em que circunstâncias de tempo e lugar se passaram as conversas tidas com o 1.º Réu de modo a poder dizer-se que o seu depoimento foi isento e coerente – por isso não mereceu credibilidade.

Além disso, a contraprova de tais factos apresentada pelos Réus teve a virtualidade de tornar duvidosa a prova apresentada pela Autora a propósito de tais factos (cfr. art. 346.º, do Código Civil).

Com efeito, a testemunha I... (Bancário do Montepio, de 2000 a 2004 estava no balcão de Porto de Mós, esclareceu que trabalhava com o 1.º Réu na vertente pessoal e na vertente profissional) esclareceu que o 1.º Réu separava as suas contas bancárias pessoais das contas profissionais e tem conhecimento da realização de obras na moradia deste devido a financiamento concedido, o que foi comprovado pelos documentos relativos à concessão de tal crédito (cfr. fls. 152) – efectuou um depoimento isento e coerente, demonstrando não ter qualquer interesse na causa, merecendo por isso a nossa credibilidade.

Ou seja, uma vez que os Réus recorreram ao crédito bancário para fazerem obras não se vê a necessidade de recorrerem a mútuo junto de particulares, principalmente sendo consabido que nessa altura os bancos concediam facilmente crédito.

Finalmente, do depoimento de parte da Ré C... , não resultou a admissão dos factos que lhe são imputados, apenas referindo que a conta onde foi depositado o dinheiro em causa era comum, nada mais sabendo esclarecer, negando insistentemente que tivesse conhecimento do empréstimo em causa.”.

Vejamos, então, se dos depoimentos invocados pela recorrente, e sem olvidar as considerações prévias, quanto a tal, já acima explanadas, existem motivos para que as supras mencionadas respostas sejam modificadas ou alteradas.

Ora, ouvidos, na íntegra, todos os depoimentos prestados pelas testemunhas e pela ré, que depuseram acerca desta questão, resulta que as mesmas, de relevante, referiram o seguinte:

A ré, C... , negou ter tido qualquer conhecimento do empréstimo em causa, nem o autorizou e que o seu marido nunca lhe falou nesse assunto.

Referiu, ainda, que não movimentava nem consultava a conta onde foi depositado o cheque e que para as obras que fizeram em casa, pediram um empréstimo ao banco que, mais tarde, foi reforçado e chegou para fazer as ditas obras.

Questionada sobre o valor destas, disse “não conseguir precisar o valor destas”.

A testemunha G... , conhecido de todas as partes, referiu que no fim do Verão de 2002 ou 2003, estava na Boa Vista, numa casa onde estava, nessa altura, o E... e observou que o B... lá foi buscar um cheque de 50.000,00 € e disse “que era para reparar a casa” mas quanto a tal questionado, disse desconhecer se a casa dos réus foi ou não intervencionada, “não sabe se o dinheiro foi para aplicação de obras na casa”.

Por H... , conhecido de ambas as partes, foi referido que quando o B... andava a fazer obras na casa, teve uma conversa com um cunhado do B... , chamado J... , que lá andava a trabalhar, motivada pelo custo das mesmas, que lhe disse que “o dinheiro tinha sido emprestado, tinha sido um canadiano” e só mais tarde “soube que o canadiano era o E... ”.

Referiu, ainda, que as obras custaram “não menos de 80.000,00 €”.

E... , irmão da autora e conhece os réus, disse que é naturalizado canadiano e foi ele quem, inicialmente, emprestou o dinheiro ao réu. Este queria 80.000,00 €, mas só lhe emprestou 50.000,00 €, por para mais não ter disponibilidade.

Acrescentou que o B... lhe disse que “o dinheiro era para colmatar os trabalhos da vivenda na Corredoura” e que “ele fez lá muitas obras, mais de 100.000,00 €”.

Disse, ainda, que a ré ouviu conversas entre ele e o B... , acerca deste empréstimo.

A testemunha I... , funcionário do Montepio Geral e que foi gerente do balcão de Porto de Mós de 2000 a 2004, referiu que o B... tinha a vertente pessoal e profissional e que “houve um crédito à habitação para as obras que ele fez e que foram grandes, à época”.

O B... tinha uma conta pessoal e uma profissional, “separava o que era doméstico do que era profissional e a esposa, não tem presente que fizesse a movimentação da conta profissional”.

Não sabe o valor das obras, mas “era um número grande, financiamento grande”.

Analisados estes depoimentos, sufragamos a “leitura” que dos mesmos foi feita em 1.ª instância, aceitando os argumentos ali expendidos para justificar a não demonstração da matéria em causa, que se resume à questão de saber qual o destino/aplicação que foi dada à quantia mutuada, designadamente se foi utilizada nas obras feitas na residência dos réus, com o consentimento da ora 2.ª ré.

Embora, todas as pessoas ouvidas sejam unânimes em afirmar que à data de tal empréstimo, os réus fizeram obras em casa e obras de vulto, quanto ao preço, o certo é que da prova produzida não se pode extrair a conclusão de que a quantia mutuada tenha servido para a realização/pagamento dessas obras, por tal, em termos seguros, não resultar de nenhum dos depoimentos prestados e para tornar a questão mais duvidosa, não pode esquecer-se que entre o réu B... e o E... , credor inicial, existiam relações profissionais, remuneradas.

A ré, como seria expectável, nega-o, peremptoriamente.

A testemunha G... , apenas referiu que o réu B... , quando foi buscar o cheque, disse que o dinheiro era para as obras, mas desconhecendo a testemunha se assim foi e desde logo, não ficou bem esclarecido o motivo de o réu lhe ter dito isso, quando o normal é que não se tenha este tipo de conversas com terceiros, ainda que amigos.

A testemunha H... , apenas contou a conversa tida com a pessoa supra indicada, mas daí não se pode concluir pela existência de tal empréstimo e muito menos que o seu produto foi aplicado nas obras.

E... , credor inicial, referiu que o destino do dinheiro foi para a realização das obras, de grande custo, com base em declarações que atribui ao próprio réu B... .

Como se refere na motivação dada em 1.ª instância, a testemunha em causa, tem interesse no desfecho da causa e exigia-se-lhe que precisasse e comprovasse, mais concretamente, as negociações havidas e dada a quantia envolvida, seria, certamente, seguro, reduzir a escrito o modo e objecto do empréstimo e nesse documento fazer intervir a ré.

Não o tendo feito, arriscada ficou a sua posição, quanto à demonstração dos factos em apreço.

I... , gerente do Montepio, no balcão de Porto de Mós, apenas referiu as relações havidas, nesse âmbito, com o réu e a existência de um crédito para realização das obras, nada mencionando acerca do empréstimo aqui em causa.

Em suma, tudo aponta, como considerado em 1.ª instância, para que se conclua que não se possa afirmar que a quantia mutuada tenha sido, efectivamente, aplicada nas obras levadas a cabo pelos réus na sua habitação.

Por isso e em conclusão, é de manter como não provada a matéria que consta das alíneas a) a d), dos factos dados como não provados na sentença recorrida.

Assim, improcede, quanto a esta questão, em conformidade com o ora decidido, o presente recurso, em função do que se mantém a factualidade que foi dada como provada (e não provada) em 1.ª instância.

B. Se a ré também é responsável pelo pagamento da dívida peticionada nos autos, por a quantia mutuada ter revertido em proveito comum de ambos os réus.

Sustenta a autora, ora recorrente, que assim é, com o fundamento em que tem de se considerar que a dívida contraída reverteu em proveito comum do, então, casal, porque contraída com vista à realização de um interesse comum ao casal; tendo o cheque sido depositado numa conta conjunta do casal, o que inculca a comunicabilidade da dívida e; incumbindo à ora ré provar o contrário, encontrando-se, no entender da recorrente, verificados os pressupostos exigidos no artigo 1691.º, n.º 1, al. c), do Código Civil, para se considerar a dívida em causa como comum; sem embargo de, também, ter pugnado pela alteração da matéria de facto a considerar como provada, pretensão, esta, em que não logrou obter êxito, como acima já decidido.

Como consta da sentença recorrida, a absolvição da ré no pedido, fundamenta-se no pressuposto de não se ter demonstrado que a quantia mutuada foi aplicada nas obras em causa e, consequentemente, não se poder ter por demonstrada a existência de “proveito comum”, nem no exercício do comércio, nem com autorização ou consentimento da ora 2.ª ré.

Dispõe o artigo 1691.º do CC que:

“1. São da responsabilidade de ambos os cônjuges:

a) As dívidas contraídas, antes ou depois da celebração do casamento, pelos dois cônjuges, ou por um deles com o consentimento do outro;

b) As dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges, antes ou depois da celebração do casamento, para ocorrer aos encargos normais da vida familiar;

c) As dívidas contraídas na constância do matrimónio pelo cônjuge administrador, em proveito comum do casal e nos limites dos seus poderes de administração;

d) As dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges no exercício do comércio, salvo se se provar que não foram contraídas em proveito comum do casal ou se vigorar entre os cônjuges o regime de separação de bens;

(…)

3. O proveito comum do casal não se presume, excepto nos casos em que a lei o declarar.”.

Como resulta do anteriormente exposto, no caso em apreço está em causa saber se a responsabilidade da 2.ª ré pelo pagamento da quantia mutuada radica no facto de ter consentido ou aproveitado da quantia mutuada ao co-réu e/ou por a mesma ter resultado em proveito comum do casal.

O apuramento do proveito comum do casal traduz-se numa questão mista ou complexa, envolvendo questões de facto e de direito, residindo a primeira na determinação do destino dado ao dinheiro representado pela dívida e a segunda, já de carácter jurídico, que consiste em averiguar se tendo em conta aquele destino, se encontra preenchido o conceito legal de proveito comum, tal como vem sendo considerado, uniformemente, pela jurisprudência – neste sentido, entre outros, os Acórdãos do STJ, de 11/11/2008, Processo 08B3303; de 07/12/2005, Processo 05B1995; de 22/10/2009 e Processo 419/07.6TVLSB.S1, todos disponíveis no respectivo sítio do itij.

Quanto ao conceito de “proveito comum”, propriamente dito, tem-se entendido que o mesmo “se afere, não pelo resultado mas pela aplicação da dívida, ou seja, pelo fim visado pelo devedor que a contraiu. Se este fim foi o interesse do casal, a dívida considera-se aplicada em proveito comum dos cônjuges, embora, na realidade, dessa aplicação tenham resultado prejuízos.” – cf. Pereira Coelho, Curso de Direito da Família, Lições ao curso de 1977/78, Coimbra, 1977, a pág.s 348 e 349.

Em idêntico sentido se pronunciam Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Vol. IV, 2.ª Edição Revista E Actualizada, pág. 331 que ali referem que:

“Há assim proveito comum do casal, sempre que a dívida é contraída, tendo em vista um interesse de ambos os cônjuges ou da sociedade familiar em geral (…).

Do que fundamentalmente se trata, portanto, é de saber se o cônjuge administrador, ao contrair a dívida, agiu em vista de um fim comum (ainda que precipitada ou desastrosamente) ou procurou, pelo contrário, realizar um interesse exclusivamente seu, satisfazendo uma necessidade apenas sua.

No primeiro caso, a dívida responsabiliza ambos, seja qual for o regime de bens vigente; no segundo é da exclusiva responsabilidade do cônjuge que a contraia (art.1692.º, al. a)).”.

Assim, atento a que a responsabilização de ambos os cônjuges tem de assentar na verificação de qualquer uma das circunstâncias elencadas no n.º 1 do artigo 1691.º do Código Civil, têm os factos que as suportam de se considerar como constitutivos do direito do credor que, por consequência, os tem de alegar e provar, de acordo com as regras gerais do ónus da prova – artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil.

Daqui decorre, pois, que é à aqui autora que, relativamente à ré, pretensamente devedora, incumbe alegar e provar a existência do proveito comum do casal ou de qualquer outro dos requisitos de comunicabilidade da dívida previstos no referido art.º 1691.º - neste sentido, podem ver-se, os Acórdãos do STJ, de 07/12/2005 e de 22/10/2009, acima já citados e, mais recentemente, no seu Acórdão de 10 de Dezembro de 2015, Processo n.º 2943/13.2.TBLRA.C1.S1, disponível no respectivo sítio do itij e, onde se refere que “cabe ao credor o ónus da prova dos factos de que possa resultar a qualificação do proveito comum”.

Conclusão que mais se reforça, se atentarmos a que, nos termos do n.º 3 de tal preceito, o proveito comum do casal não se presume, excepto nos casos em que a lei o declarar (v. g. artigo 15.º do Código Comercial).

Como referem P. de Lima e A. Varela, ob. cit., a pág. 339 “O preceito (n.º 3 ora citado) parece, à primeira vista, uma inutilidade, visto que, sendo o proveito comum do casal um dos elementos constitutivos da responsabilização de ambos os cônjuges no vasto sector das dívidas abrangidas pela alínea c) do n.º 1, ao demandante incumbiria sempre, de harmonia com os princípios gerais válidos em matéria de ónus da prova, não só alegar como provar a existência deste requisito.

Há, todavia, todo o interesse em destacar a excepção ainda agora indirectamente contida no artigo 15.º do Código Comercial …”.

O mesmo defende Vasco da Gama Lobo Xavier, in RDES, Ano XXIV – N.º 4, Outubro-Dezembro – 1977, pág. 245, (ao comentar a hipótese de comunicabilidade das dívidas prevista na al. d) do artigo 1691.º do CC) que ali refere que “o credor da dívida contraída no exercício do comércio sempre resultará especialmente protegido, na medida em que, diversamente do que aconteceria se apenas pudesse lançar mão do preceituado naquela al. c), não tem que fazer a prova do proveito comum para responsabilizar os bens do cônjuge do devedor. É antes sobre tal cônjuge que recai o ónus de provar que a dívida não foi contraída no proveito comum do casal, a fim de poder beneficiar do disposto na al. d) em atenção a este caso excepcional.”.

No caso em apreço, não goza a autora da excepcionalidade de se presumir o proveito comum do casal, a ela incumbindo, nos termos expostos, o ónus de provar qualquer das circunstâncias que fazem operar a comunicabilidade da dívida, tal como previsto no n.º 1 do artigo 1691.º do Código Civil, no que se inclui a prova de que a dívida exequenda foi contraída em proveito comum do casal.

Conclui-se, pois, que é à autora que incumbe o ónus da prova de que a dívida exequenda foi usada em proveito comum do casal.

Não o tendo feito, como não fez, e em virtude de se encontrar onerada com tal prova, tem a decisão desta questão de lhe ser desfavorável e por conseguinte se declare, como ocorreu em 1.ª instância, que a ré não pode ser responsabilizada pelo pagamento da dívida em causa.

Uma última palavra quanto à questão de o cheque exequendo ter sido depositado numa conta bancária solidária, já que podia ser movimentada por qualquer dos titulares.

As contas bancárias solidárias caracterizam-se pelo facto de poderem ser movimentadas, sem restrições, por qualquer dos titulares.

No entanto, em conformidade com o disposto no artigo 513.º do Código Civil, a solidariedade na dívida exequenda só poderia resultar da lei ou da vontade das partes.

Quanto a esta, nada foi demonstrado no sentido de que a executada se responsabilizou pelo seu pagamento.

Por outro lado, a lei aplicável à questão da pretendida comunicabilidade da relatada dívida e subsequente responsabilização da executada pela sua satisfação é o disposto no artigo 1691.º, n.º 1, al. c), do Código Civil, cujos requisitos de comunicabilidade, como vimos, não se verificam, pelo que, também, por este prisma, não pode ter êxito o recurso em apreço.

Consequentemente, igualmente, no que toca a esta questão, tem o presente recurso de improceder.

Nestes termos se decide:      

Julgar improcedente o presente recurso de apelação, em função do que se mantém a decisão recorrida.

Custas pela apelante.

Coimbra, 15 de Dezembro de 2016.

Relator: Arlindo Oliveira
Adjuntos:

1º - Emidio Francisco Santos
2º - Catarina Gonçalves