Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
265/07.7TBFVN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: POSSE
DIREITO OBRIGACIONAL
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Data do Acordão: 02/08/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FIGUEIRÓ DOS VINHOS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS.494, 496, 1252, 1259, 1268, 1275, 1278, 1306, 1311, 1316 CC
Sumário: I. Não se pode pedir, com sucesso, o reconhecimento de uma posse formal contra o próprio proprietário.

II. O “direito de utilização de uma parte de um prédio”, como direito obrigacional, não é transmitido com a venda do prédio e não pode ser invocado contra o adquirente do mesmo.

III. “Os simples incómodos ou contrariedades” não justificam a indemnização por danos não patrimoniais”.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra os juízes abaixo assinados:

              E (…) e mulher (…), intentaram a presente acção contra M (…), pedindo que este seja condenado a:
         (1) a reconhecer que os autores são arrendatários e legítimos possuidores dos imóveis descritos no art. 1º da petição inicial;
         (2) abster-se de por si ou por outrem, por qualquer forma, violar, impedir, limitar, restringir ou perturbar o livre exercício do arrendamento dos autores;
         (3) a reconhecer que os autores têm posse titulada e de boa fé sobre a faixa de terreno identificada nos artigos 14 e 18 da petição inicial e que a mesma onera o seu prédio;
         (4) a retirar de tal faixa de terreno os postes em ferro ligados entre si por uma corrente de ferro, fechada com dois cadeados, que ali colocou, sem consentimento e contra vontade dos autores;
         (5) a indemnizar os autores pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que lhe causaram de, respectivamente, de 1.000€ e € 2.750€; e
         (6) a abster-se de, por qualquer modo, lesar, limitar ou perturbar o livre exercício de arrendatários e acesso aos espaços arrendados para os identificados imóveis.

              A sustentar o seu pedido alegam, em síntese, que: são arren-datários e possuidores do espaço correspondente ao r/c do imóvel sito na Rua ... n.º ..., de um espaço destinado a jardim com 10 metros de compri-mento por 2,5 metros de largura, delimitado pelo poço e por um buxo existente no logradouro daquele imóvel, uma arrecadação sita na parte sul daquele logradouro e de uma outra arrecadação resultante da parte cedida da casa do alambique; sobre os referidos espaços vêm, desde 01/11/1978, agindo como se fossem arrendatários e possuidores; designadamente, construíram, com autorização do senhorio, no logradouro do imóvel um telheiro, onde vêm estacionando a sua viatura; para acesso às arrecadações arrendadas e ao telheiro servem-se de uma passagem sob o artigo ..., que corresponde ao logradouro do imóvel, bem demarcada e visível, a qual tem sido usada pelos autores desde 1978, quer de pé quer de carro; actos assumidos publicamente, visíveis por toda a gente, dizendo-se os réus arren-datários e possuidores dos imóveis, praticando tais actos na convicção de que não lesam os direitos de outrem, pois que exercem um direito próprio e pleno, como parte do arrendamento, ou de arrendamento (como dizem mais à frente); em 07/05/2007 o réu, actual proprietário, colocou naquela passagem ferros ligados entre si por uma corrente de ferro, impedindo os autores de circular pela referida passagem e, consequentemente de estacionar a sua viatura sob o referido telheiro; a conduta do réu causou prejuízos aos autores.

              O réu contestou alegando que o contrato de arrendamento apenas abrangia a casa de habitação, achando curioso o aditamento a tal contrato datado de 2000; dizem que o imóvel de que os autores são arrendatários não possui logradouro, sendo que o artigo ... não constitui logradouro, mas um prédio distinto, sendo que o contrato de arrendamento em causa não abrange garagens ou local de estacionamento, nem tal utilização pelos autores lhes confere a posse dos espaços; aos autores não foi vedado o acesso a pé, sendo que no contrato de arrendamento não se alude a qualquer autorização para a construção do telheiro ou para estacionamento das viaturas. Impugnam, por fim, os danos alegados pelos autores. Pedem a condenação dos autores como litigantes de má fé e concluem pela absolvição do pedido.

              Os autores apresentaram resposta à contestação, mais requerendo a condenação do réu em litigância de má fé, alegando que o réu vem alterar conscientemente a verdade dos factos, tendo sido determinado por despacho de fls. 97 que se tivesse por não escrito o referido nos artigos 1 a 17 da resposta.

              Depois do julgamento foi proferida sentença: a) reconhecendo-se os autores como arrendatários dos espaços descritos no artigo 1º da petição inicial; b) reconhecendo-se aos autores o direito de utilização da faixa referida nos artigos 14 a 1º da petição inicial, de pé e de carro e estacionamento dos seus veículos, para acesso aos espaços arrendados referidos em a), no âmbito do direito de arrendamento referido em a); e, em consequência, condenando-se o réu: c) a abster-se de, por si ou por outrem, impedir, limitar, restringir ou perturbar o livre exercício do direito dos autores enquanto arrendatários; d) a retirar da aludida faixa de terreno os postes em ferro ligados entre si por uma corrente de ferro; e) no pagamento aos autores de 500€ por danos não patrimoniais; e, f) a abster-se de limitar ou perturbar o acesso aos autores aos espaços arrendados referidos em a) pela faixa referida em d), absolvendo-o do demais peticionado. Foi ainda decidido absolver o réu do pedido de condenação por litigância de má fé.

              O réu interpôs recurso desta sentença - com o fim de que se declare a nulidade parcial da sentença relativa à condenação prevista na alínea b), bem como a revogação da sentença que condenou o recorrente na indemnização por danos não patrimoniais prevista na alínea e) - terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
         A) O recorrente restringe e limita o objecto do seu recurso às decisões mencionadas nas alíneas b) e e) da sentença;
         B) A faixa de terreno referida nos arts. 14 a 18 da petição inicial não se encontra abrangida pelo contrato de arrendamento e respectivo aditamento de que os recorridos são titulares enquanto arrendatários;
         C) Os recorridos apenas tem um direito de passagem ou de utilização da referida faixa de terreno para acesso, de pé e de carro, aos espaços arrendados, não lhes assistindo, como reconhece a sentença, qualquer direito real de gozo sobre o terreno do recorrente;
         D) Por força do nº 2 do art. 660º do CPC, o tribunal não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes nos seus articulados;
         E) Na sua petição inicial, nem em nenhum momento processual posterior, os autores formulam qualquer pedido em que se reconheça que a utilização da faixa de terreno propriedade do recorrente abranja o “estacionamento dos seus veículos”;
         F) A resposta afirmativa ao quesito 13 da base instrutória não dá nem garante qualquer direito de estacionamento aos autores nessa faixa de terreno;
         G) Com a presente acção, os autores apenas quiseram obter o reconhecimento do direito de acesso aos espaços arrendados, bem como a abstenção pelo recorrente de limitar ou perturbar esse mesmo acesso;
         H) A sentença ao reconhecer aos autores que o “estacionamento dos seus veículos” faz parte integrante do direito de utilização da faixa de terreno como acesso aos espaços arrendados, violou o disposto no artigo 661º do CPC, condenando o réu/recorrente em objecto diverso do que se pediu;
         I) O recorrente enquanto proprietário da faixa de terreno goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição sobre a coisa, apenas vendo o seu direito limitado pelas restrições que a lei impõe;
         J) A sentença ao reconhecer a possibilidade de estacionamento dos veículos dos autores na identificada faixa, criou uma oneração ao direito de propriedade do recorrente – artigo 1305º do CC – que os próprios recorridos não pediram;
         K) O estacionamento dos veículos dos autores só pode ser justificada por mera tolerância do recorrente e a título precário;
         L) A ressarcibilidade dos danos não patrimoniais está limitada àqueles que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito – artigo 496º do CC;
         M) “Os simples incómodos ou contrariedades não justificam a indemnização por danos não patrimoniais” – Prof. Doutor Antunes Varela, Código Civil Anotado, pág. 499;
         N) Apenas ficou provado a existência de aborrecimentos e arrelias, nada se dizendo quanto à gravidade das mesmas;
         O) Aliás, resulta dos autos que os autores não ficaram totalmente privados do uso dos espaços arrendados, apenas lhes ficou vedado o acesso por carro e durante curto espaço de tempo;
         P) A sentença nada refere quanto à culpabilidade do recorrente e ao grau da mesma;
         Q) A indemnização de 500€ por danos patrimoniais não tem enquadramento legal, não sendo devida, mas mesmo que o fosse a mesma é desproporcionada, tendo em conta as exigências legais de equidade;
         R) A condenação prevista na alínea b) da sentença relativa ao estacionamento dos veículos é nula nessa parte por força do disposto nas alíneas c) e e) do artigo 668º do CPC;
         S) A condenação do recorrente no pagamento da indemnização por danos não patrimoniais viola o disposto nos artigos 496º e 494º do CC.

              Os autores não contra-alegaram.

                                                                 *

              Questões que importa decidir: se o reconhecimento do direito de estacionar os veículos se pode considerar pedido pelos autores – questão que tem a ver com a arguida nulidade da sentença; se os factos provados permitem concluir pela existência desse direito [estas duas questões resultam das conclusões A) a K) e R]; se apenas se provaram aborrecimentos e arrelias para os autores, em consequência da conduta do réu e se, por isso, não devia ser concedida indemnização ou, a sê-lo, se o devia ser em montante inferior [esta questão resulta das conclusões L) a Q) e S)].

                                                                 *

              Estão dados como provados os seguintes factos (os sob alíneas vêm dos factos assentes e os sob nºs. vêm da resposta aos quesitos):
         A) Em 01/11/1978, (…) e o autor outorgaram, por escrito, um acordo, que denominaram contrato de arrendamento, nos termos do qual aquele declarou, além do mais, dar de arrendamento a este uma casa de habitação cita na rua ..., ..., o que este aceitou.
         B) Em 03/04/2000, (…) e o autor outorgaram, por escrito, um acordo, que denominaram aditamento a contrato de arrendamento, contendo as seguintes cláusulas:
            1.ª A 1ª outorgante é proprietária dum imóvel cito na rua Dr. ..., ..., composto por sub-cave, cave, r/c, 1º andar e sótão inscrito no artigo x ... da matriz urbana da freguesia de ....
            2.ª Por contrato de arrendamento celebrado em 01/11/1978 entre o pai da 1ª outorgante, Sr. (…) e o 2º outorgante, foi dado de arrendamento pelo primeiro a este, para habitação o r/c com o número de polícia ..., da Rua ....
            3.ª Apesar de no supra mencionado contrato de arrendamento celebrado por escrito se fazer referência apenas a uma casa de habitação, certo é que o mesmo (…), incluiu no mesmo:
            a) um espaço destinado a jardim com 10 m de comprimento por 2,5 m de largura, delimitado pelo poço e por um bucho existentes no logradouro do imóvel descrito na cláusula 1ª;
            b) uma arrecadação cita na parte sul do logradouro do imóvel referido na cláusula 1ª, a qual está separada a sul, por uma parede em alvenaria, de uma dependência denominada “casa do alambique” - dependência esta que sempre esteve na posse dos sucessivos proprietários do imóvel, designadamente, a ora 1ª outorgante;
            4ª A 1ª outorgante cede agora ao 2º outorgante, um espaço na denominada “casa do alambique” que confina com a arrecadação referida em b) da cláusula 3ª, com a área aproximada de 8,85 m2, tendo 3,60 m de comprimento por 2,45 m de largura. O referido espaço passará a fazer parte integrante do contrato de arrendamento referenciado na cláusula 2ª e há-de resultar da construção duma parede no enfiamento da parede poente da referida arrecadação até à parede sul da denominada “casa de alambique” (ficando a janela que se situa nessa parede sul a pertencer toda ao 2º outorgante) não implicando tal cedência qualquer alteração no quantitativo da renda actualmente paga pelo 2º outorgante.
            5ª O acesso ao referido espaço será realizado mediante a abertura duma porta que estabeleça a ligação entre a arrecadação mencionada em b) da cláusula 3ª e o espaço criado com a construção da parede a que se alude na cláusula anterior.
         C) Por escrito notarial outorgado em 30/03/2007, no Cartório Notarial de Montemor-o-Velho, (…)declarou vender ao réu, que declarou comprar, pelo preço de 247.490€, o prédio urbano, composto de casa de habitação, de sub-cave, cave, rés do chão, primeiro andar e sótão, sito no Bairro ..., freguesia e concelho de ..., inscrito na matriz sob o artigo x ..., com o valor patrimonial tributário de 64.422,17€, descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o número n.º 2601, com aquisição registada a seu favor pela inscrição G-1.
         D) Por escrito notarial outorgado em 30/03/2007, no Cartório Notarial de Montemor-o-Velho, (…), declararam vender ao réu, que declarou comprar, pelo preço de 2.510€, o prédio urbano, composto de terreno situado dentro de aglomerado urbano onde não é permitido construir e sem afectação agrícola, sito no Bairro de ..., freguesia e concelho de ..., inscrito na matriz sob o artigo ..., com o valor patrimonial tributário de 2.510€, descrito na CRP de ... sob o n.º y..., com a aquisição registada a seu favor, em comum e sem determinação de parte o direito, pela inscrição G, apresentação n.º 1 de 26/07/2006.
         E) O prédio inscrito no artigo matricial x ..., situa-se no Bairro ..., em ..., que confronta a norte com A ..., a sul com L ... Herdeiros, a nascente com o próprio e a poente com a estrada nacional, e encontra-se inscrito na matriz desde 1965.
         F) O prédio inscrito no artigo matricial x ... é composto por casa de habitação composta de sub-cave, cave, r/c, 1º andar, sótão. Tem na cave 5 divisões, 5 portas, 5 janelas, a qual se destina a arrecadação agrícola; cave para habitação com 6 divisões, 6 janelas e 1 porta. O r/c para comércio com 5 divisões e 3 portas. R/c para habitação com 8 divisões, 6 janelas, 3 sacadas e 2 portas; 1º andar com 10 divisões, 10 janelas, 2 sacadas e 2 portas do lado norte. Área coberta 423 m2.
         G) O prédio inscrito no artigo matricial ... situa-se no Bairro ..., ..., e confronta a norte com serventia, a sul com proprietário, a nascente com terrenos públicos e a poente com proprietário.
         H) O prédio inscrito no artigo matricial ... é composto por terrenos situados dentro de aglomerados urbanos onde não é permitido construir e sem afectação agrícola, com área total do terreno de 488,72 m2.
         I) Pelo serviço de finanças de ..., foi emitida certidão, com, além do mais, o seguinte teor: “Mais certifico que o prédio urbano ..., da freguesia e concelho de ..., foi inscrito em 2006. Na data da inscrição foi inscrito como omisso.”
         1. Desde 1/11/1978 os autores plantam árvore (limoeiro) colhem os limões, e apropriam-se dos rendimentos e utilidades geradas nas parcelas referidas em B)3.
         2. Procedendo à limpeza das mesmas.
         3. Os autores construíram no logradouro referido em B)3 um telheiro.
         4. Os autores actuaram como descrito em 3 com conhecimento de (…).
         5. Aí aparcam as suas viaturas.
         6. Os autores, sob o telheiro referido em 3. estacionam uma viatura desde 1991.
         7. Para acesso às arrecadações, ao telheiro e ao logradouro referido em B)3, os autores passam sobre uma faixa do prédio referido em G) e H).
         8. A qual tem cerca de 5 m de largura.
         9. A referida faixa de terreno parte da Rua ....
         10. Após cerca de 18 m inflecte para a direita, durante cerca de 20 m e depois inflecte para a esquerda, por mais cerca de 15 m.
         11. Faixa essa que vem usando desde 1978.
         12. Quer a pé, quer de carro.
         13. Aí estacionando os seus veículos.
         14. Os autores guardam diversos utensílios, ferramentas, materiais de pintura e equipamentos de uso profissional do autor nas arrecadações referidas em B).
         15 a 19. Os autores desde a data referida em 11, sempre utilizaram a faixa referida em 7, dia após dia, sempre que necessário, à vista da generalidade das pessoas, de forma pública e pacífica, e sem qualquer oposição ou violência, certos de estarem a exercer um direito próprio.
         20. A faixa referida em 7, está demarcada por calçada.
         21. Na faixa referida em 7, na zona por onde circulam as viaturas, a vegetação encontra-se desbastada.
         22. Os autores apenas podem aceder ao telheiro, arrecadações e logradouro passando pela faixa de terreno referida em 7.
         23. No dia 07/05/2007, pelas 15h30, o réu entrou no logradouro referido em B)3.
         24. Aí chumbou três ferros com cimento no meio da faixa de terreno.
         25. Ferros esses que se encontram ligados entre si por uma corrente em ferro, e fechados com dois cadeados.
         26. Tudo se passando sem o conhecimento ou consentimento dos autores e contra a sua vontade.
         27. Devido ao referido de 23 a 26, os autores ficaram impedidos de passar na faixa de terreno referida em 7, de carro.
         29. Os autores acediam frequentemente às arrecadações referidas em B), para retirar os objectos que lá mantêm e transportar objectos.
         32. O referido de 23 a 26 causou aborrecimentos aos autores e estes andavam arreliados.
         34. No presente os autores ainda permanecem aborrecidos com o descrito de 23 a 26.
         35. Sem que tivessem feito ou dado qualquer motivo para aquela conduta.
         36. Encontra-se descrito na CRP de ..., sob o n.º z.../140694, o prédio urbano sito no Bairro ..., composto de casa de habitação de sub-cave, cave, rés-do-chão, 1º andar e sótão.
                                         *
                                          I

              Quanto à nulidade:

              (…)

                                                                 II

              Da inexistência de posse titulada:

              Os autores dizem ter uma posse titulada e de boa fé sobre a faixa de terreno identificada nos artigos 14 e 18 da petição inicial e que essa posse onera o prédio do réu.

              Uma posse é titulada quando fundada em qualquer modo legítimo de adquirir (art. 1259/1 do CC).

              Como no caso não foi invocado qualquer modo legítimo de adquirir a posse sobre a faixa de terreno em causa – que não é nenhum dos espaços arrendados -, a posse não seria titulada.

                                                                 III

              Da posse:

              Apesar de não haver título da posse, no sentido do art. 1259/2 do CC, pode haver posse, posse não titulada (art. 1260/2, parte final, do CC, a contrario).

              Os autores praticavam sobre o espaço - destinado, por eles, a estacionamento - poderes de facto, pelo que se poderia presumir que eles tinham a posse sobre esse espaço (art. 1252/2 do CC).

              Note-se, no entanto, que os autores não invocam uma posse como proprietários ou como titulares de qualquer outro direito real, nem mesmo como arrendatários, pois que nunca dizem que o espaço destinado ao estacionamento também estivesse arrendado.

                                                                IV 

              O efeito prático pretendido pelos autores:

              Qual era, no entanto, o efeito prático que os autores visavam com tal pedido?

              Era o de reconhecimento da situação de facto que afirmavam existir: para além da passagem pela faixa de terreno para acesso aos espaços arrendados, eles ainda utilizariam um espaço, dentro do prédio do réu, que eles, autores, tinham destinado a estacionamento do seu veículo.

              Note-se que tal espaço não é um dos espaços arrendados: o que resulta desde logo da discriminação dos espaços que estão arrendados ou que fazem parte do arrendamento.

              Para qualificação jurídica daquela situação de facto, os autores invocavam a posse.

              Mas a posse, como situação jurídica, não prefere ao direito de propriedade. A posse, protelada por certo período de tempo e com determinadas características, pode conduzir à usucapião, modo de aquisição da propriedade (art. 1316 do CC). Mas, só por si, é irrelevante contra o proprietário, como resulta dos arts. 1311 e 1278/1, ambos do CC. Ora, no caso, os autores nem sequer levantaram a questão de terem adquirido, por usucapião, o direito de propriedade (ou eventualmente o de usufruto ou de superfície – art. 1439 e segs e art. 1524 e segs, todos do CC) sobre o espaço.

              Ou seja, os autores, mesmo que estejam na posse da coisa, não podem dizer simplesmente que têm a posse para se poderem opôr ao exercício do direito do réu como proprietário do prédio, direito este de que eles próprios falavam na petição inicial.

              Como dizem Pires de Lima e Antunes Varela,
         “a lei protege a posse apenas por presumir que, por detrás dela, existe, na titularidade do possuidor, o direito real correspondente (cfr. o art. 1268/1 do CC). A protecção conferida ao possuidor traduz-se numa tutela provisória, destinada unicamente a manter determinada situação de facto, enquanto não se provar quem é o verdadeiro titular do direito real correspondente. Se o réu, por conseguinte, demonstrar ser ele o proprietário da coisa que o autor alegou possuir uti dominus, a tutela possessória deixa de ter qualquer justificação. De nada valeria manter uma posse contra a qual o titular do direito podia, logo a seguir, reagir triunfantemente através de uma acção de reivindicação (CC anotado, vol. III, 2ª edição, Coimbra Editora, 1984, págs. 49/50).

              Vistas as coisas assim, é notório que nenhuma razão tinham os autores ao virem deduzir uma pretensão de defesa da sua posse formal, sem mais, contra o réu, que diziam ser o proprietário do prédio sobre o qual ela se exerceria.

                                                                 V

              Do direito de utilização de parte da faixa para estacionamento:

              A sentença vê então a cobertura jurídica da situação de facto dos autores num direito de utilização do espaço destinado ao estacionamento.
            “Atendendo ao teor da petição inicial depreende-se que o pedido de reconhecimento da posse se radica na utilização reiterada da mesma para acesso aos espaços arrendados – designadamente as arrecadações, desenvolvendo-se tal utilização na passagem a carro e a pé pela referida faixa.
            Ora, a posse deverá ser exercida no âmbito de um direito real de gozo, direito esse que os autores não detêm (e de que também não se arrogam, nem pretendem ver reconhecido) sobre uma coisa.
            A posse desdobra-se em dois caracteres: o corpus (actos materiais de posse, nos dizeres da lei, o poder que se manifesta decorrente de uma actuação) e o animus (ou a convicção de que actuam no âmbito de um direito próprio, ou a actuação correspondente ao exercício do direito de propriedade ou outro direito real de gozo, a convicção de que exercem um direito real de gozo próprio).
            Ora, nos presentes autos deu-se como demonstrada uma actuação de facto dos autores sobre a aludida faixa (factos 7 a 13), sendo tal actuação exercida no quadro do direito ao arrendamento dos autores sobre os espaços referido em B), abrangidos pelo arrendamento, sendo tal faixa utilizada para o acesso aos espaços de arrecadação, para a circulação e estacionamento de viaturas. Nem os autores alegam sequer que tal utilização tenha um sentido mais amplo que isso, não lhe pretendendo fazer corresponder qualquer direito real, mas tão só aquela utilização em função de um direito de arrendamento.
            Ora, entendemos já que no âmbito do arrendamento não se poderá propriamente falar numa posse, no sentido do art. 1275º do CC, sendo que no regime do arrendamento apenas se prevê o recurso a certos institutos específicos do regime da posse.
            Coisa distinta seria a utilização de uma acção possessória para defesa de um espaço arrendado, sendo que tal faixa não se encontra, formalmente, abrangida pelo contrato de arrendamento supra referido.
            E merecerá tutela aquela utilização recorrente que os autores têm feito da faixa de terreno que identificam na petição inicial?
            Não no âmbito de qualquer direito real de gozo, sendo que a posse deverá sempre existir por referência a um direito real de gozo não se tratando de um poder abstracto – posse pela posse.
            Porém, e como já se referiu, a utilização da referida faixa de terreno tem sido desenvolvida pelos autores no quadro daquela relação de arrendamento e do direito pessoal de gozo daí decorrente, para aceder a espaços nele compreendidos, a pé e de carro, sendo que tal utilização remonta ao ano de 1978, inclusive, o estacionamento das viaturas dos autores na referida faixa. Mais resulta que tal utilização tem sido feita à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja, inclusive, do senhorio primitivo ou dos sucessivos senhorios.
            Ainda que não formalmente integrada no contrato de arrendamento aludido supra, o que é certo, é que os autores dispõem, como único acesso à zona das arrecadações, daquela faixa de terreno, sendo, pois, tal utilização inerente ou relacionada com o gozo daqueles espaços. Também, o uso que da mesma têm feito para estacionamento das suas viaturas se prende com tal direito de arrendamento e só nesse quadro é compreensível.
            Além, do mais, atendendo a que tal utilização tem sido desenvolvida ao longo dos tempos (desde pelo menos 1978), pelas formas descritas em 11 e 13 sem oposição de ninguém, nem do próprio senhorio (muito embora não se tenha demonstrado qualquer autorização expressa ou consentimento expresso nesse sentido), sendo tal utilização reiterada, afigura-se-nos que no caso haverá um acordo tácito entre o primitivo senhorio e os autores, gerador de expectativas, pela utilização recorrente de tal faixa e que importa acautelar.
            Afigura-se-nos, ainda, que obstar à utilização daquela faixa de terreno nos moldes em que a mesma vinha sendo desenvolvida, configuraria um acto abusivo do réu, enquanto locador/senhorio, independentemente de tal utilização ser anterior à aquisição do imóvel pelo actual proprietário, ora réu.
            Nesta medida, cumpre reconhecer aos autores a posse, não propriamente nos termos definidos pelo art. 1275º do CC, por referência a um direito real, mas enquanto direito de utilização daquela faixa no quadro do direito pessoal de gozo de que são titulares sobre os espaços id. em A) e B) da matéria de facto fixada.”

              Assim, a sentença recorrida invoca um direito de utilização de um espaço em função de um direito de arrendamento, apesar do espaço em causa não ser um dos espaços arrendados nem a sua utilização ser necessária ao exercício do arrendamento; diz que tal direito resultará de um acordo tácito entre o anterior senhorio e os autores, mas vai opô-lo ao réu que não era o anterior senhorio; e esclarece que não se trata de um direito real.

              Ora, não sendo um direito real (que está sujeito ao princípio da tipicidade: art. 1306 do CC – e que nem sequer foi invocado pelos autores) trata-se de um direito obrigacional que não foi adquirido por contrato com o réu, pois que já existiria antes da compra por este efectuada.

              Ora, os direitos obrigacionais não se transmitem aquando da alienação da coisa, com as excepções legais expressamente previstas (como seja o caso do arrendamento: art. 1057 do CC, o que não é o caso dos autos em relação ao espaço que serve de estacionamento), ou seja, não são, por regra, oponíveis ao comprador.

              Como por exemplo diz Henriques Mesquita, Obrigações reais e ónus reais, Almedina, 1990, págs. 140/141, aquela norma [art. 1057 do CC] introduz
         “uma importante derrogação aos princípios basilares que regem os contratos obrigacionais. Segundo um desses princípios, que mais não é do que um mero corolário do próprio conceito de obrigação, ao credor não é permitido exigir o cumprimento da prestação senão ao devedor”

              Ou seja, mesmo que tal direito (de utilização de um espaço em função de um direito de arrendamento que não abrange esse espaço…) existisse, ele não era oponível ao réu, isto é, não poderia ser invocado contra ele.

              E, assim sendo, o pedido respectivo – na parte que diz respeito ao estacionamento - tinha que improceder, mesmo que interpretado nos termos em que o fez a sentença.

                                                                VI

              Quanto à questão da indemnização por danos morais:

              Diz-se na sentença:                  
         No que concerne aos danos não patrimoniais, resulta demonstrado que a conduta do réu, ao colocar os ferros como descrito em 23 lhes causou aborrecimentos e arrelia, não se tendo demonstrado os demais danos alegados, dada a limitação que tal conduta impõe ao seu direito de passagem nos moldes em que a mesma vinha sendo efectuada.
         De facto, verifica-se a ocorrência de um dano – de carácter não patrimonial – traduzido nos aborrecimentos e nas arrelias causadas aos autores decorrentes daquele acto do réu limitativo do normal gozo do locado, pelo impedimento da utilização da faixa de terreno referida em 7 nos moldes em que a mesma vinha sendo utilizada na economia daquele contrato de arrendamento.
         Ora, tais danos são tuteláveis ao abrigo do disposto no art. 496º/1, 798º e 1031º/b), do CC, afigurando-se-nos, porém, o montante peticio-nado exagerado face aos danos demonstrados. Nesta medida, por tais danos, considera-se adequado fixar uma indemnização no valor de 500€.

              Os factos provados, com relevo, são os referidos de 23 a 27, 29, 32, 34 e 35, ou seja, o impedimento de acesso, num período de tempo indeterminado, por carro, a parte dos espaços arrendados. Esse acesso era frequente para retirar os objectos que [os autores] lá mantêm e transportar objectos. O referido causou aborrecimentos aos autores e estes andavam arreliados e ainda hoje (data da sentença) os autores permanecem aborrecidos com o descrito, sem que tivessem feito ou dado qualquer motivo para aquela conduta.

              O réu, no recurso, chama a atenção para o disposto nos arts. 496 e 494 do CC.

              O artigo 494 diz que “quando a responsabilidade se fundar na mera culpa, poderá a indemnização ser fixada, equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem.”

              O artigo 496 diz que “1.

Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.”.

              A gravidade de que fala a norma, resulta, a contrario, dos nºs. 2 a 4 do mesmo artigo: para efeitos de indemnização daqueles danos só releva o desgosto pela morte de cônjuges ou companheiros, pais e avós; só se o filho morrer sem descendentes, é que releva o desgosto dos pais, dos avós e dos irmãos (e sobrinhos em representação dos irmãos) pela morte da vítima.

              Assim, por exemplo, o desgosto que um avô tenha pela morte de um neto não será indemnizado (salvo se faltarem os pais...). Tal como não será indemnizado o desgosto de um namorado ou noivo pela morte de uma namorada ou noiva, ou o desgosto de um primo pela morte de um primo direito muito chegado.

              Ou seja, não são todos os desgostos, todas as dores e sofrimentos que têm a gravidade suficiente para merecerem a tutela do direito, mas só alguns desses desgostos particularmente graves.

              Também não são indemnizáveis, por exemplo, os desgostos sofridos com a destruição de coisas ou animais – veja-se Calvão da Silva:

         “O pretium doloris e outros danos imateriais resultantes de danos em coisas!!! não são ressarcíveis pelo art. 496 pois não têm gravidade que mereça a tutela do direito”

              cita, a seguir, Malaurie/Aynes, que se referem a decisões francesas concedentes da repa­ração do sofrimento derivado da perda de animal estimado, um cavalo de corrida e um cão, como sendo “ultrajes à miséria dos homens” e acrescenta que mesmo que não se diga isto, a verdade é que há um abismo entre a afei­ção pelas pessoas queridas e a afeição pelos animais. Por outro lado, seria abrir uma porta por onde passariam os maiores absurdos (Responsabilidade Civil do Produtor, colecção Teses, Almedina, 1990, pág. 701, nota 1; no mesmo sentido, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 9ª edição, Almedina, pág. 628, nota 1, cita Carbonier que considera de todo aberrante a decisão judicial que concedeu a indemnização por danos morais pedida pelo dono duma écurie de course, com fundamento no desgosto que lhe causou a morte de um dos seus cavalos).

              Compreende-se assim que, como lembra o réu, se venha entenden-do, que “os simples incómodos ou contrariedades não justificam a indemni-zação por danos não patrimoniais” (Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, 1982, pág. 473, citando vários acórdãos do STJ).

              Não quer isto dizer, como explica ainda Antunes Varela, Das Obrigações… págs. 628/629, que

         “os danos não patrimoniais não devam ser atendidos noutros casos [para além da morte da vítima] (nomeadamente quando haja ofensas corporais, violação dos direitos de personalidade ou do direito moral do autor), mas logo deixa transparecer [o nº. 2 do art. 496 do CC] o rigor com que devem ser seleccionados os danos não patrimoniais indemnizáveis”.

              Ora, o que se provou no caso dos autos, a título de danos não patri-moniais, foi apenas aborrecimentos e arrelias, que, por isso, não devem ser indemnizados.

              Note-se que se está a falar, apenas, de danos não patrimoniais, os únicos que estão em causa neste recurso.

                                                                 *

              Sumário:

              I. Não se pode pedir com sucesso o reconhecimento de uma posse formal contra o próprio proprietário.

              II. O “direito de utilização de uma parte de um prédio”, como direito obrigacional, não é transmitido com a venda do prédio e não pode ser invocado contra o adquirente do mesmo.

              III. “Os simples incómodos ou contrariedades não justificam a indemnização por danos não patrimoniais”.

                                                                 *

              Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, revogando-se a parte da al. b) da condenação que se refere a “e estacionamento dos seus veículos” e a al. e) da condenação, absolvendo-se o réu também destes pedidos nessa medida.

              Custas do recurso pelos autores.

           


              Pedro Martins ( Relator )
              Emídio Costa
              Virgílio Mateus