Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
834/07.5TMBRG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: TRIBUNAIS PORTUGUESES
COMPETÊNCIA
RESERVA DE JURISDIÇÃO
INVENTÁRIO
SENTENÇA ESTRANGEIRA
Data do Acordão: 05/24/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: POMBAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.65-A, 1096 CPC, 16 CONVENÇÃO DE BRUXELAS DE 27/9/1968
Sumário: 1. A definição dos factores de atribuição de competência exclusiva aos tribunais portugueses foi orientada, nomeadamente, pela aproximação e adequação ao estipulado no direito convencional, particularmente na Convenção de Bruxelas de 27 de Setembro de 1968.

2. A alínea a) do nº1 do art.16 da referida convenção atribui competência exclusiva em matéria de direitos reais sobre imóveis aos tribunais do Estado Contratante onde estes se situam.

3 Aderindo à jurisprudência firmada pelo Tribunal de Justiça sobre a interpretação do referido normativo, a jurisprudência dos tribunais portugueses tem vindo maioritariamente a entender que não é suficiente para preencher a previsão legal enunciada na alínea a) do artigo 65.º-A do CPC, o facto de a acção se reportar indirecta ou acessoriamente a um direito real sobre um imóvel, tornando-se indispensável que o imóvel em causa consubstancie o fundamento central da causa de pedir, com vista a assegurar a titularidade do sujeito respectivo.

4. Limitando-se a partilha subsequente ao divórcio, a operar a convolação de um direito unitário e global sobre uma parte de um universo de bens (que integram a comunhão conjugal), para direitos concretos e individualizados, deverá entender-se, relativamente aos bens imóveis integrados no seu objecto, que está excluída da reserva de competência exclusiva prevista na alínea a) do artigo 65.º-A do CPC.

5. Um acordo de partilha sobre bens imóveis sitos em território português, celebrado por um casal de nacionalidade portuguesa, no âmbito de uma acção de divórcio que correu termos num tribunal suíço, homologado por sentença que veio a ser revista e confirmada pelo Tribunal da Relação, vincula os outorgantes e inviabiliza o prosseguimento do processo de inventário instaurado em Portugal com vista à partilha dos mesmos bens.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório
J (…) requereu no Tribunal de Família e Menores de Braga, inventário judicial para partilha dos bens que integravam o património comum do casal que era constituído pelo requerente e pela requerida M (…), e que foi dissolvido por divórcio decretado por sentença proferida pelo Tribunal da Comarca de la Broyle et du Nord Vaudois – Suíça, revista e confirmada por este Tribunal (Proc. n.º 2486/05-1).
Por despacho proferido a fls. 16 dos autos, foi declarada a incompetência territorial do Tribunal de Família e Menores de Braga, para a tramitação do inventário, que foi remetido para o Tribunal Judicial de Vila Verde.
Nomeado cabeça-de-casal, o requerente juntou aos autos a relação de bens de fls. 36, constituída por seis verbas de bens móveis (mobílias e cortinados) e por duas verbas de bens imóveis (um prédio urbano e uma fracção autónoma).
Após as declarações do cabeça-de-casal, veio a requerida deduzir a excepção de incompetência territorial do Tribunal Judicial de Vila Verde, e reclamar contra a relação de bens (fls. 52), alegando que a casa de habitação e a fracção autónoma relacionadas já haviam sido partilhadas por acordo dos cônjuges celebrado no âmbito da acção de divórcio, e homologado na sentença que o decretou.
Por despacho proferido a fls. 67, foi declarada a incompetência territorial do Tribunal Judicial de Vila Verde e determinada a remessa dos autos ao Tribunal Judicial de Pombal.
No Tribunal Judicial de Pombal (2.º Juízo), procedeu-se à produção de prova, com inquirição das testemunhas arroladas (fls. 82 e 117), após o que foi proferida a seguinte decisão:
«[…] face ao exposto, julga-se inadmissível a prossecução do presente inventário, na medida em que os bens inventariados já foram alvo de partilha no processo de divórcio tramitado na Suíça.
Nestes termos, julga-se extinta a instância.»
Não se conformando, o requerente interpôs recurso de apelação, no qual formula as seguintes conclusões:

A) Nos termos do disposto no artigo 73º do C.P.C. são os Tribunais portugueses os competentes para a partilha de bens imóveis situados em Portugal.

B) De qualquer modo, a sentença que decretou a dissolução do casamento entre os interessados neste inventário, não procedeu à partilha dos bens constantes da relação de bens apresentada pelo cabeça-de-casal.

C) A sentença proferida pelo Tribunal Suíço não possui expresso qualquer elemento matricial, registral, patrimonial dos imóveis identificados na relação de bens, assim como não identifica ou faz referência aos restantes bens móveis das verbas n.º 1 a 6;

D) A sentença proferida pelo tribunal Suíço é inexequível perante os Tribunais portugueses para considerar partilhados os bens comuns identificados na citada relação de bens;

E) A mesma sentença Suíça é inexequível perante os Tribunais portugueses para transmitir para qualquer um dos interessados recorrente e recorrido, os bens identificados na relação de bens apresentada no presente inventário;

F) Ao decidir como decidiu, a decisão recorrida fez errada interpretação do disposto no artigo 73º e alínea a) do n.º 2, do artigo 77.º , artigo 1.404.º e 1.350.º do Código Processo Civil .

G) O recorrente solicitou esclarecimento legítimo à decisão recorrida de modo a evitar o presente recurso e em prol de obter do Tribunal uma resolução do “caso concreto” tendo sido “sentenciado” com 4 UCS de custas, as quais devem nesta sede ser também retiradas.

Termos em que, com o suprimento de Vossas Excelências, deve ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, a decisão recorrida ser substituída por outra que ordene o prosseguimento dos autos os seus demais termos, com o que se fará JUSTIÇA
A requerida não apresentou contra-alegações.

II. Do mérito do recurso
1. Definição do objecto do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 684º, nº 3, e 690º, nºs 1 e 3, CPC), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660º, nº 2, in fine), consubstancia-se numa única questão: saber se se deverão considerar partilhados os bens constantes da relação apresentada pelo requerente.

2. Fundamentos de facto
É a seguinte a factualidade relevante:
1] O requerente J (…) e a requerida M (…), casaram um com o outro, em Chenit / Le Sentier – Suíça, no dia 17 de Junho de 1988;
2] O casamento veio a ser dissolvido por divórcio decretado por sentença proferida pelo Tribunal da Comarca de la Broyle et du Nord Vaudois – Suíça, transitada em julgado em 12 de Janeiro de 2005, revista e confirmada por este Tribunal (Proc. n.º 2486/05-1), em 17 de Janeiro de 2006.
3] No presente inventário, o requerente apresentou a relação de bens junta aos autos a fls. 36, da qual fazem parte: mobílias (verbas 1.ª a 5.ª); cortinados (verba 6.ª); e dois imóveis (verbas 7.ª e 8.ª);
4] É o seguinte o teor das verbas n.º 6 e 7:

Verba n.º 7

PRÉDIO URBANO, composto por casa de rés-do-chão e logradouro, destinada a habitação, situado no lugar do ..., freguesia de Q..., concelho de P..., a confrontar do Norte com ..., Nascente com ..., Sul e Poente com Caminho Público, omisso na Conservatória, inscrito na matriz urbana sob o artigo X...°, com a área coberta de 150 m2 e logradouro com 350 m2, com valor patrimonial de catorze mil quinhentos dois euros setenta dois cêntimos. 14.502, 72

Verba n.º 8

Fracção Autónoma, designada pela letra “F”, correspondente ao segundo andar esquerdo, destinado a habitação, com uma garagem na cave com o número dois-E e uma arrecadação no sótão com a letra “F”, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, situado no B..., lote cinco, freguesia e concelho de P..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º y...-“F”/ P..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo z...°- “F”, com o valor patrimonial de trinta mil seiscentos e nove euros e vinte e oito cêntimos 30.609,28.
5] Consta, nomeadamente, da sentença que decretou o divórcio do requerente e da requerida, proferida pelo Tribunal da Comarca de la Broyle et du Nord Vaudois – Suíça (fls. 106 v.º dos autos e 24 do processo de revisão):
«[…] ratifica para fazer parte integrante do presente julgamento, a convenção sôbre os efeitos consequentes ao divórcio, assinada por ambas as partes a 19 de Outubro de 2004, anexada em seguida.»
6] Consta da referida convenção:

«A título da liquidação do regime matrimonial, os esposos convencionam o seguinte:

- Os esposos admitem terem partilhado em partes iguais de fr. 23’000.-, liquidez comum da conta postal tida por ambos, dando-se mutuamente quitança da soma partilhada. 

- M (…) retoma em seu nome a exploração da mercearia de Moudon, sendo esclarecido que, em razão do convencionado, o J (…) recebeu a quantia de fr. 21’000.- de compensação da parte de M (…), dando-se por isso mutualmente quitança a êsse título.

- A Audi A4 é atribuída a J (…) e a camioneta Fiat a M (…)

- J (…) cede a sua parte a M (…) da casa de ... (Portugal) que ambos possuem em copropriedade.

- M (…) cede a sua parte a J (…) do apartamento de P... em Portugal que ambos possuem em copropriedade.

- Os esposos comprometem-se, após que o julgamento seja declarado passado em julgado, de proceder em Portugal, junto dos cartórios notariais respectivos, às diligências necessárias, afim de formalizar as transferências imobiliárias supracitadas, tendo em conta que as despesas das ditas transferências são assumidas em partes iguais pelos esposos.

- A soma de aproximadamente de 5'000 euros depositada num Banco em Portugal, é atribuida a J (…).

-Pelo demais, os esposos consideram serem proprietários dos bens na sua posse.

Mediante a condição duma boa execução do que precede, os esposos (…)consideram o seu regime matrimonial dissolvido e liquidado.»

3. Fundamentos de direito
3.1. Âmbito da reserva de jurisdição dos tribunais portugueses
Entre os vários requisitos necessários à confirmação da sentença estrangeira, enumerados nas várias alíneas do artigo 1096.º do Código de Processo Civil, figura na alínea c), a exigência de que «[…] provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses».
Como refere Lopes do Rego[1], no que concerne a esta matéria, o Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, adoptou uma solução que passa da doutrina da “bilateralidade”, em sede de competência internacional indirecta, para a teoria da “unilateralidade atenuada”.
Para a confirmação pelos tribunais portugueses, para além das exigências formais das restantes alíneas, de acordo com a citada alínea c), basta que o tribunal estrangeiro que proferiu a decisão a rever seja considerado, no país do foro, competente para a prolação de tal decisão, exceptuando-se apenas duas situações: quando tal competência foi provocada em fraude à lei; quando a causa verse sobre matéria integrada no âmbito da competência exclusiva dos tribunais portugueses.
No que respeita à competência exclusiva dos tribunais portugueses, há que ter em conta o disposto no artigo 65.º-A do Código de Processo Civil, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 38/2003, de 8 de Março (vigente à data da entrada desta acção):

Sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos comunitários e leis especiais, os tribunais portugueses têm competência exclusiva para:

a) As acções relativas a direitos reais ou pessoais de gozo sobre bens imóveis sitos em território português;

b) Os processos especiais de recuperação de empresa e de falência, relativos a pessoas domiciliadas em Portugal ou a pessoas colectivas ou sociedades cuja sede esteja situada em território português;

c) As acções relativas à apreciação da validade do acto constitutivo ou ao decretamento da dissolução de pessoas colectivas ou sociedades que tenham a sua sede em território português, bem como à apreciação da validade das deliberações dos respectivos órgãos;

d) As acções que tenham como objecto principal a apreciação da validade da inscrição em registos públicos de quaisquer direitos sujeitos a registo em Portugal;

e) As execuções sobre bens existentes em território português.
Perante o disposto na alínea a) do normativo transcrito, têm-se suscitado na jurisprudência a questão de saber se a partilha de bens imóveis situados em Portugal, decidida em sentenças de divórcio proferidas por tribunais estrangeiros, está ou não sujeita à reserva de jurisdição dos tribunais portugueses.
Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13.01.2005[2], a ratio da competência exclusiva prevista na alínea a) do artigo 65.º-A do CPC, radica na circunstância de o tribunal da situação do imóvel ser o que se encontra melhor apetrechado, atendendo à proximidade, para conhecer os elementos de facto, bem como as regras e os usos do Estado da situação normalmente aplicáveis, e de os litígios concernentes a direitos reais sobre imóveis envolverem frequentemente controvérsias que devem ser dirimidas mediante inspecções, averiguações e perícias a realizar no local.
Segundo Lopes do Rego[3], na regulação dos factores de atribuição da competência internacional, o legislador português teve essencialmente em conta os regimes constantes do “Anteprojecto 1993”[4], a apreciação de tais disposições feita pelo Prof. Ferrer Correia e pelo Dr. Ferreira Pinto e algumas soluções por eles avançadas, eliminando algumas competências exorbitantes dos tribunais portugueses e procurando aproximar e adequar alguns regimes ao estipulado no direito convencional, particularmente nas Convenções de Bruxelas e Lugano.
De acordo com a alínea a) do n.º 1 do artigo 16.º da Convenção de Bruxelas de 27 de Setembro de 1968, têm competência exclusiva, qualquer que seja o domicílio: «a) Em matéria de direitos reais sobre imóveis e de arrendamento de imóveis, os tribunais do Estado Contratante onde o imóvel se encontre situado
O aresto do STJ referido (de 13.01.2005), contém uma citação da decisão do Tribunal de Justiça sobre a interpretação do n.º 1 do artigo 16.º da Convenção de Bruxelas, no sentido de englobar «o conjunto das acções concernentes a direitos reais sobre imóveis», mas somente aquelas que «tendem a determinar a extensão, a consistência, a propriedade, a posse de um bem imóvel, ou a existência de outros direitos reais sobre estes bens, e a garantir aos respectivos titulares a protecção das prerrogativas emergentes dessa titularidade (des prérogatives qui sont attachées à leur titre)».[5]
Na sequência do entendimento jurisprudencial expresso pelo Tribunal de Justiça, a propósito da interpretação do n.º 1 do artigo 16.º da Convenção de Bruxelas, formou-se nos nossos tribunais uma corrente jurisprudencial maioritária, no sentido de considerar que a partilha dos bens do casal em acção de “divórcio consensual” no estrangeiro, além de absolutamente acessória e dependente do objecto nuclear da dissolução do vínculo matrimonial, face à sua “natureza consensual”, não implica, quer o conhecimento de peculiares elementos de facto ou de regras e usos do Estado da situação dos imóveis, quer a necessidade de inspecções, averiguações e peritagens a realizar nesse local.
Desta premissa decorre a conclusão de que a partilha em tais situações não se apresenta vocacionada para determinar a extensão, a consistência, a propriedade, a posse de bens imóveis, ou a existência de outros direitos reais sobre eles, nem para garantir a qualquer dos cônjuges determinadas faculdades, eventualmente controvertidas, pertinentes à titularidade dos direitos, pelo que nada obsta à sua realização no âmbito do processo de divórcio tramitado nos tribunais estrangeiros[6].
No acórdão da Relação de Guimarães, de 10.12.2003[7], considerou-se que a partilha, consistindo na individualização e concretização do direito que cada cônjuge tem sobre o património comum, não se traduz em qualquer transmissão de direito, mas apenas na concreta definição do direito de cada cônjuge.
Conclui-se no aresto citado, que a partilha dos bens comuns do casal, por se tratar de uma acção reportada a “direitos familiares e não reais”, não está sujeita à reserva da competência exclusiva dos tribunais portugueses.
A mesma via foi trilhada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão de 24.05.2007[8], onde se considerou que o processo de inventário se limita a operar a convolação de um direito unitário e global sobre uma parte de um universo de bens (que integram a comunhão conjugal), para direitos concretos e individualizados, não devendo o conceito de acções relativas a direitos reais sobre imóveis, ser interpretado no sentido se englobar toda e qualquer acção que se relacione indirectamente, ou a título secundário ou acessório com um direito real sobre imóvel.
Também nesta decisão se entendeu que apenas cabem no âmbito da reserva de competência prevista na alínea a) do artigo 65.º-A do CPC, as acções que tendem a determinar a extensão, a consistência, a propriedade, a posse de um bem imóvel, ou a existência de outros direitos reais sobre estes bens, e a garantir aos respectivos titulares a protecção das prerrogativas emergentes dessa titularidade, “tendo no direito real o seu objecto ou fundamento nuclear como causa petendi”.
A mesma tese da exclusão da reserva de competência dos tribunais portugueses, relativamente ao inventário para partilha de bens dos cônjuges, tem prevalecido nesta Relação, como se ilustra com o acórdão de 3.03.2009[9], onde se conclui que não é suficiente para determinar a competência exclusiva dos tribunais portugueses que a acção se prenda indirecta ou acessoriamente com um direito real sobre imóvel, tornando-se indispensável que este consubstancie o fundamento nuclear da causa de pedir, com vista a assegurar a titularidade do sujeito respectivo[10].
Mais se refere no citado aresto, que o conceito de «acções relativas a direitos reais ou pessoais de gozo», enunciado na alínea a) do artigo 65.º-A do CPC, não envolve toda e qualquer acção relativa a direitos sobre imóveis, como resulta do disposto no n.º 1 do artigo 73.º do mesmo diploma legal, que ao referir-se, no âmbito da atribuição de competência territorial, às «acções relativas a direitos reais sobre bens imóveis sitos em território português», não abrange o processo de inventário, cuja competência é regulada no artigo 77.º.[11]
Aderindo à tese jurisprudencial referida, entendemos que não é suficiente para preencher a previsão legal enunciada na alínea a) do artigo 65.º-A do CPC «acções relativas a direitos reais ou pessoais de gozo sobre bens imóveis», o facto de a acção se reportar indirecta ou acessoriamente a um direito real sobre um imóvel, tornando-se indispensável que o imóvel em causa consubstancie o fundamento central da causa de pedir, com vista a assegurar a titularidade do sujeito respectivo.
Da conclusão enunciada decorre uma outra: a partilha do património conjugal feita por acordo no âmbito de uma acção de divórcio que correu termos num estado estrangeiro, pode validamente ser homologada na sentença que decreta o divórcio, sem que, com tal homologação, a decisão do tribunal estrangeiro ofenda a reserva de competência exclusiva dos tribunais portugueses, prevista na alínea a) do artigo 65.º-A do CPC.
Revela-se assim válida a decisão que homologou a partilha feita por acordo celebrado pelo requerente e pela requerida, homologada pela sentença que decretou o divórcio do casal, proferida pelo Tribunal da Comarca de la Broyle et du Nord Vaudois – Suíça (fls. 106 v.º dos autos e 24 do processo de revisão).
Vejamos agora as consequências processuais de tal validade, face à partilha requerida nestes autos.

3.2. Consequências da homologação judicial do acordo de partilha, no que concerne aos imóveis (verbas n.º 7 e 8 da relação de fls. 36)
Provou-se que:
1) Em 19.10.2004, o ora requerente e a ora requerida, no âmbito do processo de divórcio que correu termos no Tribunal da Comarca de la Broyle et du Nord Vaudois – Suíça, celebraram a “Convenção Sobre os Efeitos Consequentes ao Divórcio”, constante de fls. 107, da qual consta:

«A título da liquidação do regime matrimonial, os esposos convencionam o seguinte:

- Os esposos admitem terem partilhado em partes iguais de fr. 23’000.-, liquidez comum da conta postal tida por ambos, dando-se mutuamente quitança da soma partilhada. 

- M (…) retoma em seu nome a exploração da mercearia de Moudon, sendo esclarecido que, em razão do convencionado, o J (…) recebeu a quantia de fr. 21’000.- de compensação da parte de M (..), dando-se por isso mutualmente quitança a êsse título.

- A Audi A4 é atribuída a J (…) e a camioneta Fiat a M (…).

- J (…) cede a sua parte a M (…) da casa de ... (Portugal) que ambos possuem em copropriedade.

- M (…) cede a sua parte a J (…) do apartamento de P... em Portugal que ambos possuem em copropriedade.

- Os esposos comprometem-se, após que o julgamento seja declarado passado em julgado, de proceder em Portugal, junto dos cartórios notariais respectivos, às diligências necessárias, afim de formalizar as tranferências imobiliárias supracitadas, tendo em conta que as despesas das ditas transferências são assumidas em partes iguais pelos esposos.

- A soma de aproximadamente de 5'000 euros depositada num Banco em Portugal, é atribuida a J (…).

- Pelo demais, os esposos consideram serem proprietários dos bens na sua posse.

Mediante a condição duma boa execução do que precede, os esposos (…) consideram o seu regime matrimonial dissolvido e liquidado.»


2) Consta, nomeadamente, da sentença que decretou o divórcio do requerente e da requerida, proferida pelo Tribunal da Comarca de la Broyle et du Nord Vaudois – Suíça (fls. 106 v.º dos autos e 24 do processo de revisão): «[…] ratifica para fazer parte integrante do presente julgamento, a convenção sôbre os efeitos consequentes ao divórcio, assinada por ambas as partes a 19 de Outubro de 2004, anexada em seguida
3) Tal sentença foi revista e confirmada por este Tribunal (Proc. n.º 2486/05-1), em 17 de Janeiro de 2006.
 4) No presente inventário, o requerente apresentou a relação de bens junta aos autos a fls. 36, da qual fazem parte: mobílias (verbas 1.ª a 5.ª); cortinados (verba 6.ª); e dois imóveis (verbas 7.ª e 8.ª);
5) É o seguinte o teor das verbas n.º 6 e 7:

Verba n.º 7

PRÉDIO URBANO, composto por casa de rés-do-chão e logradouro, destinada a habitação, situado no lugar do ..., freguesia de Q..., concelho de P..., a confrontar do Norte com ..., Nascente com ..., Sul e Poente com Caminho Público, omisso na Conservatória, inscrito na matriz urbana sob o artigo X...°, com a área coberta de 150 m2 e logradouro com 350 m2, com valor patrimonial de catorze mil quinhentos dois euros setenta dois cêntimos. 14.502, 72

Verba n.º 8

Fracção Autónoma, designada pela letra “F”, correspondente ao segundo andar esquerdo, destinado a habitação, com uma garagem na cave com o número dois-E e uma arrecadação no sótão com a letra “F”, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, situado no B..., lote cinco, freguesia e concelho de P..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º y...-“F”/ P..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo z...°- “F”, com o valor patrimonial de trinta mil seiscentos e nove euros e vinte e oito cêntimos 30.609,28.
No que respeita aos imóveis, do confronto da relação de bens apresentada pelo requerente nestes autos, com o acordo de partilha apresentado pelo casal (requerente e requerida) na acção de divórcio, se conclui que sobre as verbas aqui relacionadas sob os n.º 7 e 8 (prédio urbano e fracção autónoma), já os cônjuges haviam chegado a acordo quanto à sua partilha, o qual, como se disse, foi objecto de homologação judicial[12].
Constata-se, é certo, que no acordo homologado pelo tribunal suíço, os imóveis em causa são insuficientemente referenciados face às exigências de registo: «J (…)cede a sua parte a M (…) da casa de ... (Portugal) que ambos possuem em copropriedade. M (…) cede a sua parte a J (…) do apartamento de P... em Portugal que ambos possuem em copropriedade.»
Esta insuficiência de referenciação dos prédios pode tornar incontornável a recusa do registo, como se conclui no parecer aprovado em sessão do Conselho Técnico da Direcção-Geral dos Registos e do Notariado de 28.06.2001 (Proc. nº R.P. 222/2000 DSJ-CT): «[…] A sentença de divórcio proferida por tribunal estrangeiro que tenha homologado acordo de partilha de bens do dissolvido casal pode ser título para o registo de aquisição com base nesse acordo, desde que seja junta certidão da mesma e do referido acordo, devidamente traduzidos e acompanhados do acórdão de revisão e confirmação pelo Tribunal da Relação competente, passado em julgado – artº 43º nºs 1 e 3 do Código de Registo Predial – e deles se possa concluir, inequivocamente, qual(is) o(s) prédio(s) objecto da partilha[13], bem como o regime de propriedade a que o(s) mesmo(s) fica(m) sujeito(s), após essa partilha. […]».
Poderá assim considerar-se comprometida a efectiva concretização do compromisso assumido pelo casal, no sentido de registarem a partilha dos imóveis «Os esposos comprometem-se, após que o julgamento seja declarado passado em julgado, de proceder em Portugal, junto dos cartórios notariais respectivos, às diligências necessárias, afim de formalizar as tranferências imobiliárias supracitadas…».
Face ao teor do acordo celebrado pelo casal, judicialmente homologado, atendendo à insuficiente identificação dos prédios, somos levados a concordar com a conclusão C) do recurso «A sentença proferida pelo Tribunal Suíço não possui expresso qualquer elemento matricial, registral, patrimonial dos imóveis identificados na relação de bens…».
No entanto, essa previsível impossibilidade de registo não apaga os efeitos do compromisso que ambos (requerente e requerida) celebraram e ao qual se encontram vinculados.
Refere-se na sentença recorrida:

«Todavia, do exame de Ac. da Relação de Coimbra cuja certidão consta de fls. 4 e segs. nada resulta, designadamente dos factos provados, relativamente à partilha efectuada, eventualmente porque na p.i. apresentada também se não pedia a confirmação da sentença no que diz respeito a tal segmento.

 […] se, como acontece no caso dos autos, existem dúvidas relativamente à confirmação pelo Tribunal da Relação de tal segmento da sentença Suíça, devem as partes pedir o reconhecimento específico dessa parte da dita sentença – sendo certo que tal Acórdão constituirá titulo executivo – e não, como fizeram, intentar acção de inventário, uma vez que a isso se opõe o preceituado no art. 1096º, al. d) do CPCivil, quando prevê a possibilidade de o tribunal estrangeiro ter previsto a jurisdição.»
Salvo o devido respeito, não estamos de acordo, face às razões que a seguir se aduzem.
É o seguinte o teor do dispositivo da decisão proferida por esta Relação [Proc. n.º 2486/05-1]: «Decide-se, assim, conceder a revisão da sentença em apreço, confirmando-a»
Ora, como vimos, a homologação da partilha faz parte integrante da sentença revista e confirmada (fls. 106v.º), como expressamente nela se afirma: «[…] ratifica para fazer parte integrante do presente julgamento, a convenção sôbre os efeitos consequentes ao divórcio, assinada por ambas as partes a 19 de Outubro de 2004, anexada em seguida.»
A partilha dos imóveis está feita, como o requerente não pode deixar de saber, tanto mais que outorgou o respectivo acordo, submetido à homologação do tribunal que decretou o divórcio.
A previsível dificuldade de exequibilidade, já abordada, é outra questão, lateral à apreciação do presente recurso.
No entanto, sempre se dirá que, ainda que se venha a confirmar tal dificuldade, as partes continuam vinculadas àquela forma de partilha que convencionaram, bem como, conforme livremente estipularam, a «… proceder em Portugal, junto dos cartórios notariais respectivos, às diligências necessárias, afim de formalizar as tranferências imobiliárias supracitadas…»[14].
Do que não podem restar dúvidas, salvo o devido respeito, é da impossibilidade de prosseguir a tramitação dos presentes autos de inventário, relativamente a dois bens imóveis partilhados por acordo dos cônjuges, judicialmente homologado por sentença estrangeira, revista e confirmada no ordenamento jurídico português, por decisão transitada em julgado.
Decorre do exposto que deverá ser confirmada a decisão recorrida, no que concerne aos imóveis constantes da relação de bens de fls. 36 – verbas n.º 7 e 8.

 3.3. Os restantes bens da relação (verbas n.º 1 a 6).
Sob as verbas n.º 1 a 6, relacionou o requerente mobílias e cortinados.
No acordo de partilha judicialmente homologado, consta a referência a outros bens para além dos imóveis já referidos (dinheiro, veículo, estabelecimento comercial), sendo omisso quanto a mobílias e cortinados.
Consta, no entanto, do mesmo acordo, uma cláusula residual, referente aos bens omitidos: «Pelo demais, os esposos consideram serem proprietários dos bens na sua posse.»
Quanto às verbas em apreço, a questão resume-se a saber se as mobílias e cortinados se deverão considerar incluídos na cláusula residual referida, ou seja, se se encontravam na posse de algum dos outorgantes do acordo de partilha judicialmente homologado, considerando-se, em consequência, atribuído ao seu possuidor, nos termos da mencionada cláusula.
Os elementos constantes dos autos não nos permitem responder à questão suscitada, tanto mais que na decisão recorrida, que pôs termo ao inventário, não se consignou a factualidade provada na sequência da prova testemunhal que foi produzida.
Como se refere no acórdão do STJ, de 23.10.2008[15], há um princípio de unidade e universalidade da herança que impõe que, em processo de inventário, todos os bens devam ser considerados na partilha, sejam situados em território nacional sejam situados no estrangeiro.
No entanto, apesar dos princípios enunciados, de onde decorre a exigência legal de que todos os bens a partilhar, independentemente do local onde se encontrem, devam ser relacionados e objecto de partilha, o processo de inventário admite desvios àquele princípio, nomeadamente com a realização de partilha adicional (art. 2122.º do CC) ou a remessa dos interessados para os meios comuns, com vista ao apuramento da exis­tência dos bens e/ou da sua titularidade[16].
Decorre do exposto, no que concerne às verbas n.º 1 a 6, que importa averiguar se integraram o acordo de partilha celebrado pelas partes e homologado na sentença de divórcio.
O mesmo raciocínio se aplica à invocação da falta de bens móveis na relação, feita pela requerida na oposição que deduziu contra a relação de bens (fls. 58).
Em suma: apenas poderão ser objecto de partilha nestes autos, os bens móveis que venha a apurar-se não terem sido objecto do acordo de partilha celebrado pelas partes, homologado pela sentença que decretou o divórcio do requerente e da requerida, proferida pelo Tribunal da Comarca de la Broyle et du Nord Vaudois – Suíça, revista e confirmada por este Tribunal
Os autos deverão prosseguir os seus termos, apenas quanto aos referidos bens.

III. Decisão
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar totalmente parcialmente procedente o recurso, e, em consequência:
a) Em confirmar a sentença recorrida, na parte em que considerou extinta a instância, relativamente aos bens imóveis constantes da relação de bens de fls. 36 – verbas n.º 7 e 8;
b) Em revogar a sentença recorrida, na parte em que considerou extinta a instância, relativamente aos restantes bens (móveis), devendo os autos prosseguir os seus termos, nomeadamente com vista a apurar-se se tais bens foram ou não objecto do acordo de partilha celebrado pelas partes, homologado pela sentença que decretou o divórcio do requerente e da requerida, proferida pelo Tribunal da Comarca de la Broyle et du Nord Vaudois – Suíça, revista e confirmada por este Tribunal.
Custas por ambas as partes, na proporção dos decaimentos.

                                                          *

Carlos Querido ( Relator )
Pedro Martins
Virgílio Mateus


[1] Comentários ao Código de Processo Civil, Volume II, 2.ª edição, 2004, pág. 223
[2] Proferido no Processo n.º 04B3808, relatado pelo Conselheiro Lucas Coelho, acessível em http://www.dgsi.pt
[3] Comentários ao Código de Processo Civil, Volume II, 2.ª edição, 2004, pág. 102

[4] A Comissão de Reforma do Código de Processo Civil, presidida pelo Prof. Antunes Varela, apresentou um Projecto de Reforma, que veio a ser divulgado como Anteprojecto de 1993. Em 1993, o então Ministro da Justiça, Laborinho Lúcio, submeteu a apreciação o “Anteprojecto do Código de Processo Civil” e as designadas “Linhas Orientadoras da Nova Legislação Processual Civil”. Estas “Linhas Orientadoras” haviam sido elaboradas por uma comissão de juristas onde se incluía Lopes do Rego, que visava proceder a uma remodelação do processo mais profunda do que a apresentada pela Comissão Antunes Varela, orientada por critérios de simplicidade e de concisão.

[5] Na decisão do Tribunal de Justiça, sob a presidência de Moitinho de Almeida, proferida no processo Webb/Webb, em 17 de Maio de 1994 (site Eur-Lex, Access to European Union law) consignou-se: «An action for a declaration that a person holds immovable property as trustee and for an order requiring that person to execute such documents as should be required to vest the legal ownership in the plaintiff does not constitute an action in rem within the meaning of Article 16(1) of the Convention of 27 September 1968…». Tratava-se de um conflito que opunha o pai e o filho (ambos de nacionalidade inglesa e de apelido Webb). O pai adquiriu um apartamento de férias nas Antilhas, em nome do filho, pagando-o com recurso a um financiamento bancário que suportou na íntegra. Utilizaram em conjunto o referido apartamento para férias. Mais tarde o pai intentou uma acção para obter a declaração judicial com vista a ser reconhecida a sua propriedade sobre o imóvel, e a ser declarado o filho como mero depositário  do mesmo (trustee). O filho contestou, invocando, nomeadamente, a competência exclusiva dos tribunais franceses, por o imóvel se situar nesse território (Antilhas). O Tribunal de Justiça considerou que a acção em causa não revestia natureza «in rem», pelo que não assistia competência exclusiva ao forum rei sitae, podendo ser decidida num tribunal inglês.
[6] Vide acórdão do STJ, de 13.01.2005, referenciado na nota 2.
[7] Proferido no Processo n.º 619/03-1, relatado pelo Desembargador Amílcar Andrade, e acessível em http://www.dgsi.pt 
[8] Proferido no Processo n.º 5499/2006-6, relatado pela Desembargadora Fátima Galante, e acessível em http://www.dgsi.pt 
[9] Proferido no Processo n.º 237/07.1YRCBR, relatado pelo Desembargador Jorge Arcanjo, e acessível em http://www.dgsi.pt 

[10] Ainda no mesmo sentido, veja-se o acórdão desta Relação, proferido no Processo n.º 137/09.0YRCBR, relatado pelo Desembargador Jaime Ferreira, e acessível em http://www.dgsi.pt, onde se entende que não é suficiente para determinar a competência exclusiva dos tribunais portugueses, que as acções se prendam indirecta ou acessoriamente com um direito real sobre um imóvel, tornando-se indispensável que este (o imóvel) consubstancie o fundamento central da causa de pedir, com vista a assegurar a titularidade do sujeito respectivo.

[11] No mesmo sentido, vejam-se os seguintes arestos: acórdão do STJ, de 21.09.2006, Proc. n.º 06P2283; acórdão do STJ, de 24.02.1999, Proc. n.º 99A063. Em sentido contrário, veja-se o acórdão do STJ, de 15.10.1996, Proc. n.º 96A324 (todos acessíveis em http://www.dgsi.pt)
[12] Veja-se que nas suas alegações (fls. 171), o recorrente não põe em causa a coincidência das verbas, aduzindo outros argumentos, que adiante apreciaremos.
[13] Sublinhado nosso
[14] Registe-se que esta parte do acordo sempre será concretizável por via notarial, podendo interpretar-se neste segmento como um contrato promessa de partilha, cuja validade, admitida pela doutrina e pela jurisprudência, sai reforçada com a homologação judicial.
[15] Proferido no Processo n.º 07B4545, relatado pelo Conselheiro Pires Rosa, e acessível em http://www.dgsi.pt
[16] Veja-se, nesse sentido, o acórdão desta Relação, de 13.05.2008, proferido no Processo n.º 380-B/1999.C1, relatado pela Desembargadora Sílvia Maria Pires, e acessível em http://www.dgsi.pt