Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1407/07.8TBGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: JUNÇÃO DE DOCUMENTO
ACIDENTE DE VIAÇÃO
Data do Acordão: 05/22/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA 3º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 523º Nº 2 DO CPC
Sumário: I - É de rejeitar a junção de documento apresentado com as alegações de recurso quando a sua necessidade probatória já resultava da contestação dos RR. e da formulação de um artigo de base instrutória;

II - A travessia inopinada de um peão, cerca da meia noite, em local escuro do IP 5, com chuva, da direita para a esquerda, trajando de escuro e sem colete reflector, e que foi colhido pela parte lateral esquerda e frontal de um veículo automóvel, na sua mão de trânsito, que o avistou a cerca de 25 m, a responsabilidade pelo acidente é de imputar, de forma exclusiva, ao lesado.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

           

1. Relatório

            A..., em 4.7.07, propos, no 3.º Juízo do TJ da Comarca da Guarda, acção com forma de processo ordinário simultaneamente emergente de acidente de trabalho e de viação, contra a seguradora do ramo laboral “Companhia de Seguros B..., SA” e do ramo de responsabilidade civil por circulação rodoviária “Companhia de Seguros C..., SA” e D..., pedindo a condenação de ambas as seguradoras no pagamento da indemnização de € 994.286,60 e o R. no remanescente que ultrapasse o valor do seguro firmado com esta última seguradora, importâncias acrescidas de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.

            Alegou, para tanto, em resumo, que no dia 14.1.06 circulava no IP 5, no sentido Guarda-Viseu, com o veículo de matrícula (...) PO, com semi-reboque, propriedade de “F... , Lda.” e ao serviço desta, quando, após ter parado a viatura na berma, a trabalhar e com a porta do condutor aberta, ao atravessar a faixa de rodagem no sentido contrário àquele em que estacionara, foi atropelado pela parte frontal esquerda do veículo automóvel segurado na 2.ª Ré, com a matrícula (...) HL que, conduzido pelo 3.º R., circulava em sentido contrário, o qual, antes da colisão, percorreu cerca de 30 m, 25,9 dos quais em derrapagem, sendo que o local era de forte inclinação, de gravidade máxima, em recta de 150 a 200 m, sem iluminação, era noite, a visibilidade reduzida, chovia e a velocidade máxima permitida de 90 Km/h, sendo que o condutor do HL circulava, então, a velocidade não inferior a 90 Km/h e sem adequar a velocidade às condições climatéricas, ao estado da via e à visibilidade, em infracção, portanto, ao disposto nos art.ºs 27.º, n.º 1 e 24.º, n.º 1 e 25.º (a referência a 26.º será lapso), n.º 1, alín. h), do CE, vindo a provocar no A. as lesões físicas e psíquicas que melhor descreveu na petição inicial.

            Citados, contestou a “ C (...)”, imputando a responsabilidade pelo acidente exclusivamente ao peão que, em violação do disposto ao art.º 101.º do CE atravessou a faixa de rodagem da direita para a esquerda imprevidente e inesperadamente quando o veículo automóvel circulava pela sua mão de trânsito, à velocidade adequada, inferior a 90 Km/h, impugnou, por desconhecimento, a matéria relativamente aos danos e concluiu pela improcedência da acção.

            A “ B (...) SA” imputou o acidente à negligência do A., na medida em que seria impossível ao condutor do HL, ou a qualquer outro, prever a travessia de peões, nem tal lhe poderia ser exigido, pelo que considerou descaracterizado o acidente enquanto laboral, impugnou a matéria respeitante aos danos e concluiu pela improcedência da acção.

            O R. D (...), na contestação, arguiu a sua ilegitimidade face ao seguro obrigatório que firmara com a Ré “ C (...)”, onde o valor do pedido se contém e, conduzindo, então, a velocidade não superior a 90 Km/h, imputou a responsabilidade pelo acidente à negligência grosseira do peão que, de noite, com chuva, com o piso escorregadio e trajando de escuro, sem colete reflector, atravessou a estrada a correr, de forma repentina e imprevista, impugnou a matéria atinente aos danos, para concluir pela absolvição da instância ou do pedido.

            Proferido despacho saneador, na procedência da excepção de incompetência em razão da matéria (a favor da competência laboral), foi a Ré “Companhia de Seguros B (...), SA” absolvida da instância e, na procedência da excepção de ilegitimidade, foi o 3.º R. igualmente absolvido da instância, prosseguindo a acção simplesmente contra a Ré “ C (...)” com a selecção dos factos assentes e organização da base instrutória (b. i.), que se fixaram sem reclamação.

            Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida decisão sobre a matéria de facto, igualmente sem reclamação.

            Proferida sentença, imputada a responsabilidade exclusiva pelo acidente ao A., foi a acção julgada improcedente e a Ré absolvida do pedido.

            Inconformado com o assim decidido, recorreu o A., apresentando alegações que rematou com as seguintes úteis conclusões, elas próprias delimitadoras do objecto do recurso:

            a) – Os quesitos 1.º e 2.º deveriam ter sido julgados provados e o 3.º julgado que “o condutor do veículo (...) HL avistou o A. a uma distância de cerca de 50 m”;

            b) – O condutor do veículo circulava a uma velocidade de 105 Km/h, em contravenção ao disposto nos art.ºs 27.º, n.º 1 e 28.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CE;

            c) – A velocidade que imprimia ao seu veículo, após avistar o peão a cerca de 50 m não lhe permitiu imobilizar o veículo em segurança no espaço livre e visível à sua frente, assim infringindo o disposto no art.º 24.º, n.º 1, do CE;

            d) – O apelante não surge repentinamente na frente do veículo seguro na apelada, mas, sim, o seu condutor só se apercebe da presença do mesmo quando os faróis o permitiram;

            e) – Tendo o condutor do veículo seguro na apelada uma visibilidade de 50 m, deveria ter adequado a sua velocidade para que pudesse imobilizar o veículo em segurança nesse espaço, o que não foi manifestamente o caso, uma vez que resulta demonstrado que o mesmo precisou, desde que avistou o peão, de 87,84 m até conseguir imobilizar o veículo;

            f) – Em consequência da sua conduta e porque causou danos patrimoniais e não patrimoniais no apelante, encontram-se verificados os pressupostos de que depende a obrigação de indemnização da apelada;

            g) – Deveria o tribunal a quo ter considerado não ser possível operar a forma exacta como ocorreu o sinistro, nem a medida concreta da culpa com que cada um dos condutores contribuiu para o acidente, repartindo em igual medida a responsabilidade de ambos, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 506.º, n.º 2, do CC;

            h) – O tribunal a quo violou o disposto no art.º 24.º, 27.º e 28.º, do CE e 406.º, 503.º, 506.º, 562.º a 564.º e 798.º, do CC, pelo que deve a sentença ser revogada e substituída por outra que condene a apelada no pedido.

            Com as alegações juntou o recorrente um documento (“Relatório de Perícia de Sinistro Automóvel”, elaborado pela empresa “G... , Lda.”, alegadamente ao abrigo do disposto no art.º 693.º-B do CPC, requerendo, no texto das próprias alegações, a sua junção, com fundamento em que a mesma se tornou necessária em virtude do julgamento proferido em 1.ª instância.

            A Ré respondeu às alegações no sentido da inadmissibilidade da junção do documento e da manutenção da sentença recorrida.

            Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo que são questões a apreciar:

a) – A questão prévia da junção do documento apresentado com as alegações;

b) – A impugnação da matéria de facto das respostas dadas aos art.ºs 1.º, 2.º e 3.º da base instrutória (b. i.);

            c) – A imputação do acidente.


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            2. Fundamentação

            2.1. De facto

            A factualidade dada como provada na sentença recorrida foi a seguinte:

            a) - No dia 14 de Janeiro de 2006, o autor A (...) circulava no IP 5 no sentido Guarda/Viseu, tripulando o veículo (...) PO, fazendo conjunto com o semi-reboque de matrícula VI 5164 (alínea A) dos factos assentes);

b) - Perto do km 163, o autor parou a aludida viatura na berma da estrada do seu lado direito, deixando-a a trabalhar e a porta do condutor aberta (alínea B) dos factos assentes);

c) - Na mesma altura circulava em sentido oposto, ou seja, Viseu/Guarda, o veículo ligeiro de passageiro, de marca Opel, modelo Corsa, matrícula (...) HL, propriedade do réu D (...) e conduzido por este (alínea C) dos factos assentes);

d) - Ao chegar próximo do km 163, o condutor do veículo (...) HL apercebe-se da presença do veículo (...) PO parado na berma da hemi-faixa contrária, com a porta da frente esquerda aberta (alínea D) dos factos assentes);

e) - Quando passava lateralmente pelo veículo (...) PO, do lado direito do (...) HL surge o autor como peão, que atravessava a faixa de rodagem (alínea E) dos factos assentes);

f) - Nesse momento, o veículo (...) HL, embateu, então, com o lado esquerdo frente do seu veículo, já após finalizar a traseira do (...) PO, tendo antes da colisão percorrido a distância de 25,90 m em derrapagem (alínea F) dos factos assentes);

g) - O respectivo rasto de travagem, com 25,90 m de comprimento total, apresenta um interregno de cerca de 7 metros onde se verificou a existência de uma marca de sangue, com posterior continuação do rasto em 22 m (alínea G) dos factos assentes);

h) - A faixa de rodagem onde circulava o veículo (...) HL, tinha a largura de 7 metros e uma berma de 2 metros, existindo uma hemi - faixa de circulação para cada um dos sentidos, dividida simetricamente por uma linha longitudinal contínua – marca M1 (alínea H) dos factos assentes);

i) - Trata-se de um local de forte inclinação de gravidade máxima, com uma recta de cerca de 150 e 200 metros e sem iluminação artificial pública (alínea I) dos factos assentes);

J) - O limite legal de velocidade no local para um veículo com as características do (...) HL era de 90 km/h (alínea J) dos factos assentes);

l) - Não era possível ao condutor do veículo (...) HL avistar a faixa de rodagem numa extensão superior a 50 metros, era de noite, chovia, e a visão possível era apenas a que resultava do sistema de iluminação de cada veículo (alínea L) dos factos assentes);

m) - A via de trânsito era asfaltada (betão-betuminoso), com uma pavimentação recente, com boas características de micro-rugosidade, na data dos factos os inertes não apresentavam polimento e as características mineralógicas dos agregados expostos na superfície do pavimento faziam com que o atrito mobilizável na interface pneu/pavimento se situasse entre os valores de 0,65 e 0,70 (alínea M) dos factos assentes);

n) - Na altura do embate o autor não usava qualquer colete reflector e trajava as roupas que se encontravam fotografadas a fls. 43 e 44 (alínea N) dos factos assentes);

o) - Àquela data, a responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo matrícula (...) HL, encontrava-se transferida para a ré Companhia de Seguros C (...) S.A, mediante a apólice nº AU42416033, sendo o capital seguro de € 1 200 000,00 (alínea O) dos factos assentes);

p) - O condutor do veículo (...) HL avistou o autor a uma distância de cerca de 25 metros (resposta ao facto 3º da base instrutória);

q) - Em consequência do embate descrito na matéria assente, o autor sofreu traumatismo craniano encefálico, com perda conhecimento (escala de Glasgow 10), rotura pélvica com diastase púbica e abertura da articulação sacro-ilíaca direita (resposta ao facto quarto da base instrutória);

r) - E foi transportado do local do embate para o Hospital da Guarda e posteriormente removido para o Hospital da Universidade de Coimbra (resposta ao facto quinto da base instrutória);

s) - E aí foi sujeito a intervenção cirúrgica para a estabilização da bacia com fixadores externos, tendo ficado internado (resposta ao facto sexto da base instrutória);

t) - Após ter recebido alta do Hospital da Universidade de Coimbra, o autor foi transferido para um lar a fim de receber assistência médica que necessitava, o que foi suportado pela “Companhia de Seguros B (...), SA” (resposta ao facto sétimo da base instrutória);

u) - Face ao seu estado de saúde, necessitava o autor e necessita de efectuar diariamente fisioterapia e outros tratamentos (resposta ao facto oitavo da base instrutória);

v) - E encontrava-se totalmente dependente da ajuda de terceiros para realizara sua rotina diária e ser transportado para os tratamentos de que necessita (resposta ao facto nono da base instrutória);

x) - A partir de 27 de Outubro de 2006 a companhia de seguros B (...) declinou qualquer responsabilidade pelo embate descrito na matéria assente, ficando todas as despesas a cargo do autor (resposta ao facto décimo da base instrutória);

z) - Após essa data, por não poder suportar as respectivas despesas, o autor abandonou o lar e instalou-se em casa de uma sua irmã, onde se encontra actualmente, sendo essa irmã auxiliada pelo marido, ambos prestando ao autor o auxílio diário e necessitando por isso de faltar ao respectivo trabalho (resposta ao facto décimo - primeiro da base instrutória);

aa) - À data do embate o autor exercia a actividade profissional como motorista de pesados ao serviço da empresa “ F (...) , Lda.” e auferia mensalmente o salário base de € 509,41, acrescido de prémio TIR de € 108,23 e € 257,41 de deslocação ao estrangeiro (resposta ao facto décimo-segundo da base instrutória);

bb) - Antes do embate, o Autor residia sozinho e em casa arrendada (resposta ao facto décimo - terceiro da base instrutória);

cc) - Após o embate o autor ficou com uma incapacidade permanente fixável em 90,64% e totalmente incapacitado para o trabalho habitual, tendo deixado de auferir quaisquer rendimentos (resposta ao facto décimo - quarto da base instrutória);

dd- Antes do embate, o autor era um homem saudável, bem constituído, de trato afectuoso, trabalhador e demonstrava enorme desejo e prazer de viver (resposta ao facto décimo-quinto da base instrutória);

ee) - O embate causou ao autor sofrimento moral e físico, angústia e trauma psíquicos bastante profundos, tendo sentido dores (resposta ao facto décimo - sexto da base instrutória);

ff) - E durante meses não teve o autor qualquer memória dos factos nem noção da realidade (resposta ao facto décimo - sétimo da base instrutória);

gg) - E sofreu danos psíquicos que são irreversíveis (resposta ao facto décimo oitavo da base instrutória);

hh) - E actualmente, fruto de embate, o autor deixou de ser uma pessoa alegre e com vontade de viver (resposta ao facto décimo-nono da base instrutória);

ii) - O autor não é capaz, actualmente, de fazer face às despesas com a sua sobrevivência, nomeadamente alimentação, vestuário e despesas de saúde, não possuindo rendimentos, nem bens próprios (resposta ao facto vigésimo-primeiro da base instrutória);

jj) - O autor não pode, actualmente, sair de casa para conviver com amigos por falta de mobilidade (resposta ao facto vigésimo-segundo da base instrutória).


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            2.2. De direito

            1. A questão prévia da junção do documento com as alegações

            O art.º 693.º-B do CPC, ao abrigo do qual o recorrente juntou o “Relatório de Perícia de Sinistro Automóvel” elaborado por uma empresa particular, dispõe que “as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o art.º 524.º, no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância e nos casos previstos nas alíneas a) a g) e i) do n.º 2 do art.º 691.º”.

            Trata-se de um preceito que foi aditado pela Reforma de 2007, cujo DL n.º 303/07, de 24.8, vigorando somente para os processos instaurados a partir de 1.1.08, não é aplicável aos presentes autos (art.ºs 11.º e 12.º, n.º 1).

            Em seu lugar é, no entanto, aplicável o art.º 706.º, cujo n.º 1, 2.ª parte, contém disposição idêntica, no sentido de as partes poderem juntar documento às alegações “no caso de a junção apenas se tornar necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância”.

            A acrescer à clareza da lei, ao redor desse preceito vasta foi a jurisprudência que se fixou no sentido de a junção de documentos em recurso só poder ser destinada a provar factos cuja relevância surgisse apenas com a decisão proferida e não para provar matéria que já antes da decisão a parte sabia ou devia saber estarem sujeitos a prova.[1]

            Ora, tem inteira razão a recorrida quando na sua resposta alerta para que o A. no art.º 36.º da petição inicial alegara que o veículo (...) HL circulava entre 90 e 100 Km/h, o que a respectiva seguradora infirmou no art.º 28.º da contestação, o mesmo acontecendo, aliás, com os então RR. “Tranquilidade” (art.º 31.º da contestação) e condutor desse veículo (art.º 7.º da sua contestação), os quais viriam a ser absolvidos da instância no despacho saneador.

            Porque controvertida, a velocidade desse veículo, veio a formular-se o respectivo art.º de base instrutória (1.º) que, à pergunta se o veículo circulava a velocidade superior a 90 Km/h, foi respondido negativamente.      

            Ora, é patente que desde a fase das contestações era do conhecimento do A. ora recorrente a necessidade de apresentação do documento que tal pudesse provar, o que podia ser feito até ao encerramento da discussão em 1.ª instância (art.º 523.º, n.º 2, do CPC), sendo impertinente que, confrontado com a decisão desfavorável, venha agora suprir essa sua omissão.

            Nesse sentido, decide-se agora pelo indeferimento da junção do “Relatório” em causa e do seu desentranhamento dos autos e entrega à parte apresentante.


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2. Quanto à 2.ª questão, da impugnação da matéria de facto

Embora o recorrente não houvesse localizado nas gravações a parte dos depoimentos das testemunhas em que fundamentou a impugnação, em consonância com o disposto no n.º 2 do art.º 690.º-A do CPC na versão aplicável anterior à reforma de 2007, ainda assim se ouviram todos os depoimentos objecto de gravação.

Perguntava-se no art.º 1.º da b. i. se, “nas circunstâncias referidas na matéria assente e antes de iniciar a travagem o veículo de matrícula (...) HL circulava a uma velocidade superior a 90 Km/h”.

No 2.º se “e por esse motivo não conseguiu evitar o embate com o corpo do A.

E no 3.º se “o condutos do veículo (...) HL avistou o A. a uma distância de cerca de 30 m”.

Aos dois primeiros respondeu-se não provado e ao 3.º, restritivamente, “provado apenas que o condutor do veículo (...) HL avistou o A. a uma distância de cerca de 25 m”.

Perscrutando a fundamentação, a Ex.ma Julgadora criticamente atendeu ao croquis e quanto às distâncias de travagem do veículo ligeiro antes do embate (25,9 m) e após (22 m) não lhe permitiu concluir que o mesmo circulasse a velocidade superior a 90 Km/h ou que foi essa a causa por que o condutor não conseguiu evitar o embate. Isto atenta a multiplicidade de factores que é preciso ter em conta para relacionar os rastos de travagem com a velocidade, constituindo esta um deles, a par do tipo de veículo, das suas condições mecânicas, do pavimento…

Considerou também que do próprio “relatório de investigação” junto pelo A. na petição inicial constava que o local era de forte inclinação ascendente para o veículo HL, não havia iluminação e era reduzida a visibilidade.

Salientou ainda que a testemunha perito e averiguador de sinistros Carlos Ferreira reconheceu não poder ser feito um cálculo rigoroso entre os rastos de travagem então medidos pela GNR e a velocidade, apontando para os 90 Km/h, bem como o agente de autoridade que compareceu no local aquando do acidente e que elaborou a participação, confirmou a falta de iluminação, que era noite e escuro o local, com reduzidíssima visibilidade e chuva.

Atribuiu especial relevo probatório ao condutor do veículo HL, ouvido, tal como a esposa acompanhante, por determinação do próprio tribunal, por videoconferência a partir de França, que afirmaria circular, então, entre 80 e 90 Km/h, desde logo porque transportava a esposa, então grávida de 8 meses, o que esta confirmaria no seu depoimento.

Trata-se de uma convicção (majorada pela imediação da prova, circunstância de que aqui não dispomos, ainda que alguma recolhida por videoconferência), que a audição da gravação dos depoimentos não permite abalar.

Com efeito, o perito averiguador e como é usual, só posteriormente ao acidente dele veio tomar conhecimento a partir dos elementos recolhidos pela entidade policial, mormente dos rastos de travagem do veículo HL assinalados no croquis da respectiva participação e dos contactos mantidos fosse com o condutor desse veículo, fosse com a acompanhante, sendo que, atento o estado de saúde do lesado condutor do veículo pesado, nada de concreto conseguiu obter. Deslocou-se ao local do acidente não recordando quanto tempo após o sinistro.

O seu depoimento foi, portanto, especulativo, mormente quando referiu que o HL “iria a 90 Km/h ou mais um bocadinho”.

A esse propósito (do cálculo da velocidade) são conhecidas as “Tabelas das Distâncias de Paragens”[2] e as condicionantes que as envolvem e, daí, a relatividade dos cálculos quando se pretende determinar a velocidade concreta imprimida a um veículo antes de qualquer embate ou colisão.

Um desses factores e fundamental consiste no piso, se seco, se molhado, o que faz com que, neste caso, as distâncias de travagem indicadas por tais tabelas devam ser acrescentadas em 60%.[3]

Daí que, à luz de tais tabelas, comprovado o piso molhado (chovia) na ocasião do acidente dos autos, o rasto de travagem provado de 54,9 m (aí se incluindo um interregno de 7 m, coincidente com o ponto de embate no peão) esta distância é teoricamente compatível com uma velocidade instantânea de 90 Km/h, velocidade esta que constituía o limite máximo geral para a então via que era o IP 5.

O depoimento da testemunha Ricardo Alexandre Lopes Maria, guarda da GNR que tomou conta da ocorrência, para lá da confirmação dos elementos constantes da participação, pouco mais adiantou, até porque, desde o acidente até que depôs, decorreram mais de 5 anos. Ainda assim e para lá do seu registo, esclareceu que o peão havia deixado o pesado parado na faixa de rodagem, sem utilizar a berma, sendo que a via era separada com traço contínuo (ainda que de sinalização temporária, por força de obras de requalificação), com o motor a trabalhar e a porta do condutor aberta e que a via tinha inclinação ascendente para o ligeiro, nenhuma explicação conseguiu, apesar de a ter procurado, para o comportamento do peão, ter atravessado a faixa de trânsito contrária…

Acrescente-se que tal explicação também a não deu o lesado, não ouvido nos autos, quiçá por padecer de amnésia retrógrada, conforme informação do Instituto Nacional de Medicina Legal de fls. 175.

O depoimento do condutor do HL, oficiosamente determinado, salientou que quando se apercebeu, à distância, do camião, em sentido contrário ao seu, pela luzes de médios que tinha ligadas, pensava que o mesmo estava em movimento e, mudando para médios, só quando se cruzou com a cabine viu a porta do condutor aberta e, entretanto, vê-se surpreendido por uma pessoa a saltar o rail de protecção da estrada, do seu lado direito, para a frente do seu veículo automóvel.

Quanto à velocidade imprimida ao veículo, que lhe foi perguntada, revelou alguma confusão. Começou por dizer que ia a 100-90, “ou qualquer coisa do género”, “que não podia ir com muita velocidade porque trazia o filho, uma criança de 4 anos e a mulher, grávida de 8 meses”, para, logo a seguir, dizer que ia a 80-90, “não sei precisar” e quando lhe foi observado ter antes referido “90-100”, que não, que ia a 90, a 80-90 e, na parte final do depoimento, que não – ia – a – mais – de - 70.

Daqui se conclui não ter o condutor percepção da concreta velocidade a que circulava e dada a equivocidade do seu depoimento, sobre esse ponto não estamos perante declaração confessória, que possa ou deva impor-se a qualquer outro meio de prova ou alterar o funcionamento das regras de repartição do ónus da prova, incidente sobre o A. (art.º 357.º, n.º 1, do CC).

Quanto ao depoimento da acompanhante do HL, esposa do seu condutor, E... , foi limitado. A dormitar, acordou com a travagem do marido, então se apercebendo de um vulto, do seu lado direito, pensando tratar-se de um animal a saltar para a frente do carro. Que foi uma coisa de surpresa, de repente, não havia como evitar o embate…

A propósito da distância a que o condutor do HL possa ter avistado o A., que na resposta do art.º 3.º da b. i. se considerou ser cerca de 25 m e o recorrente sustenta 50 m, com fundamento em que a testemunha Carlos Ferreira tal afirmou por ser esta a visibilidade que permitem os faróis nos médios, a que acrescentou o depoimento da testemunha E (...)quando disse que o marido viu o peão a partir do momento em que os faróis o conseguiu alcançar, o recorrente labora em equívoco.

Os “médios” (legalmente denominados luzes de cruzamento) não iluminam a 50 m, mas a 30! (art.º 60.º, n.º 1, alín. b) do CE).

Ora, considerando que chovia, o que notoriamente reduzia a visibilidade, a resposta dada não enferma, pelo menos, de ilogicismo.

De todo o exposto se conclui que, da prova produzida, as respostas dadas aos art.ºs impugnados não enfermam de erro de julgamento, sendo, por isso, de manter.

Improcede, portanto, a impugnação.


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3. A responsabilidade pelo acidente

Já vimos que o lesado não provou, como lhe competia nesta forma de responsabilidade civil (extracontratual por facto ilícito) (n.º 1 do art.º 342.º do CC), a culpa do condutor do veículo HL a partir da violação do art.º 27.º, n.º 1 do CE, ou seja, por violação do limite geral de velocidade na via em causa.

O recorrente coloca, contudo, também a questão da violação do disposto no art.º 24.º n.º 1 do mesmo diploma legal, na medida em que não regulou a velocidade de forma a atender às circunstâncias de ser noite, de não existir iluminação pública na via e o piso estar molhado, chovendo, desse modo não conseguindo imobilizar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.

Será?

- Quando o n.º 1 do art.º 101.º do CE impõe aos peões o dever de se assegurarem previamente à travessia da faixa de rodagem de que o podem fazer sem risco de acidente, não é exigível aos condutores de veículos que prevejam a violação dessa norma por parte deles, v. g., quando não há indicação de que estão desatentos ao trânsito, como pode acontecer com crianças ou idosos.

É a tradução do princípio mais geral da circulação rodoviária de que o utente da via não tem que contar com a negligência ou inconsideração dos demais, mormente não sendo o condutor obrigado a prever o súbito ou inopinado aparecimento de um peão na faixa de rodagem, muito menos à hora e no local em que tal ocorreu!

Para determinação do “espaço livre e visível” à frente de um veículo não pode atender-se aos obstáculos ou aparecimento inopinado de uma pessoa a atravessar a faixa de rodagem.

Ainda por cima, se for de noite (cerca da meia noite), em local escuro (descampado do IP 5) e a chover, trajando de escuro e sem colete reflector, como em tais circunstâncias ocorreu com o A. que, após ter abandonado (é o termo) o camião que conduzia, com a porta da cabine aberta, irresponsavelmente a ocupar toda a faixa de rodagem, enigmaticamente atravessou o IP 5 para a faixa de rodagem contrária e no seu regresso saltou o rail de protecção da via para atravessar, de supetão, à frente do veículo ligeiro, cujo condutor o avistou a cerca de 25 m e que, de imediato, accionou os respectivos travões.

Nesse quadro, que outras cautelas deveria ter observado o condutor para não ter embatido no peão?

Conclui-se, pois, que não incorreu em velocidade excessiva, ou em qualquer dever de conduta estradal.

É de lamentar o estado de saúde em que ficou o A. em consequência desse embate. Todavia e salvo o devido respeito, só de si próprio poderá queixar-se.

Como se salienta no Ac. STJ de 6.7.05[4], a travessia de peões das faixas de rodagem, especialmente onde não há espaço assinalado para o efeito, deve ser revestida de adequada cautela, sobretudo em noite chuvosa e redutora de visibilidade para os condutores de veículo que nela circulem, acrescentado nós que as cautelas deverão ser redobradas face à periculosidade notoriamente conhecida do então IP 5 (com propriedade e durante muito tempo denominada estrada da morte), o que presumivelmente era também do conhecimento do A. enquanto motorista profissional.

Com a sua conduta infringiu, pois, culposamente, o disposto no mencionado n.º 1 do art.º 101.º do CE e foi ele o exclusivo causador do acidente.

E, porque assim apurada a culpa da própria vítima, excluída está a responsabilidade pelo risco (art.º 505.º do CC), como excluída está qualquer forma de concorrência de culpas a que alude o art.º 570.º do CC ou concorrência de risco a que se reporta o invocado art.º 506.º do CC, que respeita, apenas, à colisão de veículos, circunstância obviamente arredada dos autos.

Tendo sido nesse sentido que decidiu a douta sentença, mais não cumpre que confirmá-la, não incorrendo na violação de qualquer dos preceitos legais assinalados pelo recorrente.


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            3. Resumindo e concluindo

            I - É de rejeitar a junção de documento apresentado com as alegações de recurso quando a sua necessidade probatória já resultava da contestação dos RR. e da formulação de um artigo de base instrutória;

            II - A travessia inopinada de um peão, cerca da meia noite, em local escuro do IP 5, com chuva, da direita para a esquerda, trajando de escuro e sem colete reflector, e que foi colhido pela parte lateral esquerda e frontal de um veículo automóvel, na sua mão de trânsito, que o avistou a cerca de 25 m, a responsabilidade pelo acidente é de imputar, de forma exclusiva, ao lesado.


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            4. Decisão

            Face ao exposto, acordam em não admitir o documento apresentado com as alegações de recurso, cujo desentranhamento ordenam e julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.

            Custas pelo recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.


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Francisco M. Caetano (Relator)

António Magalhães

Ferreira Lopes


[1] V. Acs. STJ de 27.6.00, CJ/STJ, 2000, 2.º, pág. 130 ou 30.9.04, Proc. 04B2894, in www.dgsi.pt, bem como os demais indicados in A. Neto, “CPC, Anot.”, 2008, pág. 1043.
[2] V., p. ex., Tolda Pinto, “Código da Estrada, Ano.”, 3.ª ed., pág. 68 e ss e, mais recuado no tempo, Oliveira Matos, “Código da Estrada, Anot.”, 3.ª ed., pág. 45.
[3] V. Tolda Pinto, ob. cit., pág. 70, em nota.
[4] Proc. 05B186, in www.dgsi.pt.