Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
132/12.2TBCNT-E.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: CESSÃO DE CRÉDITOS
HABILITAÇÃO DO CESSIONÁRIO
Data do Acordão: 03/16/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO DE EXECUÇÃO DE SOURE – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 577º DO C. CIVIL; 356º DO CPC.
Sumário: Porque a cessão pode ser efetivada mesmo sem consentimento do devedor, porque a lei não exige forma especialmente solene para a mesma, e porque a habilitação do cessionário em processo pendente não afeta a substância, o objeto da causa, nem prejudica a posição do devedor nos autos, a prova daquela cessão para este efeito – artº 356º do CPC – não tem de ser exigente no sentido de dever abranger todas as suas vicissitudes e particularismos, como seja o valor cedido e demais condições de cedência.
Decisão Texto Integral:



ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

E...,S.A., por apenso à execução instaurada por C...,S.A.” contra L..., J... e R..., estes por si e enquanto representantes da herança indivisa de J..., pediu  a sua habilitação como Cessionária e que seja admitida a intervir na ação em substituição da atual exequente.

Alegou, para tanto, que procedeu à aquisição à exequente dos créditos exequendos.

Juntou documentos.

A executada L... contestou e deduziu oposição.

Disse que os documentos juntos não provam a cedência do crédito, o seu valor  e  demais condições de cedência.

2.

Seguidamente foi proferida sentença na qual foi decidido:

«Pelo exposto, julgando procedente a pedida habilitação, o Tribunal decide:

1) Determinar a modificação subjectiva da instância, prosseguindo a Acção Executiva tendo agora como Exequente a Requerente/Cessionária “E...,S.A.” em substituição, por habilitação, da Exequente/Cedente “C...,S.A.”.

2) Fixar o valor do Incidente em €127.590,72 (art.os 297.º/1, 304.º/1, 306.º/1/2, e 607.º/6 CPC).

3) Condenar a Requerida L... no pagamento das custas do Incidente.»

3.

Inconformado recorreu a executada.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

...

Contra alegou a requerente pugnado pela manutenção do decidido com os seguintes argumentos finais:

...

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 635º, nº 4 e 639º  do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, a questão essencial decidenda é a seguinte:

Improcedência do incidente.

5.

Apreciando.

5.1.

Foram dados como provados os seguintes factos:

1. A actual Exequente impulsiona a Acção Executiva, da qual os presentes autos constituem incidente declarativo, contra os Requeridos para o pagamento de quantia certa.

2. Por contrato escrito, a actual Exequente cedeu à Requerente/Cessionária os créditos exequendos com transmissão de todos os direitos, garantias e acessórios a eles inerentes.

5.2.

Liminarmente.

A argumentação da recorrente, ao entender que não foi feita prova da cessão, aparenta  também consubstanciar um insurgimento contra a decisão da matéria de facto dada como provada no ponto 2.

Efetivamente, e perante este ponto, a cessão está provada.

E provada em termos ao menos suficientes para se entender que ela se verificou.

Na verdade, e como a própria recorrente admite no al. j) das conclusões, bastará: «um título escrito que prove a cessão (seja o contrato escrito de cessão, seja outro título/declaração de aquisição ou cessão, seja termo de cessão lavrado no processo) –, não tendo de expressar o exato montante da dívida ao tempo da transmissão, mas devendo identificar o crédito de molde a permitir saber qual o objeto da cessão.»

Assim, a sua pretensão apenas poderia singrar se tal facto fosse dado como não provado.

Para este efeito a recorrente teria de cumprir, desde logo, os requisitos formais legais que são conditio sine qua non da liminar admissão da impugnação da matéria de facto.

Ora, bem vistas as coisas, a recorrente não cumpre, ao menos formalmente e com rigor, alguns dos  aludidos requisitos plasmados  no artº 640º do CPC, a saber:

1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Assim, sendo de rejeitar a sua oposição formal aos factos adrede provados, e mantendo-se estes, a sentença seria de confirmar.

5.3.

Mas mesmo que assim não fosse ou não se entenda, nem assim o recurso merece provimento.

5.3.1.

A Srª Juíza decidiu nos seguintes termos:

«A substituição de alguma das partes na relação substantiva em litígio, por acto entre vivos, faz modificar a instância quanto às pessoas (art.º 262.º/a) CPC).

A substituição é admitida quando a parte contrária esteja de acordo e, na falta de acordo, só deve recusar-se a substituição quando se entenda que a transmissão foi efectuada para tornar mais difícil, no processo, a posição da parte contrária (art.º 263.º/2 CPC).

A tramitação do incidente prevê que:

Junto e autuado por apenso o requerimento de habilitação, o título da cessão é notificada à parte contrária para contestar; na falta de contestação, o juiz verifica se o documento prova a cessão e, no caso afirmativo, declara habilitado o cessionário [art.º 356.º/1/a)/b) CPC].

Havendo contestação, o juiz verifica a eventual falta de validade do acto ou se a transmissão foi feita para tornar mais difícil a posição processual dos Requeridos [art.º 356.º/1/a)/b) CPC].

No caso concreto:

A transmissão do crédito foi realizada por contrato escrito e nesta figura a Exequente como cedente e a Requerente como cessionária.

Deste modo, o negócio pelo qual se realizou a transmissão do crédito é formal e substancialmente válido, logo a Requerente/Cessionária sucedeu à Exequente/Cedente na relação material controvertida que é objecto da acção executiva.

Ao contrário do alegado pela Executada, o contrato em causa [...] está devidamente elencado na listagem dos contratos que foram objecto de cessão de créditos.»

Dilucidemos.

5.3.2.

A cessão de créditos pode ser feita «independentemente do consentimento do devedor» – artº 577º, nº1 do CC.

Ou seja, e no limite, pode ser efetivada mesmo contra a vontade do devedor.

Ademais, a lei, por via de regra, não exige forma legal taxada e tarifada para a cessão – artº 578º, nº 1 do CC.

A exceção está consagrada no nº 2 deste preceito, a saber:

«…a cessão de créditos hipotecários, quando não seja feita em testamento e a hipoteca recaia sobre bens imóveis, deve constar de escritura pública ou de documento particular autenticado.»

De todo o exposto dimana que a lei não é especialmente exigente, em termos formais, na admissão da cessão.

Tanto assim que, se a questão se tornar controvertida, a lei parte do princípio que o interesse determinante, do devedor ou de qualquer outro interessado,  será de jaez essencialmente substantivo,  interesse este exemplificado por ela pela/na possibilidade de «impugnar a validade do ato ou alegar que a transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição no processo» - artº 356º, nº 1, al. a), in fine, do CPC.

Acresce que urge ter presente que:

«1. A transmissão inter vivos não determina a suspensão da causa, sendo facultativa a habilitação do adquirente, continuando o transmitente a ter legitimidade para a causa, produzindo contra o adquirente, mesmo que este não intervenha, efeitos de caso julgado.

2. Transmitido o direito de crédito ou alienada a coisa objeto do litigio, embora já sem interesse na ação, por ter deixado de ser o sujeito ativo da relação substantiva, continua a ter legitimidade ad causam até ao seu termo, configurando-se a sua posição como substituto processual do adquirente.»- Ac. da RC de 04.05.2020, p. 124/18.8T8FND-F.C1 in djsi.pt.

Também daqui dimana que não se deve ser demasiado exigente na prova da cessão, e, consequentemente, na admissão do cessionário no processo.

É que se assim não for, e se obstar a tal intervenção, não obstante a cessão ter ocorrido, está-se a facilitar uma decisão menos justa, pois que o cedente, continuando no processo mas não sendo ele já o titular do direito, pode descurar a sua defesa ou nela ser menos acutilante, com os inerentes prejuízos dai advenientes para o cessionário.

E relevando ainda que:

«- O incidente de habilitação de adquirente ou cessionário visa, apenas, produzir modificação nos sujeitos da lide, apenas produzindo efeitos de natureza meramente processual, ao nível das partes que se defrontam na lide, sem interferir com a discussão do direito que constitui o objecto da causa, tal como é configurado pelo pedido e pela causa de pedir.»- Ac. RG de 21.06.2018, p. 7153/15.1T8GMR-B.G1 e Ac. da RE de 07.11.2019, p. 1898/18.1T8PTM.E1, ambos em dgsi.pt.

Ou seja, e pelo menos por via de regra, a intervenção do cessionário no processo não introduz qualquer alteração no atinente à substancia e ao objeto do processo, continuando este a ser delineado e dilucidado tal como inicialmente definido pelas partes primitivas.

 Pelo que o devedor não terá, em princípio, qualquer prejuízo ou afetação da sua posição, quer processual, quer substantivamente.

E, como se viu, se assim não for, e se ele entender que a cessão e consequente substituição processual subjetiva dela dimanante, visou apenas prejudica-lo, pode ele  invocar tal nos autos.

Assim norteados e retornando ao caso vertente.

5.3.3.

A requerente juntou aos autos instrumento notarial de cessão de créditos a seu favor detidos não apenas pela exequente como pelas entidades que a antecederam.

E no qual se discriminam, as condições da cessão, as quais se assumem muito amplas e abrangentes, incluindo, vg., todas as garantias dos créditos, juros e direitos acessórios.

Mais identificou a conta, ou o número relativo ao crédito cedido e aqui em execução: ...

Mais juntou aos autos documento complementar mencionado no aludido instrumento do qual consta a conta ou número mencionada no requerimento inicial como reportado ao crédito em causa.

Por outro lado, o sentido ou significado que a recorrente pretende retirar da expressão vertida pela requerente no requerimento inicial, qual seja: «os créditos detidos e cedidos pela C..., podem ter tido origem na C..., cujos ativos e passivos foram incorporados, por fusão na C..., SA…», não colhe.

Como dimana desta asserção, ela, versus o interpretado pela recorrente, não se refere aos créditos e à sua possível (in)existência, mas antes à sua origem, rectius aos seus anteriores titulares.

Ora a dúvida quanto a estes é aqui irrelevante, pois que mesmo que os créditos tivessem sido titulados pelas entidades mencionadas que não a exequente, esta adquiriu-os aquando da fusão com as mesmas.

E assim se concluindo que os documentos juntos aos autos são suficientes – muito mais no âmbito e âmago do admitido pela recorrente na conclusão j) -  para se provar a cessão.

E considerando, inclusive, como se viu, que para  esta a lei não exige forma especialmente solene, e que a substituição processual operada é, por princípio, inócua para a posição do devedor.

Finalmente importa salientar o que a julgadora expendeu aquando da admissão do recurso, a saber:

«Sobre a recorribilidade, a decisão a tomar não é isenta de dúvidas;

Com efeito, a suspensão da acção executiva] foi determinada com base em requerimento da própria Executada no qual a mesma declara que ocorreu a cessão de créditos e junta cópia do documento através do qual foi notificada da referida cessão de créditos;

Parece, de alguma forma, que a apresentação de recurso pela Executada contra a decisão que procede à Habilitação da Cessionária em decorrência da cessão de créditos que a própria Executada veio informar ter ocorrido, e na sequência da qual beneficiou da suspensão da acção executiva, poderá prefigurar uma situação de exercício abusivo de um direito;»

(sublinhado nosso).

Dando-se como boa esta explanação, como não pode deixar de dar-se - pois que adveio da Srª Juíza do processo e ela não foi contestada pela recorrente -, então o caso, se mais não houvesse, que há, como se viu, seria - e é  - mesmo  de atuação com leviandade intolerável ou até má fé, pois que a recorrente atuou, recursivamente, em venire contra factum proprium.

E apenas com alguma condescendência, e no pressuposto de que a atuação foi mais negligente e olvidante do que dolosa, nesta instancia recursiva não se despoleta incidente para apreciação definitiva neste particular.

Improcede o recurso.

6.

Sumariando – artº 663º, nº7 do CPC

Porque a cessão pode ser efetivada mesmo sem consentimento do devedor, porque a lei não exige forma especialmente solene para a mesma, e porque a habilitação do cessionário em processo pendente não afeta a substancia, o objeto da causa, nem prejudica a posição do devedor nos autos, a prova daquela cessão para este efeito – artº 356º do CPC – não tem de ser exigente no sentido de dever abranger todas as suas vicissitudes e particularismos, como seja o valor cedido e  demais condições de cedência.

7.

Deliberação:

Termos em que se acorda em julgar o recurso improcedente e, consequentemente, confirmar a sentença.

Custas pela recorrente.

Coimbra, 2021.03.16.