Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1535/99.1TACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE DIAS
Descritores: PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 07/06/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE POMBAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PRESCRIÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 118º, 119º, 120º, 121º E 137º CP
Sumário: Tendo a arguida sido acusada da prática de um crime de homicídio por negligência grosseira, a que corresponde a pena de prisão até 5 anos (artº 137 nº 1 e 2 CP), e vindo a mesma a ser condenada, apenas, pelo crime de homicídio negligente, punido com prisão até 3 anos (artº 137, n.º 1 CP), é esta a pena que deve ser tida em conta para apurar o prazo da prescrição do procedimento criminal.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra, Secção Criminal.
No processo supra identificado foi proferida sentença na qual se decidiu, em relação à arguida, A..., separada de pessoas e bens, residente na …, Pombal,
a) Condená-la, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio negligente, p. e p. pelo artigo 137, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 [um] ano e 6 [seis] meses de prisão;
b) Suspender, nos termos do disposto no artigo 50 do Código Penal, a execução da referida pena de prisão por um período de 1 [um] ano e 6 [seis] meses;
Inconformada, a arguida recorre para esta Relação.
Apresenta motivação e conclusões.
O Mº Pº na 1ª Instância apresentou resposta.
Nesta Relação, o Ex.mº P.G.A. emitiu parecer, entendendo, em questão prévia, que se deve declarar extinto, por prescrição, o procedimento criminal.
Não se decidindo pela prescrição, deverá o recurso ser julgado improcedente.
Foi cumprido o art. 417 nº 2 do CPP.
Responde a arguida/recorrente, pugnando agora pela verificação da prescrição do procedimento criminal.
Colhidos os vistos e realizada a conferência cumpre decidir:
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É a seguinte a matéria de facto apurada na sentença recorrida:
Discutida a causa, e com pertinência, resultaram provados os seguintes factos:
1. A arguida é sócia-gerente da sociedade “XX…, Lda.”, com sede em …, e estabelecimento industrial sito Zona Industrial das …, área desta Comarca.
2. No exercício dessas funções contratou para trabalhar por conta da referida sociedade, no estabelecimento industrial acima identificado, em data não concretamente apurada mas no decorrer do mês de Setembro de 1999, F..., para o desempenho de tarefas indiferenciadas, as quais compreendiam, esporadicamente, a realização de limpezas.
3. No dia 06.11.99, a arguida ordenou à referida F...que procedesse à limpeza do piso superior do armazém.
4. Em obediência a tal ordem, a F...dirigiu-se ao referido piso com uma colega e começaram a limpá-lo, quando cai num buraco aberto no piso, com cerca de 1 m2 de diâmetro, para o piso inferior, que se situava cerca de 03 metros mais abaixo.
5. Pelo que, foi transportada para o Hospital de Pombal e daí transferida para o Centro Hospitalar de Coimbra, onde viria a falecer em 10.11.99, devido aos ferimentos sofridos em consequência da referida queda.
6. Com efeito, como resulta do relatório da autópsia, a morte de F... foi devida a lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas e vértebro-medulares-dorsais ali descritas, as quais constituem causa adequada de morte.
7. Tal buraco, bem como outro existente no piso superior, destinava-se à colocação de uma tremonha, para café, para que o mesmo fosse recolhido, através de um moinho, no piso inferior.
8. Só que, na altura, a tremonha não se encontrava colocada e, em seu lugar, para o tapar, encontrava-se colocado, por cima, um cartão.
9. F... pisou o cartão, caindo para o piso inferior.
10. A arguida não sinalizou nem mandou sinalizar por qualquer forma a existência do buraco no piso, e muito menos cuidou de colocar vedação de resguardo à volta do mesmo.
11. A arguida sabia que tinha que sinalizar a existência do buraco no local de trabalho, e resguardá-lo com protecção para evitar quedas de pessoas no mesmo, o que não fez, violando assim as mais elementares regras de higiene e segurança no trabalho, legalmente exigidas.
12. Podia e devia ter respeitado tais regras.
13. Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Mais se provou que:
14. A arguida é separada de pessoas e bens.
15. Mora com os seus dois filhos [de 23 e 27 anos de idade], em casa própria destes.
16. A arguida é directora comercial por conta de outrem, auferindo de rendimento não apurado.
17. A arguida tem por habilitações literárias o 12.º ano de escolaridade.
E que:
18. Do certificado de registo criminal da arguida nada consta.
Com relevância, da contestação apresentada pela arguida, provou-se que:
19. “XX…, Lda.” encontrava-se, com reporte à data de 06.11.1999, em fase de instalação de máquinas e equipamentos naquele sector, pois havia mudado de instalações de … para … - Pombal.
20. As máquinas encontravam-se instaladas no piso inferior, sendo, nas tremonhas, colocadas no piso superior; os produtos para “alimentação” das máquinas de embalamento / empacotamento.
21. A tremonha do café fora retirada e levada para rectificação de medidas e, no seu lugar, ficara uma abertura.
22. Ao piso superior só se acede, através, de umas escadas existentes entre o piso inferior e aquele.
23. Escadas essas separadas por uma porta em madeira.
24. Tal piso, encontrava-se guarnecido por uma varanda com “guarda-costas”, com cerca de 1,60 m de parapeito, em estrutura tubular fixada, de cor amarela.
25. No piso superior existiam estruturas em madeira, vulgo “paletes”, de cor azul, com as dimensões de 1,5x1,5m e peso de 12 Kg.
26. À data dos factos (Sábado) existia um convívio/almoço a celebrar o final da campanha do marmelo.
27. À hora da ocorrência a arguida, nem nenhum outro sócio ou gerente, se encontrava na fábrica.
B) Factos não provado
Discutida a causa, e com pertinência, não se provou:
1. Que a contratação de F... tivesse ocorrido em 13.09.1999.
2. Que F... tivesse sido contratada com a categoria de aprendiz de operadora, mais precisamente na secção de empacotamento.
3. Que F..., com reporte à data de 06.11.1999, nunca tivesse estado no piso superior do armazém.
4. Que, com reporte à data de 06.11.1999, existissem outros buracos, para além dos destinados à colocação da tremonha do café e da pimenta, no piso superior.
5. Que, na altura, em lugar da tremonha para o café, na abertura destinada à sua colocação, para a tapar, se encontrasse colocada uma palete.
6. Que a arguida tivesse ordenado a colocação, por cima do buraco destinado à instalação da tremonha, de um cartão e de uma palete.
Da contestação apresentada pela arguida, não se provou que:
7. Que F... soubesse da existência da abertura no piso superior com vista à colocação e fixação de uma tremonha.
8. Que tal abertura fosse bem visível do piso inferior.
9. Que tivesse sido colocada, para a tapar, resguardar e proteger; uma estrutura em madeira, composta de uma palete com dimensões superiores à dita abertura, pesando mais de duas dezenas de quilogramas, tapando-a por completo e saliente da abertura cerca de 10/15 cm.
10. Que a estrutura em madeira [vulgo “palete”] era facilmente observável e visível à distância.
11. Que a porta de acesso ao piso superior fosse fechada à chave.
12. Que desde a remoção da tremonha, parta rectificação, a própria arguida e o outro sócio-gerente sempre alertaram e advertiram o pessoal para não aceder aquele piso.
13. Que fosse desnecessário subir ao mesmo enquanto não estivesse concluída a colocação da tremonha.
14. Que na data dos factos não se tratasse de um dia de trabalho normal mas sim de confraternização.
15. Que era costume no final da campanha do marmelo a empresa fazer um convívio/almoço com os trabalhadores.
16. Que na empresa a laborar, desde 1988/89, nunca ocorrera, antes, qualquer outro acidente de trabalho mortal.
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Analisemos:
Se é certo que antes da data do julgamento não estaria prescrito o procedimento criminal, temos que na data da sentença, o procedimento criminal já se encontrava prescrito.
A diferença consiste em à arguida vir imputado o crime do art. 137 nº 1 e 2 do CP, e vir a ser condenada, apenas, pelo crime do art. 137 nº 1.
Enquanto naquele a pena é a de prisão até 5 anos, neste a pena é a de prisão até 3 anos e, consequentemente, o prazo de prescrição naquele é de 10 anos e neste de 5 anos – art. 118 nº 1 als. b) e c), do CP.
O crime do art. 137 nº 2 do CP constitui um crime agravado em relação ao previsto no nº 1, sendo que a negligência grosseira integra o tipo de crime previsto no nº 2. Como salienta o Ac. do STJ de 25-05-2006 in COl. Jurisp. tomo II, pág. 193, “para determinação do máximo de pena aplicável com vista à prescrição do procedimento criminal, é à pena correspondente a esse tipo agravado que tem de atender-se”, porque o art. 118 nº 2 do CP ao mandar atender “ao máximo de pena aplicável sem contar com as circunstâncias agravantes e atenuantes está a referir-se a um conceito restrito de circunstâncias, que não engloba os elementos do tipo de crime (fundamental, agravado ou privilegiado), contidos na Parte Especial do Código, quer referentes à ilicitude, quer à culpa, quer à punibilidade e muitas vezes erradamente designados como circunstâncias do crime”.
Porém, sendo a arguida condenada pela prática do crime do art. 137 nº 1 do CP, que estatui a pena de prisão até 3 anos (pena correspondente ao procedimento criminal relativo à sua actuação), é esta a pena que deve ser tida em conta para apurar o prazo da prescrição do procedimento criminal, que in caso é de 5 anos atento ao disposto no nº 1 al. c) do CP.
Os factos ocorreram em 06-11-1999.
O prazo de prescrição do procedimento criminal é de 5 anos.
Assim, entendemos que se encontra prescrito o procedimento criminal, mesmo tendo em conta os casos de suspensão e interrupção da prescrição.
A prescrição opera pelo simples decurso do tempo, independentemente de qualquer condição, devendo ser declarada oficiosamente em qualquer fase do procedimento.
O n.º 3 do art. 121 do CP especifica que a prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade.
In casu verificou-se a suspensão da prescrição, nos termos da al. b) do nº 1 do art. 120 do CP, a partir da notificação da acusação, sendo que, neste caso a suspensão não pode ultrapassar 3 anos, nos termos do nº 2 do mesmo preceito.
Não se verifica qualquer outro caso de suspensão.
Também, in casu se verificaram vários casos de interrupção da prescrição. Mas estes só valem de per si quando não se verifica o condicionalismo previsto no nº 3 do art. 121 do CP.
Neste sentido se refere o Exmº PGA citando as actas da Comissão Revisora, nos seguintes termos: “Da natureza das causas interruptivas, estas têm o condão de fazer apagar o prazo anteriormente decorrido, mas também nos termos do n.º 3 o legislador pretendeu não alargar o prazo indefinidamente, tendo fixado por conta dessas eventuais e diversas causas interruptivas, o acréscimo de metade do prazo normal. E, desta forma, da natureza do próprio instituto da interrupção da prescrição, que pressupõe a anulação do prazo decorrido anteriormente, com a finalidade de não protelar indefinidamente o prazo de prescrição, adoptou o legislador a solução legal de, por conta das causas interruptivas, diremos nós, se faria acrescer de metade o prazo normal.
Neste sentido, aliás, reflectiu a Comissão Revisora do Projecto da Parte Geral do Código Penal, na 33ª Sessão, relativa ao então artigo 111°, § 1 e § 2 (cuja redacção se manteve na actualidade com os nºs 2 e 3) que, transcrito no BMJ 151, 44, se refere a esta questão da seguinte forma:
«O efeito interruptivo está contido no § 1°, que não parece dar lugar a dúvidas.
Simplesmente, admitir um número infinito de interrupções, ou mesmo admitir que a interrupção implica um novo decurso do prazo todo, que pode ser muito longo, significaria aceitar como que uma "perda de paz" que não deve admitir-se. Daí a problemática que há pouco se referiu e a solução que procurou oferecer-lhe através do § 2º»”.
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Em resumo:
- O prazo é o referido no art. 118 nº 1 al. c), do CP – 5 anos;
- O prazo iniciou-se nos termos do nº 1 do art. 119 do CP – consumação do facto;
- a interrupção tem lugar nos casos previstos no art. 121 do CP;
- a suspensão tem lugar nos casos do art. 120 do CP;
- In casu a suspensão não pode ir além de três anos, art. 120 nº 2 do CP;
- a prescrição que resulta tem como prazo máximo o prazo normal, acrescido de 3 anos suspensão e de metade daquele prazo normal, correspondendo in casu a 10 anos e 6 meses.
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Como os factos em causa nos autos ocorreram em 06-11-1999, prescreveria o respectivo procedimento criminal em 6-05-2010, caso não se verificasse a divergência entre crime imputado e crime pelo qual foi condenado.
Verificando-se essa divergência, temos como prescrito o procedimento criminal, na data da sentença, ou seja, 14-02-2011.
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Encontrando-se prescrito o procedimento criminal, há-de ser revogada a sentença na parte em que aplica à arguida uma pena.
A prescrição deve ser qualificada como uma causa extintiva ou de exclusão da punibilidade, pois que por via dela vem a cessar a possibilidade de realização da pretensão punitiva, não pode exercitar-se a acção criminal, e que instituto da prescrição deve ser visto e considerado como uma renúncia do Estado ao jus puniendi.
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O provimento da questão prévia suscitada pelo Exmº PGA implica o não conhecimento do mérito do recurso.
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Decisão:
Tendo em conta o exposto, acordam no Tribunal da Relação de Coimbra e Secção Criminal:
1- Em julgar extinto, por prescrição, o procedimento criminal, ficando sem efeito a pena, aplicada à arguida.
Sem custas.

Jorge Dias (Relator)
Brízida Martins