Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4/12.0TBTBC.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALEXANDRE REIS
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
ANULABILIDADE
DECLARAÇÃO INEXACTA
DEVERES
SEGURADORA
Data do Acordão: 02/24/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU – VISEU – SECÇÃO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 227º C. CIVIL; E 429º DO CÓDIGO COMERCIAL.
Sumário: I – O contrato de seguro é um contrato bilateral, oneroso, aleatório, de adesão – já que, em regra, uma das partes se limita a aderir aos termos que lhe são propostos, não ajustando o teor do contrato – e de boa fé.

II - O art. 429º do C.Comercial exprime o princípio geral da boa fé exigido aos contraentes na formação de um contrato (art. 227º do CC).
III - Como imposição desse princípio, exigido a ambos os contraentes no momento da formação do contrato, também sobre a Seguradora recai o dever de diligenciar no sentido da prevenção de declarações inexactas ou incompletas pelo tomador do seguro, porquanto o facto de as partes estabelecerem contactos com vista a determinado negócio obriga-as a comportarem-se nas negociações de acordo com as regras da boa fé, subjacentes aos deveres de protecção, de informação e de lealdade.
IV - É ilegítima a invocação da invalidade contratual cominada naquele art. 429º quando falte um nexo de causalidade adequada entre a actuação do segurado e o resultado.
V - Não sendo razoável pensar-se que um trabalhador da construção civil, depois de perder um terço do antebraço e a mão do seu membro superior “activo” – ficando afectado de IPATH e IPP de 56,94% –, mantém suficiente capacidade de ganho residual para suportar «o pagamento das prestações em dívida», a interpretação da cláusula contratual geral em apreço e alusiva à invalidez que considerasse dela excluída a situação do Autor-sinistrado não é plausível nem razoável, face ao critério normativo da impressão do destinatário e ao princípio da boa fé contratual, e seria de considerar abusiva por originar um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

                M… e mulher, P… intentaram a presente acção contra C… - Companhia de Seguros, SA, pedindo a condenação desta a pagar ao Banco B… o capital seguro de € 93.379,04 e necessário à amortização do empréstimo que esta lhes concedeu, bem como a pagar ao Autor as prestações por este efectuadas à instituição bancária e as vincendas, acrescidas de juros.

Para tanto, alegaram, em suma: em 30/7/1999 a referida instituição bancária mutuou-lhes o valor de esc. 15.000.000$00 – montante que em 12/1/2006 passou a ser de € 100.000,00 –, obrigando-se os AA, além do mais, a contratar um seguro de vida para, em caso de morte ou invalidez permanente dos mesmos, lhe assegurar o pagamento de todas as quantias que lhe fossem devidas na data do evento; foi fixada ao A. a incapacidade permanente global de 82%, em consequência das lesões sofridas num acidente de trabalho de que foi vítima no dia 31/7/2006.

A R contestou, alegando: o A omitiu intencionalmente o seu historial clínico, aquando do preenchimento da declaração de adesão ao (segundo) seguro de protecção ao crédito/habitação, em 9/3/2004, e preenchimento do questionário clínico, em 6/4/2004; ao A foi fixada uma incapacidade de (apenas) 56,94%, em consequência do referido acidente de trabalho ocorrido em 2006.

Na sentença, o Sr. Juiz, declarando a anulação do contrato de seguro em causa, julgou a acção improcedente, absolvendo a R do pedido.

Inconformado com tal decisão, o A apelou, delimitando o objecto do recurso com conclusões que colocam as questões de saber se:

- devem obter resposta negativa os quesitos 8°, 9° e 13° e positiva o 12° ([1]);

- por consequência, a factualidade não permite a anulação do contrato de seguro;

- deve ser declarada a nulidade da cláusula 15ª do dito contrato.

Importa apreciar as questões enunciadas e decidir.

A matéria de facto.

Para além dos já assentes, o Sr. Juiz considerou os seguintes factos provados:

- Na sequência de acidente de trabalho ocorrido em 31.7.06, pelas 14h30, na Av. …, o A. sofreu uma amputação da mão esquerda [r.q. 1º].

- Pelo referido acidente o A. ficou com uma incapacidade permanente global de 56,94%, ficando com incapacidade absoluta para a sua actividade habitual e não sendo reconvertível em relação ao posto de trabalho como operário de construção [r.q. 2º a 4º]. 

- Após o referido acidente, os AA. continuaram a pagar ao Banco B… as prestações mensais de capital e juros do empréstimo, no total de € 4.185,44, permanecendo em dívida, à data da entrada desta acção, a quantia de € 93.397,04 [r.q. 6º e 7º].  

- Aquando da subscrição do referido em C) e K), o A. omitiu intencionalmente as informações referidas em N) e O) [r.q. 8º],

- o que influenciou a avaliação do risco efectuada pela R [r.q. 9º], que, se soubesse do referido em N) e O), ao celebrar o contrato de seguro sempre seria em condições diferentes, com prémios mais elevados e causas de exclusão adicionais, com exclusão da cobertura de invalidez do A em virtude das lesões e incapacidades já existentes [r.q. 10º]. 

- O formulário do questionário referido em K) foi preenchido por representante da R [r.q. 11º (1ª parte)]. 

- O A foi informado do teor da cláusula referida em P) [r.q. 13º].

E considerou os seguintes factos não provados:

- Encontrando-se impossibilitado de exercer qualquer actividade lucrativa [r.q. 5º].

- Que o referido representante da R apenas perguntou ao A se era um homem de saúde ou se padecia de alguma doença considerada grave [r. r.q. 11º (2ª parte)].

- As informações constantes do “questionário clínico” não foram fornecidas pelo A [r.q. 12º].

- Foi fornecida ao A cópia do contrato referido em D) [r.q. 14º].

Vejamos se, tal como pretende o apelante, a prova produzida implica a alteração do julgamento da 1ª instância por não se confirmar a razoabilidade da convicção probatória do julgador, à luz das regras da ciência, da lógica e da experiência.

- Com intervenção directa nos factos ora em apreço, depôs apenas a testemunha (arrolada por AA e R) Sr. , empregado bancário, que, na qualidade de funcionário de… era, à data, o responsável nesta pela resolução das questões relacionadas com a concessão de crédito e em representação da qual interveio na escritura pública de 12.1.2006, acima referida em C).

A testemunha esclareceu conhecer os AA, serem estes clientes do Banco, foi sendo confrontado, no seu depoimento, com os documentos de fls. … e, em geral, limitou-se a prestar informações genéricas da conduta que, por rotina, costumava adoptar em situações idênticas, pouco se recordando do que, no caso concreto, teria sucedido por terem, entretanto, decorrido 9/10 anos. Assim, disse, em suma:

Já conhecia bem o A e também a A mulher: conhecia a sua vida e modo de vida, já os conhecia antes de eles terem lá contas bancárias e até já antes de ele próprio ir para o Banco.

Os AA tinham lá um empréstimo; lembrava-se de que eles fizeram um crédito para habitação (mas não do valor), com todos os trâmites (escrituras, incluindo seguros) e de que foi ele que tratou tudo isso por ser o responsável pelo crédito.

Não se recordando do que em concreto sucedera, falou da prática habitual: por norma, fazia-se o print e quando se chegava ao questionário clínico era o próprio cliente que o preenchia, dada a delicadeza das perguntas; se o cliente tivesse alguma dificuldade, ajudava; o cliente rubricava as folhas e no fim assinava; depois a proposta era enviada para a sede para ser aí avaliado clinicamente o risco, ele só fazia a recepção. Normalmente era dada uma cópia ao cliente, mas a companhia mandava depois uma cópia.

Por norma, o questionário clínico era entregue ao cliente, no caso não se recordava se foi assim.

«Estamos a falar no genérico», «normalmente as pessoas sabem que não podem mentir porque sabem que não têm interesse, a seguradora pode recusar o seguro», «não faz ideia se lhe foi entregue ou não cópia» (sic).

[Quando inquirido sobre se foi perguntado ao A se o que lá estava era verdade e se o A foi esclarecido das consequências de não ter dito a verdade, respondeu:] «Isso está escrito no papel mas não me recordo se ele leu tudo» (sic).

Na generalidade, o cliente estava presente e teve que ser o A. a responder às questões. Não há hipótese de haver alguma resposta que não tenha sido indicada pelo cliente. Ele (depoente) não saberia como responder, teria que lhe perguntar. Mas no caso não se recordava do que é que se falou, ou se o depoente ou o cliente leu o teor das cláusulas, se o avisou de que se não respondesse com verdade teria consequências.

Lembrava-se, sim, de que foi falado o grau de incapacidade e que tinha que ser definitiva para o A poder usufruir do seguro.

[Depois de analisados os acima referidos documentos de fls. 169 a 177, disse que] a letra e os algarismos são do depoente.

[Sendo-lhe referido que no dito questionário clínico (por ele preenchido) constava ser o mesmo datado de 6/4/2004 e também o falecimento do pai do A, quando do processo (fls. 260) se concluía que tal facto só viria a ocorrer em 16/12/2007, disse] não saber responder sobre o que constava do questionário quanto a tal morte, «é o que está aqui» (sic), recordava-se do pai da A. mulher mas não do pai do A. marido; tal indicação teria sido dada pelo cliente, não fazia ideia; se o pai só faleceu depois, são sabia responder ou explicar.

[Perguntado se era sua convicção que o cliente ficou inteirado de que teria que informar sobre as suas incapacidades, respondeu:] «Incapacidades? o Sr. M… não tinha incapacidades, por aquilo que eu que, na altura, pelo menos que eu tivesse conhecimento, não» (sic).

…- E dos depoimentos das duas técnicas de análise de risco, entre si conjugados, retira-se, em suma o seguinte:

A R. seguradora não tem balcões, sendo os funcionários do B… quem trata das propostas, declarações e demais documentação, servindo como mediadores ou angariadores de clientes daquela, que paga ao B… uma comissão por tal angariação. Depois, os funcionários do B… remetem para a sede da R. seguradora essa documentação para avaliação dos processos. Os requisitos destes variam consoante a idade do cliente ou o capital, mas são sempre exigidos o questionário clínico de saúde ou uma declaração de saúde (este para capitais mais baixos).

O seguro em concreto (de 2004) tinha o questionário clínico e foi aceite sem qualquer restrição, atendendo ao teor do questionário preenchido pelo cliente (requisito imposto no caso concreto): não se colocou qualquer questão e foi aceite de imediato, com base nas informações do cliente. Quando o cliente declara qualquer aspecto que suscite dúvidas é contactado directamente o cliente.

Os funcionários do B… têm instruções para ser sempre o cliente a preencher o questionário, para eles só por dificuldades de leitura ou de escrita do cliente o preencherem. Alguns colegas poderão ajudar, mas as instruções que lhes dão é para eles lerem e dizerem se está tudo bem e depois assinar e sempre a pedido do cliente. E quando isso acontece as instruções são para que o cliente preste as informações e o funcionário as reproduza.

O original segue para a Companhia. Não sabem se na altura foi entregue uma cópia (o cliente pode sempre solicitar); não há instruções para entregar cópia (fica ao critério do funcionário do Banco), mas depois é enviada a apólice ao cliente e as condições em que o seguro foi contratado.

Desconhecem quem preencheu declaração de adesão e questionário clínico. Não sabem se o pai já tinha falecido. Não podem confirmar mas ele também assinou.

As lesões de 1992 foram omitidas pelo cliente no questionário clínico; a companhia só teve conhecimento delas com a apresentação (numa segunda participação, em 2011) com um atestado de incapacidade onde elas constavam (na 1ª só era referido o 2º acidente, de 2006).

Se a Seguradora soubesse que ele já tinha tido um acidente (intervenção cirúrgica, lesões no maxilar, coluna, em 1992), o seguro teria sido aceite mas com a exclusão na invalidez da parte das lesões que ele já apresentava.

Todos os referenciados elementos, conjugados entre si e com os factos já assentes, analisados criticamente, facultam as seguintes ilações quanto à matéria de facto em apreço:

a) O A., nascido a 3/1/1970, em 1992, então um jovem adulto com 22 anos, sofreu, em consequência de acidente, fractura do maxilar inferior e traumatismo da coluna cervico dorso lombar, lesões que impuseram tratamento cirúrgico ao maxilar e tratamento conservador ao traumatismo raquidiano.

b) Depois de ter sofrido tais lesões o A. continuou a exercer uma regular e, como é consabido, intensa actividade física na construção civil, como armador de ferro, até ao acidente de trabalho de que foi vítima em 31/7/2006.

c) A preparação do processo relativo ao seguro em questão emergiu na sequência do contrato de mútuo em vigor desde 1999, nos termos do qual os AA, logo então, se obrigaram a contratar um seguro com cobertura de morte ou invalidez permanente, e foi tratada pelo Sr. …, angariador para a R do mencionado seguro (e responsável do B… pela resolução das questões relacionadas com a concessão de crédito).

d) O A. apôs a sua assinatura e rubrica nas folhas dos impressos de declaração de adesão ao seguro e de questionário clínico, que foram datados de 9/3/2004 e de 6/4/2004, respectivamente.

e) Das respostas manuscritas insertas no aludido questionário clínico não consta qualquer referência a pré-existentes incapacidades ou intervenções cirúrgicas, antes delas se retira que o A. gozava de boa saúde, bem como que o seu pai já falecera, com 78 anos, por causas desconhecidas, sendo certo que tal óbito só viria a ocorrer em 16/12/2007.

f) As ditas respostas foram manuscritas pelo mencionado Sr. …, o qual – conhecendo já bem os AA, quer pela sua vida e modo de vida, por ser deles vizinho, quer também como clientes da referida instituição financeira –, em audiência manifestou a sua convicção de que o A., na altura, não tinha incapacidades e disse não se recordar se o mesmo leu o que estava escrito no “papel”, não soube explicar a referência ao dito falecimento e, quanto ao que sucedera no preenchimento de tais “papéis”, apenas se lembrar de que foi falado o grau de incapacidade e que esta tinha que ser definitiva para o A. poder usufruir do seguro.

g) Os funcionários do B… tinham instruções para: ser sempre o cliente a preencher o “questionário”; poderiam ajudar a fazê-lo por dificuldades de leitura ou de escrita do cliente, mas sempre a pedido e com as informações prestadas por este e reproduzidas pelo funcionário; e, depois, lerem e perguntarem se está tudo bem antes de o cliente assinar.

h) Apenas em consequência da amputação da mão e do terço do antebraço activo (por ser esquerdino ([2])) provocada pelo referido acidente de trabalho de 31/7/2006 – não contabilizando, pois, as sequelas do também aludido acidente de 1992 – o A ficou afectado de uma incapacidade permanente de 60% ([3]) em geral (para toda e qualquer actividade) e absoluta para o seu trabalho habitual ou para qualquer outro com ele compatível.

i) Se a R. seguradora, em 2004, tivesse sabido que o A já tinha tido um acidente em 1992 (com subsequente intervenção cirúrgica e tratamento das lesões no maxilar e na coluna), teria aceitado o seguro mas com a exclusão da invalidez na parte referente às lesões que ele já apresentava, pelo que só assumiria a incapacidade resultante do acidente de 2006.

Tais inferências mostram-se patentemente incompatíveis com o acolhimento do sentido plasmado na decisão impugnada pelo apelante quanto a qualquer dos pontos de facto referidos no recurso. Com efeito, o Sr. Juiz ancorou a expressão da convicção que formou para proferir a decisão supra enunciada sobre os pontos de facto ora controvertidos num extremado laconismo. Disse apenas que a testemunha Sr. … não aludiu muito em concreto às negociações relativas à proposta de seguro, dizendo todavia que os AA «rubricaram todas as folhas com o significado de que teriam lido essas cláusulas». E acrescentou: «Todavia, parece-nos claro que o A. teria de ter informado a Seguradora do sinistro anterior e danos daí decorrentes, e que só o mesmo o deveria ter feito, e também de forma responsável não ter subscrito a proposta de seguro nos termos em que o fez (…) Também ressalta do questionário clínico – documento necessário para a celebração do contrato de seguro – e que dos autos consta a fls. 174 que quando aí se questiona se o A. tem alguma deficiência física ou incapacidade profissional, é respondido negativamente, que o A. assinou, documento que a Ré recepcionou e em que se baseou para aceitar esta proposta de seguro nos termos em que o fez.».

Ora, o que nos parece claro, sim, é que o Sr. Juiz formou a sua convicção não em qualquer suporte probatório, que também nem sequer invocou, mas numa pré-compreensão dos factos controversos assente num juízo de índole normativa sobre os deveres que, em geral, impendem sobre quem apõe a assinatura e a rubrica em impressos ou formulários, bem como sobre o significado de tal atitude, a que, aliás, a testemunha – sublinhe-se – não fez qualquer alusão, antes disse não se recordar se o A leu o que estava escrito no “papel”, diferentemente do que, aparentemente, subjaz à decisão impugnada ([4]).

Realmente, os apontados elementos probatórios e as ilações pelos mesmos consentidas fazem emergir uma realidade com concretos contexto e contornos fácticos cuja complexidade se não compadece com a superficialidade exibida na motivação expressa pelo Sr. Juiz:

- O mencionado funcionário, que tratou de todos os trâmites relativos ao seguro em questão, mantinha já um longo relacionamento profissional com o A. e tinha também um amplo conhecimento pessoal deste, os quais, por certo, lhe permitiram preencher os formulários sem carecer de interpelar especificadamente o A., ao que também se deverá, segundo tudo indica, o lapso consistente na alusão ao falecimento do pai do A., afinal, apenas ocorrido em finais de 2007, não fornecendo os autos para o mesmo qualquer outra explicação aparente já que contraria as regras da lógica e da experiência comum pretender que a mesma poderia ter sido precedida de indicação do próprio A.

- As consequências do acidente sofrido pelo A. em 1992, então com 22 anos, não lhe terão acarretado repercussão ou estorvo suficiente para poder (continuar a) desempenhar, em 2004, a sua regular prestação laboral de armador de ferro numa exigente actividade física, como é suposto ser a desenvolvida na construção civil. É, pois, compreensível que o A. as não tenha relevado nos contactos mantidos com o Sr. … – convicto de que, em geral, gozava de boa saúde –, o que também está em sintonia com o facto de este, que bem o conhecia e que preencheu os formulários, ter manifestado em audiência a segurança – com um misto de perplexidade e veemência – de que o A., na altura, não tinha incapacidades e o de ter informado que, na ocasião, esclareceu o A. sobre o grau e a natureza (definitiva) da incapacidade exigidos para ele poder usufruir do seguro, nada mais se recordando do que, então, ocorreu.

Como é sabido, pode o juiz, na apreciação livre da prova, socorrer-se também da chamada prova indiciária ou indirecta. Questão é que, no sentido de que os factos se passaram como da decisão se faz constar, haja indícios sérios, importantes, intensos e concordantes, por si ou na conjunção com outros indícios, que a permitam fundamentar. E, por maioria de razão, o elemento subjectivo inerente ao que se apure ser um incumprimento de um dever, sendo da vida interior de uma pessoa e, por isso, impossível de apreender directamente, pode deduzir-se ou inferir-se de dados que, com muita probabilidade, o revelam, fazendo-se uso das regras da experiência comum. O que sucederá se, numa tal conduta incumpridora, posto que manifestamente demonstrada na sua materialidade, tudo apontar para a sua verificação, por assumir o significado evidente ou a probabilidade séria da consciência e da vontade da prática do facto.

Não deve olvidar-se que também sobre a R. seguradora recaía o dever de diligenciar no sentido da prevenção de declarações inexactas ou incompletas pelo tomador do seguro, por imposição do princípio geral da boa-fé exigido a ambos os contraentes no momento da formação do contrato. Ora, o conjunto dos dados colhidos leva a concluir que o referenciado Sr. …, na concreta tramitação em apreço que desenvolveu ao serviço tanto da sua entidade patronal como da agora R. e enquanto representante desta, terá aligeirado o cumprimento dos procedimentos para aquele efeito aconselhados: segundo tudo sugere, tratava-se da prossecução de formalidades com um anterior encadeamento e, para tanto, ele tinha já um amplo conhecimento dos AA, sendo ambas essas vicissitudes geradoras de um ambiente de confiança recíproca e, por outro lado, de simplificação das rotinas ([5]).

E o depoimento desse Sr. funcionário, pelo modo como se foi desenrolando, não permite afiançar que o mesmo não terá limitado o empenho no seu esforço de memória a aspectos da sua actuação menos desfavoráveis para a sua própria imagem. Porém, esta é uma questão que suscita meras interrogações, agora irrespondíveis, sobretudo, devido à falta de imediação. Mesmo sem essa imediação ([6]), afigura-se-nos ser possível registar que, com a apontada reserva, os depoimentos testemunhais se revelaram, em geral, espontâneos, coerentes, articulados e sem denotarem qualquer especial debilidade ao nível da sua credibilidade, não merecendo, por isso desconsideração.

Todavia, nestes autos, segundo se extrai do que expusemos, a prova produzida não forneceu qualquer elemento sólido que suporte a decisão proferida pelo Sr. Juiz aos quesitos 8°, 9° e 13°, quanto à omissão intencional de informações, à consequente avaliação do risco e à comunicação ao A. do teor da cláusula referida em P) ([7]). Os elementos obtidos, indiciariamente, até se revelam serem coincidentemente direccionados para um resultado comum e consequentemente oposto ao firmado pelo Sr. Juiz. De todo o modo, mesmo que assim não fosse, sempre teríamos que ponderar que é insofismável incumbir à R., nos termos do art. 342º do CC, a prova dos factos impeditivos do direito que os AA exerceram e integrantes da invocada excepção com que pretenderam tornar inoperacional o contrato de seguro. Ora, os elementos que referenciámos – ainda que com um seu exame algo desfocado ou, pelo menos, radicalmente liberal – não admitiriam mais do que dúvidas quanto aos factos em questão, sendo sabido que a dúvida sobre a realidade de um facto se resolve contra a parte a quem o facto aproveita (art. 414º do CPC).

Particularmente no que respeita à decisão proferida sobe o quesito 9º, cumpre observar que faria inteiro sentido a respectiva análise ser feita em conjugação com a que recaiu sobre o quesito 10º, cuja matéria constitui uma mera concretização da daquele. Porém, o apelante entendeu não impugnar a decisão por este obtida. Ainda assim, registe-se que, como vimos, a prova produzida por iniciativa da R. seguradora não foi no sentido do que o Sr. Juiz declarou, mas, sim, o de que aquela se em 2004 tivesse sabido que o A. já tinha tido um acidente em 1992 (com subsequente intervenção cirúrgica e tratamento das lesões no maxilar e na coluna), teria aceitado o seguro mas com a exclusão da invalidez na parte referente às lesões que ele já apresentava, pelo que só assumiria a incapacidade resultante do acidente de 2006. Realidade a que o Sr. Juiz atenderia, sim, mas para fixar a incapacidade que afecta o A., em que apenas ponderou as sequelas advindas do acidente de 2006 e com base nas quais, afinal, a R sempre teria aceitado o seguro.

Por sua vez, em relação ao quesito 12º, na sequência do que acima expendemos, consideramos que os analisados elementos constituem indícios sérios, importantes, intensos e concordantes no sentido de que as informações constantes do “questionário clínico” não foram fornecidas pelo A.

Em conclusão, ter-se-ão como não provados os quesitos 8°, 9° e 13° e como provado o quesito 12°.

Assim sendo é a seguinte a factualidade provada a considerar:

As invalidades do contrato de seguro.

Por uma razão de sequência lógica, começamos pela suscitada questão da prova sobre se o A. teve conhecimento adequado da cláusula 15ª do contrato de seguro em causa ou, numa sua diferente abordagem, da questão da falta da comunicação e esclarecimento dessa cláusula e, consequentemente, da sua nulidade, ao abrigo do regime definido para as cláusulas contratuais gerais.

A verdade é que a referida cláusula – acima enunciada em P) – não exprime mais do que o princípio geral da boa-fé exigido aos contraentes na formação de um contrato (cf. art. 227º do CC). Tratando-se da celebração de um contrato de seguro, porque a avaliação do risco depende, precisamente, das informações prestadas pelo proponente do seguro, recai sobre este o dever, decorrente daquele princípio geral, de «comunicar ao segurador todas as circunstâncias conhecidas que possam influenciar a determinação do risco, que no caso do seguro do ramo vida consistirá essencialmente na informação sobre o estado de saúde da pessoa a segurar» – como, afinal, reconheceu o próprio apelante.

Aliás, o afirmado princípio geral tinha, consagração especificada, quanto ao contrato de seguro em causa nos autos, no art. 429º do C.Com., em vigor à data da sua formação ([8]), que preceituava: «toda a declaração inexacta, assim como toda a reticência de factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro, e que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato, tornam o seguro nulo».

 Por conseguinte, para o efeito pretendido pelo apelante, a dita cláusula é irrelevante porque, naquilo que aqui interessa, nada acrescenta àquele princípio ([9]).

Do confronto da matéria dada como assente nas alíneas K) e L) com a inserta nas alíneas N) e O) imediatamente se conclui que não correspondiam à realidade, ou seja, que não eram exactas as respostas contidas no “questionário clínico” de que dependeu a avaliação pela R. do risco inerente ao contrato de seguro então em formação. Com efeito, não se retirava dessas respostas que o A. sofrera um acidente de viação em 1992, do qual resultou fractura do maxilar inferior com perda de 7 dentes e traumatismo da coluna cervico dorso lombar, na sequência do que fora submetido a tratamento cirúrgico ao maxilar inferior e fizera tratamento conservador ao traumatismo raquidiano.

Mas também se extrai idêntica ilação do cotejo da matéria inserida na alínea X) com a assente na alínea M), porquanto, ao invés do afirmado nas declarações pré-impressas em tal “questionário clínico”, as informações dele constantes não foram fornecidas pelo A. Por outro lado, não existe qualquer dado de que se possa concluir que o A. tivesse sido confrontado com o conteúdo desse questionário nem se retira da matéria demonstrada que o A. soubesse que as respostas constantes do “questionário clínico” divergiam da realidade [cf. resposta negativa ao quesito 8º conjugada com a alínea V) supra].

A questão será, pois, a de saber se, não se tendo provado o conhecimento dessa divergência, o A. podia e devia tê-la conhecido. Nada se provou sobre isso. Mas é inquestionável que sobre o A., enquanto proponente do seguro, impendia o dever – decorrente do dever de proceder de boa fé – de declarar todo e qualquer facto ou circunstância que, apesar de não lhe ter sido perguntado expressamente, fosse relevante para que a R. seguradora pudesse formar a sua decisão de contratar, para além de, naturalmente, responder com verdade às questões que expressamente lhe tivessem sido colocadas, na hipótese – não verificada no caso concreto – de as mesmas lhe terem sido efectivamente formuladas pela pessoa de quem a R seguradora se serviu para angariar o seguro.

No entanto, também não pode omitir-se que o contrato de seguro é um contrato bilateral, oneroso, aleatório, de adesão – já que, em regra, uma das partes se limita a aderir aos termos que lhe são propostos, não ajustando o teor do contrato – e de boa fé ([10]), «no sentido de boa fé objectiva, enquanto norma de conduta, ou seja, no plano dos princípios normativos, como base orientadora e fundamento de efectivas soluções reguladoras dos conflitos de interesses» ([11]).

Por isso, não é de admitir, naquilo que interessa ao caso, que apenas sobre o A., proponente do seguro, recaíam aqueles deveres, resultantes do princípio da boa fé, e que não poderia sequer ser exigida à R. qualquer averiguação sobre o estado de saúde daquele, por apenas lhe caber aceitar a veracidade das declarações, afinal, apenas formuladas pelo seu próprio representante [cf. alínea V)], sem que o A. tivesse fornecido as informações que ficaram a constar do “questionário clínico” [cf. alínea X)], embora tenha assinado e rubricado o respectivo impresso.

O facto de as partes estabelecerem contactos com vista a determinado negócio, obriga-as a comportarem-se nas negociações de acordo com as regras da boa fé, subjacentes aos deveres de protecção, de informação e de lealdade.

No caso em apreço, pode concluir-se que não foi apenas o A. quem não teve o suficiente zelo no cumprimento dos apontados deveres ([12]): também a R., através da pessoa que utilizou para angariar o seguro, não diligenciou no sentido da prevenção de declarações inexactas ou incompletas pelo tomador do seguro, não observando, desde logo, as instruções difundidas para o procedimento em causa ([13]) e quedando-se, ao que tudo indica, pelo que supunha ser o seu conhecimento da situação do A., sem sequer o interpelar com as questões concretas que se imporiam ([14]).

Por isso, atendendo aos particulares contornos do caso, não faz sentido que a R. pretenda prevalecer-se de tais declarações inexactas para se eximir totalmente da sua responsabilidade, porquanto também não foi da inteira e exclusiva responsabilidade do A. o teor das afirmações constantes do “questionário clínico”, não apenas porque não foi ele a escrevê-las, mas, sobretudo, porque o mesmo não forneceu as respostas às perguntas dele constantes.

É o que resulta do entendimento expresso pelo STJ no seu Ac. de 6/11/2007 (p. 07A3447-Nuno Cameira):

«No âmbito da aplicação da norma do artigo 429º do Código Comercial deve entender-se que a seguradora está vinculada a certos deveres, designadamente o de contro­lar a exactidão das respostas do tomador do seguro envolvendo a extensão dos riscos a cobrir» (…) «o encargo que recai sobre o tomador do seguro de declarar o risco sem omissões, reticências ou inexactidões envolve de igual modo a seguradora, “que não pode abandonar-se totalmente às declarações do proponente com o fundamento de que a sanção legal a protegerá das declara­ções erróneas, devendo entender-se que sobre ela impende, no mínimo, o dever de sindicar as respostas que o tomador dá aquando da proposta de seguro ao questio­nário, ou o seu não preenchimento”.».

Pronunciando-se sobre as declarações iniciais de risco e o regime (de anulabilidade do contrato) que emergia do art. 429º do C.Com., disse Abrantes Geraldes ([15]): «Outros problemas emergentes do desfasamento entre o preceito abstracto e a realidade dinâmica e multifacetada levaram a considerar ilegítima a invocação daquela invalidade contratual em determinadas circunstâncias que a jurisprudência e a doutrina enunciavam, designadamente (…) Quando faltasse um nexo de causalidade adequada entre a actuação do segurado ou do tomador e o resultado» ([16]).

Realmente, ao abrigo de tal preceito, ainda que não tenha sido pacífica a questão de saber se a anulabilidade do contrato dependeria da existência de nexo de causalidade entre a inexactidão e o sinistro, afigura-se-nos mais defensável a resposta positiva, «já que seria de todo desproporcionado sancionar com o vício da anulabilidade o seguro em que o evento que despoletou o pagamento do risco assumido seja completamente alheio aos elementos inexactos ou omitidos» ([17]). «Conforme vem sendo entendido maioritariamente, torna-se indispensável que as declarações inexactas ou reticentes influam na existência e nas condições do con­trato, de sorte que o segurador, se as conhecesse, não contrataria ou teria contra­tado em diversas con­dições» ([18]).

Por conseguinte, tendo em conta as condutas de ambos os contraentes, à luz das considerações precedentes, efectivamente apenas pode ser adequadamente imputada à do próprio A. as sequelas incapacitantes do acidente que o mesmo sofrera em 1992, não incluídas nas declarações expressas no impresso em que ele apôs a sua assinatura e rubrica e que, como tal, devem ser excluídas da cobertura do seguro em causa, no respeito e realização do princípio da boa fé, e, afinal, em conformidade com o que também resultou da prova produzida em audiência, como acima expusemos ([19]): se a R. seguradora, em 2004, tivesse sabido que o A. já tinha tido um acidente em 1992 (com subsequente intervenção cirúrgica e tratamento das lesões no maxilar e na coluna), teria aceitado o seguro mas com a exclusão da invalidez na parte referente às lesões que ele já apresentava, pelo que só assumiria a incapacidade resultante do acidente de 2006.

Assim sendo, em consequência das lesões sofridas pelo A. no acidente de trabalho ocorrido em 31/7/06, a responsabilidade da R. abrange a incapacidade permanente global (IPP) de 56,94% e absoluta para a actividade habitual do A. (IPATH), não sendo [a sua capacidade de ganho] reconvertível em relação ao posto de trabalho como operário de construção.

Consta na alínea G) dos factos assentes: «Nos termos das cláusulas gerais e certificado individual de adesão, a cobertura do referido contrato era de “morte ou invalidez total e definitiva” ocorrida durante o prazo de adesão ao contrato considerando-se que a pessoa segura se encontra na situação de invalidez total e definitiva quando esta for irreversível, tenha um grau de invalidez geral de, pelo menos 75%, determinado com base na TNI e confirmado pelo médico nomeado pela “C…” e impossibilite o exercício da sua profissão, bem como de qualquer outra actividade remunerada».

Ora, sustentou a apelada que não ficou provado que o apelante se encontra impossibilitado de exercer qualquer actividade remunerada, compatível com os seus conhecimentos, capacidades ou aptidões, condição que também tem que se verificar para funcionarem as garantias do contrato. Que dizer?

Afigura-se-nos que, face ao critério normativo da impressão do destinatário ([20]) e ao princípio da boa fé contratual, a interpretação de tal cláusula contratual geral, tal como é proposta pela apelada, não é plausível nem razoável e seria de considerar abusiva por originar um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato.

«Para apreciar se existe um desequilíbrio das prestações gravemente atentatório da boa fé, importa ter em consideração todas as circunstâncias que envolvem o contrato, as quais devem ser apreciadas objectivamente, na perspectiva de um observador razoável e com referência não ao momento da celebração do contrato, mas daquele em que é feita valer a nulidade da cláusula. A finalidade do contrato de seguro de vida com complementar de invalidez absoluta e definitiva subscrito para preencher uma condição para realização de um empréstimo para habitação é, por parte do segurado, a de prevenir o risco de ocorrência de um acontecimento – a morte ou a invalidez absoluta e definitiva – que lhe não permita ou dificulte o pagamento das prestações em dívida.» ([21]).

Para um declaratário normal, colocado na posição do A. – uma pessoa de fracas habilitações literárias, cuja capacidade de ganho dependia do seu trabalho braçal, cliente conhecido da instituição bancária e com confiança nos funcionários desta – era perfeitamente razoável e aceitável o entendimento de que uma incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual, na construção civil, acrescida de uma incapacidade permanente parcial (IPP) de 56,94% para qualquer outra actividade, laboral ou não, preencheria a “invalidez” aludida em tal cláusula como requisito para que o seguro fosse accionado.

Assim, a incapacidade absoluta do A. para a sua profissão, sem que a sua capacidade de ganho seja reconvertível em relação ao posto de trabalho como operário de construção preenche o pressuposto constitutivo da verificação daquela invalidez. Uma tal inaptidão laboral faz impossibilitar o A. de usufruir o seu habitual cargo funcional, tudo se passando neste contexto como se lhe tivesse sido retirada a remuneração que dele lhe advinha.

É claro que um homem, em tais condições, ainda poderia desempenhar funções de, p. ex., porteiro ou fiel de armazém ([22]), se algum eventual patrão precisasse desse posto e, numa manifestação de solidariedade, deixasse de preferir contratar uma pessoa sem invalidez. Em tese, tudo pode admitir-se, mas não é razoável pensar-se que um trabalhador da construção civil ([23]), depois de perder um terço do antebraço e a mão do seu membro superior “activo” mantém capacidade de ganho, que possa ser, plausivelmente, considerada compatível com os seus conhecimentos, capacidades ou aptidões.

Do que se trata é de aferir em concreto se, «em face da actividade anteriormente desenvolvida bem como das capacidades e habilitações literárias» ([24]) do A., este mantém suficiente capacidade de ganho residual para suportar «o pagamento das prestações em dívida», para os efeitos previstos na aludida cláusula, lida segundo um critério normativo da impressão do destinatário.

Ora, no nosso parecer, a resposta não pode deixar de ser negativa sob pena de essa cláusula ser aqui recebida com o significado de que a invalidez nela aludida ter de ser tal que o segurado ficasse total e definitivamente incapacitado de exercer qualquer actividade, o que a tornaria contrária ao principio da boa-fé e consequentemente proibida, por abusiva: haveria um desequilíbrio significativo da situação jurídica dos contraentes em detrimento do A. «A cobertura ficaria manifestamente aquém daquilo que o autor podia de boa fé contar, tendo em consideração o objecto e a finalidade do contrato. Por isso, as limitações em causa constantes da cláusula em questão não podiam deixar de se consideradas nulas([25]).

Assim sendo, por força da responsabilidade contratualmente assumida, deve a R. satisfazer as quantias peticionadas pelos AA e respeitantes, quer à amortização do empréstimo que o Banco B… lhes concedeu, quer às prestações que os mesmos, desde Fevereiro de 2011, efectuaram à dita instituição bancária, estas últimas acrescidas de juros.

Não havendo elementos para determinar o actual montante de tais quantias, deve o mesmo ser liquidado ulteriormente.

Síntese conclusiva.

1ª - O contrato de seguro é um contrato bilateral, oneroso, aleatório, de adesão – já que, em regra, uma das partes se limita a aderir aos termos que lhe são propostos, não ajustando o teor do contrato – e de boa fé.

2ª - O art. 429º do C.Com, aplicável no caso em apreço, exprime o princípio geral da boa fé exigido aos contraentes na formação de um contrato (art. 227º do CC).

3ª - Como imposição desse princípio exigido a ambos os contraentes no momento da formação do contrato, também sobre a R seguradora recaía o dever de diligenciar no sentido da prevenção de declarações inexactas ou incompletas pelo tomador do seguro, porquanto o facto de as partes estabelecerem contactos com vista a determinado negócio obriga-as a comportarem-se nas negociações de acordo com as regras da boa fé, subjacentes aos deveres de protecção, de informação e de lealdade.

4ª - É ilegítima a invocação da invalidade contratual cominada naquele art. 429º quando falte um nexo de causalidade adequada entre a actuação do segurado e o resultado.

5ª - Não sendo razoável pensar-se que um trabalhador da construção civil, depois de perder um terço do antebraço e a mão do seu membro superior “activo” – ficando afectado de IPATH e IPP de 56,94% –, mantém suficiente capacidade de ganho residual para suportar «o pagamento das prestações em dívida», a interpretação da cláusula contratual geral em apreço e alusiva à invalidez que considerasse dela excluída a situação do Autor não é plausível nem razoável, face ao critério normativo da impressão do destinatário e ao princípio da boa fé contratual, e seria de considerar abusiva por originar um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato.

Decisão.

Pelo exposto, julgando procedente a apelação, decide-se revogar a sentença recorrida e, por consequência, condenar a R. C… - Companhia de Seguros, SA a pagar as seguintes quantias, nos montantes que vierem a ser liquidados:

 - ao Banco …, a respeitante à integral amortização do empréstimo acima referido que a mesma concedeu aos AA;

- aos AA, as prestações que estes, desde Fevereiro de 2011, efectuaram à dita instituição bancária, acrescidas de juros contados à taxa legal.

Custas pela apelada, em ambas as instâncias.

                   Coimbra, 24/02/2015

Alexandre Reis (Relator)

Jaime Ferreira

Jorge Arcanjo

[1] Por lapso material de escrita evidenciado no próprio teor e contexto das suas alegações, o A fez alusão ao quesito 14º. Ora, de acordo com todo aquele teor e respectivo alcance, não só o que o apelante visou foi o quesito 12º como seria até incongruente a remissão para aquele 14º, com cuja resposta negativa ele, evidentemente, concordou.

[2] Cf. relatório de fls. 142.

[3] A ligeira discrepância em relação ao grau fixado no Tribunal de Trabalho (57%) dever-se-á, segundo o parecer da testemunha Dr. Armando Pereirinha, ao facto de na determinação deste ter sido adoptada a TNI vigente até à que foi aprovada pelo DL 352/2007 de 23/10.

[4] Também subjaz idêntico juízo normativo à análise que o Sr. Juiz fez da questão de direito, ainda que com escassa argumentação própria ou original, mas com lato apoio em profusas citações da jurisprudência e da doutrina.

[5] Para além da escritura pública de 30/7/99, intitulada “Mútuo com Hipoteca e Fiança”, anteriormente, o A havia aderido a seguro idêntico ao referido [cf. alíneas A) e H) dos factos assentes].

[6] De cujas amplas virtualidades o Sr. Juiz também não fez pleno uso, porque, designadamente, não colocou qualquer questão à testemunha acabada de aludir – nem, aliás, a alguma outra – quando, objectivamente, se mostrariam justificadas as anotadas interrogações, sendo também certo que tal testemunha, findo o seu depoimento, foi de imediato dispensada.

[7] Independentemente da questão da relevância jurídica de parte desses factos, de que, aqui, não se trata.

[8] A um contrato de seguro celebrado em 2004 e cujo sinistro ocorra antes de 1/1/2009, não é aplicável o regime do DL nº 72/2008, de 16/4 (art. 2º nº 2).

[9] E, em boa verdade, tratando-se da afirmação dum princípio geral do nosso ordenamento, o assim declarado no “questionário” «não constitui cláusula contratual geral do contrato de seguro para efeito de vinculação da seguradora aos deveres de comunicação e informação dessas cláusulas em contratos de adesão» (Ac. do STJ de 6/7/2011(2617/03.2TBAVR.C1.S1-AlvesVelho).

[10] José Vasques, “Contrato de Seguro”, Coimbra Editora, p. 103.

[11] Ac. do STJ de 17/5/2012 (2841/03.8TCSNT.L1.S1-Lopes do Rego).

[12] Tem de ser atribuído algum significado ao acto de assinar e rubricar o dito impresso, pese embora a confiança recíproca entre ele e o funcionário do Banco e, até, a sua mais que provável reduzida literacia, por isso, esse seu comportamento também não está isento de reparo.

[13] Como acima dissemos, resultou do depoimento de duas testemunhas arroladas pela R que os funcionários do Banco tinham instruções para: ser sempre o cliente a preencher o “questionário”; poderiam ajudar a fazê-lo por dificuldades de leitura ou de escrita do cliente, mas sempre a pedido e com as informações prestadas por este e reproduzidas pelo funcionário; depois, lerem e perguntarem se estava tudo bem antes de o cliente assinar.

[14] Cf. Ac. do STJ de 31/5/2012 (56/05.0TBMDB.P1.S1- Oliveira Vasconcelos): «Tendo um agente de uma companhia de seguros [no caso, um funcionário da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo] preenchido a proposta de seguro e o segurado se limitado a assiná-la, com desconhecimento do seu conteúdo, a eventual inexatidão das declarações nela insertas deve ser atribuída a esse agente, desde que não se demonstre que o segurado podia e devia ter conhecimento dessa inexactidão».

Também Moitinho de Almeida, no estudo “Novo Regime Legal do Contrato de Seguro” (publicitado na rubrica “Estudos - Seguros” da página da internet do STJ), p. 24, defende: «as mesmas razões que determinam a responsabilidade civil objectiva do devedor por actos e omissões de quem utiliza para o cumprimento da prestação [art. 800º nº 1 do CC] valem no que se prende com a fase pré-contratual: quem recorre a uma estrutura empresarial na celebração e execução dos contratos deve suportar os riscos que esta envolve».

[15] “O NOVO REGIME DO CONTRATO DE SEGURO ANTIGAS E NOVAS QUESTÕES” (Intervenção no Colóquio organizado pela AIDA-PORTUGAL, em 10 de Março de 2010, publicitada na internet).

[16] O que complementou com a seguinte informação: «O ónus da prova da inexactidão das declarações do segurado, assim como da existência de um nexo de causalidade entre a inexactidão e a outorga do contrato recaía sobre as seguradoras, como se decidira, por exemplo, nos Acs. do STJ, de 17-11-05, CJSTJ, tomo III, pág. 120, e de 4-3-04, CJSTJ, tomo I, pág. 102, no Ac. da Rel. de Coimbra, de 18-10-05, CJ, tomo IV, pág. 31, ou no Ac. da Rel. de Guimarães, de 9-3-05, CJ, tomo II, pág. 279. No mesmo sentido José Vasques, Contrato de Seguro, págs. 223 e segs.».

[17] Ac. do STJ de 8/1/2009 (08B3903-Alberto Sobrinho).

[18] Ac. do STJ de 6/11/2007 supra citado e, no mesmo sentido, Ac. do STJ de 23/12/2012 (575/07.3ICGMR.G1-Abrantes Geraldes).

[19] Pese embora a imprecisa formulação oferecida pelo Sr. Juiz à resposta ao quesito 10º.

[20] Cf. art. 236º do CC.

[21] Ac. do STJ de 27/5/2010 (976/06.4TBOAZ.P1.S1- Oliveira Vasconcelos).

[22] Como foi aventado durante a audiência.

[23] Na data do acidente (2006), o A tinha 36 anos.

[24] Ac. do STJ de 18/9/2014 (2334/10.7TBGDM.P1.S1-Granja da Fonseca).

[25] Ac. do STJ de 27/5/2010 já citado.