Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5408/16.7T8CBR-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE MANUEL LOUREIRO
Descritores: INSOLVÊNCIA
CREDOR
ÚNICO
OBRIGAÇÕES
Data do Acordão: 01/24/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – COIMBRA – JUÍZO DE COMÉRCIO – J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 1º, 3º, 18º E 20º DO CIRE.
Sumário: I) É possível a um único credor instaurar um processo de insolvência contra o respectivo devedor.

II) Para efeitos do art. 20º/1/b do CIRE, devem diferenciar-se dois grupos distintos de obrigações, a saber: i) por um lado, a obrigação ou obrigações que não foram cumpridas; ii) por outro lado, as outras obrigações do devedor que a falta de cumprimento daquela(s) revela, pelo seu montante ou pelas circunstâncias que rodeiam o incumprimento, a impossibilidade generalizada de as satisfazer.

Decisão Texto Integral:






Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

A autora propôs a presente acção especial de insolvência, pedindo a declaração de insolvência da ré, alegando como fundamento da sua pretensão, em resumo, o seguinte: no âmbito de um contrato de mútuo garantido com hipoteca em que outorgou com a ré, mutuou-lhe a quantia de 60.000.000€, ficando a ré obrigada a amortizar tal quantia em 8 anos, a contar de 28/10/2012, vencendo aquela quantia juros a liquidar semestral e postecipadamente; foi igualmente constituído, para garantia desse crédito, um penhor sobre acções da S..., S.A., e da E..., SGPS, S.A.; em Dezembro de 2012 as partes acordaram na prorrogação do prazo de pagamento de juros relativos ao período de 28/10/2012 até 28/10/2015, tendo sido amortizado o capital mutuado em 21.150.517,17€; em 28/10/2015 a ré não pagou os juros até então devidos; violando os deveres de informação convencionados, a ré não informou a autora da alteração que foi produzida em 12/9/2014 no seu quadro societário; em 15/6/2016 a autora comunicou à ré o vencimento antecipado do contrato de mútuo, com efeitos imediatos, ficando a ré constituída num débito de 54.057.800,18€, o qual não satisfez até à data da propositura da acção; a ré não consegue gerar receitas que lhe permitam pagar tal dívida, nem dispõe de património que garanta tal pagamento, tendo apresentado, no ano de 2014, um resultado líquido negativo de 1.413.185,38€, facto que permite concluir no sentido de que a mesma se encontra impossibilitada de satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações; segundo as contas do exercício do ano de 2014, o activo da ré ascendia a 50.317.266,03€, o que permite concluir no sentido de que o seu passivo é superior ao activo; a ré alienou as acções que detinha na sociedade S..., S.A. (correspondente a 48,58% do capital social desta), sem informar de tal facto a autora, que tinha sobre as mesmas um penhor constituído a seu favor, e sem que o produto dessa venda tivesse sido afecto ao pagamento do crédito detido pela autora sobre ela; entre 2012 e 2014 a ré transmitiu participações sociais de que era detentora no capital social das sociedades S..., Ld.ª, L..., Ld.ª, e S..., Ld.ª, num claro intuito de liquidação apressada ou ruinosa de bens integrantes do seu património.

Citada, a ré deduziu oposição, pugnando pela improcedência da pretensão da autora.

Alegou, como fundamento da oposição e em resumo, o seguinte: a autora não invoca, de modo suficiente, qualquer facto integrador dos factores indiciadores enunciados no artigo 20º do CIRE, usando de forma anómala o processo de insolvência, convertendo-o num sucedâneo do processo executivo; apesar de se encontrar numa situação de mora em relação à obrigação do pagamento dos juros vencidos em 28/10/2015, não se encontra numa situação de impossibilidade de satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações; nunca violou os deveres de informação a que se alude na petição; a autora não alega factos concretizadores da liquidação apressada e ruinosa de bens a que se alude na petição; a autora é credora única da ré e o processo de insolvência pressupõe uma pluralidade de credores, razão pela qual a autora faz um uso indevido deste processo; a diferença entre o activo e o passivo da ré não é manifesta.

A ré também se opôs à nomeação do senhor administrador de insolvência proposto pela autora, caso a sua insolvência seja declarada, e peticionou a condenação da autora por litigância de má-fé, em indemnização e multa, por ter deduzido pedido infundado, causando prejuízos à ré.

O processo prosseguiu os seus regulares termos, acabando por ser proferida sentença que, designadamente, decretou a insolvência da ré.

Não se conformando com o assim decidido, apelou a ré, rematando as suas alegações com as conclusões seguidamente transcritas:

...

Contra-alegou a autora, pugnando pela improcedência da apelação.

Dispensados os vistos, cumpre decidir.

II - Principais questões a decidir

Sendo pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso (artigos 635º/4 e 639º/1/2 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei 41/2013, de 26/6 - NCPC), integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, são as seguintes as questões a decidir:
1ª) se um credor único pode instaurar contra o devedor um processo de insolvência ou se, pelo contrário, está limitado a instaurar contra o devedor uma acção executiva;
2ª) se os factos dados como provados permitem ter por verificado o factor indiciador da insolvência enunciado no art. 20º/1/b do CIRE;

3ª) se deve ser mantido ou substituído o administrador de insolvência nomeado pelo tribunal recorrido a requerimento da apelada.

III – Fundamentação

A) De facto

Os factos provados

O tribunal recorrido deu como provados os factos seguidamente transcritos:

...

B) De direito
Primeira questão: se um credor único pode instaurar contra o devedor um processo de insolvência ou se, pelo contrário, está limitado a instaurar contra o devedor uma acção executiva.
A resposta à primeira parte desta questão deve ser afirmativa, sendo negativa quanto à segunda parte da mesma.
Na verdade, comece por atentar-se em que a pluralidade de credores não é requisito nem condição de procedência de um processo de insolvência, pois que: i) analisados os artigos 1º), 3º), 18º) a 20º), 23º) a 26º) do CIRE, deles não se extrai que a pluralidade em questão constitua pressuposto do processo de insolvência, sendo seu único pressuposto o de que o devedor se encontre em situação de insolvência; ii) a ausência de pluralidade de credores não se encontra legalmente prevista como causa impeditiva do prosseguimento do processo de insolvência ou do seu encerramento (arts. 230º a 232º do CIRE, nos quais não figura como motivo de encerramento o de ausência absoluta de reclamação de créditos ou o de ausência de créditos judicialmente reconhecidos, reclamados ou não).
Por outro lado, tenha-se em consideração que o apuramento definitivo dos credores do insolvente só ocorre depois de terminar a fase de verificação de créditos (arts. 128º e ss do CIRE), com verificação e graduação ou não de quaisquer outros créditos para lá do invocado pelo credor que requer a insolvência.
A significar que a afirmação de uma situação de um único credor só pode ser processualmente afirmada de modo incontornável após a própria declaração de insolvência, sem que nessa ocasião se vislumbre fundamento legal para decretar a extinção do processo de insolvência, para lá de que tal extinção teria o efeito perverso, para o qual não se almeja justificação aceitável, de obrigar o credor a desenvolver novo esforço de cobrança do seu crédito, desta feita instaurando uma acção executiva comum contra o devedor[1].
Em terceiro lugar, a exigência de pluralidade de credores redundaria em benefício injustificado para aqueles credores que concentrassem todas as suas dívidas num único devedor, servindo inclusivamente de incentivo a tal concentração[2].
Em quarto lugar, é preciso ter em devida conta que o processo de insolvência não prossegue exclusivamente a realização de interesses privados dos credores e do devedor, estando-lhe igualmente subjacente um interesse público de protecção da economia e dos agentes económicos contra os perigos potenciais associados a uma situação de insolvência[3], protecção essa que é devida independentemente do número de credores.
Finalmente, a tese da admissibilidade dos processos falimentares e afins, entre os quais o de insolvência, a requerimento de um único credor tem sido a que vem sendo sufragada pela doutrina maioritária que sobre esta temática se tem pronunciado – consulte-se, a título exemplificativo, Catarina Serra, Concurso sem credores, in Estudos em Homenagem ao Professor Carlos Ferreira de Almeida, III, pp. 727 a 739, Sara Luís Dias, O crédito tributário e as obrigações fiscais no processo de insolvência, Universidade do Minho, 2012, p. 9, nota 30, Francisco Fernandes, Declaração de Falência e seus Efeitos, p. 22, Eduardo Saldanha, Das Falências, I, pp. 28/29, Palma Carlos, Declaração de falência por apresentação do comerciante, pp. 106/107, Sousa Macedo, Manual de Direito de Falências, I, pp. 262/263, Alberto dos Reis, Processos Especiais, II, p. 332, Guido Tedeschi, Manuale di Diritto Fallimentare, Cedam, 2001, p. 40, Filipo Tortorici, Il falimento com único creditore, in Il Diritto Fallimentare e dele Società Commerciali, 1971, II, pp. 254 e ss, em anotação, favorável ao sentido da mesma mas crítica dos argumentos nela aduzidos, à sentença da Corte d´Apello de Palermo de 26/7/1968, que se pronunciou igualmente no sentido da admissibilidade ora sustentada, João Scalzili, Luís Spinelli, Rodrigo Tellechea, Recuperação de Empresas e Falência, Almedina, 2016, p. 440, Rubens Requião, Curso de Direito Falimentar, I, São Paulo, Saraiva Editora, 1984, pp. 35 a 37; decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, Câmara Especial de Falências e Recuperações Judiciais, de 6/11/2008, processo AG 5611854000 SP.
Do exposto se conclui, assim, no sentido de que não obsta à declaração da insolvência o facto de esta ter sido requerida por um único credor, no caso a ora apelada.
Segunda questão: se os factos dados como provados permitem ter por verificado o factor indiciador da insolvência enunciado no art. 20º/1/b do CIRE.
Comece por dizer-se que a apelada invocou para efeitos do pedido de declaração de insolvência da apelante três factores indiciadores da insolvência, a saber: a) falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações (art. 20º/1/b do CIRE); b) dissipação apressada ou ruinosa de bens (art. 20º/1/d do CIRE); c) manifesta superioridade do passivo sobre o activo segundo o último balanço aprovado (art. 20º/1/h do CIRE).
A sentença recorrida considerou que não estavam verificados estes dois últimos factores indiciadores, sendo que nessa parte a sentença não foi impugnada e, por isso, mostra-se transitada em julgado.
Cumpre apreciar, assim e de modo exclusivo, se está ou não verificado o primeiro desses factores indiciadores
Prescreve o art. 20º/1/b do CIRE que o credor pode requerer a insolvência do devedor se em relação a este se registar uma situação de falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações.
É sobre o requerente da insolvência que recai o ónus de alegação de prova dos factos integradores daquele factor indiciador da insolvência, daí emergindo, designadamente, que deve alegar e provar: i) o incumprimento de obrigações vencidas; ii) as demais circunstâncias envolventes desse incumprimento que permitam concluir no sentido de que está em causa uma situação de impossibilidade de cumprimento do devedor resultante da sua penúria ou incapacidade patrimonial generalizada.
Sublinhe-se que a impossibilidade de cumprimento fundamentadora da verificação de uma situação de insolvência não tem de abranger todas as obrigações assumidas pelo insolvente e vencidas, pois que o que verdadeiramente releva é a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciam a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos, podendo até suceder que a não satisfação de um pequeno número de obrigações ou até de uma única indicie, por si só, a penúria do devedor, característica da sua insolvência, do mesmo modo que o facto de continuar a honrar um número quantitativamente significativo pode não ser suficiente para fundar saúde financeira bastante - Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 2008, p. 72.
Reportando-nos ao caso em apreço, é para nós incontroverso que a apelante incorreu numa situação de não cumprimento em relação às obrigações para si emergentes do contrato de mútuo outorgado em 28/10/2011 (ponto 3º dos factos provados), com o aditamento ao mesmo outorgado em 7/12/2012 (ponto 18º dos factos provados), dele decorrendo que as partes estabeleceram como cláusula resolutiva expressa (ponto 7º dos factos provados): i) o incumprimento, mesmo que parcial, de quaisquer obrigações emergentes para a apelante desse contrato de mútuo e/ou de quaisquer outras obrigações da apelante ou da sociedade S..., SA, para com a apelada; ii) a alienação ou oneração, sem consentimento da apelada, do objecto da apelante.
Ora, a apelante: i) não cumpriu a obrigação de pagamento postecipado de juros para si decorrente do contrato de mútuo e do seu aditamento, como claramente flui do descrito nos pontos 6º, 19º, 20º, 26º e 27º dos factos descritos como provados; ii) violou a sua obrigação de se abster da alienação do seu objecto sem consentimento da apelada, como flui do ponto 32º dos factos provados; iii) violou a obrigação de dar em penhor suprimentos e outras prestações complementares, como claramente flui da conjugação dos pontos 22º, 24º e 25º dos factos descritos como provados; iv) violou a obrigação de manter numa situação de absoluta indisponibilidade as acções da S... que detinha e deu em penhor à apelada, como claramente flui da conjugação dos pontos 14º, 17º, 35º e 36º dos factos descritos como provados.
Legitimada ficou a apelada, face ao acabado de descrever conjugado com o art. 432º/1 do CC, para proceder à resolução do contrato de mútuo a que efectivamente procedeu nos termos descritos no ponto 28º) dos factos provados, sendo que a declaração de vencimento antecipado desse contrato aí referida mais não representa, técnica e tacitamente, do que uma resolução contratual.
Acompanhamos a sentença recorrida, pois, quando ali se explicita o entendimento de que a apelada resolveu licitamente o contrato de mútuo celebrado entre ela e a apelante, ficando assim constituída na posição de credora indemnizatória da apelante (arts. 405º, 798º e 801º/2 do CC, conjugados com o clausulado convencionalmente entre as partes para o caso de incumprimento contratual), sendo certo que não vem posta em causa na apelação a grandeza quantitativa desse crédito afirmada na decisão recorrida (54.057.800,18 euros) que, por isso, não pode agora ser questionada.
Tudo está agora em saber se essa situação de incumprimento contratual em que a apelante se mostra constituída é suficiente, pelo seu montante ou pelas demais circunstâncias envolventes desse incumprimento, para concluir no sentido de que a apelante está numa situação de impossibilidade de satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações.
A sentença recorrida concluiu pela afirmativa, sendo que para o efeito assentou nos seguintes únicos fundamentos: a apelante manifestou à apelada, em 9/10/2015, a incapacidade de suportar um custo de 200.000 euros necessário para que pudesse constituir um penhor prometido à apelada e para a constituição do qual interpelou efectivamente a apelante; a apelante não pagou os juros vencidos em 28/10/2015 e em 28/4/2016, no montante global de 8.243.038,81 euros.
Crê-se que o primeiro desses fundamentos não poderia ter sido invocado para os efeitos em análise.
Na verdade, o simples facto de a apelante se ter manifestado incapacitada de suportar aquele encargo não equivale a que essa incapacidade efectivamente se registasse, não estando excluído, por exemplo, que subjacente à manifestação dessa incapacidade pudesse estar apenas uma pretensão da apelante no sentido de que a apelada financiasse a operação de constituição de penhor que lhe aproveitava e que reclamava, assim permitindo à apelante a liquidez correspondente ao facto de não se ver obrigada a despender o montante que a apelada porventura se dispusesse a financiar.
A carta de 9/10/2015 referida no ponto 25º) dos factos provados vai, justamente, no sentido de sugerir uma intervenção financiadora da apelada com vista à constituição do penhor por esta reclamado, sendo que tanto quanto resulta dos factos provados a apelada nem sequer respondeu a essa missiva, colocando a apelante numa situação de dúvida sobre a necessidade de efectivamente providenciar pela constituição do penhor sem nenhum financiamento por parte da apelada.
Crê-se que a boa-fé que deve imperar nas relações negociais (art. 762º do CC) exigiam que a apelada tivesse respondido àquela carta de 9/10/2015, sem o que a apelante poderá ter ficado sem perceber bem se tinha ou não que providenciar efectivamente pela constituição do penhor suportando integralmente os custos a tanto inerentes, ou se a apelada estava ou não a ponderar o financiamento dessa operação, ou se pura e simplesmente a apelada prescindiu, mesmo que transitoriamente, da constituição do penhor.
Assim, sob pena de violação daquele princípio da boa-fé, não pode posteriormente valorar-se, para os efeitos de se demonstrar a incapacidade da apelante satisfazer a generalidade das suas obrigações, a declaração emitida pela apelante em 9/10/2015, em contexto de proposta de concessão pela apelada de financiamento, com vista ao pagamento dos encargos necessários à constituição do penhor reclamado pela apelada.
Por outro lado, essa situação de incapacidade foi manifestada em Outubro de 2015, não fornecendo os autos qualquer garantia de que a mesma, a existir a essa data, persistisse em 13/7/2016 (data da proposição da acção) ou em 15/6/2016 (data em que a apelada procedeu à declaração de vencimento antecipado/resolução do contrato de mútuo).
Em terceiro lugar, o encargo de 200.000 euros não representava qualquer débito efectivo da apelante que a mesma estivesse obrigada a satisfazer, antes representava um encargo meramente eventual que deveria ser suportado se e quando o penhor em questão fosse constituído, ou seja, um encargo meramente virtual que não pode ser ponderado, a nosso ver, para efeitos do art. 20º/1/b do CIRE, reportado a obrigações já constituídas e insatisfeitas e a obrigações também já constituídas e de insatisfação generalizada revelada pelo inadimplemento das primeiras.
Finalmente, mesmo a não entender-se assim, sempre deveria considerar-se, à semelhança do crédito único que vai ser referido em seguida, que o encargo de 200.000 euros que está em análise só podia ser ponderado em sede de obrigações cujo incumprimento possa revelar a incapacidade generalizada de satisfação de outras obrigações, que não em sede de obrigações cuja incapacidade generalizada de satisfação seja revelada pelo incumprimento de outras obrigações, sendo os factos provados absolutamente omissos quanto a obrigações da apelante com incapacidade generalizada de satisfação revelada pela insatisfação de outras obrigações, razão pela qual não pode ter-se por preenchido o factor indiciador em apreço.
No que respeita ao segundo dos aludidos fundamentos invocados pela sentença recorrida, importa considerar que a falta do pagamento dos juros devidos constituiu um indício sério de que a apelante estava incapacitada de solver as correspondentes obrigações pecuniárias, pois que a não ser assim mal se compreenderia que a apelante se colocasse voluntária e conscientemente numa situação de mora de que poderia emergir a resolução contratual que a apelada acabou por levar a efeito.
Se isso é certo, menos certo não é que: i) essa obrigação de pagamento de juros é insusceptível de autónoma ponderação para os efeitos em análise; ii) do incumprimento dessa mesma obrigação de juros, ponderado no âmbito único e mais vasto do incumprimento da obrigação decorrente para a apelante do contrato de mútuo e da sua resolução pela apelada, não pode extrapolar-se uma generalizada incapacidade da apelada de solver as suas obrigações.
Na verdade, quanto ao primeiro desses aspectos, aquele crédito insatisfeito de juros e o crédito indemnizatório supra reconhecido à apelante (54.057.800,18 euros) que igualmente resultou da resolução contratual operada também com fundamento na insatisfação daquele primeiro crédito, devem ser considerados, sob pena de duplicação, como um único crédito globalmente decorrente para a apelada do contrato de mútuo e da sua resolução pela apelada, estando o crédito de juros integrado no crédito indemnizatório.
Aliás, assim o considerou a própria apelada nos arts. 29º, 30º, 35º, 37º e 60º da petição inicial, bem assim como no seguinte trecho da sua carta de 15/6/2016:


Por outro lado e agora quanto ao segundo dos mencionados aspectos, importa não perder de vista que para efeitos do art. 20º/1/b do CIRE, devem diferenciar-se dois grupos distintos de obrigações, a saber: i) por um lado, a obrigação ou obrigações que não foram cumpridas; ii) por outro lado, a generalidade das obrigações do devedor que a falta de cumprimento daquela(s) revela, pelo seu montante ou pelas circunstâncias que rodeiam o incumprimento, a impossibilidade de as satisfazer.
Sendo assim, como é, aquele crédito único a que supra se aludiu apenas pode relevar para efeitos do primeiro grupo de obrigações supra referenciadas - obrigação ou obrigações que não foram cumpridas – sendo insusceptíveis de ser consideradas para efeitos de integração nas outras obrigações cuja impossibilidade generalizada de cumprimento seja revelada pelo inadimplemento das primeiras.
Partindo deste princípio, os factos provados são absolutamente omissos relativamente a outras obrigações de que a apelante fosse sujeita passiva, para lá da correspondente àquele crédito único e cuja impossibilidade generalizada de cumprimento seja revelado pelo inadimplemento daquela obrigação única emergente do contrato de mútuo e da sua resolução.
Nesses factos não se identifica uma qualquer outra obrigação para lá daquela que corresponde ao dito crédito único.
Assim sendo, não pode concluir-se que o incumprimento desse débito único revela a incapacidade da apelante satisfazer generalizadamente outra ou outras obrigações de que seja sujeito passivo.
Consequentemente, não pode ter-se por preenchido o factor índice que está em apreço, único com base no qual foi declarada a insolvência da apelante.
Tanto basta, assim, para concluir no sentido de que não deveria ter sido decretada a insolvência da apelante, devendo proceder a apelação.

IV- DECISÃO

Acordam os juízes que integram esta 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra no sentido de julgar a apelação procedente, em consequência do que se revoga a decisão recorrida, com a consequente absolvição da ré dos pedidos contra si formulados pela autora.

Custas pela autora.

Remeta imediatamente cópia desta decisão à primeira instância, com informação de que não se verificou ainda o seu trânsito em julgado.

Coimbra, 24/1/2017.


(Jorge Manuel Loureiro)

(Maria Domingas Simões)

(Jaime Carlos Ferreira)


Sumário:

I) É possível a um único credor instaurar um processo de insolvência contra o respectivo devedor.
II) Para efeitos do art. 20º/1/b do CIRE, devem diferenciar-se dois grupos distintos de obrigações, a saber: i) por um lado, a obrigação ou obrigações que não foram cumpridas; ii) por outro lado, as outras obrigações do devedor que a falta de cumprimento daquela(s) revela, pelo seu montante ou pelas circunstâncias que rodeiam o incumprimento, a impossibilidade generalizada de as satisfazer.


(Jorge Manuel Loureiro)


***


[1] Cfr. Salvatore Satta, Dirito  Fallimentare, Cedam, 1996, pp. 69/70, nota 40.
[2] A este propósito, com esta argumentação desenvolvida a propósito do congénere processo de falência, Eduardo Saldanha, Das Falências, I, p. 28, Palma Carlos, Declaração de falência por apresentação do comerciante, pp. 106/107, Sousa Macedo, Manual de Direito de Falências, I, p. 263.
[3] Neste sentido, por exemplo, Renzo Provinciali, Manuale di Diritto Fallimentare, Milano, 1962, I, pp. 12 e ss, e acórdão da Relação de Coimbra de 28/5/2013, proferido no processo 1275/12.8TBACB-B.C1, relado pela aqui exma. primeira-adjunta.