Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
202/11.4TALNH.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO CHAVES
Descritores: ACÓRDÃO
CONFIRMAÇÃO
Data do Acordão: 03/11/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIME
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 400.º E 425.º DO CPP
Sumário: I - Pode afirmar-se com segurança que constitui jurisprudência uniforme a que caracteriza o acórdão confirmatório de uma decisão de não pronúncia como acórdão absolutório para os efeitos previstos no artigo 400.º, n.º 1, al. d) e, consequentemente, no artigo 425.º do Código de Processo Penal.

II - Por isso, havendo confirmação do despacho recorrido, a Relação pode limitar-se a negar provimento ao recurso, remetendo para os fundamentos da decisão impugnada ao abrigo do disposto no artigo 425.º, n.º 5 do Código de Processo Penal.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO

1. No encerramento do inquérito n.º 202/11.4TALNH, que correu termos pelos Serviços do Ministério Público do Bombarral, o Ministério Público acusou os arguidos A...e B..., com os demais sinais dos autos, de terem cometido, o primeiro, três crimes de difamação caluniosa, dois em autoria material e um em co-autoria material, p. e p. pelos artigos 180.º, n.º 1, 183.º, n.º 1, b), 184.º e 132.º, n.º 2, l), todos do Código Penal e, o segundo, em co-autoria material, um crime de difamação caluniosa, p. e p. pelos artigos 180.º, n.º 1, 183.º, n.º 1, b), 184.º e 132.º, n.º 2, l), todos do Código Penal.

2. Discordando desse despacho, os arguidos requereram a abertura de instrução, após cuja realização foi proferido despacho que decidiu «não pronunciar os arguidos B... e A...pela prática dos crimes de difamação caluniosa que lhes foi imputada, ou por qualquer outro crime, ordenando o oportuno arquivamento dos autos».

3. Inconformado com a decisão instrutória, dela interpôs recurso o assistente C..., retirando da sua motivação as seguintes conclusões(transcrição):

«i) Em momento algum dos autos resulta que o Recorrido B... foi coagido a assinar o documento constante do artigo 6º da douta Acusação, pelo que o mesmo assinou livremente tal peça processual, aderindo desta forma ao conteúdo da mesma, sendo irrelevante se o fez na veste de Advogado Estagiário ou em qualquer outra, porquanto nenhuma norma do Estatuto da Ordem dos Advogados ou do Regulamento de Estágio da Ordem dos Advogados impõe a assinatura de toda e qualquer peça redigida pelo patrono;

ii) Inexiste, assim, quanto a nós, qualquer causa justificativa que imponha a exclusão da ilicitude da conduta do Recorrido B..., malandando o tribunal a quo neste segmento decisório;

iii) A decisão recorrida fez uma incorreta aplicação do direito, nomeadamente quando desconsiderou o horizonte contextual por detrás dos comportamentos evidenciados pelos Recorridos, uma vez que as afirmações por si produzidas ao imputarem, de forma inequívoca, uma incompetência profissional, uma forma de exercer o munus judicial deforma desleixada por parte do Recorrente, tiveram como objetivo, exclusivo, denegrir a consideração, o brio e, portanto, a honra pessoal e profissional do Recorrente, face às decisões que este havia proferido em sentido diverso do pretendido pelo Recorridos;

iv) A decisão recorrida fez uma incorreta aplicação do direito ao desvalorizar o facto que a atuação dos Recorridos colocou em causa a imparcialidade e confiabilidade que é reconhecida ao Recorrente, que, diga-se, nunca em toda a sua vida profissional e pessoal foram questionadas, porquanto os Recorridos ao afirmarem que o Recorrente foi parcial e carreou para as decisões reclamadas o seu "azedume pessoal", não estão a imputar qualquer crítica à obra, mas antes a maneira como o Recorrente encara o exercício das suas funções (até porque as decisões não podem ser ou usar de reserva mental ou de abuso de poder, nem carrear "azedumes pessoais"), consubstanciando a sua conduta um ataque pessoal ao brio e consideração profissional do Recorrente;

v) As expressões proferidas pelos Recorridos e que constam da douta Acusação visam, assim, um ataque direto a honra e consideração (profissional e pessoal) do Recorrente, sendo desnecessárias e deslocadas(como bem reconhece a douta decisão instrutória) ao fim a que se destinam, no sentido que não foram necessárias e essenciais ao exercício do patrocínio forense por parte dos Recorridos;

vi) Os Recorridos atuaram livre, voluntaria e conscientemente, bem sabendo que colocavam, assim, em causa o bom nome, honra e consideração do Assistente, pelo que, face às razões expostas, entendemos que as afirmações proferidas são objetivamente difamatórias e caluniosas, nos termos do disposto nos artigos 180º, nº 1, 183º, nº 1, alínea b, e 184º, todos do CP, mal andando, ao secundar entendimento distinto, a douta decisão instrutória recorrida, violando a mesma os referidos preceitos.

Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a

douta decisão instrutória, com as legais consequências, com o que

V. Exas., Senhores Desembargadores, farão

                                                                                                       JUSTIÇA»

4. O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela manutenção do julgado.

5. Nesta instância, o Exmo. Procurador – Geral Adjunto, na intervenção a que se refere o n.º 1 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, acompanhando a resposta ao recurso apresentada pelo Ministério Público na 1ª instância, emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.

6. No âmbito do disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal([1]), o assistente reiterou a posição anteriormente assumida na motivação de recurso.

7. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão.

                                          *

II - Fundamentação

1.A decisão instrutória objecto de recurso(transcrição):

«I.

Iniciaram-se os presentes autos de instrução a requerimento dos arguidos B... (fls. 683 a 691) e A...(fls. 698 a 707), inconformados com a acusação contra ambos deduzida pelo Ministério Público a fls. 615 a 623, imputando ao primeiro a prática, em co-autoria material, de um crime de difamação caluniosa, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 132º, n.º 2, al. l), 180º, n.º 1, 183º, n.º 1, al. b) e 184º, todos do C. Penal e, ao segundo a prática, de dois crimes de difamação caluniosa, um em autoria material e outro em co-autoria material, ambos p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 132º, n.º 2, al. l), 180º, n.º 1, 183º, n.º 1, al. b) e 184º, todos do C. Penal.

Para tanto, alegou o arguido B..., em síntese, que:

a) à data dos factos, como se refere na acusação, era advogado-estagiário, sendo seu patrono o co-arguido A...;

b) nesse contexto, assinou peças processuais em conjunto com o seu patrono, nomeadamente o requerimento de habeas corpus referido na acusação;

c) pese embora essa assinatura comum, é manifesto que tal peça foi elaborada apenas pelo arguido A..., já que se narram factos ocorridos com ele e se usa expressamente a primeira pessoa do singular;

d) nunca teve qualquer intenção de ofender a honra ou consideração do assistente.

Por seu turno, o arguido A...sustentou, em síntese, que:

a) nunca agiu com intenção de ofender a honra e consideração do assistente;

b) limitou-se a defender os interesses dos seus constituintes, na qualidade de Advogado constituído pelos mesmos, no quadro de intervenções processuais relativas a actos praticados pelo assistente, na veste de Juiz de Direito;

c) foi o único redator das peças processuais citadas na acusação, incluindo a que também se encontra assinada pelo co-arguido B...;

d) dessas peças não resulta a prática pelo arguido de qualquer crime, mas mero exercício das funções de advogado.

Aberta a instrução, realizou-se apenas debate instrutório.

*

II.

O Tribunal é o competente.

Não existem nulidades, questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer.

*

III.

Constituindo a fase da instrução uma fase facultativa do processo penal que visa a comprovação judicial de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (artigo 286º, n.ºs. 1 e 2, do C. P. Penal, diploma para o qual se deverão considerar remetidas as normas legais sem outra indicação de proveniência), há que ter presente que o Juiz de Instrução Criminal está aqui limitado, à partida, pela factualidade relativamente à qual se pediu a instrução (artigo 287º, n.ºs 1 e 2 e 288º, n.º 4), sendo orientado no seu procedimento e decisão pelas razões de facto e de direito invocadas.

Por outro lado, dispõe o artigo 283º, n.º 2, aplicável à fase da instrução ex vi do artigo 308º, n.º 2, que se consideram suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, uma pena ou uma medida de segurança.

Em decorrência de tal disposição, preceitua o n.º 1 do último artigo citado que, se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.

Fundando-se o conceito de indícios suficientes na possibilidade razoável de condenação e de aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, deve considerar-se existirem indícios suficientes para efeitos de prolacção do despacho de pronúncia (tal qual como para a acusação), quando:

- os elementos de prova, relacionados e conjugados entre si, fizerem pressentir a culpabilidade do agente e produzirem a convicção pessoal de condenação posterior; e

- se conclua, com probabilidade razoável, que esses elementos se manterão em julgamento; ou

- se pressinta que da ampla discussão da causa em plena audiência de julgamento, para além dos elementos disponíveis, outros advirão no sentido da condenação futura.

*

IV.

Feito este intróito, analisemos então as questões colocadas nesta instrução.

Uma melhor compreensão do que adiante se dirá para fundamentar a posição aqui assumida justifica que se transcreva o teor integral da acusação deduzida contra os arguidos:

«(…) 1. C... exerce as funções de Juiz de Direito na Comarca da Lourinhã.

2. No exercício das suas funções procedeu ao julgamento do processo 191/06.7GALNH em que era arguido D..., tendo proferido a respectiva sentença em 23-05-2011.

3. O arguido A...exerce a profissão de advogado e, naqueles autos supra referidos era mandatário judicial de D..., nessa qualidade e, não se conformando com a decisão proferida, no dia 15-06-2011, deu entrada, no Tribunal Judicial da Lourinhã, a um requerimento de recurso e respectivas motivações, onde, além do mais, escreveu o seguinte:

a) "Ao arrepio do disposto no artigo 370.º do CPP, o tribunal a quo preteriu o necessário relatório social em prol das suas convicções pessoais, nomeadamente, no primeiro parágrafo de fls. 4 do dito acórdão"

b) "Neste caso, como em muitos outros, as opiniões e convicções pessoais são negativas, reflectindo um pré-juízo negativo contra o arguido, bem como um preconceito inflamado pelas eventuais leituras de alguns pasquins que se dedicam a explorar, encarniçadamente, o evento do momento conferindo-lhes, por isso, um sensacionalismo barato."

4. B... à data dos factos exercia a profissão de advogado estagiário no escritório de A....

5. Em 04-08-2011, C... no exercício das suas funções de Juiz de Direito, procedeu ao 1º interrogatório judicial de E..., F..., G...e H..., no âmbito do inquérito 399/11.3JDLSB, tendo determinado que os mesmos ficassem a aguardar os ulteriores termos do processo sujeitos à medida de coacção de prisão preventiva.

6. A...e B..., mandatários judiciais dos arguidos referidos em 5., de comum acordo redigem e dão entrada, em 13-09-2011, no Tribunal de Torres Vedras, de urna petição de Habeas Corpus, onde, além do mais, escreveram:

a) "Assim, é de uma prisão manifestamente ilegal, decorrente de abuso de poder concretizado em atentado ilegítimo à liberdade individual grave, grosseiro e facilmente verificável de que trata a presente petição"

b) “Tal despacho judicial que determinou a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva aos ora peticionantes, enfermou de reserva mental e consequente abuso de poder do Ex.mo Senhor Magistrado Judicial na medida em que, e passo sinteticamente a relatar:”

c) "Em 4 de Agosto de 2011, o signatário vem reencontrar o mesmo Senhor Juiz de Direito (...), sendo que o mesmo procedeu ao primeiro interrogatório judicial de arguidos detidos, vindo a impedir-me de exercer plenamente a defesa tal como se constata pelo exercício ao direito de protesto lavrado em acta"

d) "Face ao exposto, constata-se que o Senhor Juiz usou de reserva mental aquando dos interrogatórios judiciais de 04 de Agosto pois, já tinha promovido procedimento criminal contra o signatário e é neste contexto que entendo que a postura que ficou espelhada na já mencionada Acta - o de interromper e impedir a resposta à promoção do Digno Magistrado do Ministério Público pelo signatário - sem lhe dar conhecimento antes do início do acto"

e) "(...) o Senhor Magistrado Judicial deveria ter informado o signatário logo no início do acto, enquanto juiz de turno naquele primeiro interrogatório judicial de que havia procedido criminalmente contra o signatário, na medida em que tal situação criava a natural suspeição quanto à posição parcial e não isenta a assumir quanto aos arguidos o que, na verdade, tal como se verifica da acta de tal interrogatório, o comportamento de tal senhor juiz de direito foi na conformidade aludida"

f) “Interrompeu o signatário, impedindo o exercício do Direito de defesa; reduziu direitos, liberdades e garantias dos arguidos a um capricho pessoal. Foi parcial e fez reflectir o seu azedume pessoal e pré-juízo com que avalia as situações e pessoas na posição escrita que até sustentou"

g) "Estou em crer que da leitura que da Sentença proferida por este senhor juiz de direito no processo que tramitou no Tribunal da Lourinhã, e que é fácil de constatar, a mesma encontra-se eivada, efectivamente, de opiniões pessoais do mesmo, não fundadas ou, até mesmo, reveladoras de um pré-conceito, não podendo elas próprias constituir um corpo de uma sentença judicial (...) "

h) "Ao decretar a prisão preventiva dos arguidos, no condicionalismo descrito, tentando colmatar as lacunas de uma singela promoção do Digno Magistrado do Ministério Público de turno e em exercício pleno, fora férias judiciais, no Tribunal de Trabalho da Comarca e sem indicação precisa dos concretos factos que o permitiam, embora referindo-se à existência de perigo de fuga e a perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas, o juiz agiu com claro abuso do poder, na medida em que desrespeitou grosseira e flagrantemente as normas que prevêem as restrições ao direito à liberdade e, em consequência, violou os direitos constitucionalmente garantidos"

i) "Conhecendo do recurso interposto pelo signatário, no interesse e na defesa dos direitos de um outro cliente e, por via do mesmo, proceder criminalmente contra o defensor, por uma questão de honestidade intelectual e de princípios, deveria informar previamente todos os intervenientes e até mesmo por uma questão de lealdade."

j) "Salvo melhor e Douta opinião, o Senhor Magistrado Judicial ao agir como agiu, termos sustentados pela prova documental junta bem como pelas diversas queixas referidas, fazem-me crer pela suspeição dos critérios utilizados pelo Senhor Magistrado em causa pois são desconformes à Lei e ao Direito."

7. Em 08-09-2011, A...apresentou, no Conselho Superior da Magistratura, uma queixa contra o Juiz de Direito C..., onde, além do mais, escreveu:

a) "O senhor juiz de direito usou daquilo que classifico de reserva mental aquando dos interrogatórios (...) e é neste contexto que entendo a postura que ficou espelhada na já mencionada acta."

b) "O senhor juiz de direito denunciado deveria ter informado o signatário logo no início do acto enquanto juiz de turno (...) na medida em que tal situação criava a natural suspeição quanto à posição a assumir quanto aos arguidos (…). Foi parcial e fez reflectir o seu azedume pessoal na posição escrita que sustentou."

c) "(...) é fácil de constatar que a mesma encontra-se eivada, efectivamente, de opiniões pessoais do mesmo, não fundadas ou, até mesmo, reveladoras de um pré-conceito, (...)."

8. Os arguidos A...e B... agiram com o propósito concretizado de ofender gravemente, C..., na sua qualidade de juiz, na honra e na consideração que lhe são devidas, bem sabendo que este se encontrava no exercício das suas funções.

9. Bem sabiam que as afirmações que escreviam não correspondiam à verdade e que eram atentatórias do bom nome e ofensivas da honra e consideração.

10. Agiram os arguidos, sempre deliberada, livre e conscientemente, e de forma concertada, bem sabendo que tais condutas não lhes eram permitidas e que eram censuradas e punidas por lei (…)».

*

Embora não seja visada nos requerimentos de abertura da instrução, a qualificação das descritas condutas imputadas aos arguidos no quadro da agravação prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 183º do C. Penal (calúnia) merce apreciação imediata, já que baseada unicamente no texto da acusação, sem necessidade sequer de apreciação da suficiência indiciária da mesma.

Para efeitos, para o que aqui interessa, do crime de difamação, a agravação fundada em calúnia ocorre quando «tratando-se da imputação de factos, se averiguar que o agente conhecia a falsidade da imputação» (artigo 183º, n.º 1, al. b), do C. Penal). Os trechos das peças processuais citados na acusação não fazem, em bom rigor, qualquer imputação de factos falsos, traduzindo quase na totalidade juízos sobre factos, apreciações de condutas, conclusões e opiniões. Dizer-se que uma sentença se funda em opiniões e convicções pessoais negativas, reflectindo pré-juízo negativo e preconceito do seu autor, não constitui a imputação de um qualquer facto, mas a emissão de juízos de valor sobre uma decisão judicial e a motivação que a ela presidiu. O mesmo vale quanto à afirmação de que o aqui assistente agiu com reserva mental e abuso de poder ou que reduziu direitos, liberdades e garantias dos arguidos a um capricho pessoal ou ainda que foi parcial e fez reflectir o seu azedume pessoal e pré-juízo.

O único conjunto de afirmações que poderia sustentar alguma dúvida é aquele em que se descreve o alegadamente ocorrido na diligência de 04/08/2011, dizendo que o aqui assistente interrompeu e impediu o aqui arguido A...de responder à promoção do Ministério Público, impedindo-o de exercer plenamente a defesa dos seus constituintes. Importa notar que no segmento em análise se remete expressamente para o protesto lavrado em acta, não podendo interpretar-se as afirmações citadas na acusação desligadas dessa actuação processual do aqui arguido A..., na qualidade de Defensor dos arguidos detidos. Ora, como decorre da acta de tal diligência, o protesto surge, na tese do aqui arguido, por ter sido alertado pelo aqui assistente, Juiz de Turno, enquanto respondia à promoção do Ministério Público no tocante as medidas de coacção a aplicar ao arguido, de que não poderia continuar a desenvolver essa resposta nos moldes em que o vinha fazendo, devendo “ser conclusivo”. O aqui arguido entendeu que, ao “não poder explanar, contextualizando o seu raciocínio, não pode(ria) cabalmente exercer a função de defesa dos direitos fundamentais dos seus constituintes” (cfr. fls. 51/52). No despacho subsequente, o aqui assistente C... esclareceu ter-se limitado a advertir o Defensor que deveria cingir-se ao themadecidendum, em vez de continuar a referir as generalidades que vinha invocando.

Nesse contexto, é incontroverso que o Defensor A...foi interrompido pelo Juiz de Turno C... na resposta que fazia à promoção do Ministério Público. A afirmação de que essa resposta foi impedida deve ser interpretada no contexto sustentado no protesto, isto é, que na opinião do aqui arguido, a limitação imposta pelo Juiz impedia o cabal exercício das funções cometidas ao Defensor. Ou seja, está em causa, mais uma vez, uma opinião e não propriamente a imputação de factos, independentemente do fundado ou infundado dessa opinião e do que logo na ocasião foi esclarecido pelo despacho judicial que se pronunciou sobre i protesto apresentado.

Nessa medida, desde logo, nunca poderia a factualidade imputada aos arguidos ser considerada integradora do tipo agravado de difamação, com fundamento em calúnia, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 183º do C. Penal.

*

No que respeita às questões efectivamente suscitadas pelos arguidos, a primeira a apreciar é a que se prende com a autoria do requerimento de habeas corpus subscrito por ambos os arguidos, mas que ambos afirmam ser da exclusiva autoria de A..., vinculando apenas este.

Como os arguidos referem, a dita peça processual é, claramente, da autoria singular de A..., sendo sempre assumida a narração na primeira pessoa do singular (artigos 11º, 12º, 15º, 16º, 18º, 19º, 20º e 24º - fls. 34 a 43), sendo o “signatário”, aquele que foi Defensor do arguido D... no processo n.º 191/06.7GALNH do Tribunal da Lourinhã, que interveio no processo n.º 399/11.3JDLSB como Defensor dos arguidos peticionantes do habeas corpus, nomeadamente no interrogatório judicial dos mesmos em 04/08/2011 e que apresentou queixa contra o aqui assistente no Conselho Superior da Magistratura pelos factos expostos nessa peça processual. Ou seja, é inequívoco que o “signatário” dessa peça é unicamente A..., não podendo minimamente sustentar-se face ao teor literal da mesma que o que nela se afirma foi igualmente da autoria de B....

A asserção feita nesse sentido pela acusação assenta unicamente na circunstância de o requerimento de habeas corpus se encontrar assinado por ambos os arguidos. A justificação dada por ambos os arguidos para essa assinatura conjunta, além de não ser contrariada por qualquer outro elemento de prova, é perfeitamente plausível. Na verdade, considerando o tom claramente pessoal da peça no que toca a A..., nem sequer faria sentido que fosse subscrita por qualquer outra pessoa. O facto de o ter sido por aquele que, na altura, era advogado-estagiário do qual era patrono, justifica-se, à luz de regras de experiência normal, com procedimento normalmente usado nestes casos, em que o advogado-estagiário subscreve a peça elaborada pelo patrono, sem que tenha qualquer intervenção na sua feitura ou isso signifique adesão esclarecida a tudo quanto aí se afirma. É verdade que o que se prevê no n.º 2 do artigo 29º do Regulamento Nacional e Estágio de Advocacia[1], é apenas que «os patronos devem permitir, sempre que possível, o patrocínio conjunto com os seus advogados estagiários e a subscrição por estes das peças em cuja elaboração tenham colaborado». Porém, na prática, ocorre muitas vezes a subscrição por advogado-estagiário de peças do seu patrono em cuja elaboração nunca colaborou. De resto, como é bom de ver, poucos ou nenhuns advogados-estagiários recusariam assinar peça elaborada pelo patrono ou ousariam exprimir reservas quanto a afirmações dela constantes.

Em suma, tudo leva a crer que B... se limitou a assinar peça integralmente elaborada por A..., não podendo ser considerado autor da mesma ou responsabilizado pelo que nela se afirma, impondo-se quanto ao mesmo, desde já, concluir pela imperatividade de proferir despacho de não pronúncia.

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No demais, o que está em causa é aferir se as afirmações da autoria de A...constantes da acusação são objectivamente ofensivas da honra e consideração do assistente, no contexto da intervenção do primeiro como Defensor e do segundo como Juiz e no quadro do tipo legal do crime de difamação. No caso de se concluir pela afirmativa, é manifesto que não poderá relevar-se a tese do arguido de que nunca pretendeu ofender a honra e consideração do assistente, já que a verificação objectiva da difamação implica a comissão do crime pelo menos a título de dolo necessário, sobretudo quando o agente é advogado de profissão.

Em termos gerais o que ressalta dos autos é um conjunto de reacções excessivas, desproporcionadas e com recurso a terminologia deselegante, ácida e absolutamente deslocada, evidenciando animosidade entre Advogado e Juiz em intervenções em dois processos distintos, num espaço temporal curto. Admitir que os advogados em geral, e particularmente na veste de defensores, tenham que agir de forma apaixonada para bem exercer a sua obrigação de defesa dos seus constituintes ou patrocinados, é evidência que não carece de reforço no actual estado da consciência jurídica nacional. Usar tal prerrogativa para elaborar peças em que a “paixão” se revela de tal modo que parece ter sido o arguido e não o advogado a elaborá-las, é menos sustentável. Sobretudo quando os excessos de linguagem nem sequer têm valor como recursos estilísticos, muito menos como reforço argumentativo das posições sustentadas e, por isso, em nada contribuem para a defesa dos interesses do constituinte ou patrocinado pelo advogado que a eles recorre.

Historicamente, é relativamente recente a massificação de situações em que, em direito penal ou disciplinar, são apreciadas trocas de palavras entre Advogados e Juízes, ou Advogados e Magistrados do Ministério Público, ou Juízes e Magistrados do Ministério Público. A explicação pode ser a de que a evolução dos tempos foi reduzindo as formas cerimoniosas de tratamento entre tais intervenientes em processos judiciais, restando apenas formas de tratamento vazias de conteúdo e por vezes claramente em oposição à forma como ocorre o efectivo relacionamento entre tais intervenientes. Mas também, concomitantemente, que a sociedade, designadamente a portuguesa, evoluiu, quer no que toca ao acesso por muitas mais pessoas a tais profissões, quer no que toca à explosão de litígios sujeitos à apreciação do Tribunal. Por outro lado, o ênfase durante muito tempo dado e só há pouco abandonado, à responsabilização das partes, com poucos poderes oficiosos conferidos aos Juízes, levava a que os litígios se mantivessem essencialmente na órbita das partes e, por vezes, dos respectivos mandatários. A contínua (e por vezes absurda) atribuição de poderes-deveres ao Juiz de intervenção no processo, mesmo em sede cível, levou a que este se apresente, muitas vezes, como efectivo oponente da pretensão de uma parte, transportando para a arena do litígio, além das partes, o próprio decisor, que antes de o ser quanto à questão essencial, é o conformador do processo nas inúmeras intervenções que é obrigado a ter no decurso do iter processual. Assim, por muito que os Advogados visem a defesa dos interesses dos seus representados, que o Ministério Público seja objectivo e os Juízes imparciais, a verdade é que são cada vez mais frequentes as situações em que os Advogados vejam os Juízes e Magistrados do Ministério Público como efectivos oponentes às pretensões dos seus clientes, os Magistrados considerem que os Advogados excedem a representação dos seus clientes, o Ministério Público veja no Juiz (mormente no de Instrução Criminal), um obstáculo às suas pretensões processuais, etc. Ou seja, o evoluir dos tempos, da sociedade e, consequentemente ou não, a profusão, por vezes esquizofrénica, da legislação processual, arrastaram para a arena de conflito que constitui qualquer pleito submetido a juízo também os Magistrados e, quanto aos Advogados, em moldes diferentes do que antes sucedia.

Além da estranheza decorrente da inserção nessa arena, até então de algum modo objecto de observação, mas não de intervenção, tais intervenientes processuais foram confrontados com o interesse, por vezes macabro, de elementos alheios aos processos nas incidências dos mesmos. Neste país, mais de trinta anos depois da reinstauração da democracia, tudo quanto se relaciona com processos judiciais tem ainda grande dificuldade em relacionar-se com o interesse da sociedade, nomeadamente através da imprensa. Mais grave, verifica-se amiúde que os Magistrados não sabem conviver com a crítica externa às suas decisões, tanto mais quando os habituais críticos demonstram inenarrável ignorância sobre o mais elementar acto processual.

Para agravar esta situação, as questões relativas a ofensas à honra entre Magistrados ou entre estes e Advogados, ou vice-versa, tanto têm tratamento em sede criminal, como meramente disciplinar. Na primeira, são Juízes quem decide, podendo sempre achar-se que mais facilmente vêem o ponto de vista dos Juízes do que o dos Advogados, por exemplo. Em sede disciplinar, ao contrário do que sucede nas Magistraturas, os ilícitos praticados por Advogados são decididos por órgão exclusivamente composto por Advogados, o que pode legitimar suspeição similar à acima referida. Em certos casos, inexplicavelmente, tem havido a tendência de considerar como integrador de crimes de injúria ou difamação algo que foi considerado irrelevante para efeitos disciplinares, o que faz letra morta da ultima ratio que deveria assistir ao direito penal.

A verdade é que a lei assegura a liberdade processual do advogado na defesa dos interesses que representa, mas também defende a honra e consideração dos Juízes, criminalizando ofensas a tais valores. O equilíbrio entre tais direitos conflituantes deverá fazer-se ponderadamente, tendo em conta, por um lado, que a liberdade do advogado não é ilimitada, devendo conter-se nos limites do necessário à representação forense dos seus constituintes ou patrocinados e, por outro lado, que a publicidade que rege o essencial dosactos de um Juiz, bem como as repercussões dos mesmos na comunidade, impõem a possibilidade efectiva de serem tais actos criticados, interna e externamente. Todavia, deixar aos Juízes a apreciação do que seja indispensável à defesa dos interesses da parte é perigoso, pelo que a limitação deve ser feita pela negativa: haverá crime quando a imputação não pode, de todo, relacionar-se com a defesa dos interesses do representado.

Adoptando um referencial de uma democracia mais estabilizada (a alemã), a jurisprudência portuguesa tem aderido, em geral, à posição expressa por Costa Andrade[2], aderindo à síntese da discussão da doutrina e jurisprudência alemãs. Assim, como se afirma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07/03/2007[3]:

«(…) No conflito entre o direito à honra e a liberdade de expressão, tem vindo a verificar-se um ponto de viragem, tendo por base e fundamento o relevo, a dignidade e a dimensão da liberdade de expressão constitucionalmente consagrada. Naquele concreto conflito vem sendo a liberdade de expressão considerada numa dupla dimensão, concretamente, como direito fundamental individual e como princípio conformador e essencial à manutenção e aprofundamento do Estado de Direito democrático, reconhecendo-se que o exercício do direito de expressão, designadamente enquanto direito de informar, de opinião e de crítica, constitui o próprio fundamento do sistema democrático -, o que justifica a assunção de uma nova perspectiva na resolução do conflito.

Neste contexto, temos vindo a defender, na esteira de orientação assumida por Costa Andrade, baseada em largo sector da doutrina alemã e na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão, deverem-se considerar atípicos os juízos de apreciação e de valoração crítica vertidos sobre realizações científicas, académicas, artísticas, profissionais, etc., ou sobre prestações conseguidas nos domínios do desporto e do espectáculo, quando não se ultrapassa o âmbito da crítica objectiva, isto é, enquanto a valoração e censura críticas se atêm exclusivamente às obras, às realizações ou prestações em si, não se dirigindo directamente à pessoa dos seus autores ou criadores, posto que não atingem a honra pessoal do cientista, do artista, do desportista, do profissional em geral, nem atingem a honra com a dignidade penal e a carência de tutela penal que definem e balizam a pertinente área de tutela típica.

Mais entende aquele insigne Mestre de Coimbra que a atipicidade da crítica objectiva pode e deve estender-se a outras áreas, aqui se incluindo as instâncias públicas, com destaque para os actos da administração pública, as sentenças e despachos dos juízes, as promoções do Ministério Público, as decisões e o desempenho político de órgãos de soberania como o Governo e o Parlamento.

Por outro lado, entende que a atipicidade da crítica objectiva não depende do acerto, da adequação material ou da “verdade” das apreciações subscritas, as quais persistirão como actos atípicos seja qual for o seu bem fundado ou justeza material, para além de que o correlativo direito de crítica, com este sentido e alcance, não conhece limites quanto ao teor, à carga depreciativa e mesmo à violência das expressões utilizadas, isto é, não exige do crítico, para tornar claro o seu ponto de vista, o meio menos gravoso, nem o cumprimento das exigências da proporcionalidade e da necessidade objectiva.

Defende mesmo que se devem considerar atípicos os juízos que, como reflexo necessário da crítica objectiva, acabam por atingir a honra do visado, desde que a valoração crítica seja adequada aos pertinentes dados de facto.

Esclarece, no entanto, que se deve excluir a atipicidade relativamente a críticas caluniosas, bem como a outros juízos exclusivamente motivados pelo propósito de rebaixar e humilhar e, bem assim, em todas as situações em que os juízos negativos sobre o visado não têm nenhuma conexão com a matéria em discussão, consignando expressamente que uma coisa é criticar a obra, outra muito distinta é agredir pessoalmente o autor, dar expressão a uma desconsideração dirigida à sua pessoa.

Certo é que parte da jurisprudência dos nossos tribunais superiores vem sufragando a orientação acabada de aludir - sendo que de acordo com a mesma entendemos que o direito de expressão, na sua vertente de direito de opinião e de crítica, quando se exerça e recaia nas concretas áreas atrás referidas e com o conteúdo e âmbito mencionados, caso redunde em ofensa à honra, se pode e deve ter por atípico, desde que o agente não incorra na crítica caluniosa ou na formulação de juízos de valor aos quais subjaz o exclusivo propósito de rebaixar e de humilhar (…)[4]».

Assim, desde que dirigidos à obra e não ao seu autor (no caso concreto, aos despachos e intervenções do Juiz nessa qualidade e não ao aqui assistente), é irrelevante que a crítica seja acertada, adequada, verdadeira, violenta, grosseira ou injusta. O que tem é que conter-se dentro dessa crítica, não se destinando unicamente a ofender, achincalhar ou enxovalhar o visado.

E mais. Admite-se que as qualidades atribuídas criticamente a uma obra sejam transferidas para o seu autor. Em concreto, refere Costa Andrade que é tão atípica a conduta do crítico que estigmatiza uma acusação como persecutória ou iníqua, como aquele que refere ter o Magistrado do Ministério Público tido naquele processo uma conduta persecutória ou iníqua. De onde se retira que cabe no âmbito da crítica objectiva a imputação ao autor de uma acusação de características atribuídas a tal obra, mesmo que atinjam o cerne da função (a objectividade), desde que não sejam generalizadas tais qualidades para além da actuação nesse processo. Ou seja, admite-se que se critique uma sentença como injusta ou parcial ou, o que dá no mesmo, a actuação do juiz seu autor como injusta ou parcial nesse processo, sem que com isso se preencha o tipo legal do crime de difamação ou injúria.

Assim sendo, a questão é, no caso dos autos, se existe crítica de obra ou apenas do seu autor, se a crítica ao Juiz é mera atribuição ao mesmo de características imputadas ao seu despacho ou se, ao contrário, existe intenção única de ofender o assistente, mormente mediante imputação genérica, desligada da obra sob crítica.

As afirmações transcritas no artigo 3º da acusação respeitam exclusivamente à sentença, da autoria do aqui assistente, proferida no processo n.º 191/06.7GALNH. O infundado dessas afirmações e, mais genericamente, dos fundamentos do recurso em que as mesmas foram empregues, ressalta à saciedade dos considerandos feitos no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que o apreciou, datado de 19/10/2011, concluindo inclusivamente que «o recorrente fez um uso dilatório do instituto do recurso», condenando-o em taxa sancionatória excepcional (cfr. fls. 268 a 282). Porém, o que aqui releva é que, embora infundadas, excessivas e grosseiras, as afirmações em causa circunscrevem-se à crítica da sentença de que se recorreu, não se dirigindo de forma genérica ao assistente. Estão em causa juízos de valor sobre uma concreta actuação do aqui assistente, não sendo posta em causa características pessoais do mesmo ou, de modo geral, a sua honra e consideração.

No que toca à queixa apresentada no Conselho Superior da Magistratura e ao requerimento de habeas corpus, os trechos da primeira selecionados na acusação foram reproduzidos no segundo, estando em causa, no essencial, as imputações à actuação do aqui assistente que o arguido classifica como ilegal, decorrente de abuso de poder concretizado em atentado ilegítimo à liberdade individual, grave e grosseiro, enfermando de reserva mental, reduzindo direitos, liberdades e garantias dos arguidos a capricho pessoal, agindo o assistente de forma parcial e fazendo reflectir o seu azedume pessoal e pré-juízo.

Os termos usados são, todos eles, excessivos, gongóricos até, sendo manifesto que facilmente se lograria igual ou melhor resultado com uso de linguagem mais conforme ao cumprimento do dever de urbanidade imposto pelo artigo 90º do Estatuto da Ordem dos Advogados. Para além disso, alguma da terminologia usada tem um significado preciso em direito, sendo que o arguido, advogado de profissão, tinha obrigação de saber que a usava de forma absolutamente descontextualizada. O ponto porém, reitera-se, é saber se existe comissão do crime de difamação agravada ou e, pelo contrário, a apreciação desses vícios tem cabimento noutras sedes, mormente a disciplinar.

Desde logo, importa notar que nunca poderia interpor-se habeas corpus sem se invocar a ilegalidade da prisão (artigo 222º do C. P. Penal), o que por seu turno sempre constituirá atentado ilegítimo à liberdade individual. Daí que, no contexto da interposição de uma tal providência, tais afirmações não constituam a prática de crime de difamação, quer porque dirigidas à actuação do Juiz e não à pessoa do mesmo, quer porque necessárias à prática do acto em causa. A esmagadora maioria dos habeas corpus são julgados improcedentes, o que obviamente não implica a prática de difamação por quem os requer na medida em que, reitera-se, não releva para a comissão de crimes contra a honra o acerto, justeza ou adequação da crítica, mas sim se existe ataque dirigido à honra da pessoa de um Juiz e não mera crítica objectiva de uma sua concreta actuação.

O que mais impressiona nas afirmações produzidas pelo arguido é a imputação ao assistente de actuação enfermando de reserva mental e com abuso de poder. Para qualquer jurista, há reserva mental sempre que é emitida uma declaração contrária à vontade real com o intuito de enganar o declaratário, uma vez que assim é definida a figura no n.º 1 do artigo 244º do C. Civil. Abuso de poder, pelo menos para quem trabalha com direito criminal, é a conduta de funcionário que abusa de poderes ou viola deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa (artigo 382º do C. Penal).

A verdade é que o arguido esclarece cabalmente, nos segmentos citados na acusação, que usa tais termos para caracterizar situações completamente distintas daquelas a que se aplicam, numa originalidade bizarra para um advogado no exercício de funções. Assim, o que estaria em causa não seria, em rigor nenhuma reserva mental ou abuso de poder, mas pura e simplesmente o facto de o aqui assistente não ter dito ao arguido, aquando da diligência de 04/08/2011, que havia participado criminalmente do mesmo. Se é verdade que não se compreende por que razão o arguido decidiu qualificar como reserva mental e abuso de poder uma mera omissão de comunicação pelo assistente de que participara criminalmente do arguido, não menos verdade é que este último esclarece cabalmente o que erradamente qualifica nesses termos. Nessa medida, não pode concluir-se que a ofensa da honra e consideração do assistente deriva de se lhe imputar a prática de actos tendentes a enganar terceiros ou a praticar um crime, uma vez que o arguido esclarece que não imputa verdadeiramente ao assistente a prática de factos enquadráveis nas definições das expressões que usa descontextualizadamente.

À falta de melhor explicação, é-se tentado a concluir que as expressões “reserva mental” e “abuso de poder” são usadas nas peças em análise em sentido (muito) figurado, não pretendendo significar o que normalmente significam. E, na medida em que logo se explica o alcance do que se pretende com elas significar, o que se deve atender é ao que se diz pretender dizer e não ao que normalmente se pretende exprimir ao usá-las. De facto, não faria sentido assumir-se que o arguido pretendia imputar ao assistente efectiva reserva mental e abuso de poder quando o mesmo esclarece que o que pretende dizer é outra coisa distinta.

Na tese do arguido, o aqui assistente deveria ter-lhe comunicado, logo no início da diligência de 04/08/2011, que participara criminalmente dele, na medida em que isso seria fundamento de recusa da sua intervenção no processo. É evidente que a omissão dessa comunicação não traduz reserva mental, mas a verdade é que o arguido diz expressamente que assim “classifica” essa omissão. E também diz que o abuso de poder se traduz na decisão do aqui assistente no âmbito da mencionada diligência sem nunca ter feito a comunicação que, em seu entender, se impunha.

No fundo, a alegação do aqui arguido, mais que justificadora do habeas corpus, teria lugar em incidente de recusa de juiz, como é notado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que indeferiu tal providência (cfr. fls. 537 a 552). Mas também é compreensível que essa recusa não se justificasse quando a intervenção do aqui assistente ocorreu em turno de férias, não sendo de esperar que voltasse a desempenhar funções no âmbito desse processo.

A sustentação de que o assistente deveria ter dado conhecimento ao arguido de que participara criminalmente dele não é absurda. Trata-se efectivamente de circunstância que «reveste gravidade e seriedade bastantes para gerar desconfiança sobre a imparcialidade e justificar a (…) escusa» de Juiz[5], nos termos do artigo 43º do C. P. Penal. E, assim sendo, é perfeitamente defensável sustentar que deverá o Juiz comunicar um tal fundamento de recusa, mais não seja porque, no caso de queixa apresentada por um advogado contra um Juiz, essa comunicação é imposta pelo artigo 91º do Estatuto da Ordem dos Advogados. Curiosamente, o arguido, que não poupa encómios à omissão do Juiz, que não tem norma semelhante no seu Estatuto, não comunicou ao aqui assistente a queixa contra ele apresentada no Conselho Superior da Magistratura…

A questão é que, nem essa incoerência, nem o facto de inexistir obrigação expressa do Juiz proceder nos termos pretendidos pelo arguido (como salientou o Conselho Superior da Magistratura – cfr. fls. 264 a 266), tornam difamatória a sustentação feita nessa parte das peças da autoria do arguido. Pelo contrário, ainda que não existisse fundamento verdadeiro ou que a crítica fosse excessiva ou mesmo injustificada, a verdade é que ficou aberta a porta para o aqui arguido invocar fundamento de recusa do aqui assistente que, nos termos da lei e com o aval da jurisprudência, assentaria na existência de motivo apto a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do Juiz.

De onde resulta que, mais do que reflexo de uma intenção primária ou exclusiva de difamar, injuriar ou caluniar o aqui assistente e pese embora o mau gosto, rudeza, desproporção e imprecisão das imputações feitas, sobretudo quando tal em nada relevou (nem poderia nunca relevar) na apreciação das peças subscritas pelo arguido A..., o que existe é a crítica de concretas actuações do Juiz, da sua obra. Ou seja, conclui-se que as imputações transcritas na acusação estão abrangidas pelo direito de crítica de quem representa como advogado arguidos em processos judiciais, em reacção contra decisão que lhes é desfavorável, parte delas feitas depois de conhecer a participação criminal feita pelo aqui assistente, afastando um mero propósito de calúnia ou injúria deste e, dessa forma, a tipicidade da conduta. É que a tipicidade da conduta não depende do acerto, adequação, moderação, justeza, verdade ou rigor da crítica, mas sim da existência de calúnia ou de mera intenção de injuriar ou difamar o denunciante. Ora, embora deslocadas, inapropriadas, excessivas, muito pouco rigorosas e em tom, no mínimo, deselegante e, por isso, pouco adequado a um Advogado, as afirmações feitas têm relação com as razões invocadas para interpor recurso, habeas corpus e apresentar queixa no Conselho Superior da Magistratura. Por outro lado, embora algumas sejam feitas em tom genérico, as imputações dizem respeito apenas à actuação do aqui assistente num contexto circunscrito no tempo e relacionado entre si, não atingindo a competência, seriedade ou qualidades pessoais ou profissionais do visado no seu conjunto.

Para o caso de o acima argumentado parecer estéril e vago, ilustra-se a posição aqui sustentada com alguns exemplos práticos apreciados em Tribunais Superiores. Assim, por exemplo, com recurso aos argumentos teóricos acima expendidos, considerou o Supremo Tribunal de Justiça ser atípica a conduta de Procurador da República que, referindo-se a actuação de Procurador-Adjunto, refere ser incorrecto e acintoso o por ele afirmado, bem como intelectualmente desonesto e à falsa fé um despacho daquele, assumir comportamento de profundo desrespeito e merecedor de reacção disciplinar condizente, usar de grosseira linguagem e denotadora de falta de elementares princípios de respeito e educação, ter conduta de natureza gravemente estrutural, afrontar e desrespeitar, a seu bel-prazer, o seu imediato superior hierárquico e responder evasiva e insolentemente[6].

Igualmente atípica foi considerada a afirmação genérica, embora baseada num único comportamento criticado (tal como se sustenta ter ocorrido nos autos), feita por Presidente de Tribunal Colectivo relativamente a Advogado, na decisão de irregularidade processual suscitada, com o seguinte teor: «como já se tornou hábito, distorce, conscientemente, a realidade do que se passa na audiência»[7].

O mesmo sucedendo quanto a despacho judicial onde, referindo-se a peça processual apresentada no processo se diz: «(…) ainda que supuséssemos correcta a articulação dos factos por parte da ré (o que manifestamente não sucede atento o chorrilho de conclusões sem suporte fáctico alegado) (…); (…) infelizmente, e ao longo de um arrazoado de 56 páginas (…) a Ré muito escreve e nada diz. Cremos que não de forma intencional, pois entender o contrário seria concluir de forma clara, e como base no próprio facto de elaborar a presente contestação, que a mesma é um atentado à inteligência do juiz que a tem de apreciar enquanto articulado (peça processual) que pretende ser (…); (…) como é que alguém formado em Direito, pode ler os artigos 100º a 104º da denúncia, e daqui concluir pela existência de elementos objectivos e subjectivos de determinados tipos de crime (…) como é que alguém, licenciado em Direito, pode, com base apenas naquilo que temos (…) afirmar que nele estão contidos factos (…); (…) a ré deveria escrever menos em quantidade e melhor em qualidade, com a necessária precisão (…) a presente contestação consegue ser menos precisa que a nebulosa de Magalhães, vista a olho nu a partir do hemisfério Sul do planeta, pese embora os anos luz a que a mesma se encontra da terra (…) diríamos mesmo que é um buraco negro prolixo em que aquelas cinquenta e seis páginas de contestação formam o perímetro do “horizonte de eventos” no interior do qual se encontra a singularidade (…) se é assim para as sentenças, não percebemos por que razão o legislador não adopta o mesmo raciocínio e passa a fulminar articulados como aquele que ora apreciamos com o desvalor da nulidade, não é com o permitir articulados nestes moldes que se consegue a tão almejada justiça material. A contestação em análise é um exemplo daquilo que não deve ser uma contestação (…) A contestação em apreço afigura-se-nos tão falha de factos e tão eivada em conclusões que qualquer convite ao aperfeiçoamento (neste caso em que o mesmo não é vinculado) consubstanciaria uma verdadeira substituição do juiz à parte e ao seu mandatário, com flagrante e injustificada violação do princípio da igualdade de armas (…)»[8].

O que igualmente se sustenta quanto a afirmações feitas por Inspector do Ministério Público relativamente a actuação de Procurador da República, dizendo que este agiu sem pudor, produzindo uma infame insinuação; foi insensato e desrespeitador numa crítica feita, mostrando-se ofuscado com os dinheiros públicos; rematou recurso com insolente imputação da violação das regras da boa-fé, não ficando por aí o desaforo; agiu com doentia e omnipresente obsessão, redigindo um deplorável escrito, onde não resistiu a uma torpe e infame insinuação; juntando ilicitamente, maldosamente e sem pejo cópia de correio electrónico e tecer extravagantes afirmações, possuído de imodéstia, desnorte e ser acintoso[9].

Atipicidade afirmada também, sempre com recurso à posição assumida nos autos relativamente ao afirmado em relatório de inspecção, relativamente a Escrivã de Direito, nos seguintes termos: «(…) A Sr.ª Escrivã tem por companheiro o anterior Secretário do Sr. Inspector do CSM, Dr. FF, que tinha agendado a deslocação a este Tribunal para inspeccionar o MMº Juiz do 2º Juízo, nada tendo aquela visita inspectiva que ver com o 1.° Juízo e sua secção (…); (…) chegada a Inspecção à Comarca, a Sr.ª Escrivã levou a que fosse efectuado aquele levantamento à Secção de Processos do 1º Juízo pelo Sr. Secretário da Inspecção, utilizando aqueles laços de proximidade (…); (…) munida deste conhecimento a Sr.ª Escrivã literalmente despejou cerca de 800 processos com despachos por cumprir, nessa data, já com longos meses de atraso (…); (…) no âmbito desse levantamento foram encontrados nos armários dos três Escrivães Adjuntos, o número global de cerca de 800 processos com despachos por cumprir com largos meses de atraso (…); até Abril de 2005 aqueles processos encontravam-se com a Sr.ª Escrivã (…); (…) em Junho de 2005, aquando da "visita relâmpago", aqueles processos estavam com os escrivães adjuntos, por cumprir há longos meses, sendo-lhes imputáveis os atrasos neles documentados de forma objectiva, para quem desconhecesse esta realidade (…); (…) no âmbito desse levantamento foram encontrados "na posse" daqueles Adjuntos 800 processos nos moldes descritos (…); (…) de forma premeditada e com o intuito de silenciar os funcionários que a criticavam no seio da secção, a Sr.ª Escrivã fabricou um conjunto de factos tendentes a, num primeiro momento, afastá-los da secção e, num segundo momento, motivar contra aqueles processos disciplinares relacionados com o atraso naqueles 800 processos (…); (…) a final apenas revelou a perturbação moral e profissional de quem o elaborou (a aqui Queixosa) e, bem assim, a sua mania da perseguição (…); (…) pois facilmente utiliza a sua autoridade para ocultar as suas falhas e incompetência e, mais grave, para prejudicar o outro, seja o seu antagonista ou não seja (…); (…) a Sr.ª Funcionária apresenta-se como uma pessoa má, no sentido que de actua deliberadamente com a intenção de prejudicar o próximo, falseando a verdade e adulterando os factos (…); (…) de facto só assim se percebe que uma pessoa que tem sempre a morte na boca, se furtasse a efectuar o referido exame (…); (…) a maldade em causa apresenta-se de forma insidiosa, pois a mesma utiliza o seu estado de debilidade física e o discurso de coitadinha e de vítima, para granjear a simpatia (rectius, a piedade) daqueles com quem se relaciona e, dessa forma, apresentar uma imagem de facto completamente avessa à sua natureza intrínseca (…); (…) naquela altura aproveitou o ensejo para referir o que era ficar em casa a pensar na morte, o que nos leva a perguntar: se a mesma não quer ficar em casa a pensar na morte, porque razão não vem trabalhar, mas como Escrivã Adjunta? É apenas o cargo de Escrivã que tem aquele efeito anestesiante, ou este efeito resulta da sua ligação oportunista ao poder? (…); (…) apesar de "andar sempre com a morte na boca", felizmente até hoje a Sr.ª Funcionária não faleceu. Mas já dizia a minha avó que não se brinca com coisas sérias e que, de tanto falar do mal, qualquer dia o mesmo chega. De igual modo, de tanto se falar naquilo que não existe, qualquer dia ninguém acredita: lembremo-nos da história do menino e do lobo - tantas vezes o mesmo disse que vinha o lobo e era mentira, que quando o lobo veio, ninguém acreditou nele (…); (…) pelo contrário, no próximo movimento dos funcionários de justiça a mesma está destinada a outro Tribunal, também para exercer as funções de Escrivã. Ora é manifesto que aquilo que sucedeu neste Tribunal irá acontecer naquele outro; assim como aquilo que aconteceu no Tribunal da Praia da Vitória, de onde a mesma veio, aconteceu neste Tribunal de Angra do Heroísmo. A Sr.ª Escrivã empandeirou o Tribunal da Praia da Vitória e conseguiu o mesmo resultado com este 1º Juízo, no que tange ao aumento da pendência processual (…)»[10].

Um último exemplo pode ser encontrado no Ac. da RP de 16/09/2009[11], onde se considera que não é ofensiva da honra e consideração do Juiz visado a afirmação “isto cheira-me muito a jogo de influências”, dirigida a intervenção sua num processo.

Verifica-se pois que, comparadas com os exemplos descritos, as afirmações constantes da acusação não destoam particularmente. Quer no que toca ao tom, à extensão das imputações de juízos, à gravidade das condutas imputadas, à generalização de condutas únicas e ao cerne das qualidades ou características dos visados atingidas com as imputações e juízos, verifica-se que condutas iguais ou mais graves que a referida nos autos têm sido consideradas atípicas pelos Tribunais Superiores, mormente pelo Supremo Tribunal de Justiça, com fundamento nos argumentos acima usados para concluir de igual forma no caso em apreço. E, pese embora a conduta do aqui arguido A...não poder merecer aplauso ou sequer compreensão, mas apenas condenação, porque excessiva, de mau gosto e injustificada, tal censura não pode ser jurídico-penal, já que é atípica para estes efeitos a actuação indiciada. O que impõe, por si só, a imperatividade de proferir despacho de não pronúncia.

*

V.

Assim, face a todo o exposto, decido não pronunciar os arguidos B... e A...pela prática dos crimes de difamação caluniosa que lhes foi imputada, ou por qualquer outro crime, ordenando o oportuno arquivamento dos autos.

Sem custas.

Notifique e entregue-me certidão desta decisão.»

                                          *

2. Apreciando

Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

A questão essencial a decidir no presente recurso consiste em saber se os elementos constantes dos autos revestem natureza indiciária suficiente para submeter os arguidos a julgamento pela prática dos crimes de difamação caluniosa que lhes são imputados na acusação do Ministério Público.

O Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão de 11 de Outubro de 2001, decidiu que o acórdão da Relação que, em recurso, confirmar a decisão de não pronúncia, por insuficiente indiciação dos factos acusados, constitui decisão absolutória, ainda que formal, visto que determina a absolvição da instância, não admitindo, consequentemente, recurso para o Supremo Tribunal de Justiça([2]).

E repetiu este julgamento em acórdão de 29 de Novembro de 2000 (Proc.º n.º 2113/00-3), de 5 de Abril de 2001 (Proc. n.º 870/01-5), de 15 de Novembro de 2001 (Proc. n.º 3652/01-5), de 6 de Fevereiro de 2002 (Proc. n.º 3133/01-3), de 7 de Fevereiro de 2002 (Proc. n.º 122/02-5), de 26 de Junho de 2002 (Proc.º 4224/01-3), de 12 de Dezembro de 2002 (Proc. n.º 4414/02-5), de 8 de Julho de 2003 (Proc. n.º 2304/03-5) e de 2 de Maio de 2006 (Proc. n.º 849/2006-5), entre outros.

Pode pois afirmar-se com segurança que constitui jurisprudência uniforme a que caracteriza o acórdão confirmatório de uma decisão de não pronúncia como acórdão absolutório para os efeitos previstos no artigo 400.º, n.º 1, al. d) e, consequentemente, no artigo 425.º do Código de Processo Penal.

Por isso, havendo confirmação do despacho recorrido, a Relação pode limitar-se a negar provimento ao recurso, remetendo para os fundamentos da decisão impugnada ao abrigo do disposto no artigo 425.º, n.º 5 do Código de Processo Penal.

No caso em apreço, a decisão recorrida é de não pronúncia.

Ora, analisados os autos, nomeadamente a decisão instrutória e a motivação do recurso, afigura-se-nos que a decisão recorrida não merece censura, quer quanto à decisão quer quanto aos respectivos fundamentos, de facto e de direito.

Ainda assim dir-se-á o seguinte:

Nos termos do artigo 26.º do Código Penal «é punível como autor quem executar o facto, por si ou por intermédio de outrem, ou tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução».

Como decorre da leitura deste preceito legal a verificação da comparticipação criminosa, sob a forma de co-autoria pressupõe uma decisão conjunta, com vista à obtenção de um determinado resultado, e uma execução, do mesmo modo conjunta.

Deste modo, os casos de comparticipação só são configuráveis mediante acordo prévio dos comparticipantes. A decisão conjunta, pressupondo um acordo que, sendo necessariamente prévio pode ser tácito, pode bastar-se com a existência da consciência e vontade de colaboração dos vários agentes na realização de determinado tipo legal de crime.

No que toca à execução não é necessário que cada um dos agentes tenha intervenção em todos os actos a levar a cabo para a concretização do resultado pretendido, bastando que a actuação de cada um, embora parcial, se integre no todo e conduza à produção do resultado.

Ora, ponderando todos os elementos de prova constantes dos autos, impõe-se concluir que os autos indiciam suficientemente que o autor do requerimento de habeas corpus foi apenas o arguido A..., na qualidade de defensor dos arguidos impetrantes de tal providência, não existindo, porém, quaisquer indícios de que o arguido B... tenta tido qualquer interferência na elaboração de tal requerimento.

É certo que o requerimento de habeas corpus encontra-se assinado por ambos os arguidos mas importa não esquecer que o arguido B... era, na data dos factos, advogado-estagiário do arguido A....

Da circunstância de o requerimento de habeas corpus se encontrar assinado por ambos os arguidos, assim contextualizada, não se pode retirar, sem mais, que os arguidos se tenham concertado quanto aos moldes em que o requerimento de habeas corpus iria ser escrito e quais as afirmações que, em concreto, iriam ser produzidas, ou sequer que o arguido B... deu o seu assentimento ainda que tácito aos termos do requerimento.

De resto, como se sabe, é muitas vezes apenas no momento que se escreve o texto que se escolhem as afirmações e/ou expressões a utilizar, mais ou menos fortes, e ocorrem ao seu autor raciocínios e/ou conclusões que se vão desenvolvendo e contextualizando à medida que escrita se desenrola. 

E, como salienta a decisão recorrida, poucos ou nenhuns advogados-estagiários recusariam assinar peça elaborada pelo seu patrono ou ousariam exprimir reservas quanto a afirmações dela constantes.

A verdade é que inexistem indícios suficientes de que os arguidos, de comum acordo redigiram e deram entrada, em 13-09-2011, no Tribunal de Torres Vedras, do requerimento de habeas corpus em causa, não se mostrando suficientemente indiciado que, por qualquer forma, o arguido B... participou ou colaborou relevantemente na redacção do texto daquele requerimento.

É que, para tal se concluir, não basta ter-se por indiciado, tendo em vista a relação patrono/estagiário existente entre os arguidos, que o requerimento se encontra subscrito por ambos.

Para a formulação daquele juízo conclusivo seria também essencial a ocorrência de indícios sobre a existência de um plano comum ou de um acordo na elaboração e entrega do requerimento, o que manifestamente não se verifica.

Por outro lado, tal como ensina o Professor Manuel da Costa Andrade, o exercício do direito de crítica “tende a provocar situações de conflito potencial com bens jurídicos como a honra e cuja relevância jurídico-penal está à partida excluída por razões de atipicidade. Tal vale designadamente para os juízos de apreciação e valoração crítica vertidos sobre realizações científicas, académicas, artísticas, profissionais, etc., ou sobre prestações conseguidas nos domínios do desporto e do espectáculo. Segundo o entendimento hoje dominante, na medida em que não se ultrapassa o âmbito da crítica objectiva - isto é: enquanto a valoração e censura críticas se atêm exclusivamente às obras, realizações ou prestações em si, não se dirigindo directamente à pessoa dos seus autores ou criadores - aqueles juízos caem já fora da tipicidade de incriminações como a Difamação. Já porque não atingem a honra pessoal do cientista, artista ou desportista, etc., já porque não a atingem com a dignidade penal e a carência de tutela penal que definem e balizam a pertinente área de tutela típica. Num caso e noutro, a atipicidade afasta, sem mais e em definitivo, a responsabilidade criminal do crítico, não havendo, por isso, lugar à busca da cobertura de uma qualquer dirimente da ilicitude.”([3]).

No seguimento da posição assumida clarifica o referido Mestre ainda três aspectos:

- A atipicidade da crítica objectiva não depende do acerto, da bondade das apreciações subscritas que continuarão com actos atípicos, sejam fundadas ou, pelo contrário, impertinentes;

- O direito de crítica, com este sentido, não tem limites, quer relativamente à carga depreciativa, quer relativamente à maior ou menor intensidade e/ou violência das expressões utilizadas;

- Estão submetidas à atipicidade da crítica objectiva os actos da administração pública, as decisões dos juízes e os actos do Ministério Público, bem como as decisões e actos dos demais órgãos de soberania([4]).

Finalmente entende o mesmo autor que, “[s]ão ainda de levar à conta da atipicidade os juízos que, como reflexo necessário da crítica objectiva, acabam por atingir a honra do autor da obra ou prestação em exame. Agora, porém, pressuposto que a valoração crítica seja ainda adequada aos pertinentes dados de facto, sc., à prestação objectiva sob escrutínio. (…) Nesta linha, o crítico que estigmatizar uma acusação como “persecutória” ou “iníqua”, pode igualmente assumir que o seu agente, normalmente um magistrado do Ministério Público teve, naquele processo, uma conduta “persecutória” e “iníqua” ou que ele foi, em concreto “persecutório” ou “iníquo”. (…) Trata-se, em qualquer caso, de sacrifícios ainda cobertos pela liberdade de crítica objectiva, não devendo ser levados à conta de lesões típicas.”([5]).

Nesta conformidade, impõe-se aos magistrados, particularmente expostos ao escrutínio público devido à posição de prevalência comunitária que ocupam, uma certa tolerância e uma predisposição para aceitarem, sem melindre, críticas que tenham como alvo os procedimentos que adoptem e as decisões que profiram no exercício das suas funções.

O arguido A...usou expressões de grande contundência, mais do que deselegantes, ofensivas, e seguramente injustas, sobre a conduta processual – actos e decisões – do ofendido.

Mas ainda assim, no concreto circunstancialismo em que foram usadas – motivação de recurso, queixa e requerimento de habeas corpus – entendemos que elas traduzem juízos de facto que são reflexo de uma crítica ácida mas objectiva, dirigida àqueles actos e decisões e não subjectivamente, à pessoa de quem as proferiu, devendo por isso, ter-se por atípicas tais expressões (ainda que os questionados actos praticados pelo ofendido tenham sido confirmados pelo tribunal de recurso).

Assim, porque a decisão recorrida não nos merece qualquer reparo, entendemos fazer uso do disposto no n.º 5 do artigo 425.º do Código de Processo Penal, remetendo para os fundamentos da mesma e negando, consequentemente, provimento ao recurso do assistente.

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III – DISPOSITIVO

Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo assistente e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.

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Sem custas por o recorrente delas estar isento (artigo 4.º, n.º 1, c) Regulamento das Custas Processuais).

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(O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.º 2 do C. P. P.)

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Coimbra, 11 de Março de 2015

(Fernando Chaves - relator)

(Orlando Gonçalves - adjunto)

[1] - Regulamento n.º 52 -A/2005, publicado no Diário da República, 2.ª Série, n.º 146, suplemento, de 1 de Agosto de 2005, com as alterações constantes da Declaração de Rectificação n.º 1379/2005, de 17 de Agosto, com as alterações introduzidas pelo artigo 69.º do Regulamento n.º 232/2007, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 170, de 4 de Setembro de 2007, da Deliberação n.º 1898 -A/2007, publicada no Diário da República, n.º 184, 2.ª série, de 24 de Setembro de 2007, da Deliberação n.º 2280/2008, publicada no Diário da República, n.º 159, 2.ª série, de 19 de Agosto de 2008 e da Deliberação n.º 3333-A/2009.

[2] - Liberdade de imprensa e inviolabilidade pessoal, Coimbra Editora, 1996, p. 232 e seguintes.

[3] - Relator Conselheiro Oliveira Mendes, disponível na Internet em www.dgsi.pt.

[4] - Outros exemplos podem encontrar-se, no mesmo sentido, nos Acs. do STJ de 18/01/2006 (Relator Conselheiro Oliveira Mendes), de 22/11/2006 (Relator Conselheiro Armindo Monteiro), de 03/06/2009 (Relator Conselheiro Arménio Sottomayor) e de 21/10/2009 (Relator Conselheiro Souto de Moura), todos disponíveis na internet no sítio citado.

[5] - Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, disponível na Colectânea de Jurisprudência, 2009, t. 4, p. 261. No Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12/12/2007 (Processo n.º 10311/07, 3ª Secção), considerou-se que «é de deferir o pedido de escusa apresentado por um magistrado judicial para julgar um arguido contra quem, esse mesmo juiz, apresentou uma queixa-crime por factos que poderão integrar um crime de difamação qualificada p. e p. nos artºs 180º, nº 1 e 183º, nº 1, al. a) e nº 2, do C. Penal, tanto mais que se está no quadro de uma comarca de pequena dimensão social e poderiam surgir dúvidas sérias sobre a imparcialidade da decisão que viesse a ser proferida», o que seria válido no caso dos autos. De resto, muito embora tenha sido em geral considerado que a simples queixa formulada contra o Juiz do processo no Conselho Superior da Magistratura por um dos intervenientes processuais não chega para deferir a recusa ou escusa deste, sob pena de se usar tal recurso para tornear o princípio do juiz natural – neste sentido os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 05/12/1990, na Colectânea de Jurisprudência, 1990, t. 5, p. 20 e do Tribunal da Relação de Évora de 05/06/2012, disponível na internet em www.dgsi.pt –, nunca a sustentação do contrário poderá ter-se por injustificada, gratuita ou destituída de senso.

[6] - Ac. do STJ de 18/01/2006, já citado.

[7] - Ac. do STJ de 22/11/2006, já citado.

[8] - Ac. do STJ de 07/03/2007, já citado.

[9] - Ac. do STJ de 03/06/2009, já citado.

[10] - Ac. do STJ de 21/10/2009, já citado.

[11] - Relator Airisa Caldinho, disponível na internet no sítio citado.


[1] - Diploma a que se referem os demais preceitos citado sem menção de origem.
[2]- Publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano IX, tomo III, página 196.
[3]- Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Coimbra Editora, pág. 233.
[4]- Obra citada, pág. 236 e ss.
[5]- Ibidem, pág. 238 e ss.