Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
87/15.1YRCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS
SANEAMENTO
CONSUMO
TRIBUNAL ARBITRAL
COMPETÊNCIA
Data do Acordão: 11/17/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA - TRIBUNAL DA RELAÇÃO - SECÇÃO CENTRAL
Texto Integral: S
Meio Processual: ACÇÃO DE ANULAÇÃO DE DECISÃO ARBITRAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Legislação Nacional: LEI Nº 23/96 DE 26/7, LEI Nº 63/2011 DE 14/12
Sumário: 1. A Lei dos Serviços Públicos Essenciais ( Lei nº 23/96 de 26/7) não é aplicável somente à fase do fornecimento de tais serviços e que pressupõe a prévia celebração de um contrato formal entre a concessionária e o utilizador de tais serviços, mas a toda a relação que se estabelece entre ambos, abrangendo a fase pré-contratual e os serviços prestados pela concessionária com vista ao estabelecimento das condições necessárias à celebração do contrato de fornecimento e à disponibilização de um sistema de abastecimento.

2. O litígio entre a concessionária e o proprietário de um imóvel, referente ao pagamento de uma obrigação pecuniária decorrente da instalação de um ramal de ligação à rede pública, é um litígio de consumo no âmbito de um serviço público essencial, podendo ser sujeito a arbitragem necessária, ao abrigo do disposto no artigo 15º da LSPE.

Decisão Texto Integral:                                                                                                

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I – RELATÓRIO

AC – (…) E.M., instaura a presente ação de impugnação da sentença arbitral proferida por tribunal arbitral constituído no âmbito do Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo do Distrito de Coimbra, relativamente à reclamação contra si apresentada por J (…), e que declarou inexigível o pagamento da fatura emitida pela demandada nº 339189, de 8.12.2013, no montante de 513,39 €, relativa ao ramal de saneamento, na quinta do Outeiro, nº 58, em Taveiro,

invocando a incompetência do tribunal arbitral para apreciação da matéria sub iudice, com os seguintes fundamentos[1]:

no âmbito do tribunal arbitral e de acordo com a sua reclamação, o requerido pede que “a norma regulamentar que sustenta o pagamento pretendido pelas AC (...) está desconforme com o diploma ao abrigo da qual foi aprovada”, pelo que, “também por isso, o pagamento é indevido, pois a fatura baseia-se numa norma que padece ela própria de ilegalidade, o que inquina a fatura na sua validade (artigo 3º do CPA)”, e assim, “o pagamento é indevido”;

tal como refere a sentença, o objeto do litígio assume aqui uma vertente administrativa e que é a aferição da própria legalidade e consequente validade do ato administrativo da aprovação do tarifário, cuja apreciação excede a competência do Tribunal Arbitral;

a AC – (…), EM, na prossecução da sua atividade de satisfação do interesse público – no caso, de abastecimento público de águas residuais urbanas – aprovou o tarifário para o ano de 2012, que se manteve inalterado e em vigor no ano de 2013, pelo Conselho de Administração da AC, em 21 de Novembro de 2011, e pela CM de Coimbra, por deliberação proferida em reunião de 5 de Dezembro de 2011;

constitui receita dos municípios cobrar preços pelas atividades de exploração de sistemas municipais ou intermunicipais de saneamento de água, constituindo tais preços, tributos locais, nos termos e para os efeitos do art. 3º, ns. 1, al. b) da Lei Geral Tributária;

a cobrança de tais atributos obedece às regras do processo de execução fiscal, conforme estabelece o art. 1º do DL nº 433/99, de 26 de outubro e, bem assim, decorre do art. 15º da Lei 73/2013;

é esta matéria, objeto do presente litígio, que deveria ter sido apreciada e não foi, pois escapa à competência do Tribunal Arbitral, sendo pois, a sua apreciação do contencioso administrativo e fiscal;

o débito em causa não é enquadrável no regime instituído pela Lei nº 23/96, de 26 de Julho (Lei dos Serviços Públicos Essenciais), na medida em que tal diploma só é aplicável a contratos de fornecimento de serviços públicos que, atenta a sua natureza periódica, carecem de um regime legal específico tendente a conferir uma maior proteção ao utente;

no presente caso estamos perante uma dívida proveniente da instalação de um ramal de saneamento, sendo que, só apos essa instalação, é que é possível a celebração de um contrato de prestação de serviços de drenagem de águas residuais não tendo aqui pois, qualquer margem de aplicação a Lei dos Serviços Públicos essenciais, que disciplina para o seu fornecimento, o que é matéria diferente;

atendendo a que este litígio assenta na exigência do pagamento de um ramal de saneamento, a questão suscitada reveste apenas e tão só natureza fiscal;

a matéria em apreço cai na previsão do nº1, do art. 4º, e art. 49º, do ETAF, cabendo na esfera de competência dos tribunais Administrativos e Fiscais, não só por estarmos na esfera de um litígio que tem por objeto, por um lado a fiscalidade das normas e demais atos praticados por sujeitos que advenham do exercício dos poderes públicos e, por outro lado, porque cabe em particular aos tribunais tributários a apreciação de litígios emergentes da cobrança coerciva de dívidas a uma empresa municipal provenientes do abastecimento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos;

 uma vez que o preço em dívida relativo ao ramal de saneamento pode ser cobrado coercivamente em processo de execução fiscal, dever-se-á concluir, sem margem para dúvidas, que o tribunal competente para conhecer o litígio em apreciação é, pois, o tribunal tributário, atento o disposto no art. 49º do ETAF ;

Conclui, pedindo que se declare anulada a decisão arbitral, por se ter pronunciado sobre um litígio não abrangido na convenção de arbitragem, ultrapassando o seu âmbito e conhecendo matéria de que não podia tomar conhecimento.

Devidamente citado, o requerido veio deduzir oposição, alegando, em síntese:

estamos no domínio dos serviços públicos essenciais e no âmbito da arbitragem necessária (art. 1º, n2, a 15º, da Lei nº 23/1996, de 26.07), pelo que o litigio está abrangido na convenção de arbitragem;

a impugnante configura a pretensão deduzida pelo ora requerido reclamante junto do CACC do Distrito de Coimbra, de forma incorreta, imputando um petitório que não está em causa e que se consubstancia numa fantasiosa alegação  de que o requerente pretende sindicar a ilegalidade e consequente validade do ato administrativo de aprovação do tarifário aplicado ou aferição da própria legalidade e consequente validade do ato administrativo;

a reclamante invocou a prescrição e a violação do direito de informação, fundamentos acolhidos na decisão do tribunal arbitral para julgar procedente a reclamação apresentada;

a relação jurídica sujeita ao CAC é uma relação típica de consumo, em que está em causa a prestação de um serviço no âmbito da recolha e tratamento de águas residuais, serviço esse que é prestado a um consumidor final desse mesmo serviços;

no que toca ao serviço de fornecimento de água ou à recolha e tratamento de águas residuais, o legislador procedeu à sua classificação entre os serviços públicos essências (art. 1º, nº2, da Lei nº 23/96, de 26 de Julho);

o utente do serviço público de fornecimento de água e recolha de águas residuais – desde que não seja o próprio Município – deverá ser considerado consumidor, e a relação entre prestador e utente do serviços será uma relação de consumo;

a aplicabilidade da Lei nº 23/96, ao contrário do que defende a requerente, não se encontra limitada “a contratos de fornecimento de serviços  públicos que atenta a sua natureza periódica carecem de um regime legal específico tendente a conferir uma maior proteção ao utente”, reportando-se a qualquer dos serviços englobados n serviço de recolha e tratamento de águas residuais (artigo 1º, nº1, , al. f), e nº2.

Conclui pela improcedência da ação.


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Dispensados os vistos legais ao abrigo do disposto no nº4, do artigo 657º do CPC, cumpre decidir.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DA AÇÂO

Face aos fundamentos em que a Requerente faz assentar o seu pedido de declaração de nulidade da decisão arbitral, a questão a decidir é uma só – (in)competência do tribunal arbitral para conhecer do objeto do litigio.
1. (in)competência do tribunal arbitral.

Sendo a presente ação de anulação instaurada ao abrigo do artigo 46º da Lei da Arbitragem Voluntária (LAV), aprovada pela Lei nº 63/2011, de 14 de Dezembro, e definindo o nº3 do seu artigo 46º um elenco fechado ou taxativo de fundamentos de anulação, o pedido de anulação da decisão arbitral terá de ter necessariamente por base um dos fundamentos aí expressamente previstos.

E, embora o requerente seja omisso quanto ao enquadramento legal do seu pedido de anulação, face à motivação que o sustenta apenas se poderá encontrar em causa a verificação do fundamento previsto na alínea a), iii), do nº3 do art. 46º:

- a parte que faz o pedido demonstrar que (…) a sentença se pronunciou sobre um litigio não abrangido pela convenção de arbitragem ou contem decisões que ultrapassem o âmbito desta.

O pedido de anulação da decisão proferida pelo tribunal arbitral com base na sua incompetência material para a apreciação do litígio que lhe foi submetido pelo aqui requerido, face à argumentação despendida pelo requerente no requerimento inicial, implicará a análise de duas questões distintas:

- se o litígio em apreço se enquadra dentro do âmbito daqueles a que o nº1 do artigo 15º, da Lei nº 23/96, submete a arbitragem necessária;

- em caso afirmativo, se o tribunal arbitral conheceu de alguma questão que extravase os seus poderes, nomeadamente por respeitar a matérias reservadas ao foro administrativo.


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Levantada a questão da incompetência do tribunal arbitral na oposição que deduziu à reclamação contra si apresentada, o tribunal arbitral veio a reconhecer a sua própria competência, fazendo-a assentar, não na existência de uma qualquer convenção de arbitragem, mas na ocorrência de uma arbitragem necessária prevista no artigo 15º da Lei nº 23/96, de 26 de Julho[2] (Lei dos Serviços Públicos Essenciais).

Dispõe o nº1 do citado artigo 15º, sob a epígrafe, “Resolução de Litígios e arbitragem necessária”:

“1. Os litígios do consumo no âmbito dos serviços públicos essenciais estão sujeitos à arbitragem necessária quando, por opção expressa dos utentes que sejam pessoas singulares, sejam submetidos à apreciação do tribunal arbitrar dos centros de arbitragem de conflitos de consumo legalmente autorizados.”

Inexistindo na arbitragem necessária uma “convenção de arbitragem”, o âmbito dos litígios que a parte poderá submeter a decisão arbitral (nomeadamente para os efeitos previstos na al. a) do nº3 do artigo 46º da LAV) terá de ser encontrado, em regra, no diploma que institui a arbitragem como meio necessário da resolução de um determinado tipo de litígios[3].

O âmbito material da competência do tribunal arbitral necessário previsto no artigo 15º da LSPE, circunscreve-se aos litígios que satisfaçam cumulativamente os seguintes requisitos: a) litígios referentes a “serviços públicos essenciais”; b) litígios de consumo; c) a submissão do litígio à jurisdição arbitral resulte de uma opção expressa[4] do utente “pessoa singular”.

Consagrando a Lei dos Serviços Públicos Essenciais as regras a que deve obedecer a prestação de serviços públicos essenciais em ordem à proteção do utente, inclui, nos serviços públicos por ela abrangidos, entre outros, o serviço de fornecimento de água e o serviço de recolha e tratamento de águas residuais [alíneas a) e f), do nº2, do artigo 1º].

A referida norma considera como utente a pessoa singular ou coletiva a quem o prestador de serviço se obriga a prestá-lo e como prestador dos serviços abrangidos pela presente lei toda a entidade pública ou privada que preste ao utente qualquer dos serviços referidos no n.º 2, independentemente da sua natureza jurídica, do título a que o faça ou da existência ou não de contrato de concessão (ns. 3 e 4, do artigo 1º).

Face à consagração expressa, por parte do legislador, da sujeição dos conflitos previstos no nº1 do artigo 15º a arbitragem necessária, não faz qualquer sentido a invocação, por parte do requerente, do teor de algumas decisões dos nossos tribunais no sentido da atribuição da competência aos tribunais tributários para a apreciação de litígios relativos a contratos celebrados entre uma empresa concessionária de serviços públicos de fornecimento de água ao domicílio e os respetivos utilizadores finais.

Com efeito, as decisões citadas pelo autor respeitam a situações em que, discutindo-se o pagamento do preço do fornecimento de água à concessionária, se encontrariam, claramente, sujeitas a arbitragem necessária, caso tivesse sido essa a opção do utente/consumidor; tendo, em tais casos, o utente optado pelo recurso aos tribunais, o que aí se discute é a delimitação da competência entre os tribunais comuns ou administrativos.

A sujeição de tais conflitos à arbitragem necessária, desde que o utente/consumidor a requeira, implica que a questão da delimitação da competência dos tribunais comuns/tribunais administrativos para a apreciação de tais conflitos só se coloque se o utente não optar pela arbitragem ou, optando pela arbitragem, se discuta a competência do tribunal estadual para ação de anulação (Tribunal da Relação ou Tribunal Central Administrativo).

Assim sendo, a decisão sobre a aplicabilidade, ao caso em apreço, da norma que instituiu a arbitragem necessária contenderá antes com um outro argumento apresentado pela autora, e que contende com a delimitação do âmbito do “litígio de consumo no âmbito dos serviços públicos essenciais”.

Reconhecendo prosseguir uma atividade de interesse público – abastecimento público de água e de saneamento de águas urbanas –, a autora defende que o débito em causa não é enquadrável na Lei dos Serviços Públicos Essenciais, na medida em que “tal diploma só é aplicável a contratos de fornecimento de serviços públicos que, atenta a sua natureza periódica, carecem de um regime legal específico tendente a conferir uma maior proteção ao utente”: encontrando-nos perante uma dívida proveniente de instalação de um ramal de saneamento, só após esta instalação, é que é possível a celebração de um contrato de prestação de serviços de drenagem de águas pluviais.

Ou seja, segundo a autora, a Lei dos Serviços Públicos Essenciais só regularia o próprio fornecimento em si, não se aplicando a quaisquer outras relações entre a entidade concessionária e os cidadãos.

Não é esse o entendimento para que aponta o citado diploma: visando a adoção de medidas adequadas a assegurar o equilíbrio das relações jurídicas que tenham por objeto bens e serviços essenciais (artigo 9º, da Lei de Defesa do Consumidor), criando mecanismos destinados a proteger o utente de serviços públicos essenciais, o seu âmbito surge-nos como mais alargado.

A lei disciplina a relação que se estabelece entre o prestador do serviço e o utente do mesmo – são eles os sujeitos desta relação e é para a prestação de tais serviços que a lei consagrada regras especiais[5].

Como salienta Pinto Monteiro[6], a consideração da boa-fé e dos interesses dos utentes, bem como o carater essencial dos serviços concretamente em causa, inspiram uma série de princípios analisáveis numa série de obrigações por parte do prestador de serviço, como seja o princípio da universalidade – segundo o qual o serviço é acessível a todos os interessados, parecendo resultar deste princípio o dever de contratar imposto ao prestador do serviço –, do princípio da igualdade – que prevalecerá sobre o da liberdade contratual –, do princípio da continuidade – a fim de assegurar um funcionamento regular do serviço – e o princípio do bom funcionamento (com tudo o que isso implica em termos de qualidade do serviço, designadamente, da sua adequação, eficiência e segurança).

É certo que todo o acesso ao gozo do serviço público é estruturado por lei sob a forma de contrato, entendendo-se que o direito do utente à prestação do serviço consiste num direito à celebração do contrato de prestação de serviço, como forma de assegurar que todos os utentes terão a possibilidade de aceder ao gozo de coisas, que são bens ou serviços essenciais, de utilidade pública e de interesse geral”[7].

A proteção do utente ou utilizador, de qualquer dos bens ou serviços públicos nela enumerados, visada por tal diploma não se restringe, assim, à fase do fornecimento propriamente dita, que supõe a prévia celebração de um contrato entre o utente e a concessionária, mas a toda a relação que se estabelece entre aquele e a concessionária com vista à prestação do serviço público em causa, abrangendo a fase pré-negocial[8] e o estabelecimento das condições necessárias à celebração do contrato e à prestação do serviço.

No que respeita à água, à eletricidade e ao gás, Jorge Morais Carvalho salienta que o contrato em causa não consiste num simples fornecimento de uma quantidade determinada, mas na disponibilização de um sistema de abastecimento que permite ao utente a utilização do bem com as características acordadas sempre que entenda adequado: “estes contratos envolvem mais do que o simples fornecimento do bem, implicando um serviço correspondente ao acesso a uma determinada rede, pelo que existe uma duração duradoura unitária[9]”.

E, segundo Carlos Ferreira de Almeida[10], para os serviços em rede, o dever de contratar equivale, em certos casos, ao “dever de instalar”, prévio ao “dever de fornecimento”, defendendo que a submissão do prestador de serviço a um dever legal de contratar implica que a categoria dos beneficiários do regime legal se amplie de modo a abranger todas as pessoas que pretendam usufruir dos serviços abrangidos pela lei. O termo “utente” reportar-se-á tanto ao credor da prestação contratual como a qualquer interessado na celebração do contrato.

A prestação do serviço de recolha e tratamento de águas residuais pressupõe a instalação prévia dos ramais de saneamento de ligação à rede pública, ramais cujo custo é cobrado ao utente, encontrando-nos claramente perante a cobrança do preço de um serviço prestado a um utente pela autora enquanto concessionária do serviço público essencial.

E se o contrato de concessão de um serviço público implica para o concessionário uma teia de relações e de obrigações que não pressupõem uma relação com os beneficiários diretos do serviço público (ex. obrigações relacionadas construção manutenção e conservação da rede pública de fornecimento de água e de saneamento), tenderemos a afirmar a aplicação do Regime de Serviços Essenciais sempre que se encontre em causa o direito individual do utente, utilizador ou cliente, à prestação do serviço e a resolução de um conflito de interesses entre ambos.

E é esta natureza contratual da relação entre o utente, enquanto utilizador individual dos serviços públicos, e o prestador de serviços públicos essenciais, que é objeto de proteção da LSE[11].

Na decisão arbitral, foram dados como provados os seguintes factos, que as partes não questionam, e aqui se reproduzem, dada a sua relevância para a delimitação do litígio:

1. O demandante é proprietário de um prédio de habitação na Quinta do Outeiro, nº 58, Taveiro.

2. No âmbito da Empreitada “Execução de Prolongamento da Rede de drenagem de águas residuais em várias ruas do Concelho de Coimbra de Drenagem”, durante o mês de abril, a demandada executou o ramal de saneamento nº46 relativo ao prédio referido em 1, que permite drenar as águas residuais da edificação desde o limite da propriedade até ao coletor da rede pública de drenagem existente.

3. Ao demandante não foi dado conhecimento de que iria ser executado o ramal referido em 2, nomeadamente da localização do mesmo ou do custo respetivo.

4. No dia 18-12-2013 recebeu a demandada a fatura nº 339189 de 18.12.2013, no montante de 513,39 € relativa à execução do ramal de saneamento.

O objeto do litígio corporiza-se na questão de saber se é, ou não, devido o valor discriminado na faturado emitida pela aqui autora, respeitante à execução do ramal de saneamento que permite drenar as águas da edificação do autor, desde o limite da sua propriedade até ao coletor na rede pública, pretendendo o reclamante que se declare que a quantia faturada não é devida.

A execução de tal ramal não só se insere dentro do âmbito do serviço público concessionado à autora, como está intrinsecamente relacionado com o requerido enquanto utente individual dos referidos serviços, daí derivando precisamente a obrigação de pagamento de uma quantia pecuniária por parte deste[12].

Tratando-se de um conflito relacionado com a cobrança do custo/preço de serviço prestado pela Concessionária ao aqui autor – execução de um ramal de ligação à rede pública, privativo do prédio do autor –, que, embora prévio à celebração de um contrato de fornecimento de água e de saneamento de águas urbanas e indispensável à sua celebração, se insere no âmbito da prestação do referido serviço público essencial de recolha e tratamento de águas residuais, integra um verdadeiro conflito de consumo entre um utente/consumidor e um prestador de serviços públicos essenciais.


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Reconhecido que a situação em apreço recai no âmbito dos litígios que o artigo 15º submete a arbitragem “necessária”, passemos à segunda questão suscitada ela requerente – se o tribunal arbitral conheceu de alguma questão que extravase os seus poderes.

A resposta a tal questão terá de ser negativa, uma vez que, embora um dos fundamentos da reclamação submetida pelo requerido ao tribunal arbitral tenha consistido na invalidade de determinada norma e na ilegalidade da definição camarária das tarifas, o tribunal arbitral recusou o conhecimento de tal matéria com o argumento de que “no âmbito das competências atribuídas a este tribunal está-nos vedado apreciar a validade dos atos administrativos (fixação do tarifário) praticados no campo de ação, na esfera de competência da autarquia”.

Em consequência, o tribunal arbitral limitou-se a apreciar os demais fundamentos da reclamação – violação do dever de informação e prescrição da obrigação de pagamento do preço, nos termos dos arts. 4º e 10º, da LSPE –, vindo a declarar a inexigibilidade do pagamento da fatura em causa por prescrição.

Ou seja, a questão para a qual o impugnante alega não ter o tribunal arbitral competência, pura e simplesmente, não foi, por aquele, apreciada.

Concluindo, e constituindo a incompetência do tribunal arbitral o único fundamento de anulação, a ação é de julgar improcedente.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a presente ação improcedente.

Custas a suportar pela Autora.                        

Coimbra, 17 de novembro de 2015

Maria João Areias ( Relatora )

Fernanda Ventura

Fernando Monteiro


V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.
1. A Lei dos Serviços Públicos Essenciais não é aplicável somente à fase do fornecimento de tais serviços e que pressupõe a prévia celebração de um contrato formal entre a concessionária e o utilizador de tais serviços, mas a toda a relação que se estabelece entre ambos, abrangendo a fase pré-contratual e os serviços prestados pela concessionária com vista ao estabelecimento das condições necessárias à celebração do contrato de fornecimento e à disponibilização de um sistema de abastecimento.
2. O litígio entre a concessionária e o proprietário de um imóvel, referente ao pagamento de uma obrigação pecuniária decorrente da instalação de um ramal de ligação à rede pública, é um litígio de consumo no âmbito de um serviço público essencial, podendo ser sujeito a arbitragem necessária, ao abrigo do disposto no artigo 15º da LSPE.
 


[1] Cfr., Petição inicial aperfeiçoada e junta pela Requerente a fls. 35, em substituição da anteriormente por si apresentada.
[2] Com as sucessivas alterações que lhe foram sendo introduzidas, nomeadamente pela Lei nº 6/2011, de 10 de março, que veio estabelecer a criação do mecanismo de arbitragem necessária no acesso à justiça por parte dos utentes de serviços públicos essenciais, e Lei nº 10/2013, de 28 de janeiro, que introduzi alterações ao nº2 do seu artigo 15º.
[3] Neste sentido, António de Magalhães Cardoso e Sara Nazaré, “A arbitragem necessária – natureza e regime: breves contributos para o desbravar de uma (também ela) necessária discussão”, in “Estudos de Direito da Arbitragem, em Homenagem a Mário Raposo”, págs. 49 e 50. Em igual sentido, Mariana França Gouveia, “Curso de Resolução Alternativa de Litígios”, Almedina 2014, pág. 126.
[4] O que torna discutível a qualificação da situação como um caso de arbitragem “necessária”, uma vez que depende da opção expressa dos utentes singulares. Como salientam António de Magalhães Cardoso e Sara Nazaré, o regime arbitral previsto no Regime de Proteção de utentes dos Serviços Públicos constante do artigo 15º, nº1, da Lei nº 23/96, de 26 de Julho, surge, de certa forma como uma terceira via de arbitragem, situada algures entre a arbitragem voluntária e a necessária. Com efeito, não obstante nele se prever que os litígios de consumo no âmbito dos Serviços Públicos Essenciais estão sujeitos a arbitragem necessária mediante expressa opção dos utentes manifestada nesse sentido, a verdade é que esta submissão opera de forma unilateralmente impositiva. Os utentes detêm, assim, o direito potestativo de sujeitar os serviços públicos a arbitragem, que assim se apresenta como uma arbitragem “forçada”. – “A arbitragem necessária – natureza e regime: breves contributos para o desbravar de uma (também ela) necessária discussão”, local citado, pág. 35, nota 12.
[5] Neste sentido se pronuncia António Pinto Monteiro, referido que, ao consagrar um direito de participação a favor das organizações representativas dos utentes (artigo 2º), a lei vai ainda mais longe, extravasando do quadro da relação da prestação de serviços, surgindo a montante e entre sujeitos que não são rigorosamente os mesmos que titulam essa relação – “A Proteção do Consumidor de Serviços Públicos Essenciais”, in Estudos de Direito do Consumidor, Centro de Direito do Consumo, Nº2 – 2002, pág. 340.
[6] “A Proteção do Consumidor de Serviços Públicos Essenciais”, local citado, pág. 343.
[7] Elionora Cardoso, “Serviços Públicos Essenciais: a sua problemática no ordenamento jurídico português”, Coimbra Editora, págs. 54 e 63.
[8] Aqui se inserindo o especial dever de informação e esclarecimento, quer em termos pré-contratuais, aquando da celebração do contrato, quer na própria contratação, com a celebração efetiva do contrato, que o artigo 4º da citada Lei faz impender sobre o prestador de serviço (de informar das condições em que o serviço é prestado).
[9] “Manual de Direito de Consumo”, 2ª ed., Almedina 2014, págs. 258 e 259.
[10] “Serviços Públicos. Contratos Privados”, in Estudos em Homenagem à Professora Drª. Isabel de Magalhães Colaço, Vol. II, Almedina, pág. 131.
[11] Como salienta Carlos Ferreira de Almeida, os atos geradores das obrigações de prestação de serviço e de pagamento pelo utente são portanto contratos de direito privado, quem no essencial, se regem pelo direito privado – “Serviços Públicos – Contratos Privados”, pág. 124.
[12] O preço que o utente paga ao concessionário será precisamente uma prestação pecuniária pela contraprestação de bens ou serviços públicos, preço este que não terá necessariamente que se formar segundo regras de mercado, sendo, em via de regra, determinado pelo concessionário segundo critérios pré-estabelecidos por via administrativa, que podem constar de um regulamento autónomo de contrato (tarifa) ou do próprio contrato de concessão, ou ser igualmente fixado por convenção administrativa multilateral ou até pela entidade reguladora – Neste sentido, Joana Catarina Neto Anjos, “Litígios entre as Concessionárias do Serviço Público de Abastecimento de Agua e os consumidores”, Centro de Estudos de Direito Público e Regulação Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, págs. 30 e 31.