Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
564/13.9TALRA-C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO CHAVES
Descritores: CONFIRMAÇÃO DE DECISÃO ABSOLUTÓRIA
PROVA PERICIAL
Data do Acordão: 02/24/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (INSTÂNCIA CENTRAL)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 151.º, 152.º, 154.º, 163.º E 425.º. N.º 5, DO CPP
Sumário: I - Havendo confirmação do despacho recorrido, a Relação pode limitar-se a negar provimento ao recurso, remetendo para os fundamentos da decisão impugnada ao abrigo do disposto no artigo 425.º, n.º 5, do Código de Processo Penal.

II - O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre convicção do julgador, isto é, o valor probatório da perícia está fixado na lei em termos que subtraem o juízo do perito ao princípio da livre apreciação da prova, por isso se afirmando que esta é uma prova tarifada ou legal.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO

1. No encerramento do inquérito registado sob o n.º 564/13.9TALRA que correu termos pelos Serviços do Ministério Público de (...) , o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento relativamente à arguida A... quanto aos factos lhe haviam sido imputados pela assistente B... , susceptíveis de integrarem a prática de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137.º do Código Penal.

2. Inconformada com o despacho de arquivamento proferido, a assistente veio requerer a abertura de instrução, após cuja realização foi proferido despacho que decidiu não pronunciar a arguida A... pela prática do crime de homicídio por negligência que lhe foi imputado.

3. Inconformada com tal decisão, dela recorreu a assistente, retirando da sua motivação as seguintes conclusões (transcrição):

«1ª.- O menor C... , filho da assistente, faleceu após internamento no serviço de Pediatria do Hospital de (...) .

2ª.-   Esse internamento ocorreu pelas 15h00 do dia 21-01-2014 e o período a que se reporta a investigação e fundamenta a presente censura vai desde essa hora até às 23h00.

3ª.-   O serviço pediátrico do Hospital estava entregue e era superiormente supervisionado pela Dr.ª A... .

4ª.-   Mesmo que o não fosse, era ela que estava encarregada de velar pela saúde do C... (entre outros doentes) desde aquela hora.

5ª.-   À chegada ao Hospital o menor tinha tomado apenas Trifen, a conselho da mãe, tinha temperatura que rondava os 40º; sentia-se muito mal disposto, tinha sede e bebeu água engarrafada, não tinha comido e, ao pretender arrolhar a garrafa de água, não conseguia.

6ª.-   A funcionária do guichet que atendeu a mãe do menor enviou-o de imediato para a triagem.

7ª.-   Na triagem a enfermeira L... mandou a mãe dar ao menor um supositório (pensa-se que um antipirético) e, após ouvir o menor, lavrou o seu “relatório” – eram cerca das 15h30m.

8ª.-   Esse relatório, recebeu um “alerta laranja” de cujo teor consta a informação de “muito urgente”; alcança-se que a Srª. Enfermeira teve apenas dúvidas sobre a existência de petéquias (pequenas manchas na pele devidas a pequenas hemorragias) mas não teve dúvidas (na sua análise dos sintomas meramente exteriores) que o menor tinha 40º de febre, odinofagia (dificuldade em engolir) dores musculares, cefaleias e – rigidez na nuca.

9ª.-   Pelas 15h51, a arguida teve o próximo contacto como o menor C... e repete o diagnóstico da Srª Enfermeira (obviamente colhido dos sinais exteriores) com a seguinte excepção: … “não me parecem petéquias” … e acrescenta: “tossícula, rinorreias (fluxo nasal constituído por liquido pouco espesso); “queixoso com má perfusão” (passagem artificial de um fluido cujas características se ignoram) omite: a rigidez na nuca e o menor ter feito paracetamol com que, pensa-se, se conformou tanto mais que permite “reavaliar aquando da apirexia” (baixa de febre).

10ª.- Cerca de uma hora depois a arguida escreve: (o paciente) manteve-se queixoso (tal qual!); … dúvidas se petéquias; faz colheita para análises clínicas.

11ª.- 40 minutos depois nova “observação” mas tão indefinida e despreocupada como a anterior: … análises de patologias clínicas, com pedido processado. (Eram então 17h16m). Terá sido para se proceder à zaragatoa por intermédio da Srª Enfermeiro M... que se fez esse pedido?

12ª.- Uma hora depois pelas 18h30m a Drª A... tem o 4º (quarto) e ultimo contacto com o menor e lavra o seu relatório. Omite que - tendo recebido o resultado de análise hematológica que, dando negativo, até se ignora se seria o do C... (!!) - pretendia enviar o menor para casa não fosse a oposição musculada da assistente e escreve: … “muito queixoso, recusa abrir os olhos, recusa andar (duas novidades que todavia não merecem um comentário e muito menos uma qualquer medida adequada); e muitas queixas cervicais ... (mas) não parece haver rigidez mas TEM TANTAS QUEIXAS !!!!! (sic).

E insiste no seu diagnóstico (?): “surto gripal, parece tudo fita … mas não se consegue mexer”… e omite a frase tantas vezes repetida e transmitida, aliás a alguma enfermeira:  “aquilo é mimo!”.

13ª.- O menor foi internado uma hora e treze minutos depois na UICD (Unidade de Internamento de Curta Duração) a cargo do Sr. Enfermeiro H... que nem sequer vê a arguida (segundo as suas próprias declarações em Tribunal) e nem dela recebe qualquer incumbência ou alerta.

Ministra ao menor Ibubrofeno 400 mg por dores de máximo grau (grau 10).

14ª.- A Drª A... desapareceu desde as 18h35m/19h00 até às 23h00, hora em que reaparece… para tirar a bata).

15ª.- Os sintomas da haemophilusinfluenzae foram efectivamente confundidos com os sintomas da gripe: mas isso ocorreu há um século e meio! Hoje, um médico capaz está prevenido (ver Drª. Filipa Prata, médica na Unidade de Infecciologia Pediátrica do Hospital de Stª Maria, in http://www.vacinas.com.pt que alerta para o trato respiratório e respectivas sequelas da doença: meningite, bronquiolite, pneumonia, epiglotite, inflamação grave com marcado edema e inflamação nas cordas vocais e tecidos circundantes, etc, etc.. E

In http:/pt.wikipedia.org/wiki/Haemophilus_influenzae, chama-se a atenção para o facto de, devidamente sequenciado desde 1933, o HIB, ser o mais virulento do grupo, com mais de 386 mil mortes em 2000, a despeito da existência de vacina preventiva, conhecido desde 1892 por Bacilo de Pfeiffer.

16ª.- Perante um quadro clínico, que causava impressão ao mero contacto visual, a arguida, salvo o respeito pela opinião contrária, com que não pode, de modo nenhum, concordar-se, não diagnostica: apenas levanta dúvidas…

17ª.- E não age. Ela faz mais … ou faz menos! Despreza a própria observação inicial (feita na triagem) pela enfermeira L... . Só três horas depois (15h35m – 18h35m) é que ela põe em dúvida (apesar das queixas do menor) que se trate de “rigidez na nuca”.

18ª.- Não promove sequer uma vigilância atenta ao menor: prelo contrário abandonou-o na UICD, sem um comentário, sem uma preocupação e “nem sequer vê” o enfermeiro H... .

19ª.- Não efectua aquilo que se impõem dado o edema da glote, a rigidez da nuca, a febre alta, dada a patologia visível, da parte alta pulmonar … ela nem faz um rx ao C... .

20ª.- A arguida quis passar a mensagem, em juízo, de que não tomou outra atitude por prudência … e porque não tem uma “bola de cristal”; também o seu Colega J... , que se saiba a não tem; mas fez, logo que chegou um “diagnóstico”: “laringotraqueite?”; “inflamação da zona da epiglote”?” e reage de imediato: decido administrar … etc, etc (ver relatório de observação do menor realizado por este clínico às 23h11, isto é: 11 minutos após a sua entrada)).

21ª.- A arguida, como responsável por um serviço de urgências pediátrica, tem de agir: e se ignorar … averigúe; … se, mesmo assim, não diagnostica … pergunta, informa-se! Seria tão difícil, apesar de, manifestamente, se ter inclinado para o “acesso gripal” ou para o “mimo” do menor, ou para a “fita”, nessas 3 horas de internamento temporário, ir saber como evoluía o estado do menor?

22ª.- Quantas vezes um médico, mesmo sem conseguir um diagnóstico seguro, terá de ordenar uma terapêutica cautelar?

23ª.- Pode afirmar-se que a arguida não praticou qualquer acto médico durante as sete horas em que o menor devia estar (!) sob a sua vigilância pois, com as dúvidas que se levantam em clarificar a recolha de sangue como acto médico, as restantes medidas não constituem actos médicos.

 24ª.-                Porque de acto médico, sendo aquele que só por um médico pode ser praticado, não pode classificar-se aquilo que, durante as referidas 7 horas, a arguida fez.

25ª.- Não pode considerar-se ter praticado actos médicos o médico que se apoia “para fazer o seu diagnóstico” (!) em expressões como “não parecem petéquias”; “não parece haver rigidez da nuca”… “mas tem tantas queixas”!!!ou “aquilo é fita” ou “aquilo é mimo”.

26ª.- Ao lavrar despacho de não pronuncia, o Tribunal a quo ignorou tudo o que supra se expôs, confundiu negligência, ignorância, desinteresse, enfim … desumanidade, com conhecimento de lex artis ou lex profesionalis e tal despacho deverá ser substituído por outro que pronuncie a arguida.

27ª:- Foram violados, entre outros, os artigos 308º, nº 1, com o sentido que lhe empresta o nº 2 do artº 283º, ambos do C.P.Penal entre outros.

Termos em que e noutros que por V.Exas, Sr.s Desembargadores, serão supridos, se pede se revogue o despacho de não pronúncia e substitua por outro em que se pronuncie a arguida.

Assim se fazendo a costumada,

                         Justiça»

4. O Ministério Público e a arguida responderam ao recurso, pugnando pela sua improcedência.

5. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 416.º do Código de Processo Penal, manifestando concordância com a perspectiva jurídica contraposta pelo Ministério Público na 1ª instância, emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.

6. No âmbito do disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, a assistente reafirmou a posição anteriormente assumida na motivação de recurso, enquanto a arguida acompanhou na íntegra o parecer do Ministério Público.

7.Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão.

                                          *

II - Fundamentação

1. A decisão instrutória objecto de recurso (transcrição):

«II – Relatório:

Os presentes autos tiveram origem na queixa apresentada por B... contra A... , médica pediatra do Centro Hospitalar (...) EPE em virtude do falecimento do seu filho C... , no dia 25.01.2013, no Hospital Pediátrico de Coimbra, para onde foi transferido após ter sido conduzido pela sua mãe, no dia 21.01.2013, ao serviço de urgências do Centro Hospitalar (...) EPE – cf. fls. 1-2 dos presentes autos.---

Notificada do despacho de encerramento do inquérito e de arquivamento exarado pelo Ministério Público – cf. fls. 174-176 – a assistente B... apresentou requerimento de abertura de instrução (RAI) – cf. fls. 179-194, que aqui se dá por integralmente reproduzido – imputando à arguida a prática de factos susceptíveis de integrar a previsão legal do crime de homicídio por negligência – art. 137.º do Código Penal (CP).---

Declarada a abertura da instrução, procedeu-se ao interrogatório da arguida, à tomada de declarações da assistente, e à inquirição das seguintes testemunhas: D... ; E... ; F... ; G... ; H... ; e J... .---

Seguiu-se a realização de debate instrutório, com observância do formalismo legal.---

Não se afigura necessária qualquer outra diligência, nem tal foi requerido.---

Cumpre então proferir despacho de pronúncia ou de não pronúncia, conforme disposto no art. 308.º do CPP.---

III – Factos Indiciariamente Provados:

Resultaram indiciariamente provados os seguintes factos:---

1) No dia 21.01.2013, por volta das 15h00, a assistente B... , tendo em conta as queixas que apresentava o seu filho C... , levou-o ao Centro Hospitalar (...) EPE;---

2) Ali chegada, dirigiu-se à triagem, onde a enfermeira, cerca das 15h30, mediu a temperatura ao C... e mandou-o deitar-se numa maca;---

3) Cerca de 15 minutos depois, chegou a médica de serviço nas urgências, a aqui arguida A... , tendo então observado e auscultado o C... , e determinado que se fizessem análises;---

4) A assistente manteve-se sempre junto do seu filho, que continuou a apresentar-se bastante queixoso;---

5) Por volta das 16h40, após o menor voltar a ser observado, foram feitas colheitas de sangue para hemograma, bioquímica e hemocultura, tendo sido determinado, pela arguida, que se aguardasse pelos respectivos resultados;---

6) Por volta das 18h30, em face dos resultados das análises entretanto conhecidos, a arguida considerou que se estava perante sintomas gripais;---

7) Em face da persistência dos sintomas manifestados e das queixas do menor, a arguida voltou então a auscultá-lo, apalpou-lhe o peito e as costas, determinando a colocação do menor em Unidade de Internamento de Curta Duração (UICD);---

8) Cerca das 20h30, a assistente deixou os seus contactos no hospital e foi até casa dar o jantar à sogra e deitá-la;---

9) Cerca das 23h15 a assistente recebeu uma chamada do hospital informando-a de que o seu filho havia entrado em coma;---

10) Nessa mesma noite, pelas 01h00, o menor foi transferido para a Unidade de Cuidados intensivos do Hospital Pediátrico de Coimbra;---

11) O menor nunca mais acordou do coma, tendo falecido no dia 25.01.2013, em Coimbra;---

IV – Motivação:

A convicção do tribunal, no que respeita aos factos indiciariamente provados, formou-se com base na análise crítica e ponderada dos meios de prova juntos aos autos em conjugação com a prova produzida em sede de instrução, a qual foi apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção do julgador – art. 127.º do CPP.---

A assistente B... relatou de forma pormenorizada toda a dinâmica do internamento do seu filho C... no dia 21.01.2013 no hospital de (...) até à data do seu falecimento, em 25.01.2013, no serviço de cuidados intensivos do hospital pediátrico de Coimbra, reproduzindo de um modo geral a versão trazida pelo RAI. Referiu que esteve sempre com o C... durante a tarde até cerca das 20h00, altura em que precisou de vir a casa dar o jantar à sogra e deitá-la, tendo deixado os seus contactos na secretaria. Por volta das 23h15 veio a ser contactada da parte do hospital, tendo então sido informada de que o seu filho tivera uma paragem cardio-respiratória, sendo que nessa mesma noite foi transferido para o hospital pediátrico de Coimbra, onde veio a falecer três dias depois.---

A arguida quis prestar declarações, confirmando ter contactado com o C... no dia em causa, no hospital, por mais do que uma vez, relatando que o observou pelo menos três vezes, e descrevendo quais os actos por si praticados e qual o diagnóstico por si traçado, considerando nomeadamente as análises que mandou fazer, os sintomas manifestados e as queixas apresentadas pelo menor C... , tendo concluído que se estaria perante um quadro de síndrome gripal, tendo nomeadamente em conta a altura do ano em que se encontravam – mês de Janeiro – e o número elevado de casos de vírus de gripe que se contam nesta altura do ano, em especial entre as crianças, nada fazendo prever o desfecho dramático daquela situação.---

A testemunha H... , enfermeiro que esteve de vigilância na UICD no dia 21.01.2013, no período em que o C... ali ficou para observação, das 18h30 em diante, esclareceu que a sua função se prendia com a observação dos pacientes, a fim de verificar se há algum melhoramento ou agravamento do seu estado de saúde, e, caso seja necessário a intervenção do médico, reportar imediatamente a situação, sendo que só nesses casos os pacientes são transferidos para a enfermaria. Não foi, todavia, o caso do C... , que se manteve sempre na UICD, e que, segundo esta testemunha, apresentou sempre um quadro clínico estável, ainda que apresentasse algumas queixas (odinofagia, voz nasalada), o que o levou a administrar um analgésico, sem, contudo, ver necessidade de pedir a intervenção do médico de serviço. Esclareceu ainda que a indicação dos graus de dor 10 e 8 que fez constar no relatório clínico, respectivamente às 21h00 e às 22h30 tiveram por base aquilo que lhe foi transmitido pelo próprio C... , e não qualquer outro elemento.---

A testemunha J... , médico pediatra há cerca de 30 anos, confirmou ter contactado com o C... naquele dia a partir das 23h15, hora a que chegou à UICD, descrevendo em seguida todos os procedimentos por si adoptados em face do agravamento súbito dos sintomas que presenciou nessa data, que incluíram nomeadamente, entubar o menor, inserir um cateter, ligar ao INEM e contactar a família informando que o C... tivera uma paragem cardio-respiratória e estava em coma. Esclareceu ainda que a informação que fez constar às 00h30 no relatório do serviço de urgência corresponde a uma súmula daquilo que aconteceu entre as 23h20 e as 00h30.---

As testemunhas D... , filho da assistente e irmão mais velho do C... , G... , irmã da assistente, e ainda E... e F... , vizinhos da assistente, demonstrando todos eles terem tido uma relação de proximidade e amizade com o C... , corroboraram que este sempre foi um rapaz saudável, não lhe conhecendo qualquer outra situação delicada em matéria de saúde com que se tenha deparado. E... e G... afirmaram que, inclusivamente, no dia em que o C... foi levado ao hospital, estiveram em contacto, via telefone, com a assistente, por mais que uma vez, em que esta lhes ia fazendo um ponto da situação, referindo que a sua preocupação com o desenrolar da situação. E... e F... disseram que chegaram inclusivamente a deslocar-se a Coimbra no dia seguinte, para onde o C... fora transferido, a fim de confortarem a assistente.---

Tomaram-se ainda em consideração os depoimentos prestados durante a fase de inquérito por K..., pai do C... , que, em síntese, confirmou que a sua esposa, aqui assistente, esteve durante a tarde do dia 21.01.2013 com o C... no hospital de (...) , tendo chegado a casa por volta da hora de jantar, sendo que mais tarde, pelas 23h20, receberam uma chamada do hospital dando conta do agravamento do estado de saúde do C... ; e ainda por L... , médica pediatra de Coimbra, que referiu, em síntese, ter-se deslocado a (...) nessa noite a pedido do responsável de serviço de pediatria do hospital, o doutor J... , tendo o C... sido transferido posteriormente para o hospital de Coimbra.---

Ora, da conjugação das inquirições realizadas, em especial à arguida, assistente, e às testemunhas H... e J... , em articulação com as informações que constam do relatório do serviço clínico de urgência – cf. fls. 9-12 – foi então possível julgar como indiciariamente provado que, no dia 21.01.2013, a assistente deslocou-se às urgências do hospital de (...) com o seu filho C... uma vez que este tinha febre alta, dor de cabeça e dores de garganta, queixas que apresentava desde aquela madrugada; que cerca das 15h30 no serviço de triagem, o C... foi atendido pela enfermeira L... – conforme consta do relatório – tendo esta medido a temperatura ao menor, ministrado um supositório e mandado deitar-se numa maca; que cerca de 20 minutos depois o C... foi então observado pela primeira vez pela arguida A... , que lhe detectou petéquias na zona do pescoço, e determinou que se esperasse a reacção ao medicamento a fim de serem feitas análises quando a temperatura baixasse; que cerca das 16h40 a arguida mandou fazer três exames – hematologia, bioquímica e microbiologia – e determinado que se aguardasse entre uma hora e meia a duas horas pelos respectivos resultados – cf. documento a fls. 286 – ao passo que o C... se mantinha queixoso; que pelas 17h18, em face das queixas do menor, foi feito o teste do cotonete (zaragatoa); que os resultados da hematologia e da bioquímica foram conhecidos por volta das 18h30, dando negativo a existência de qualquer infecção de índole bacteriológica ou viral; que, não obstante aqueles resultados, o C... continuava a apresentar uma temperatura alta, queixando-se que lhe doíam os olhos, a garganta, a cabeça e a zona cervical, tendo a arguida voltado a auscultá-lo, e apalpado o peito e o pescoço, e determinado que o C... ficaria em UICD; que a assistente necessitou de ir a casa cerca das 20h30, dar o jantar à sogra e deitá-la; que a arguida voltou a contactar com o C... pouco antes das 21h00, antes de transitar para a enfermaria, tendo-o encontrado sentado, mais tranquilo mas ainda queixoso, sem nenhum sinal de melhoramento ou agravamento dos sintomas anteriormente manifestados; que das 18h30 em diante, o menor esteve na UICD, sob a supervisão do enfermeiro H... , que lhe administrou um analgésico (“iboprofeno”) e, mais tarde, deu-lhe um copo de leite para beber, entre as 22h30 e as 22h45, não detectando qualquer sinal de melhoramento ou agravamento dos sintomas; que por volta das 23h11 o médico pediatra J... , que entretanto trocara de turno com a arguida A... , veio visitar os pacientes que se encontravam na UICD, entre eles o C... , encontrando o menor sentado, e que, após auscultá-lo, lhe detectou dificuldades respiratórias; que por volta das 23h20, ainda antes de ser possível administrar o antibiótico, se verificou um agravamento súbito e inesperado do estado de saúde do C... , com “sangue em grande quantidade arejado na orofaringe”, tendo este entrado em paragem cardio-respiratória, o que levaram o pediatra J... a, nomeadamente entubar o menor, contactar a sua família, chamar o INEM e a pedir transferência do C... para o hospital de Coimbra; e que, de madrugada, o C... , já em coma, foi transferido para o hospital pediátrico de Coimbra, onde veio a falecer a 25.01.2013.---

Assim, no que concerne à sintomatologia apresentada pelo C... durante a tarde do dia 21.01.2013, ficou indiciariamente provado que este se encontrava de um modo geral bastante queixoso (com algumas variações temporais), apresentando febre alta, dores de cabeça (cefaleia), dores de garganta e dificuldade em engolir (odinofagia), petéquias na zona do pescoço, manifestando ainda algumas dores cervicais (“rigidez na nuca”), voz nasalada e, ocasionalmente, dificuldade em abrir os olhos, tal como resultou não só do relatório clínico, como ainda dos depoimentos de assistente, arguida e do enfermeiro H... . É certo que a assistente B... aditou ainda a estes sintomas que, a certa altura, o seu filho se queixou ainda de falta de ar, e que lhe doía o “guiliguili” (referindo-se especificamente à glote), e ainda que tinha o pescoço “visivelmente inchado”. Todavia, sem prejuízo das queixas eventualmente verbalizadas pelo C... à sua mãe, a verdade é que do relatório clínico não consta nenhuma referência a dificuldades respiratórias por parte do C... anteriormente à intervenção do doutor J... , já depois das 23h00, nem nenhuma queixa específica da zona da epiglote (somente de dores de garganta), sendo certo que o menor foi observado e auscultado por mais do que uma vez pela arguida, sem que tivesse sido detectada qualquer obstrução respiratória ao nível dos pulmões, e, que, durante o tempo que esteve em UICD, não apresentou essas queixas ao enfermeiro H... , que ali estava de serviço, conforme decorre do seu depoimento.---

Relativamente aos exames de hematologia e bioquímica – cf. documento a fls. 286 – verificou-se que, em face dos resultados apresentados, não foi possível detectar nenhuma infecção bacteriológica ou viral, tendo designadamente em conta o nível de “proteína C reactiva (PCR)”, bem como o nível de leucócitos, sendo certo que, como foi explicado pela arguida e pela testemunha J... , em caso de infecção seria de prever que aqueles valores fossem mais elevados. Já o exame de microbiologia, que alegadamente detectou a bactéria haemophilusinfluenzae, apenas foi conhecido na data de 25.01.2013, conforme vem indicado no canto inferior direito do documento, e não pelas 17h45 do dia 21.01.2013, que se reporta à hora em que o pedido deu entrada no laboratório, na medida em que, conforme foi esclarecido, para a realização deste exame, o sangue é deixado na estufa, só positivando no dia seguinte, razão pela qual os resultados não são de imediato conhecidos.

A arguida esclareceu ainda que nada fazia prever o desfecho dramático daquela situação, uma vez que tinha na frente um jovem de 14 anos, que, segundo as informações que lhe foram transmitidas, era saudável e tinha a vacinação em dia (como a própria assistente confirmou e como resulta nomeadamente do boletim de saúde a fls. 200 dos autos), frisando que a epiglotite (que corresponde a uma inflamação da epiglote), que pode efectivamente ter origem na bactéria haemophilusinfluenzae, é uma situação muito rara em jovens daquela idade, e praticamente erradicada a partir do momento em que se inseriu a vacinação obrigatória, só expectável em crianças de terna idade (a última das quais observara há 25 anos). Assim, para que pudesse ter sido possível traçar aquele quadro, seria necessário que o menor apresentasse, para além dos sintomas que evidenciou, rinorreia e dificuldades respiratórias, razão pela qual não foi possível invocar aquele diagnóstico até ao momento em que se deu um agravamento súbito do seu estado de saúde, por volta das 23h20 dessa noite. No mesmo sentido depôs o doutor J... , que referiu que, aquando da sua intervenção, não estava ainda seguro que se tratava de uma epiglotite, colocando esse cenário como uma mera possibilidade (versão compatível com as observações que fez constar no relatório às 23h11), e que não era possível prever aquela possibilidade em momento anterior às dificuldades respiratórias acentuadas que o C... começou a manifestar por volta daquela hora em que teve intervenção, acrescentando que, ele próprio, em face dos resultados das análises que foram disponibilizados durante a tarde (e com as quais foi confrontado na inquirição), não teria traçado diagnóstico diverso nem adoptado procedimento diferente daquele que veio a ser levado a cabo pela arguida. Recorde-se que, em sede de inquérito, pela testemunha L... foi inclusivamente dito que, quando socorreu o C... nessa mesma noite, ainda era desconhecido o diagnóstico.---

Foram ainda tomados em consideração a perícia técnico-científica levada a cabo pelo INML – cf. fls. 169-170 – que destacou, entre outros, que o diagnóstico final provável foi “epiglotite aguda por haemophilusinfluenzae”, que o “quadro inicial é sugestivo de infecção respiratória viral, nomeadamente gripe”, que “não era possível estabelecer o diagnóstico e a gravidade do quadro clínico no início das manifestações na ausência de sinais de obstrução respiratória alta”; e que “a epiglotite aguda por haemophilusinfluenzae é uma situação muito rara em Portugal, quase inexistente em crianças acima dos 5 anos de idade e sobretudo desde a introdução da vacinação no programa nacional de vacinação em 2000” (vacinação essa que o C... tinha tomado, conforme boletim a fls. 200), e ainda que “não parece haver violação do dever médico”; o relatório da autópsia – cf. fls. 146-147 – que detectou, entre outros, a “presença de infiltrado inflamatório crónico na base da língua”, que não contraria, antes reforça, a conclusão acerca da provável causa de morte – epiglotite aguda por influência da bactéria haemophilusinfluenzae; e ainda o resumo do internamento na Unidade de Cuidados Intensivos Pediátricos de Coimbra – cf. fls. 34-35.---

V – Enquadramento Jurídico-Penal

I. Das finalidades da instrução

A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter, ou não, o arguido a julgamento – art. 286.º, n.º 1 do CPP.---

Assim, o juiz deverá pronunciar o arguido se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos dos quais depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança. Caso contrário, deverá ser proferido despacho de não pronúncia – art. 308.º, n.º 1 do CPP.---

Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança – art. 283.º, n.º 2 do CPP.---

Indícios suficientes, para efeitos de pronúncia, serão aqueles elementos que apreciados em concreto, conjugados e relacionados, persuadem ou convencem da existência de crime e da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que este virá, provavelmente, a ser condenado em julgamento. Por outras palavras, a possibilidade razoável de condenação é uma possibilidade mais positiva do que negativa, isto é, o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido, concluindo no sentido de haver uma alta probabilidade de futura condenação do arguido ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição, a manter-se aquele acervo probatório em sede de julgamento.---

Na instrução bastará a mera prova indiciária, não se exigindo ainda a certeza quanto ao mérito da questão. Por indiciação suficiente, deve, pois, entender-se o conjunto de elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo vingar a convicção de que este virá a ser condenado pelo crime que lhe é imputado.---

Vejamos então se das diligências probatórias realizadas é possível concluir que está seriamente indiciada a prática pela arguida dos factos que lhe vêm imputados, e em concreto, se esta violou o dever de cuidado a que estava obrigada e do qual era capaz.---

II. Da suficiência ou insuficiência dos indícios

Nos presentes autos, à arguida vem imputada a prática de um crime de homicídio por negligência – art. 137.º n.º 1 do CP – segundo o qual quem matar outra pessoa por negligência, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.---

O bem jurídico protegido por esta incriminação legal consiste assim na vida humana, compreendida como o conjunto de todas as funções biológicas e psicológicas do Homem.---

O crime pelo qual a arguida vem acusada tem a sua referência típica no facto de ser praticado “por negligência”. Ora, no nosso ordenamento jurídico a regra é a da responsabilização das condutas dolosas, apenas se punindo as condutas negligentes a título excepcional.---

No entanto, a relevância jurídico-penal do homicídio negligente justifica-se duplamente, em virtude do bem jurídico protegido – o bem supremo da vida humana – e da carência da pena, que se faz sentir, atenta a proliferação das situações de risco e de dano para a vida humana resultantes das inúmeras fontes de perigo imanentes à sociedade do risco contemporânea – cf. Jorge de Figueiredo Dias e Nuno Brandão, in «Comentário Conimbricense do Código Penal», Tomo I, Coimbra Editora, 2ª Edição, 2012, p. 175.---

Assim, age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz: i) representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou ii) não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto – art. 15.º do CP.---

Nestes termos, na concretização deste tipo de ilícito criminal, necessário será que haja uma acção realizada sem a diligência devida, com a violação de deveres de cuidado, e que a produção do evento mortal seja imputada à acção imprudentemente realizada.---

Exige-se, portanto, a realização de uma acção sem a diligência devida, violando o dever, tanto objectivo como subjectivo, de cuidado que é necessário ter em conta nos comportamentos que previsivelmente podem ocasionar a morte de outra pessoa. A previsibilidade, objectiva e subjectiva, da morte constitui, portanto, e do mesmo modo, um elemento conceptual do homicídio negligente. A negligência reconduz-se, pois, a um exame de dois graus: ao nível da ilicitude (o que o arguido devia fazer) e ao nível da culpa (o que o arguido podia fazer); assim, o arguido não procede com o cuidado (objectivo) a que está obrigado (objectivamente, isto é, o que outra pessoa faria naquela situação) e é capaz (subjectivamente, tendo em conta a situação concreta do arguido).---

No âmbito da culpa, importa apurar se o arguido estava em condições de satisfazer as exigências objectivas de cuidado a que estava obrigado, tendo em conta a sua inteligência, a sua formação, a sua experiência de vida e as especialidades da situação concreta em que actuou. Ao lado destes elementos, a produção do evento mortal em conexão causal com a acção imprudentemente realizada é elemento típico imprescindível ao desencadear dos efeitos contidos na norma.---

Aplicando a doutrina do acto negligente ao acto médico, concluímos que a negligência se traduz na violação do dever de cuidado que sobre o médico impende, de tal forma que se possa censurar ao médico ter agido daquela forma e não de outra, já que o profissional medianamente competente teria actuado de modo distinto.---

Assim, em sede de responsabilidade médica, a ilicitude pode resultar da violação dos deveres contratualmente estipulados, do dever de informação, de deveres funcionais, de deveres de protecção ou de um direito de personalidade. No campo médico tudo isto aparece consignado sob a categoria geral de legesartis – métodos e procedimentos, comprovados pela ciência médica, que dão corpo a standards contextualizados de actuação, aplicáveis aos diferentes casos clínicos, por serem considerados pela comunidade científica como os mais adequados e eficazes – cf. Vera Lúcia Raposo, in «Do acto médico ao problema jurídico», Almedina, 2014, p. 45.-

Com efeito, enquanto em Medicina um qualquer falhanço de acto médico é reputado como erro médico de pessoa individualizada ou do concreto sistema de prestação de cuidados médicos a que importa a trajectória de acontecimentos a ser objecto de prevenção, o Direito Penal queda-se pela punição por prevenção apenas do «erro médico» que seja uma «violação» de «artes legis» específicas ou de um «dever de cuidado» de conteúdo mais ou menos específico ou incisivo, aferidos por exemplo por protocolos de diagnóstico e ou de terapêutica e ou de execução ou procedimento médicos – cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 04.03.2015, proc. n.º 44/14.5TOPRT.P1, disponível em www.dgsi.pt.---

Saliente-se ainda que um dos conceitos fulcrais da negligência é o de previsibilidade, pois o dever de cuidado apenas é concebível quando reportado a riscos considerados previsíveis. Riscos típicos serão aqueles que usualmente acompanham certas patologias, e face aos quais uma conduta descuidada que não os tenha em consideração se revela negligente. Diferentemente, os atípicos serão aqueles outros que raramente ocorrem naquele contexto, sendo claro que o médico, no seu actuar, não é obrigado a agir e decidir com base nos referidos riscos atípicos, sob pena de tornar a medicina impraticável dada a profusa quantidade de riscos pensáveis para qualquer singela acção, de modo que a sua ocorrência não resulta necessariamente de uma conduta negligente. Daqui se conclui que a frequência da ocorrência do risco é o critério primordial para a sua qualificação como previsível e, concomitantemente, da conduta como negligente – ob. cit, p. 84-85.---

Se a violação do dever de cuidado traduz a ilicitude, já o afastamento do padrão do médico médio traduz a culpa. A culpa afere-se, pois, pela forma como um profissional médio teria agido quando colocado na mesma situação concreta. Ao médico caberá, nestes termos, fazer o que é razoavelmente exigível, em termos de padrão médio de conduta profissional responsável, de forma que outros profissionais colocados perante a mesma situação deixariam de fazer diferentemente. Por outras palavras, dever-se-á indagar se seria exigível ao médico ter actuado de outra forma naquele preciso circunstancialismo, tendo com consideração os dados existentes e as informações conhecidas à data em que o agente actuou.---

A aferição do nexo de causalidade na responsabilidade médica pretende apurar se a causa era ou não idónea a produzir certo resultado (juízo de idoneidade a ser formulado reportando-nos ao momento da prática da conduta) ou, pelo contrário, se apenas o produziu em virtude da intervenção de circunstâncias anómalas. Para emitir semelhante juízo urge não perder de vista os aspectos que se ligam às especificidades da profissão de médico, sendo certo que, no domínio da actividade médica é frequente que, quando o agente actua, esteja já criado um risco para o bem jurídico, de modo que o médico não cria, ele próprio, esse perigo, mas aumenta-o ou potencia-o. Assim, a grande dificuldade reside na circunstância de nos reportarmos a processos causais que muitas vezes já tiveram início antes da intervenção do médico, sendo que se espera que este os interrompa ou lhes dê rumo menos lesivo para o paciente – ob. cit, p. 50-51.---

In casu, tendo em conta os factos indiciariamente provados, conclui-se que não se reuniram indícios suficientes da prática por parte da arguida de um crime de homicídio por negligência. Com efeito, não existe qualquer elemento objectivo que indicie que a arguida tenha desrespeitado a legesartis, entendida como os métodos e procedimentos tidos como cientificamente aceites e adequados, na forma como lidou com o C... no hospital de no dia 21.01.2013, e que tenha sido essa sua actuação negligente, ou omissão do dever de agir, que tenha dado causa à morte do C... , seu paciente.---

Pelo contrário, resultou indiciariamente provado que a arguida observou o C... naquele dia pelas 15h45, quando o atendeu pela primeira vez, inteirando-se acerca das queixas que o menor apresentava e sobre se tinha a vacinação em dia. Auscultou-o, determinou, mais tarde, que se fizesse colheita de sangue para hematologia, bioquímica e microbiologia, e fez o teste da zaragatoa, voltando a observar e a apalpar o peito e o pescoço do menor por mais duas ocasiões, sendo certo que o diagnóstico de gripe que veio a nortear a sua actuação médica naquele caso em concreto, e a que chegou a partir dos resultados dos exames conhecidos e dos sintomas manifestados pelo C... , ia de encontro ao diagnóstico que era possível traçar em face dos dados existentes e das informações conhecidas à data em que a arguida interveio.---

Ainda assim, face à persistência das queixas apresentadas, e tendo em conta que o estado de saúde do C... parecia não responder favoravelmente aos medicamentos entretanto ministrados, a arguida determinou que o mesmo ficasse em UICD, sob observação, a fim de vigiar a evolução positiva ou negativa do seu quadro clínico. Sucede porém que, de acordo com a factualidade indiciariamente provada, o agravamento do estado de saúde do C... deu-se de modo súbito e imprevisível, o que veio a ditar que as intervenções e procedimentos adoptados subsequentemente já não foram suficientes para evitar a morte do C... .---

Da prova indiciariamente recolhida, resulta, pois, que qualquer um destes procedimentos foi idóneo e apropriado face à sintomatologia apresentada pelo C... naquele dia, não existindo nenhum elemento de cariz médico-científico que aponte no sentido de que foram violadas as leges artis, assim se concluindo que a arguida fez o que seria razoavelmente exigível, em termos de padrão médio de comportamento profissional responsável.---

Saliente-se, além do mais, que a causa de morte que é hoje conhecida e aceite – falecimento por influência da bactéria haemophilusinfluenzae – foi descrita como sendo uma situação bastante rara, e praticamente inexistente nas crianças que se encontram vacinadas para o efeito, como era, aliás, o caso do C... . Por este motivo, atenta a enorme imprevisibilidade que revestiu em concreto este caso clínico, não tendo sido possível invocar aquele diagnóstico na presença dos sintomas que o menor apresentou durante a tarde (sendo certo que só bem mais tarde, já depois do menor ter sido transferido para o hospital de Coimbra, é que se começou a suspeitar da verdadeira causa que estava a motivar a inflamação da epiglote), não se poderá atribuir à arguida qualquer conduta negligente susceptível de ter criado, aumentado ou potenciado o perigo que se veio a verificar em concreto, inexistindo, por esta razão, qualquer nexo de causalidade entre a sua actuação e o resultado dramático que ditou o desfecho do presente caso.---

VI – Dispositivo

Em face do exposto, decide-se:---

i. Não pronunciar a arguida A... pelo crime de homicídio por negligência – art. 137.º, n.º 1 do CP.---

ii. Condenar a assistente B... em custas, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC – art. 515.º, n.º 1, al. a) do CPP.---»

                                          *

2. Apreciando

Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

A questão essencial a decidir no presente recurso consiste em saber se os autos contêm indícios suficientes para submeter a arguida A... a julgamento pela prática do crime de homicídio por negligência.

O Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão de 11 de Outubro de 2001, decidiu que o acórdão da Relação que, em recurso, confirmar a decisão de não pronúncia, por insuficiente indiciação dos factos acusados, constitui decisão absolutória, ainda que formal, visto que determina a absolvição da instância, não admitindo, consequentemente, recurso para o Supremo Tribunal de Justiça([1]).

E repetiu este julgamento em acórdão de 29 de Novembro de 2000 (Proc.º n.º 2113/00-3), de 5 de Abril de 2001 (Proc. n.º 870/01-5), de 15 de Novembro de 2001 (Proc. n.º 3652/01-5), de 6 de Fevereiro de 2002 (Proc. n.º 3133/01-3), de 7 de Fevereiro de 2002 (Proc. n.º 122/02-5), de 26 de Junho de 2002 (Proc.º 4224/01-3), de 12 de Dezembro de 2002 (Proc. n.º 4414/02-5), de 8 de Julho de 2003 (Proc. n.º 2304/03-5) e de 2 de Maio de 2006 (Proc. n.º 849/2006-5), entre outros.

Pode pois afirmar-se com segurança que constitui jurisprudência uniforme a que caracteriza o acórdão confirmatório de uma decisão de não pronúncia como acórdão absolutório para os efeitos previstos no artigo 400.º, n.º 1, al. d) e, consequentemente, no artigo 425.º do Código de Processo Penal.

Por isso, havendo confirmação do despacho recorrido, a Relação pode limitar-se a negar provimento ao recurso, remetendo para os fundamentos da decisão impugnada ao abrigo do disposto no artigo 425.º, n.º 5 do Código de Processo Penal.

No caso em apreço, a decisão recorrida é de não pronúncia.

Ora, analisados os autos, nomeadamente a decisão instrutória e a motivação do recurso, afigura-se-nos que a decisão recorrida não merece censura, quer quanto à decisão quer quanto aos respectivos fundamentos, de facto e de direito.

Ainda assim dir-se-á o seguinte:

O princípio geral previsto no artigo 127.º do Código de Processo Penal segundo o qual, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, conta entre as excepções por si admitidas, a valoração probatória da prova pericial.

Há lugar à prova pericial quando a percepção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos (artigo 151.º do Código de Processo Penal).

Assim, quando a percepção ou apreciação dos factos probandos suscitar dificuldades não removíveis pelos procedimentos de análise comuns, justifica-se o recurso, para o efeito, a pessoas com conhecimentos especializados sobre a matéria em análise.

Justamente porque estas pessoas integram um grupo restrito e criteriosamente seleccionado – por ordem de preferência, estabelecimento, laboratório ou serviço oficial apropriado, perito nomeado de entre os constantes de listas de peritos existente na comarca, ou pessoa de honorabilidade e reconhecida competência na matéria (artigo 152.º, n.º 1 do C. Processo Penal) – de colaboradores do tribunal com específicos conhecimentos, se estabelece, no artigo 163.º, n.º 1 do referido diploma, que o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador.

No âmbito do inquérito, o Ministério Público, ao abrigo do disposto nos artigos 151.º, 152.º e 154.º todos do Código de Processo Penal, determinou a realização de perícia, a realizar pelo Conselho Médico-Legal, no sentido de se apurar se existiu alguma violação de algum dever médico por parte da arguida e demais pessoal médico que contactou em 21 de Janeiro de 2013 e nos dias posteriores com C... , em que termos e qual a consequência em termos de resultado morte deste último, com remessa de cópia de fls. 1 a 100, 131, 132, 136, 137, 138, 139, 140, 141, 146 e 147 dos autos (despacho de fls. 153).

O Presidente do Instituto Nacional de Medicina Legal, acusando a recepção do pedido, comunicou ao processo que o mesmo tinha sido remetido ao Conselho Médico-Legal, nos termos do n.º 2 do artigo 7.º do Dec. - Lei n.º 166/2012, de 31/7 (fls. 155), o qual, por sua vez, informou que o pedido seria por ele apreciado, nos termos do n.º 1 do artigo 7.º do mesmo diploma (fls. 156).

O Conselho Médico-Legal pronunciou-se nos termos que constam do relatório de “consulta técnico-científica”, junto a fls. 169 e 170, referido na decisão recorrida.

O Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I. P., é um instituto público de regime especial, nos termos da lei, integrado na administração indireta do Estado e prossegue atribuições do Ministério da Justiça, sendo um dos seus órgãos o conselho médico-legal – artigos 1.º e 4.º, b) do Dec.- Lei n.º 166/2012, de 31/7, que revogou o Dec.- Lei n.º 131/2007, de 27/4.

Ao conselho médico-legal compete exercer funções de consultadoria técnico-científica e emitir pareceres sobre questões técnicas e científicas no âmbito da medicina legal e de outras ciências forenses, sendo a sua forma de intervenção através da “consulta técnico-científica” que pode ser solicitada, além do mais, pela Procuradoria-Geral da República – artigo 7.º, nºs 1, a) e b) e 2 do citado diploma.

Assim, ao contrário do que sustenta a recorrente, não se trata de uma perícia efectuada por junta médica, de nomeação privada, mas antes de uma perícia oficial realizada por um órgão que está integrado num instituto que é considerado instituição nacional de referência – artigo 1.º, n.º 3 do Dec.- Lei n.º 166/2012, de 31/7.

O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre convicção do julgador, isto é, o valor probatório da perícia está fixado na lei em termos que subtraem o juízo do perito ao princípio da livre apreciação da prova, por isso se afirmando que esta é uma prova tarifada ou legal.

A lei impõe ao julgador o parecer ou juízo técnico, científico ou artístico, salvo quando o mesmo seja susceptível de crítica da mesma natureza, isto é, o julgador pode divergir do juízo pericial – afastando o valor da prova pericial – mas para o fazer tem que fundamentar a sua divergência com base em razões da mesma natureza, portanto com base em diferente juízo técnico, científico ou artístico (artigo 163.º, n.º 2 do Código de Processo Penal)([2]).

O juízo técnico-científico ínsito no relatório de fls. 169 a 170 afasta a existência de violação do dever médico por parte da arguida, sendo que este juízo baseou-se nos elementos documentais enviados pelo tribunal acima referenciados.

A violação do dever médico por parte da arguida é questão que exige especiais conhecimentos científicos, sobre a qual o conselho médico-legal emitiu um juízo técnico-científico claro e negativo, e nessa medida, sujeito ao disposto no artigo 163.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.

 Não seriam, portanto, as declarações da assistente ou os depoimentos de testemunhas que poderiam fundamentar qualquer divergência com o juízo técnico-científico inerente aquela prova pericial.

Assim, porque a decisão recorrida não nos merece qualquer reparo, entendemos fazer uso do disposto no n.º 5 do artigo 425.º do Código de Processo Penal, remetendo para os fundamentos da mesma e negando, consequentemente, provimento ao recurso da assistente.

                                          *

III – DISPOSITIVO

Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pela assistente e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.

                                          *

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.

                                          *

(O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.º 2 do C. P. P.)

                                          *

Coimbra, 24 de Fevereiro de 2016

(Fernando Chaves – relator)

(Orlando Gonçalves –adjunto)


[1] - Publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano IX, tomo III, página 196.
[2] - Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5/5/1993, CJ, ACSTJ, Ano I, tomo II, pág. 218; Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra Editora, pág. 209; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, Verbo, 3ª Edição, 2002, pág. 198.