Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
638/19.2T8FND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CRISTINA NEVES
Descritores: ABUSO DE DIREITO
CONTRATO-PROMESSA
ALTERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS
RESOLUÇÃO
Data do Acordão: 03/17/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DO FUNDÃO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 334.º E 437.º, N.º 1, AMBOS DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I - Actua em abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”, o promitente-comprador que invoca, em sede de recurso, a nulidade do contrato-promessa por omissão dos requisitos legais exigidos pelo .º 3 do artigo 440.º do Civil quando: a) o contrato promessa previa a possibilidade de apresentação da licença de habitação do prédio urbano, ou da isenção da mesma, até á data de celebração do contrato prometido; b) ambas as partes declararam dispensar o reconhecimento das assinaturas; c) tal promitente comunicou à outra parte a resolução do contrato-promessa.

II - No âmbito de um contrato-promessa de compra e venda, no qual se acordou que, até à data da celebração da escritura pública, os promitentes vendedores não poderiam proceder “a qualquer corte ou abate, total ou parcial de qualquer uma das árvores, integrante nos imóveis”, é de considerar que a eclosão de um incêndio florestal que queimou todas as árvores e vegetação existentes nos prédios prometidos vender e a sua envolvente florestal, que queimou muros e chamuscou as paredes do prédio urbano, desvalorizando-o para cerca de ½ do valor fixado, configura uma alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar.

Decisão Texto Integral:

Acordam os Juízes na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:



RELATÓRIO

S..., Lda.., intentou acção declarativa, sob a forma única de processo comum, contra AA e esposa BB, peticionando que:

-seja reconhecida a licitude da resolução de contrato-promessa de compra e venda celebrado entre as partes processuais e, em consequência

-sejam os réus condenados a devolver à autora o sinal recebido no valor de €15.000, acrescido de juros vencidos e vincendos,

ou, caso assim não se entenda,

-seja declarado o incumprimento do dito contrato por parte dos réus, condenando-se estes na restituição à autora do sinal em dobro, acrescido de juros à taxa supletiva legal aplicável às obrigações comerciais, desde a data da citação até integral pagamento.

Para fundamentar os seus pedidos alegou, em síntese, que tendo celebrado, em maio de 2017, contrato promessa de compra e venda com vista à aquisição de dois imóveis, um rústico e o outro urbano, pelo valor de € 45.000,00, com entrega de sinal no valor de € 15.000,00, ocorreu um incêndio na ..., em agosto desse ano, tendo ardido as árvores e vegetação existente nos imóveis e danificado os respectivos muros, razão pela qual, nunca tendo conseguido negociar com os promitentes vendedores a redução do preço, comunicou-lhes a resolução do contrato por alteração anormal das circunstâncias que estiveram na base da celebração do contrato promessa de compra e venda, a que estes não deram qualquer resposta.

Alega ainda que, não se entendendo assim, os réus não compareceram à escritura pública de compra e venda datada de 10.11.2017, nem responderam à missiva da autora datada de 22.09.2017, pelo que se tem de entender que incumpriram definitivamente o aludido contrato promessa de compra e venda, conferindo à A. o direito de optar pela restituição do sinal em dobro.


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Regularmente citados, vieram os réus alegar, em suma, que o aludido incêndio apenas queimou pasto, algumas mimosas e 6 eucaliptos, tudo num valor global inferior a €1000,00 e que a representante legal da autora transmitiu aos réus que, caso a redução do preço proposta (de €25.000,00) não fosse por eles aceite, iria resolver o aludido contrato promessa de compra e venda celebrado entre as partes processuais.

Acrescentaram ainda que, em face da intenção da autora, e como não aceitaram a sua proposta, optaram por não ir à escritura pública de compra e venda datada de 10.11.2017.


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Realizou-se audiência prévia nos termos constantes de fls. 69/70, tendo sido proferido despacho saneador com fixação do objecto do litígio e elaborados temas da prova.

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Na sequência do óbito do réu AA, foram habilitados nos autos por sentença de 16/02/21, transitada em julgado, a sua esposa BB (a aqui ré) e os seus seis filhos, CC, DD, EE, casada com FF, GG, HH e II, casado com JJ.

Após, realizou-se audiência de julgamento, sendo proferida sentença na qual se julgou a acção improcedente e se absolveram os RR. dos pedidos formulados pela A.


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Não conformada com esta decisão, impetrou a A. recurso da mesma relativamente à matéria de facto e de direito, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:

“I – O contrato dos autos é nulo, por violação do disposto no nº 3 do artigo 410 do Código Civil, nomeadamente por falta de reconhecimento das assinaturas e de certificação, pela entidade que realiza aquele reconhecimento, da existência da respectiva licença de utilização ou de construção.

II- A nulidade atípica prevista na referida norma é invocável a todo o tempo e, como tal, não se encontra sanada pelo facto de não ter sido invocada previamente nos autos.

III – Deveria ter sido dado como provado que “c. Após o incêndio mencionado no ponto 9, dos factos provados, as construções existentes nos imóveis descritos no ponto 2 dos factos provados, nomeadamente os muros, ficaram em risco de ruína, criando risco para quem ali se deslocasse.”

IV – Para tal prova concorrem as declarações de parte da representante legal da A., da testemunha KK, conjugados com as regras da experiência comum e as fotografias juntas à Resposta à Contestação com os números 2, 12, 13, 18, 25, 26 e 33.

V – Deveria ter sido dado como provado que:

“d. No mês de agosto de 2017, a representante legal da autora, LL abordou os réus, na pessoa de CC, filho dos réus, e propôs uma redução do preço, que os réus não aceitaram.”

“e. A autora transmitiu aos réus, na pessoa de CC, que, sem a redução do preço proposta, resolveria o contrato promessa descrito no ponto 2.”

VI – Para tal concorrem as declarações de parte dos intervenientes na conversa, a representante da A. e o réu CC, e a confissão – ao menos parcial – constante da contestação dos réus.

VII- Faltando os réus à escritura por si marcada, sem qualquer justificação para o efeito, verifica-se incumprimento definitivo.

VIII – Ainda que assim não se entenda, se os réus não aceitam ter existido fundamento para a A. resolver o contrato promessa por alteração de circunstâncias, então para os RR. o contrato mantém-se válido pelo que, ao celebrarem escritura com terceiro (facto provado 28), incumpriram definitivamente o contrato pelo que a douta decisão viola o disposto no artigo 801 do código civil.

XIX – Constando do contrato promessa de compra e venda do imóvel dos autos, a proibição dos RR. cortarem qualquer vegetação até à realização da escritura, o que evidencia a importância dada a essa vegetação na celebração do negócio, um incêndio que destroí por completo a vegetação e deixa em risco os muros e danificada a construção existente, é fundamento para a alteração superveniente das circunstâncias., pelo que a douta decisão viola o disposto no artigo 437º do Código Civil.

Nestes termos e no mais de direito, sempre com o douto suprimento de V. Ex.as, deve a douta decisão a quo ser revogada e substituída por outra que:

1) Declare a nulidade do contrato promessa dos autos e determine a restituição do valor pago a titulo de sinal à A.

Caso assim não se entenda:

2) Declare o incumprimento definitivo dos RR. e a devolução do sinal em dobro ou,

Caso assim não se entenda:

3) Reconheça o direito da A. a resolver o contrato promessa com base em alteração superveniente das circunstâncias, condenando assim os réus a devolverem o montante de sinal à A.

Com o que se fará a mais completa e habitual,

JUSTIÇA”


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Pelos RR. foram interpostas contra-alegações, delas resultando as seguintes conclusões:

“1ª A recorrente impugna a matéria de facto no tocante aos factos considerados como não provados constantes das als. C, D e E da douta sentença recorrida, através da reanálise de depoimentos de testemunhas ouvidas em sede de julgamento.

2ª A recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso não menciona uma qualquer passagem/excerto da gravação das testemunhas que refere que implique decisão diversa da recorrida, limitando-se, tão-somente a indicar o nome da testemunha que, segundo a Ré, justificaria a modificação da decisão de facto.

Assim, verifica-se ostensivo desrespeito das exigências claramente estabelecidas na lei em matéria de impugnação da matéria de facto. Pelo que, deve ser rejeitada a impugnação da matéria de facto levada a cabo pela recorrente.

3ª Caso assim não se entenda,

O recurso da matéria de facto é um verdadeiro recurso e, como tal, para que proceda, importa que se possa concluir, com segurança, pela verificação de um erro de julgamento de facto, não bastará ao Tribunal da Relação adquirir uma convicção probatória divergente da que foi adquirida em primeira instância para que seja alterada a decisão de facto da primeira instância, sendo necessário para tanto que o Tribunal da Relação esteja em condições de afirmar a existência de um erro de apreciação e valoração da prova por parte do tribunal de primeira instância. (nosso sublinhado).

As passagens dos depoimentos das testemunhas e das partes ressalvados pela recorrente nas suas alegações, mais não se tratam do que uma versão diferente da que foi considerada provada e não provada pelo tribunal “a quo”. Ora para que o tribunal “a quo” incorra, de facto, num erro ostensivo na apreciação da prova, teria de ter ocorrido uma apreciação totalmente arbitrária das provas produzidas em audiência de julgamento, uma afronta as mais

elementares regras de experiência, em termos de se poder dizer que existe uma flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e a decisão do tribunal recorrido sobre matéria de facto. O tribunal “a quo” fez a sua valoração da prova produzida, com apresentação da respectiva motivação de facto, na qual explicitou minuciosamente, não apenas os vários meios de prova (depoimentos testemunhais, documentos, declarações de parte, etc.) que concorreram para a formação da sua convicção, como os critérios racionais que conduziram a que a sua convicção acerca dos diferentes factos controvertidos se tivesse formado em determinado sentido e não noutro.

Pelo que, por estas razões agora aduzidas terá de improceder o recurso da matéria de facto mantendo-se inalterada a matéria considerada provada e a não provada, excepto quanto ao infra referido em sede de recurso subordinado.

4ª Por outro lado, insiste a recorrente em afirmar que os RR, primitivos, faltaram à escritura pública por si agendada. Na verdade, a A. já tinha avisado por intermédio do então mandatário que não iria outorgar a escritura pelo preço constante do contrato promessa de compra e venda dos autos, pelo que os RR. não compareceram.

Tal resulta claro do depoimento da legal representante da A., ora recorrente, que no seu depoimento gravado no sistema informático no dia 07/09/2021 desde as 11.3... a 12.0... cuja passagem de 27 min. a 30 min., se ressalva, pode-se ouvir a recorrente afirmar que não assinava a escritura de compra venda pelo valor de 45000€. Que, apenas, se deslocou ao cartório para falar com as pessoas, herdeiros!!, -quando os RR. primitivos se encontravam

vivos à data-, para os sensibilizar a devolverem-lhe o dinheiro do sinal i.e. 15000€.

Não pode a recorrente sob pena de abuso de direito vir invocar um facto desta natureza para o qual contribuiu.

5ª Aliás, a depoimento de CC gravado no sistema informático no dia 07/09/2021 desde as 15.4... a 16.2... cujas passagens de 17.32 min a 18.47 min. e de 28 min a 29.42 min., resulta claro que os RR. não foram à escritura por ter sido previamente comunicados pelos mandatários que a A. só iria comparecer para justificar o motivo de não outorgar a escritura.

6ª Concluiu, ainda, a recorrente que o contrato promessa se mantém válido uma vez que os RR. não aceitam a existência de motivos para a sua resolução por banda da A./recorrente. Uma vez que já venderam o imóvel objecto mediato do contrato promessa foram os RR. quem o incumpriram.

7ª A questão dos autos e sua causa de pedir é a resolução do contrato promessa por banda da A. por alteração das circunstâncias e o seu reconhecimento judicial.

8ª Do contrato promessa dos autos resulta que as partes estavam obrigadas, uma delas a vender e a outra parte a comprar, por um determinado preço, uns imóveis com determinadas características, nomeadamente, compostos de terra de pastagem, e uma casa de R/C e 1º andar. Veio a A. alegar que perdeu o interesse no contrato prometido, uma vez que arderam algumas árvores e as próprias paredes da casa, o que se veio a provar não corresponder à realidade. O contrato promessa é uma convenção preliminar que tem por objecto um contrato futuro. Essa obrigação de facto, implica, para os promitentes vendedores, a obrigação de realizar a escritura de compra e venda com a A., nos precisos termos em que prometeram vender os bens e esta comprá-los pelo preço e condições acordadas.

9ª Face aos factos provados resulta que a A. ao resolver o contrato da forma em que o fez, foi ilicitamente, vejamos,

A resolução do contrato por alteração anormal das circunstâncias que constituíram a base do negócio aponta por via de regra para a imprevisibilidade de tal alteração.

Tal como alegado a A. pretende o reconhecimento judicial da resolução do contrato por alteração das circunstâncias, nos termos do art.437º do C.C.

São requisitos de aplicação do art.437º do CC:

A existência de uma alteração das circunstâncias em que as partes fundaram decisão de contratar;

O caracter anormal dessa alteração;

Que essa alteração provoque uma lesão para uma das partes;

Que tal lesão seja de tal ordem que se apresente contrária à boa-fé a exigência do cumprimento das obrigações assumidas; e que não se encontre coberta pelos riscos próprios do contrato. (neste sentido cfr. Ac RL de 29/10/2019 in www.dgsi.pt).

10ª A alteração de ocorreu na vegetação do prédio rústico não provocou uma lesão na esfera da A. de tal ordem que se apresente contrária à boa-fé a exigência do cumprimento das obrigações assumidas.

11ª A A. resolveu o contrato promessa em 22 de setembro de 2017, demonstrando a sua intenção em não cumprir o contrato promessa nos termos deles constantes, pois remeteu aos AA. uma carta de resolução do contrato promessa de compra e venda por alteração das circunstâncias. Da qual os RR tiveram conhecimento face às negociações havidas entre os advogados das partes, tal como reconhece a A. no 3º parágrafo do doc.09 da P.I. (nosso sublinhado)

12ª Centrando-nos no verdadeiro tema resulta que desde setembro de 2017 que a A. resolveu o contrato promessa, sendo que as comunicações de 09/11/2017 e a de 18/12/2017, efectivamente recebidas, são a confirmação de tal vontade. (nosso sublinhado).

13ª A resolução indevida substitui a prestação principal por uma prestação indemnizatória, não sendo fundada, ela implica um incumprimento presumivelmente culposo (art.799º nº01 do CC). Tomando em consideração os factos provados, ao supra exposto e a toda a actuação da A. verifica-se que resolveu injustificadamente o contrato promessa de compra e venda, logo constitui-se na obrigação de indemnizar os RR. Ao tê-lo feito o contrato promessa, definitivamente incumprido, não pode “renascer das cinzas”, tal como pretende agora a recorrente por nisso ter interesse dada a falência da estratégia inicialmente delineada.

14ª Invocou, ainda, a recorrente a nulidade do contrato promessa por falta de reconhecimento das assinaturas e da falta de menção no contrato à licença de utilização.

15ª Resulta claro do texto da cláusula 10ª do contrato promessa de compra e venda, “ambas as partes declaram prescindir do reconhecimento notarial das suas assinaturas no presente contrato, para efeitos do nº03 do artigo 410 do código civil, renunciando em consequência, invocar a sua nulidade.”

16ª O art.410º nº03 do CC dispõe,

“3 - No caso de promessa respeitante à celebração de contrato oneroso de transmissão ou constituição de direito real sobre edifício, ou fracção autónoma dele, já construído, em construção ou a construir, o documento referido no número anterior deve conter o reconhecimento presencial das assinaturas do promitente ou promitentes e a certificação, pela entidade que realiza aquele reconhecimento, da existência da respectiva licença de utilização ou de construção; contudo, o contraente que promete transmitir ou constituir o direito só pode invocar a omissão destes requisitos quando a mesma tenha sido culposamente causada pela outra parte.”

17ª Do doc.10 junto com a P.I., da sua cláusula terceira, resulta que o prédio urbano prometido vender está isento de licença de utilização, pelo que por tal facto não poderia a mesma constar do contrato promessa. (nosso sublinhado). Não sendo tal tipo de licença aplicável/exigível aos prédios rústicos. Pelo que, não se compreende a motivação da recorrente quando foi ela própria quem carreou o documento ao processo do qual consta que o prédio urbano está isento de licença de utilização.

18ºª A falta de reconhecimento presencial das assinaturas num contrato-promessa onde essa formalidade é imposta pelo art. 410º, nº 3, do Código Civil determina a nulidade do contrato, e que pode ser invocada pelo promitente que promete adquirir o direito, salvo se a sua invocação, dadas as circunstâncias em que é exercida, corresponder a abuso de direito.

19ª Só se poderá concluir que age em manifesto abuso de direito a recorrente, pois, dos factos provados nº01 consta que a recorrente se trata de uma sociedade comercial que se dedica à compra e venda de imóveis, consultoria financeira, negócios e gestão.

Ao passo que os RR., primitivos que outorgaram o contrato, se tratam de pessoas simples, pouco letradas e com dificuldade de escrita.

Tal falta não pode ser assacada aos RR., antes sim à recorrente mais experiente nestas lides, sendo, aliás, esta quem redigiu o contrato.

20ª Mais, face ao facto de constar do texto que as partes prescindem do reconhecimento assinaturas, foi criada nos RR. uma confiança séria e legítima de que a nulidade não iria ser invocada e que o contrato estava perfeito.

21ª Tendo as partes renunciado ao reconhecimento das assinaturas ocorreu uma renúncia tácita dos contraentes ao direito de anular o negócio, extinguindo-se, em consequência, esse direito.

22ª Pelo que, as nulidades/irregularidades invocadas pela recorrente devem soçobrar.

Nestes termos requer a V.Exªs se dignem considerar improcedente e não provado ao recurso. Confirmando a douta sentença recorrida na íntegra.”


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QUESTÕES A DECIDIR


Nos termos do disposto nos artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial. Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.

Nestes termos, as questões a decidir que delimitam o objecto deste recurso, consistem em apurar:


a) Se foram cumpridos os ónus impostos ao recorrente pelo artº 640 do C.P.C. e se deve ser alterada a matéria de facto fixada em primeira instância;
b) Se o contrato promessa celebrado entre as partes é nulo, pelo não reconhecimento notarial das assinaturas dos contraentes e pela falta de certificação da existência de licença de habitação ou da sua isenção;
c) Se se verifica a alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a sua decisão de aquisição dos imóveis, objecto do contrato promessa outorgado entre ambas e se, por essa via, assiste à promitente compradora o direito de resolução do contrato;
d) A assim não se considerar, se existiu incumprimento definitivo do contrato promessa, por parte dos promitentes-vendedores.


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Corridos que se mostram os vistos aos Srs. Juízes Desembargadores adjuntos, cumpre decidir.


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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O tribunal recorrido considerou a seguinte matéria de facto:

“Factos provados

Resultam provados os seguintes factos (alegados nos articulados ou constantes dos documentos, com relevo para decidir, excluindo factos conclusivos e conceitos jurídicos):

1. A autora é uma sociedade comercial que tem por objecto a compra e venda de bens imóveis e prestação de serviços de consultadoria financeira e consultadoria para os negócios e a gestão.

2. No dia 6 de Maio de 2017, no exercício da sua actividade, a autora celebrou com os réus um contrato promessa de compra e venda, tendo como objecto os seguintes imóveis sitos na Freguesia de ..., concelho ... e Distrito de ...:

a. Urbano, destinado a habitação sito em ..., na Freguesia de ..., concelho ... e Distrito de ..., inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo n.º ...75;

b. Rústico, sito em ..., com área total de 20.000m2, Freguesia de ..., concelho ... e Distrito de ..., inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo n.º ...57.

3. Resulta da cláusula 3.ª do referido contrato promessa de compra e venda que o preço global da venda foi de 45.000 euros.

4. Resulta da cláusula 3.ª do referido contrato promessa de compra e venda que o referido preço seria pago em duas tranches: a quantia de 15.000,00 euros seria paga no dia 06 de maio de 2017 e o remanescente seria pago no dia da outorga da escritura de compra e venda.

5. Resulta da cláusula 4.ª do referido contrato promessa de compra e venda que  “A escritura pública de compra e venda a favor do Promitente Comprador, será celebrada até 30 de Setembro de 2017”.

6. Resulta da cláusula 5.ª do referido contrato promessa de compra e venda que “Os Promitentes Vendedores compromete-se a proceder a suas expensas à devida legalização dos imóveis objecto deste contrato, nomeadamente à sua actualização fiscal, predial e administrativa no ..., responsabilizando-se ainda pela obtenção da respectiva licença de habitabilidade para o imóvel urbano, destinado à habitação, ou certidão demonstrativa da sua isenção, bem como a respectiva obtenção do certificado energético.”

7. Resulta da cláusula 9.ª do referido contrato promessa de compra e venda que “Pelo presente contrato, os Primeiros Outorgantes comprometem-se a não proceder, a partir da presente data até à celebração da escritura de compra e venda, a qualquer corte ou abate, total ou parcial de qualquer uma das árvores, integrante nos imóveis, objecto do presente negócio.”

8. No dia da celebração do referido contrato promessa, a autora entregou aos réus a quantia de 15000 euros.

9. Entre os dias 13 e 16 de Agosto de 2017 a ... foi varrida por um incêndio que, no dia 14 do referido mês, cercou ..., tendo queimado tudo em redor.

10. Os imóveis descritos no ponto 2 foram objecto do referido incêndio, tendo ardido toda a vegetação existente.

11. No dia 04 de setembro de 2017, a autora recebeu uma missiva, datada de 4 de Setembro de 2017, enviada pelos réus com os seguintes dizeres: “Venho transmitir a V. Exas que fui contactado pelos M/ clientes para proceder à preparação da escritura pública de compra e venda relativa ao imóvel negociado entre V.Exa s. Tal como está contratualmente previsto o contrato prometido deve ser outorgado até ao fim do corrente mês de Setembro de 2017. Assim, peço o favor de me contactarem, por forma a combinar data para a outorga da escritura de compra e venda.”

12. Após, a autora remeteu aos réus a carta datada de 22 de Setembro, com os seguintes dizeres: “Serve a presente para, por este meio, e uma vez mais, levar ao conhecimento de V.a Exas. a decisão ponderada e fundamentada que tomámos quanto à Resolução do Contrato-Promessa de Compra e Venda (C.P.C.V.) que foi celebrado no passado dia 06/05/2017 entre a nossa empresa "S..., Lda." e V.a Exas. . Tal Resolução do C.P.C.V. verifica-se em virtude de ter ocorrido uma alteração superveniente (em relação ao momento da assinatura do referido Contrato) das circunstâncias em que inicialmente foi celebrado entre as partes o negócio imobiliário referente aos prédios rústico (art.º matricial ...57... urbano (art.º matricial 475), sitos em ..., na freguesia de ..., concelho ... e distrito de .... Efectivamente, e como V.a Exas. muito bem sabem, tendo, entretanto, ocorrido recentemente um incêndio que "lavrou" na área onde se localizam os referidos prédios, tal veio a destruir toda a vegetação ali existente e dos arredores. De facto, temos na nossa posse fotos recentemente tiradas à propriedade rústica, na qual é por demais visível que a totalidade) das árvores e arbustos existentes na mesma, se encontram totalmente ardidas e destruídas pelo fogo, inclusivé com a força do fogo existem socalcos com os muros em pedra completamente desmoronados que criam um risco efectivo para quem se desloca á propriedade tendo-se, por isso, depreciado, em grande medida, o valor comercial dos referidos prédios que inicialmente pretendíamos adquirir a V.a Exas. Ora, logo que tomámos conhecimento de tal lamentável ocorrência, contactámos o vosso filho que reside em ..., ao qual a gerente da nossa sociedade transmitiu pessoalmente o justificado desinteresse na efectiva aquisição dos prédios, uma vez que os mesmos já não tinham o real valor pelo qual os pretendíamos comprar. Assim, e tendo, aquando da celebração do C.P.C.V., sido entregue a V.a Exas., pela nossa empresa, um valor a título de sinal e princípio de pagamento, no montante de € 15.000,00 (quinze mil euros), demos conta ao vosso filho de que pretendíamos que nos fosse devolvido em singelo tal valor face à resolução do Contrato (como, aliás, é de lei). Sucede que — para espanto nosso - alguns dias após esse contacto, fomos surpreendidos por uma carta que nos foi dirigida pelo V./Advogado Dr. MM a solicitar à nossa empresa a celebração do C.P.C.V. até ao final do corrente mês de Setembro. Nesse sentido e face ao supra exposto, vimos reiterar a V.a Exas. que consideramos o C.P.C.V. celebrado em 06/05/2017 resolvido por alteração superveniente das circunstâncias, o que legitima a devolução em singelo do sinal que vos foi entregue. Solicitamos, pois, a V.a Exas. que, no prazo máximo de 5 (cinco) dias, contados da recepção da presente carta, nos remetam cheque ou efectuem transferência bancária para a nossa conta, no aludido valor.”

13. No dia 02 de Outubro de 2017, a referida carta veio devolvida com a indicação de “recusada”.

14. No dia 24 de Outubro de 2017, os réus remeteram missiva à autora com os seguintes dizeres: “Em virtude, do contrato promessa de compra e venda outorgado entre nós e V. Exas, no qual lhes foi prometido vender os prédios, sitos em ..., freguesia de ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o artigo urbano ...75 rústico art....57, os quais prometeram comprar. E por mantermos o interesse no contrato prometido, pretendemos marcar dia e local para a outorga do contrato de compra e venda dos ditos imóveis (escritura pública de compra e venda). Assim, vimos designar o dia 10 de Novembro de 2017, pelas 11.30h, para efectivação da escritura de compra e venda no cartório notarial da .... NN, sito em Rua ... .... Toda a documentação de que careçam para a dita escritura encontra-se ao vosso dispor no dito cartório com a antecedência de cinco dias. Por outro lado, devem entregar no dito cartório com, pelo menos, dois dias de antecedência face à data designada o comprovativo de pagamento do IMT e imposto de selo e outros impostos da V/ responsabilidade, se os houver.”

15. No dia 10.11.2017, pelas 11h30, LL, na qualidade de legal representante da autora, compareceu no cartório notarial da Dr.ª NN, sito em Rua ... ..., o que fez consciente de que os réus não tinham recebido a missiva mencionada no ponto 12.

16. No dia 10.11.2017, pelas 11h30, os réus não compareceram no cartório notarial da Dr.ª NN, sito em Rua ... ....

17. Resulta do certificado notarial subscrito por NN que: “No dia dez de Novembro de dois mil e dezassete, pelas 11 horas e 30 minutos, esteve marcada neste Cartório, uma escritura de compra e venda em que seriam vendedores, BB, NIF ... e seu marido, AA, NIF ..., casados sob o regime de comunhão geral de bens, residentes na Rua ..., freguesia de ..., concelho ... e seria compradora a sociedade por quotas com a firma, "S..., Lda.", com sede no lugar ..., s/n, freguesia e concelho ..., matriculada na Conservatória do Registo Comercial ..., sob o núme.ro único de matricula e identificação de pessoa colectiva cinco, zero, nove, zero, seis, um, nove, nove, zero, com o capital social de cinco mil euros, e objecto da mesma compra e venda, o prédio rústico, composto por terra de pastagem, com a área de vinte mil metros quadrados, sito em ..., freguesia de ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número mil duzentos e treze/Freguesia de ..., inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo ...57, com o valor patrimonial tributário de €259,20 e o prédio urbano, composto por um edificio de  ... e  ..., destinado a habitação, com a superfície coberta de vinte metros quadrados, sito em ..., freguesia de ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número mil cento e quatro/Freguesia de ..., inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo ...75, com o valor patrimonial tributário de € 4640,00. Mais certifico que esteve presente neste Cartório, á hora marcada, apenas a representante da referida sociedade compradora, LL, casada, natural de ..., residente na Avenida ..., freguesia e concelho ..., titular do cartão de cidadão número ..., válido até 12/11/2020, emitido pela Republica Portuguesa, pelo que a escritura não se realizou por não terem aqui comparecido para o efeito, os mencionados vendedores."

18. No dia 09 de novembro de 2017, a autora remeteu missiva aos réus com os seguintes dizeres: “Tendo em conta que Vas Exas. se recusaram a recepcionar a nossa carta de 22/09/2017, tal como demonstra pelo talão de registo dos correios. Serve a presente para, por este meio, e uma vez mais, levar ao conhecimento de V.a Exas. a decisão ponderada e fundamentada que tomámos quanto à Resolução do Contrato-Promessa de Compra e Venda (C.P.C.V.) que foi celebrado no passado dia 06/05/1017 entre a nossa empresa "S..., Lda." e V. Exas.. Tal Resolução do C.P.C.V. verifica-se em virtude de ter ocorrido uma alteração superveniente (em relação ao momento da assinatura do referido Contrato) das circunstâncias em que inicialmente foi celebrado entre as partes o negócio imobiliário referente aos prédios rústico (art. 0 matricial ...57... urbano (art. 0 matricial 475), sitos em ..., na freguesia de ..., concelho ... e distrito de .... Efetivamente, e como Va.Exas. muito bem sabem, tendo, entretanto, ocorrido recentemente um incêndio que "lavrou" na área onde se localizam os referidos prédios, tal veio a destruir toda a vegetação ali existente e dos arredores. De facto, temos na nossa posse fotos recentemente tiradas à propriedade rústica, na qual é por demais visível que a totalidade das árvores e arbustos existentes na mesma, se encontram totalmente ardidas e destruídas pelo fogo, inclusivé com a força do fogo existem socalcos com muros em pedra completamente desmoronados que criam um risco efectivo para quem se desloca à propriedade tendo-se, por isso, depreciado, em grande medida, o valor comercial dos prédios que inicialmente pretendíamos adquirir a V.Exas.. Ora, logo que tomámos conhecimento de tal lamentável ocorrência, contactámos o vosso filho que reside em ..., ao qual a gerente da nossa sociedade transmitiu pessoalmente justificado desinteresse na efetiva aquisição dos prédios, uma vez que os mesmos já não tinham o real valor pelo qual pretendíamos comprar, Assim, e tendo, aquando da celebração do C.P.C.V. , sido entregue a V.Exas., pela nossa empresa, um valor a título de sinal e princípio de pagamento, no montante de € 15.000,00 € (quinze mil euros), demos conta ao vosso filho de que pretendíamos que nos fosse devolvido em singelo sinal tal valor face à resolução do Contrato (como, aliás, é de lei). Sucede que - para espanto nosso - alguns dias após esse contacto, fomos surpreendidos por uma carta que nos foi dirigida pelo V./Advogado Dr. MM a solicitar à nossa empresa a celebração do C.P.C.V. até ao final do corrente mês de Setembro. Nesse sentido e face ao supra exposto, vimos reiterar a V.a Emas, que consideramos o C.P.C.V. celebrado em 06/05/2017 resolvido por alteração superveniente das circunstâncias, o que legitima a devolução em singelo do sinal que vos foi entregue. Solicitamos, pois, a V.a Emas. que, no prazo máximo de 5 (cinco) dias, contados da recepção da presente carta, nos remetam cheque ou efectuem transferência bancária para a nossa conta, no aludido valor.”

19. Os réus receberam a aludida missiva no dia 14 de Novembro de 2017.

20. Os réus não responderam à referida missiva.

21. No dia 18 de Dezembro de 2017, a autora remeteu missiva aos réus com os seguintes dizeres: “Vimos, uma vez mais — e numa derradeira tentativa de resolver a situação em causa deforma extrajudicial - solicitar a V.a Exas. que procedam à devolução à nossa empresa do valor que vos foi entregue a título de sinal e princípio de pagamento, no montante de € 15.000,00 (quinze mil euros), no âmbito do Contrato-Promessa de Compra e Venda referente aos prédios rústico (art.º matricial ...57... urbano (art.º matricial 475), sitos em ..., na freguesia de ..., concelho ... e distrito de ..., de que são proprietários. Como é já sobejamente do V./conhecimento, no passado dia 22/09/2017 dirigimos uma carta a V.a Exas. comunicando-vos a resolução fundamentada do referido Contrato-Promessa celebrado entre a nossa empresa "S..., Lda." e V.a Exas., no passado dia 06/05/2017, em virtude da ocorrência da alteração superveniente das circunstâncias em que inicialmente foi celebrado o negócio imobiliário (sobre os prédios sitos em ...). Pese embora V.a Exas. tenham sido atempadamente informados da aludida resolução contratual, inexplicavelmente, tentaram, ainda assim, agendar uma escritura notarial no Cartório da Dra. NN, em ..., para o passado dia 10/11/2017, pelas 11H30. Ainda que a "S..., Lda.." não tivesse intenção em celebrar qualquer escritura de compra e venda, pelos motivos já oportunamente invocados, a mesma fez-se, ainda assim, representar pela respectiva representante legal, no intuito de, caso V.a Exas. persistissem injustificada e ilegalmente - em levar por diante tal celebração, poderem ser transmitidas à Notária as razões ponderosas pelas quais já não fazia sentido (naquela data) agendar a celebração de qualquer escritura, porquanto o Contrato-Promessa havia já sido resolvido. Ainda assim, e de acordo com o teor da Declaração emitida pela referida Notária, V.a Exas., não compareceram na data e hora que havia sido por vós agendada. Face ao supra exposto, solicitamos, uma vez mais, a V.a Exas. que, no prazo máximo de 5 (cinco) dias, contados da recepção da presente carta, nos remetam cheque ou efectuem uma transferência bancária para a nossa conta, no valor correspondente ao montante do sinal entregue (i .e., € 15.000,00). Decorrido que seja o prazo supra referido, sem que se mostre ter sido devolvida tal quantia, desde já informamos que iremos mandatar o nosso Advogado, no sentido de que o mesmo instaure, com a maior brevidade possível, uma acção cível contra V.a Exas., destinada à cobrança coerciva do valor do sinal em singelo.”

22. Os réus receberam a aludida missiva no dia 22 de dezembro de 2017.

23. Os réus não responderam à referida missiva.

24. Em 26 de Julho de 2018, os réus venderam os imóveis descritos no ponto 2 a OO pelo preço de 28000 euros.


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Factos não provados

Nada mais se provou com relevância para a decisão, designadamente que:

a. O incêndio que grassou em ..., na zona da ..., mencionado no ponto 9, dos factos provados, afectou muito levemente os imóveis descritos no ponto 2.

b. O incêndio que grassou em ..., na zona da ..., mencionado no ponto 9, dos factos provados, apenas queimou pasto, algumas mimosas e 06 eucaliptos, tudo num valor global inferior a 1000,00€.

c. Após o incêndio mencionado no ponto 9, dos factos provados, as construções existentes nos imóveis descritos no ponto 2 dos factos provados, nomeadamente os muros, ficaram em risco de ruína, criando risco para quem ali se deslocasse.

d. No mês de agosto de 2017, a representante legal da autora, LL abordou os réus, na pessoa de CC, filho dos réus, e propôs uma redução do preço, que os réus não aceitaram.

e. A autora transmitiu aos réus, na pessoa de CC, que, sem a redução do preço proposta, resolveria o contrato promessa descrito no ponto 2.

f. No final de Agosto de 2017, a representante legal da autora, LL, transmitiu aos réus que, em face do incêndio, só mantinha interesse nos imóveis descritos no ponto 2, caso os réus os vendessem pelo valor total de 20.000,00€ e que caso tal redução de preço não fosse aceite, resolvia o contrato promessa de compra e venda com devolução do sinal.

g. A autora não pagou o IMT nem o imposto de selo devido pela compra dos imóveis descritos no ponto 2.

h. Desde Agosto de 2017 que o réu se encontrava hospitalizado, não se podendo deslocar à sua habitação para receber as comunicações que lhe eram remetidas.

i. Os réus sempre pretenderam manter o contrato-promessa de compra e venda dos imóveis descritos no ponto 2 e apenas não compareceram no cartório mencionado no ponto 16 dos factos provados, na medida em que foram alertados que a autora apenas iria comparecer para expor os seus motivos em recusar celebrar o contrato prometido.

j. Os réus, após a resolução do contrato, mencionado no facto provado n.º2, por parte da autora, procederam à publicitação da venda dos imóveis descritos no ponto 2.

k. Os réus, após terem conhecimento de um comprador para adquirir os imóveis descritos no ponto 2., notificaram a autora para aferir se esta pretendia adquirir pelo mesmo preço proposto pelo dito comprador, tendo a autora recusado oferecer mais de 20.000,00€.

l. No verão de 2018, a vegetação dos imóveis descritos no ponto 2. tinha renascido e florescido, designadamente, os eucaliptos e as mimosas rebentaram, e o pasto cresceu de modo espontâneo.

m. A casa, construções e muros dos imóveis descritos no ponto 2. estão em perfeitas condições de uso e habitação, como sempre estiveram, as quais se mantêm sem qualquer intervenção/manutenção desde a data em que o contrato promessa descrito no ponto 2 foi celebrado.

n. A autora, com o negócio a que se alude no ponto 5, como sociedade que se dedica à compra de imóveis para revenda, pretendia com o dito negócio valorizar os imóveis descritos no ponto 2 e revendê-los.

 


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DA IMPUGNACÃO DA MATÉRIA DE FACTO

Vem a recorrente peticionar a reapreciação da matéria de facto dada como não provada sob as alíneas c), d) e e), requerendo que sejam estas alíneas dadas como provadas, pelos seguintes motivos:

-a alínea c), com fundamento no teor das fotografias juntas com a resposta à contestação, nomeadamente as juntas como documento ..., onde se constata a existência de restos de vegetação entre as pedras dos socalcos e as juntas como documentos 12, 13, 18, 25, 26 e 33 onde se percebe a existência de “rachadelas” no solo, com declive a partir das mesmas e que para lá do declive existem árvores ardidas; das demais fotografias resultam ainda imagens que atestam a existência de muros caídos (14, 18, 32, 34); tal matéria resulta das declarações de parte prestadas pela legal representante da A. e do depoimento da testemunha PP;

-as alíneas d) e e), com fundamento nas declarações de parte prestadas pela legal representante da A., do depoimento da testemunha PP e das declarações do habilitado CC.

Os recorridos, nas suas contra alegações, invocam não estarem cumpridos os requisitos formais para admissibilidade deste recurso, tendo em conta que não é indicado nas conclusões os meios de prova que imporiam decisão diversa.

Relativamente aos requisitos de admissibilidade do recurso quanto à reapreciação da matéria de facto pelo tribunal “ad quem”, estatui este preceito legal que:

«Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”

No que toca à especificação dos meios probatórios, «Quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (nº 2, al. a) do referido preceito legal).

No que respeita à observância dos requisitos constantes deste preceito legal, após posições divergentes na nossa jurisprudência, o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a pronunciar-se no sentido de que «(…) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória.» [1]

Assim, “O que verdadeiramente importa ao exercício do ónus de impugnação em sede de matéria de facto é que as alegações, na sua globalidade, e as conclusões, contenham todos os requisitos que constam do art. 640º do Novo CPC.

A saber:

- A concretização dos pontos de facto incorrectamente julgados;

- A especificação dos meios probatórios que no entender do Recorrente imponham uma solução diversa;

- E a decisão alternativa que é pretendida”.[2]

Ora, a recorrente nas suas alegações, indica as alíneas da matéria de facto não provada que pretende ver alteradas, passando o seu conteúdo para a matéria de facto assente e, indica ainda, em relação a cada alínea, os meios de prova que imporiam decisão diversa, nomeadamente as fotografias juntas aos autos, as declarações de parte da legal representante da A. e do R. habilitado CC, bem como o depoimento da testemunha PP.

Por último, indica as passagens da gravação que justificariam decisão diversa, como o impõe o nº2 a) do artº 640 do C.P.C.

Assim, devendo constar das conclusões a especificação dos factos que se pretende impugnar e as respostas alternativas que deverão ser dadas pelo tribunal ad quem, não se exige que nas conclusões se reproduza toda a apreciação probatória efectuada em sede de alegações, sob pena de as converter numa repetição destas. Apenas se exige que das alegações conste esta indicação dos meios probatórios a considerar e com cumprimento dos requisitos impostos pelo nº2 do artº 640 do C.P.C.

Pelo acima exposto, verifica-se que estão preenchidos os requisitos previstos no artº 640 nº1 e 2, a), do C.P.C. para a impugnação da matéria de facto, nada obstando ao conhecimento do recurso nesta parte.

Volvendo ao objecto da impugnação, alega a recorrente que, quer das fotografias juntas aos autos com os 12, 13, 18, 25, 26 e 33 quer das declarações da sua legal representante e da testemunha PP, resulta a existência de muros caídos no prédio rústico e urbano e de rachadelas do solo em socalcos, que criam risco a quem ali se desloque.

A este respeito, a primeira instância consignou como facto provado, no ponto 10, que os imóveis prometidos vender foram objecto do incêndio que lavrou nesse verão, tendo ardido toda a vegetação existente, não considerando, no entanto, como assentes a totalidade dos factos alegados como consequência deste incêndio, incluindo-os na matéria não provada sob a alínea c).

Para o efeito, efectuou a seguinte análise da prova produzida: “No que respeita à alínea c., da materialidade dada como não provada, não obstante as fotografias supra identificadas darem conta de um eventual risco (existência de restos de vegetação entre as pedras dos socalcos, bem como as denominadas rachadelas no solo, com declive a partir das mesmas, sendo que, para lá do dito declive, percepcionam-se árvores e arbustos que foram objecto do incêndio de 2017) e de muros caídos, a autora não logrou provar que tal realidade é sequente ao dito incêndio, isto é, que o alegado risco, mormente na vertente da segurança de quem circula nos imóveis ajuizados, surgiu após a celebração do contrato-promessa de compra e venda ajuizado, com a existência do dito incêndio, nos termos do artigo 342.º, n.º1, do Código Civil, pelo que se deu como não provada a referida alínea. Cumpre referir que das fotografias mencionadas, no que tange à edificação (parte urbana), apenas se percepcionam as paredes exteriores chamuscadas.”

Ouvido o depoimento da declarante de parte e da indicada testemunha, bem como as declarações da testemunha GG e as declarações de parte do habilitado na posição do falecido R., CC, decorre como certo que o fogo afectou os dois imóveis, que “queimou isto tudo” nas palavras deste último e que queimou toda a vegetação existente naqueles prédios. No entanto, o termo “vegetação” aqui empregue não corresponde totalmente à realidade do local, que engloba, como resulta destes depoimentos e das aludidas fotografias, eucaliptos, mimosas e outros arbustos aí existentes. Apesar da designação do prédio rústico constante da respectiva certidão predial, como terra de pastagem, a realidade é que, localizando-se em declive, nele era visível extenso arvoredo e inseria-se em zona de floresta que ardeu na sua totalidade após o incêndio. 

 Decorre ainda das declarações da representante legal da A. e das fotografias juntas aos autos, que este incêndio, para além de queimar o verde aí existente (vegetação e árvores) queimou igualmente muros. Destas fotografias, aqui confirmadas como pertencendo a este local, inclusive pela testemunha GG, resultam visíveis muros caídos, queimados e extensas rachadelas no solo decorrentes do incêndio. É igualmente certo que em relação ao estado anterior do prédio, pela declarante de parte que aí se deslocou em companhia do promitente vendedor AA, foi referido que se tratava de construção mantida, com árvores e arbustos de grande porte, que pretenderiam manter (ressalvados, por esse motivo, na cláusula 9ª do contrato) e que estes muros existentes na propriedade não estavam nessa ocasião, prévia ao fogo que aí lavrou, caídos, nem se apercebeu que estivessem em risco de derrocada. Se, em relação à parte urbana apenas se percepcionam paredes exteriores chamuscadas, das fotografias juntas, conjugadas com estas declarações de parte e com o próprio depoimento da testemunha QQ, resulta que os muros queimados e caídos resultam do incêndio, não sendo apontada qualquer outra causa para este estado.

Por outro lado, também se não vê razão para desconsiderar as declarações de parte prestadas pela legal representante da A., igualmente sujeitas à livre apreciação do tribunal, conforme dispõe o artº 466 nº3 do C.P.C.

Recorde-se que, no âmbito do anterior C.P. a parte estava impedida de depor como testemunha e só era admitido o seu depoimento, nos termos previstos no artº 552 do C.P.C., quando se visasse obter a confissão de factos desfavoráveis ao depoente. No entanto, conforme refere Pires de Sousa, “a inadmissibilidade da prestação de declarações de parte conduzia – com frequência – a assimetrias no exercício do direito à prova dificilmente compagináveis com o princípio da igualdade de armas ínsito no direito à prova. Constitui exemplo paradigmático o julgamento de acidente de viação em que o autor/condutor – por ser formalmente parte - não era ouvido quanto ao relato da dinâmica do acidente enquanto o segurado (e também condutor) da Ré (Seguradora) era sempre arrolado como testemunha. Por outro lado, existem factos integrantes do thema probandum que são por natureza revéis à prova documental, testemunhal e mesmo pericial, nomeadamente «factos de natureza estritamente doméstica e pessoal que habitualmente não são percecionados por terceiros de forma direta», factos respeitantes a «acontecimentos do foro privado, íntimo ou pessoal dos litigantes». No que tange a este tipo de factos demonstráveis por prova tendencialmente única, a recusa do tribunal em admitir e valorar livremente as declarações favoráveis do depoente pode implicar «uma concreta e intolerável ofensa do direito à prova, no quadro da garantia de um processo equitativo e da tutela jurisdicional efetiva dos direitos subjetivos e das demais posições jurídicas subjetivas.»[3].

 Assim se introduziu no novo CPC as declarações de parte, constando da respectiva exposição de motivos que “Prevê-se a possibilidade de prestarem declarações em audiência as próprias partes, quando face à natureza pessoal dos factos a averiguar tal diligência se justifique, as quais são livremente valoradas pelo juiz, na parte em que não representem confissão.

Sendo admitida a prestação de declarações das partes sobre factos pessoais de que tenham conhecimento, a credibilidade destas declarações, sujeitas à livre apreciação do tribunal, deve ser aferida em concreto, em conjunto com outros meios de prova juntos aos autos e efectuando uma análise crítica destes depoimentos, sem que o julgador os possa desconsiderar, à partida, por provindos de quem tem interesse na causa, sob pena “de esvaziarmos a utilidade e a potencialidade deste novo meio de prova e de nos atermos, novamente, a raciocínios típicos da prova legal”. [4] [5]

Por assim ser, devem ser valoradas pelo tribunal nos mesmos moldes que são valorados outros meios de prova, igualmente sujeitos à livre apreciação do julgador: de acordo com regras de experiência, de verosimilhança e por a sua veracidade decorrer do confronto com outros meios de prova, o que, no caso em apreço, resulta visível do teor das fotografias juntas aos autos e do depoimento da testemunha GG.

Por último, que a existência de muros queimados e caídos, a par das rachadelas no terreno, resultado do calor intenso do incêndio, dos restos de árvores queimadas aí visíveis, num terreno em declive, cria risco a quem aí se desloca, é uma presunção lógica a retirar destes factos.

Assim sendo, dá-se como assente um novo facto com o nº 10-A com a seguinte redacção:

10-A. Após o incêndio mencionado no ponto 9, dos factos provados, as árvores e as construções existentes nos imóveis descritos no ponto 2 dos factos provados, nomeadamente os muros, ficaram queimados, existindo muros caídos que, a par dos restos de árvores e vegetação ardida, criam risco para quem ali se desloque.

No que se reporta às alíneas d) e e), funda a recorrente a sua discordância com base nas suas declarações e do outro interveniente nestes contactos CC.

A este respeito o tribunal recorrido, fez consignar que, referindo-se às missivas dadas como assentes nos pontos 18 e 21 que “Perante o teor das duas missivas supra descritas, verificamos que, não obstante em sede de depoimento de parte, a legal representante da autora ter declarado que propôs ao réu habilitado CC uma atenção para efeitos de concretização do negócio, isto é, uma alteração do acordado no contrato promessa ajuizado: redução do preço, tal não foi corroborado pela demais prova produzida (o réu habilitado CC negou que a autora lhe tenha solicitado uma alteração do aludido contrato, após o incêndio, tendo referido que a legal representante da autora apenas lhe disse que “temos de falar”). Em face dos documentos acima descritos, constata-se uma realidade oposta (“justificado desinteresse na efectiva aquisição dos prédios) ao declarado pela legal representante da autora, em sede de depoimento de parte. Resulta da primeira missiva que a autora informou que tinha transmitido pessoalmente o desinteresse na aquisição dos prédios: “logo que tomámos conhecimento de tal lamentável ocorrência, contactámos o vosso filho que reside em ..., ao qual a gerente da nossa sociedade transmitiu pessoalmente justificado desinteresse na efetiva aquisição dos prédios, uma vez que os mesmos já não tinham o real valor pelo qual pretendíamos comprar, Assim, e tendo, aquando da celebração do C.P.C.V. , sido entregue a V.Exas., pela nossa empresa, um valor a título de sinal e princípio de pagamento, no montante de € 15.000,00 € (quinze mil euros), demos conta ao vosso filho de que pretendíamos que nos fosse devolvido em singelo sinal tal valor face à resolução do Contrato.” A este propósito, o réu habilitado CC mencionou, em sede de declarações de parte, uma proposta da autora, já no ano de 2018, de €20.000,00, quando alegadamente os réus colocaram os imóveis ajuizados à venda, sendo que, neste ponto, em face do acima exposto, tal proposta não se afigura verosímil (não tendo sido corroborado pela demais prova produzida, como se constata). Refira-se que LL aludiu, em sede de depoimento de parte, à intenção de realizar o negócio, no dia da escritura, caso tivesse oportunidade de falar com os filhos dos réus originários e ser alterado o dito preço. Ora, tal ponto não foi igualmente valorado, na medida em que, para além de não encontrar respaldo na demais prova produzida, foi contraditado pela missiva subscrita pela própria. Como resulta da segunda missiva, a legal representante da autora informou os réus que: “Pese embora V.a Exas. tenham sido atempadamente informados da aludida resolução contratual, inexplicavelmente, tentaram, ainda assim, agendar uma escritura notarial no Cartório da Dra. NN, em ..., para o passado dia 10/11/2017, pelas 11H30. Ainda que a "S..., Lda.." não tivesse intenção em celebrar qualquer escritura de compra e venda, pelos motivos já oportunamente invocados, a mesma fez-se, ainda assim, representar pela respectiva representante legal, no intuito de, caso V.a Exas. persistissem injustificada e ilegalmente - em levar por diante tal celebração, poderem ser transmitidas à Notária as razões ponderosas pelas quais já não fazia sentido (naquela data) agendar a celebração de qualquer escritura, porquanto o Contrato-Promessa havia já sido resolvido.”

Desta forma, em face destes dois documentos subscritos pela própria legal representante da autora, o Tribunal deu como não provadas as alíneas d. a f., da materialidade dada como não provada.”

Concorda-se com a fundamentação expressa pelo Tribunal a quo. É a legal representante da A., em sede de declarações de parte que afirma não ter proposto qualquer redução do preço dos imóveis. A “atenção” que referiu pretender fosse feita no preço dos imóveis, não encontra respaldo em nenhuma das missivas enviadas, sendo certo que não se vê obstáculo para, assim o pretendendo, a A. comunicar, da mesma forma que comunicou a resolução do contrato por alteração das circunstâncias aos promitentes-vendedores, a pretendida redução que entendia dever ser feita ao negócio.

Mantém-se assim estas duas alíneas na matéria de facto não assente.


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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Por último, vem a recorrente impugnar a decisão proferida pelo tribunal a quo, alegando nas suas conclusões I, VIII e XIX, três ordens de razões:

-a nulidade do contrato, por violação do disposto no nº 3 do artigo 410 do Código Civil, por falta de reconhecimento das assinaturas e de certificação, pela entidade que realiza aquele reconhecimento, da existência da respectiva licença de utilização ou de construção;

-a alteração anormal das circunstâncias, por via do incêndio que destruiu por completo a vegetação e deixou em risco de ruína os muros e danificada a construção existente, que possibilita a resolução do contrato pela promitente compradora;

-o incumprimento definitivo do contrato pelos RR., por terem designado escritura pública à qual não compareceram, caso se não entenda como lícita a resolução por alteração anormal das circunstâncias (apesar de concluir invertendo o pedido formulado a sua p.i., o que se afigura inadmissível face ao disposto no artº 265 do C.P.C.).

Cumpre-nos assim apreciar a primeira questão colocada que, pese embora não invocada nem conhecida em primeira instância, nem ser de conhecimento oficioso[6] (constituindo assim uma nulidade atípica, cfr, resulta do disposto na parte final do nº3 do artº 410 do C.C.), pode ser invocada e apreciada a todo o tempo, até ao trânsito em julgado da decisão, pelo promitente-comprador.

Da nulidade do contrato promessa, por violação dos requisitos previstos no artº 410 nº3 do C.C.

 

Estatui o artº 410 nº1 do C.C. que aplicam-se ao contrato promessa as normas disciplinadoras do contrato prometido (princípio da equiparação), excepto as relativas à forma e aquelas que, pela sua razão de ser se não devam considerar extensivas a este contrato.

No que respeita à forma, deve distinguir-se o regime geral do contrato promessa do regime específico respeitante à promessa de transmissão ou constituição de direito real sobre edifício, ou fracção autónoma dele. Neste ultimo caso, resulta do disposto no nº3 do citado preceito legal, a exigência de forma escrita e o reconhecimento presencial das assinaturas do promitente ou promitentes e a certificação, pela entidade que realiza aquele reconhecimento, da existência da respectiva licença de utilização ou de construção.

A omissão destes requisitos respeitantes à forma determina, em regra, a nulidade do contrato (cfr. artº 220 do C.C.). No entanto, decorre do preceito acima citado que apenas pode invocar a nulidade o promitente –comprador, não podendo ser invocada pelo contraente que promete transmitir ou constituir o direito, excepto quando a mesma tenha sido culposamente causada pela outra parte, cabendo então àquele que invoca a nulidade o ónus de prova dos respectivos factos (artº 342 nº2 do C.C.).

Assim, conforme refere MENEZES CORDEIRO[7], o afastamento do regime geral da nulidade “…dá-se, apenas, no tocante à legitimidade para alegar a dita nulidade: o promitente-vendedor não o pode fazer, salvo se o promitente-comprador, lhe tiver dado directamente origem” pelo que “…o final do artigo 410.º, n.º 3, comina um dever, ao promitente-vendedor, de promover a realização das formalidades por ele introduzidas. Se o não fizer, há nulidade do contrato, que não pode invocar. Se o promitente-comprador obstruir a verificação das formalidades, então a sanção é a de uma comum nulidade, invocável por qualquer interessado.

Porque estabelecido essencialmente no interesse do beneficiário da promessa de constituição ou transmissão do direito real e assim afastada do conhecimento oficioso, ou da invocação por terceiro, prevê-se neste preceito legal um regime de nulidade atípica, que se afasta do regime geral das nulidades previstas no artº 286 do C.C., apenas invocável pelo promitente vendedor caso demonstre a culpa da outra parte na omissão dos requisitos legais, sem prejuízo, num caso e noutro, da preclusão deste direito por via de eventual abuso de direito daquele que se pretende valer da nulidade. Com efeito, como refere CALVÂO DA SILVA, “não estão em causa interesses gerais da sociedade e do comércio jurídico, mas tão só interesses do promitente comprador, a merecer, na óptica legislativa protecção- protecção que embora sub-espécie de “classe social” ou categoria contratual, não deixa de ser particular e individual.”[8]

A A. é a promitente compradora, não estando assim abrangida pela restrição da parte final deste preceito, podendo invocar a todo o tempo a aludida nulidade decorrente da falta de reconhecimento das assinaturas e da certificação pela entidade competente da existência de licença de habitação, ou sua isenção.

No entanto, do aludido contrato promessa resulta que ambas as partes dispensaram o reconhecimento notarial das suas assinaturas, renunciando a invocar a nulidade decorrente da falta do reconhecimento das assinaturas e, quanto à licença de habitação, fizeram constar da clausula 5ª que os promitentes-vendedores se comprometiam a obter, em data prévia à escritura, a licença de habitabilidade para o imóvel urbano, destinado à habitação, ou certidão demonstrativa da sua isenção[9].

Relativamente à falta de reconhecimento notarial das assinaturas, decorre da redacção deste preceito legal que o interesse que aqui se visa proteger é essencialmente o interesse da parte considerada mais fraca, ou seja, o promitente-comprador. Já a exigência de certificação da licença de habitação ou construção, ou da sua isenção, para além deste interesse particular, visou, essencialmente, o combate à construção clandestina, verificando-se esta nulidade apenas naqueles casos em que esta licença não se mostra dispensada pela antiguidade do imóvel. E, se entendemos, em concordância com Calvão da Silva,[10] que não é susceptível de renúncia antecipada o direito de invocar a nulidade do contrato com fundamento na falta dos respectivos requisitos legais[11], pode esta ser passível de sanação ou convalidação, até à data de conclusão do contrato definitivo[12]. Sanação que as partes previram e fizeram constar na clausula 5ª deste contrato.

Nestes termos, embora o dever de recolha e de reconhecimento das assinaturas e de certificação da licença de construção ou da sua isenção caiba ao promitente-vendedor, a arguição da nulidade em causa, por parte da A., sociedade comercial que se dedica precisamente à compra e venda de bens imóveis e que, portanto, dificilmente pode ser considerada a parte mais fraca, constitui um manifesto abuso de direito na modalidade do venire contra factum próprium.

Com efeito, o abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”, caracteriza-se pelo exercício de uma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente. Traduz-se afinal, num acto ilegítimo, consistindo como refere CUNHA DE SÁ[13]a sua ilegitimidade num excesso de exercício de um certo e determinado direito subjectivo”, ultrapassados os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo próprio fim social e económico do direito, conforme decorre do artº 334 do C.C. 

Assim, o ponto de partida do venire, como refere BAPTISTA MACHADO,[14] consiste na adopção de uma conduta por um sujeito jurídico que, “objectivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também, no futuro, se comportará, coerentemente, de determinada maneira”, podendo “tratar-se de uma mera conduta de facto ou de uma declaração jurídico-negocial que, por qualquer razão, seja ineficaz e, como tal, não vincule no plano do negócio jurídico”.

É, no entanto, necessário que esta conduta tenha criado na contraparte uma situação de confiança, que essa situação de confiança seja justificada e que, com base nessa situação de confiança, a contraparte tenha actuado de determinada forma. Conforme refere MENEZES CORDEIRO[15], é necessário que se verifiquem os seguintes pressupostos:

“(...) 1.° Uma situação de confiança, traduzida na boa-fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium);

2.° Uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis;

3.° Um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade na base do factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara;

4.° Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível.

A conduta da A. que deu o seu acordo a esta dispensa de reconhecimento das assinaturas, que previu a sanação da falta de certificação da licença de habitação, que nunca suscitou esta nulidade e que, inclusive procedeu à resolução deste contrato promessa, invocando a alteração anormal das circunstâncias, viola os deveres de boa fé e é contraditória com a declaração de resolução comunicada aos RR. e com o pedido formulado de licitude desta resolução, que pressupõe a existência de um negócio válido.

Improcede assim a arguição da nulidade deste contrato.

Da alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a sua decisão de aquisição dos imóveis, objecto do contrato promessa.   

A recorrente invoca ainda que, por via de um incêndio florestal que grassou nessa região e que afectou os dois imóveis, tendo destruído toda a vegetação e arvoredo existente e danificado os muros e paredes do prédio urbano, após a celebração do contrato-promessa de compra e venda, se verificou uma alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a sua decisão de contratar, que lhe possibilita o direito a ver resolvido o contrato em apreço.

A este respeito considerou a decisão proferida em primeira instância que “No caso concreto em apreciação, consideramos que existe uma alteração que até pode revelar uma limitação do interesse original que presidiu ao contrato promessa ajuizado, mas não consubstancia uma alteração anormal ou invulgar das circunstâncias, de molde a suportar a resolução do dito contrato (considerando-se ainda o risco ligado à própria natureza do negócio em causa). Por sua vez, não ficou demonstrado, nem alegado, que a base do negócio, a decisão de contratar, se fundou nessas circunstâncias alegadas pela autora (basta atentar que o objecto do contrato-promessa foram dois imóveis, um rústico e um urbano, imóvel esse que não “desapareceu” com o incêndio ajuizado – cfr., facto provado n.º2 e alínea c. da materialidade dada como não provada).”

A protecção dos contraentes, no caso de se verificar uma alteração superveniente e anormal das circunstâncias em que estes fundaram a sua decisão de contratar, encontra acolhimento no artº 437 do C.C.

Prevê este preceito legal que qualquer das partes outorgantes num contrato em execução ou com prestações duradouras, tenha o direito de proceder à sua resolução no caso de ocorrer uma alteração das circunstâncias vigentes à data da sua celebração, desde que:

(i) a alteração considerada relevante diga respeito a circunstâncias em que se alicerçou a decisão de contratar, isto é, a circunstâncias que, ainda que não determinantes para ambas as partes, se apresentem como evidentes, segundo o fim típico do contrato, ou seja, que se encontrem na base do negócio, com consciência de ambos os contraentes ou razoável notoriedade – «como representação mental ou psicológica comum patente nas negociações (base subjetiva), ou condicionalismo objetivo apenas implícito, porque essencial ao sentido e aos resultados do contrato celebrado (base objetiva);

(ii) que essas circunstâncias fundamentais hajam sofrido uma alteração anormal, isto é, imprevisível ou, ainda que previsível, afetando o equilíbrio do contrato;

(iii) que a estabilidade do contrato envolva lesão para uma das partes, quer porque se tenha tornado demasiado onerosa, numa perspetiva económica, a prestação dessa parte (conquanto não se exija que a alteração das circunstâncias coloque a parte numa situação de ruína económica), quer porque a alteração das circunstâncias envolva, para o lesado, grandes riscos pessoais ou excessivos sacrifícios de natureza não patrimonial;

(iv) que a manutenção do contrato ou dos seus termos afete gravemente os princípios da boa-fé negocial;

(v) que a situação não se encontre abrangida pelos riscos próprios do contrato, isto é, que a alteração anómala das circunstâncias não esteja compreendida na álea própria do contrato, ou seja, nas suas flutuações normais ou finalidade ou nos riscos concretamente contemplados pelas partes no acordo contratual celebrado.[16]
Constitui esta previsão uma manifestação da clausula rebus sic standibus, de acordo com a qual qualquer alteração das circunstâncias existentes no momento da celebração do contrato, deve relevar para a sua extinção e uma excepção ao princípio pacta sunt servanda.
O princípio da necessidade de segurança jurídica e estabilidade nas relações contratuais, deve ceder perante uma mudança anormal e imprevisível das circunstâncias em que as partes se vincularam, desde que essa mudança, conforme refere ALMEIDA COSTA[17], “torne excessivamente oneroso ou difícil para uma delas o cumprimento daquilo a que se encontre obrigada, ou provoque um desequilíbrio acentuado entre as prestações correspectivas, quando se trate de contratos de execução diferida ou de longa duração. Nestas situações, às vantagens da segurança, aconselhando a rigorosa aplicação do princípio da estabilidade, opõe-se um imperativo de justiça, que reclama a resolução ou modificação do contrato”.
Por assim ser, só face a alterações anormais, relevantes e ofensivas da boa fé contratual, se permite que a parte prejudicada com o cumprimento do contrato possa exigir a sua modificação de acordo com as novas circunstâncias com as quais não contava nem podia contar, pela sua imprevisibilidade, à data da celebração do contrato, ou a sua resolução. Não estatuindo a lei o que constitui “alteração anormal”, para efeitos da aplicação deste instituto jurídico, é por via da concretização jurisprudencial e doutrinária que se terá de preencher este conceito.
Assim, a este respeito, a nível doutrinário esclarece ALMEIDA COSTA[18] que a “alteração anormal caracteriza-se pela excecionalidade: é a anómala, a que escapa à regra, a que produz um sobressalto, um acidente, no curso ordinário ou série natural dos acontecimentos.
Por sua vez, MENEZES LEITÃO[19] defende que “Situações excepcionais como uma revolução ou o deflagrar de um estado de guerra podem facilmente ser qualificados como alteração das circunstâncias (…) Alterações legislativas completamente inesperadas também devem ser qualificadas como tal. Já outras hipóteses como a simples alteração do preço dos produtos comercializados ou a não obtenção das autorizações administrativas necessárias não preencherão o requisito da anormalidade.
Na jurisprudência considerou-se como constituindo alteração anormal das circunstâncias, a crise económica de 2008, que afectou o negócio do imobiliário e construção[20], o registo de acção judicial em que se peticiona a declaração de nulidade ou inexistência jurídica do contrato de dação que esteve na origem da inscrição da propriedade do imóvel objeto do contrato promessa a favor da Ré, promitente vendedora[21], a alteração da legislação existente à data do negócio, acontecimentos políticos ou a modificação repentina do sistema económico vigente[22] e bem assim a crise pandémica decorrente da Covid 19 com paralisação de toda a actividade económica.[23]
Em qualquer caso, dessa alteração terá de resultar um desequilíbrio do contrato, de tal forma desproporcionado aos interesses das duas partes e aos fins visados, que a exigência de cumprimento do contrato tal como inicialmente equacionado, afectaria gravemente as exigências de boa-fé contratual.
Importa ainda considerar que a alteração anormal das circunstâncias não pode estar coberta pelos riscos próprios do contrato e deve respeitar a ambos os contraentes. Como refere GALVÃO TELLES, “As aludidas circunstâncias constituem a base do negócio. Mas a base do negócio apresenta-se aqui, quanto à configuração e ao regime, como algo de diverso da base do negócio em matéria de erro. A base do negócio no domínio do erro tem carácter subjectivo, porque se traduz na falsa representação psicológica da realidade. A base do negócio no domínio da alteração das circunstâncias tem carácter objectivo, visto não se reconduzir a uma imaginária falsa representação psicológica da manutenção de tais circunstâncias. (…) A base do negócio no erro é unilateral: respeita exclusivamente ao errante. A base do negócio na alteração das circunstâncias é bilateral: respeita simultaneamente aos dois contraentes”.[24]
Tendo em mente estes preceitos, decorre dos factos assentes que tenha existido uma alteração anormal, imprevisível e inesperada das circunstâncias em que as partes fundaram a sua decisão de contratar, como pretende a apelante?

Ao contrário do que considerou o tribunal recorrido, a resposta, face aos factos adquiridos nos autos, tem de ser afirmativa. Com efeito, resultou dos factos provados nºs 9, 10 e 10-A que celebrado contrato promessa de compra e venda de dois imóveis pelo preço global de € 45.000,00 em Maio de 2017, poucos meses decorridos, em 14 Agosto, deflagrou um incêndio florestal de grandes dimensões que cercou ..., tendo os imóveis prometidos vender sido objecto deste incêndio, ficando queimada toda a vegetação e arvoredo existente, queimados e derrubados muros que, a par dos restos de árvores e vegetação ardida, criam risco para quem ali se desloque.

Tratou-se de um acontecimento imprevisível, anormal, não expectável por qualquer dos contraentes e que não se insere nos riscos próprios, normais, do contrato promessa de compra e venda de imóveis, como o seria a eventual desvalorização ou valorização destes imóveis, fruto de oscilações cíclicas de mercado. Com efeito o risco é inerente à contratação, pelo que o dano superveniente é aquele que ultrapassa essa margem de risco. E, embora até à transmissão da coisa, o risco pela sua deterioração corra por conta do transmitente (artº 796 do C.C.), neste caso da promessa de constituição deste direito, este risco inerente ao contrato definitivo, não se pode considerar como integrado na álea deste contrato.[25]

Por outro lado, a essencialidade destes imóveis com esta configuração decorre da clausula 9ª do contrato promessa. Outra leitura se não pode retirar do facto de nele se fazer constar que até à data da celebração da escritura pública, os promitentes vendedores não poderiam proceder “a qualquer corte ou abate, total ou parcial de qualquer uma das árvores, integrante nos imóveis.”

Por último, quanto ao critério da onerosidade excessiva, há que considerar que a alteração anormal é aquela que, sendo extraordinária e imprevisível, desequilibra a relação contratual com particular intensidade, de molde a que o cumprimento do contrato se torne excessivamente oneroso. Com efeito, sem esta exigência decorrente do princípio da certeza e segurança jurídica, tornar-se-ia impossível, nos dizeres de OLIVEIRA ASCENSÃO[26]a vida jurídica se todos os negócios pudessem ser revistos, ao sabor das alterações da realidade subjacente, que incessantemente evolui. Mesmo que essas alterações sejam extraordinárias. A vida jurídica exige estabilidade. (…) A ordem jurídica traduz exuberantemente esta constrição: só admite intervenções fundadas na desproporção, na injustiça do conteúdo em casos em que o desequilíbrio seja manifesto.” Que o cumprimento deste contrato pelo contraente promitente-comprador, nas condições acordadas, se torna excessivamente oneroso, e que a exigência de cumprimento nestas condições contratadas viola os princípios da boa-fé, decorre do teor dos factos provados nºs 10 e 10-A e do facto provado nº 23.

Não só os imóveis prometidos vender não apresentam já as mesmas características, como o seu valor decaiu para os € 28.000,00, o que corresponde a pouco mais de ½ do valor inicial, prévio ao incêndio ocorrido.

Visa-se afinal com a possibilidade de modificação do contrato ou da sua resolução, no caso de ocorrer a alteração anormal das circunstâncias, estabelecer o equilíbrio das prestações, possibilitando à parte ou partes prejudicadas a legitimidade para requerer a resolução do contrato. Propendemos, no entanto, para a solução aventada por OLIVEIRA ASCENSÂO,[27] de que o direito à resolução do contrato depende de a parte, em consequência da alteração anormal das circunstâncias, perder o interesse objectivo na sua celebração.

Ora, a perda do interesse objectivo na celebração do contrato resulta do teor dos pontos 10, 10-A, 23 e da cláusula 9ª do contrato promessa em causa. É questão, no entanto, que não releva para o caso em apreço, pois que os RR. não responderam à comunicação efectuada pela A., nem a ela manifestaram oposição, tendo inclusive alienado o bem a terceiro. Não há assim que considerar a possibilidade de modificação do contrato, pois que este não pode já ser cumprido, nem os RR. manifestaram esta intenção.

Por último, a resolução do contrato com fundamento na alteração anormal das circunstâncias opera mediante declaração extrajudicial, dirigida à outra parte (declaração receptícia, como é entendimento maioritário da doutrina[28] e jurisprudência, comunicação expedida pela A. e recepcionada pelos RR., pelo que nos termos previstos no artº 437, 433 e 289 do C.C., nada obstando à resolução, impõe-se a restituição do prestado, ou seja a restituição dos € 15.000 entregues pela A., acrescidos dos respectivos juros desde a data concedida para restituição deste montante aos RR. na comunicação expedida e recepcionada a 22/12, ou seja, 27/12/2017, à taxa legal de 4%, aplicável ás obrigações civis e até integral pagamento.

Procede assim, este segmento da apelação interposta pela A.


***

DECISÃO


Pelo exposto, acordam os juízes desta relação em julgar parcialmente procedente a apelação interposta pela A. e nessa sequência:

I-julgam improcedente a arguição de nulidade do contrato-promessa de compra e venda celebrado entre A. e RR., em 6 de Maio de 2017;

II-revogam a decisão recorrida, condenando os RR.:

- a reconheceram a licitude da resolução deste contrato-promessa de compra e venda, por alteração anormal das circunstâncias e, em consequência

-a devolver à autora o sinal recebido no valor de 15.000 euros, acrescido de juros vencidos e vincendos, à taxa aplicável aos juros civis, desde 27/12/17, até integral pagamento.

*
 
As custas fixam-se em 90% para os RR. e 10% para a A. (artº 527 nº1 do C.P.C.)

Coimbra 17/03/22


[1] Ac. STJ de 01.10.2015, proc. 824/11.3TTLRS.L1.S1, Ana Luísa Geraldes; Ac. STJ de 14.01.2016, proc. n.º 326/14.6TTCBR.C1.S1, Mário Belo Morgado; Ac. STJ de 11.02.2016, proc. n.º 157/12.8TUGMR.G1.S1, Mário Belo Morgado; Ac. STJ, datado de 19/2/2015, proc. nº 299/05, Tomé Gomes; Ac. STJ de 22.09.2015, proc. 29/12.6TBFAF.G1.S1, 6ª Secção, Pinto de Almeida; Ac. STJ, datado de 29/09/2015,proc. nº 233/09, Lopes do Rego; Acórdão de 31.5.2016, Garcia Calejo, proc. nº 1572/12; Acórdão de 11.4.2016, Ana Luísa Geraldes, proc. nº 449/410; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.1.2015, Clara Sottomayor, proc. nº 1060/07.
[2] Ac. STJ. de 03.03.2016, Ana Luísa Geraldes, proc. nº 861/13.3TTVIS.C1.S

[3] PIRES de SOUSA, Luís Filipe, AS DECLARAÇÕES DE PARTE. UMA SÍNTESE (WWW.TRL.MJ.PT) apud ELIZABETH FERNANDEZ, “Nemo Debet Essse Testis in Propria Causa? Sobre a (in)Coerência do Sistema Processual a Este Propósito”, in Julgar Especial, Prova Difícil, 2014, págs. 22 e 27 e 37 e REMÉDIO MARQUES, João Paulo “A Aquisição e a Valoração Probatória de Factos (Des) Favoráveis ao Depoente ou à Parte”, in Julgar, jan-abr. 2012, Nº16, págs. 167 e 168.
[4] PIRES de SOUSA, Luís Filipe, Prova Testemunhal, 2013, Almedina, págs. 364.
[5] Vidé ainda os Acs. deste Tribunal da Relação de Lisboa de 26/04/17, proferido no proc. nº 18591/15.0T8SNT.L1-7; do TRC de 05/06/18, proferido no proc. nº 1817/08.3TBPBL.C1, no qual se considera que cumpre ao ao julgador algum cuidado na análise crítica e valoração dessas declarações, as quais, no seu final, - e como meio legítimo de prova que são e com a força probatória que é idêntica àquelas outras provas igualmente sujeitas à livre apreciação do tribunal –, tanto poderão merecer do julgador muita, como pouca ou nenhuma credibilidade. (Cfr. nesse sentido, e por todos, Ac. da RG de 02/05/2016, in “proc. 2745/15.1T8VNFA.G1, disponível em dgsi.pt); por sua vez em Ac de 13/09/18, proferido no TRG, no proc. nº 159/17.8T8FAF.G1 é aceite que “em última instância, nada obsta a que as declarações de parte constituam o único arrimo para dar certo facto como provado desde que as mesmas logrem alcançar o standard de prova exigível para o concreto litígio em apreciação”.
[6] Conforme Assento do STJ 3/95, de 1 de Fevereiro de 1995, publicado no Diário da República n.º 95/1995, Série I-A de 1995-04-22, páginas 2320 - 2323. Conforme refere ALMEIDA COSTA, In R.L.J., 127°, pág. 339, referindo-se ao valor dos assentos após a alteração decorrente do disposto no art° 17° do DL. n°329-A/95, de 12/12, assumem estes a função de “assegurar a uniformidade da jurisprudência” no sentido da não impugnabilidade da falta dos aludidos requisitas por terceiros. Certo que tais assentos respeitam directamente à redacção atribuída pelo DL. nº 236/80, como neles expressamente se consignou: mas crê-se incontroverso que a sua disciplina se aplica igualmente à actual redacção, introduzida pelo DL. nº 379/86, dado que existe identidade da solução normativa”.  
[7] O Novo Regime do Contrato-Promessa (Comentário às alterações aparentemente introduzidas pelo Decreto-Lei nº 236/80, de 18 de Julho, ao Código Civil), Lisboa, 1981, págs. 13 e 14.
[8] CALVÃO DA SILVA, João, Sinal e Contrato Promessa, 2010, 13ª ed., Revista e Aumentada, Almedina, págs.72/73; secundando esta posição, apenas quanto à falta de reconhecimento das assinaturas, ALMEIDA COSTA, Mário Júlio, Contrato Promessa, Uma Síntese do Regime Actual, págs. 37 a 39, disponível online in https://portal.oa.pt/upl/%7B7eefc156-7f1f-44e7-9ee9-d56352c0ca98%7D.pdf .
 
[10] Ob. cit, pág. 77, considerando que “seria nula a cláusula pela qual promitente-comprador renunciasse antecipadamente, ao direito de invocar a nulidade, para salvaguarda da ordem pública de protecção ou ordem pública social que ditou a norma legal, ou seja, para proteger da sua própria fraqueza e inexperiência, ligeireza e inadvertência, na tomada de decisão temporã, em branco. A admitir-se a validade da cláusula pela qual o promitente-comprador renuncia antecipadamente ao direito de arguir a nulidade, estaria aberta a porta para, com a maior das facilidades, os promitentes-vendedores incluírem nas promessas uma cláusula de estilo, em que as partes declarariam prescindir das formalidades impostas pelo art. 410º n°. 3, renunciando à invocação da respectiva omissão e, assim sabotar o sentido e fim de uma norma de protecção da parte mais fraca, o consumidor. Tanto mais incoerente quanto o art. 830 n°3 vem também impor a irrenunciabilidade antecipada ao direito de exigir a execução específica e a Lei de Defesa do Consumidor é imperativa nos direitos conferidos».
[11] Não é no entanto, posição uniforme na jurisprudência. No sentido da validade da cláusula de renúncia antecipada vide Ac. do STJ de 17/12/01, relator Dionísio Rocha, proferido no proc. nº 02B1948, Ac. do TRP de 29/05/2007, relator Jorge Arcanjo, proferido no proc. nº 604/04.2TBMMV-A.C1 e Ac. do TRP de 09/10/12, relator Rodrigues Pires, proferido no proc. nº 7883/10.4TBVNG.P1, considerando este ultimo que “Estando a nulidade acima referida na disponibilidade das partes, nada impede que, prevendo tal efeito jurídico, ambas as partes (ou apenas uma delas) renunciem antecipadamente, de forma expressa ou tácita, ao direito de invocá-la e essa renúncia é perfeitamente válida, tanto quanto é certo que o direito de pedir a anulação não se mostra abrangido pela disposição restritiva do art. 809 do Cód. Civil.” Em sentido contrário, vide Acs. do STJ de 04/07/2013, relator Pires da Rosa, proferido no proc. nº 176/03.5TBRSD.P1S1, considerando que “Não obstante do contrato-promessa constar que se dispensa o reconhecimento das assinaturas, e que a nenhuma das partes outorgantes é lícito invocar qualquer nulidade, seja a que título for, designadamente daí adveniente, uma cláusula com este teor é nula por contrariar uma norma de interesse e ordem pública, que pretende defender os promitentes compradores – normalmente a parte mais fraca – contra a sua fraqueza negocial”, secundando posição já seguida nos Ac. do STJ de 05/07/2007, relator Oliveira Rocha, proferido no proc. nº 07B2027 e de 08.06.2010, Relator Lopes do Rego, proferido no Proc. nº3161/04.6TMST.LI.Sl, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[12] Neste sentido vide ANA PRATA, O Contrato Promessa e o Seu Regime Civil, pág.526 e segs.
[13] CUNHA DE SÁ, Fernando Augusto, Abuso de Direito, 2ª reimpressão, 2005, Almedina, pág. 103.
[14] Obra Dispersa, I, 415 e ss.
[15] Revista da Ordem dos Advogados, Ano 58, Julho 1998, pág. 964
[16] Acórdão do T.R.L. de 03/07/2007, Processo n.º 648/2007-1, relator Rui Vouga, disponível in www.dgsi.pt.
[17] ALMEIDA COSTA, Mário Júlio, Direito das Obrigações, 10ª edição, Almedina, pág. 323.
[18] Ibidem, pág. 299.
[19] MENEZES LEITÃO, Luís, Direito das Obrigações, Vol. II, 2ª ed., 2003, p. 129.
[20] Ac. do STJ de 14/10/14, relator Pinto de Almeida, proc. nº 11291/10.9TBVNG.P1.S1, disponível in dgsi.pt.
[21] Ac. do TRL de 29/09/16, relatora Maria Conceição Saavedra, proc. 3674/14.1TBOER.L1-7, disponível in www.dgsi.pt.
[22] Ac. do TRC de 13/05/2014, relator Artur Dias, proc. nº 1097/12.6TBMGR.C1, disponível in www.dsi.pt.
[23] Ac. do TRL de 08/04/21, relatora Maria de Deus Correia, proc. nº 19222/20.1T8LSB.L1-6, e Ac. do TRG de 07/10/21, relatora Fernanda Proença Fernandes, proc. nº 46168/20.0YIPRT.G1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.

[24] GALVÃO TELLES, Manual dos Contratos em Geral, 4ª ed., págs. 343 e ss.

[25] Sendo que em todo o caso, a solução não seria diversa, pois que então, não podendo o vendedor entregar ou repor a coisa se justificaria ou a extinção do contrato ou a sua modificação equitativa
[26] OLIVEIRA ASCENSÃO, José, “Onerosidade excessiva por “alteração das circunstâncias”, Estudos em Memória do Professor Doutor José Dias Marques, Almedina, pág. 527.
[27] OB. cit., pág. 529.

[28] Neste sentido, vide Galvão Teles, ob. cit., p.345, nota 314; CALVÃO DA SILVA, Estudos de Direito Civil e Processo Civil, Coimbra, Almedina, 1996, p. 181; MENEZES LEITÃO ob cit., pág. 143.