Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
562/11.7TBPMS-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: INSOLVÊNCIA
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
CRÉDITO LABORAL
PRIVILÉGIO IMOBILIÁRIO ESPECIAL
ÓNUS DA PROVA
OFICIOSIDADE
PRESUNÇÃO JUDICIAL
Data do Acordão: 02/25/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: PORTO DE MÓS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 349, 351, 733, 735, 751 CC, 333 CT ( LEI 7/2009 DE 12/2 )
Sumário: 1. O privilégio imobiliário especial previsto no art.º 333º do actual Código do Trabalho (aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12.02) abrange os imóveis existentes na massa insolvente que estavam afectos à actividade empresarial da insolvente, independentemente de uma qualquer conexão específica ou imediata entre o imóvel e a concreta actividade laboral de cada um dos trabalhadores reclamantes.

2. É ao trabalhador reclamante que compete a alegação e prova dos factos constitutivos do privilégio creditório que invoca mas o tribunal (maxime, as instâncias) deverá atender a tudo o que de relevante resultar da globalidade do processo de insolvência, repercutindo na matéria de facto o resultado da análise/(re)apreciação dos elementos disponíveis integrada, se necessário, pelas regras da experiência.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            I. No 2º Juízo do Tribunal Judicial de Porto de Mós, por sentença de 15.6.2011, proferida ao abrigo do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas/CIRE (aprovado pelo DL n.º 53/2004, de 18.3)[1], transitada em julgado, foi declarada a insolvência de T (…), Lda., insolvência essa requerida em 21.4.2011, por Grupo (…), S. A..

            Foram apreendidos os bens da massa insolvente: um bem imóvel e diversos bens móveis.

            Apresentada a relação de créditos reconhecidos e não reconhecidos - entretanto corrigida pela administradora da insolvência -, e na ausência de qualquer impugnação, a Mm.ª Juíza a quo, invocando o disposto no art.º 130º, n.º 3, proferiu sentença de verificação e graduação dos créditos, decidindo (além do mais):

“I) Julgar validamente verificados os créditos constante da lista de fls. 58 a 85v. dos autos, nos termos propostos pela Administradora da Insolvência, com as correcções identificadas supra em 1) a 3) da rubrica “Questões prévias”.

II) Graduar os créditos reconhecidos pela seguinte forma:

(…)

A) Pelo produto da venda do bem imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial da Batalha sob o n.º 2(...) e inscrito na matriz sob o artigo 6(...):

1.º Os créditos laborais, na parte em que gozam de privilégio imobiliário especial;

2.º Os créditos da Caixa Económica Montepio Geral, na parte em que goza de garantia real decorrente da constituição de hipoteca voluntária sobre o imóvel em apreço;

(…)”.

Inconformada, a credora Caixa Económica Montepio Geral interpôs o presente recurso de apelação formulando as seguintes conclusões:  

1ª - Os créditos emergentes de contrato de trabalho só gozam de privilégio imobiliário especial relativamente ao produto da venda dos imóveis em que os trabalhadores efectivamente prestavam trabalho.

2ª - A sentença do Tribunal a quo veio a determinar a existência de um privilégio imobiliário especial de todos os trabalhadores reconhecidos pela Sra. Administradora de Insolvência, sem que estivesse inequivocamente provado, ou sequer alegado, que os mesmos exerciam todos a sua actividade profissional no imóvel em questão.

3ª - Defraudando, deste modo, face a todo e qualquer crédito laboral, as legítimas expectativas juridicamente conferidas pelo art.º 686º do Código Civil quanto à preferência do titular daquela garantia real sobre os demais credores que não gozem de privilegio especial ou de prioridade de registo.

4ª - Tendo os trabalhadores reclamado os seus créditos, cabia-lhes alegar e demonstrar onde prestavam a sua actividade.

5ª - E porque foi apenas esse bem que efectivamente foi apreendido para a massa insolvente, nada nos impede de presumir que os mesmos exercessem a sua actividade nesse local.[2]

6ª - Assim o Mm.º Juiz a quo, pela sentença recorrida, determinou, face à falta de impugnações, ao abrigo do disposto no art.º 130 nº 3 do CIRE, homologar a lista de credores apresentada pela Sra. Administradora de Insolvência, sem sequer pedir à mesma que emitisse um parecer sobre o local de actividade dos trabalhadores, que, sobre isso, nada referiram nas reclamações.

Remata dizendo que a sentença deve ser revogada, classificando-se o crédito dos trabalhadores como gozando apenas de privilégio mobiliário geral e graduando-se o crédito da recorrente em primeiro lugar, a ser pago pelo produto da venda do imóvel identificado nos autos e hipotecado a seu favor.

O M.º Público respondeu à alegação de recurso, pugnando pela manutenção do julgado.

Estando sobretudo em causa saber se os trabalhadores prestavam a sua actividade no imóvel apreendido nos autos, solicitou-se à 1ª instância o envio de diversos elementos, entre os quais, cópia da relação dos bens apreendidos (fls. 237).[3]

            Atento o referido acervo conclusivo, coloca-se, sobretudo, a questão de saber se os autos continham os elementos necessários à graduação dos créditos dos trabalhadores da insolvente conforme ficou decidido na sentença.

*

II. 1. Para além do que resulta do relatório que antecede, importa considerar os seguintes factos:[4]

a) A sociedade insolvente dedicava-se à construção, importação, exportação, comercialização e montagem de máquinas e equipamentos industriais e de estruturas e coberturas metálicas e construção civil.

b) Em 15.7.2011 foi apreendido o único bem imóvel da insolvente, assim descrito: “Um prédio urbano, destinado a Armazéns e Actividade Industrial, composto de Edifício de rés do chão e 1º andar, situado em Parque Industrial, (...)Batalha, do concelho de Batalha, inscrito na matriz da freguesia da Batalha, sob o artigo 6(...), descrito na Conservatória do Registo Predial da Batalha sob o n.º 2(...)/19941219 com o valor patrimonial de 434 230,33 €”.

c) Nos autos de inventário e de apreensão dos bens móveis da insolvente (ambos, de 30.6.2011) consta um conjunto de fotografias das respectivas instalações industriais (fls. 303 e 340), bem como dos diversos móveis apreendidos, assim discriminados:

1 - Mobiliário e equipamento de escritório (verbas n.ºs 1 a 12) / fls. 306 a 310);

2 - Equipamentos industriais (verbas n.ºs 13 a 56) / fls. 311 a 320;

3 - Equipamentos industriais em produção/reparação/acabamentos (verbas n.ºs 57 a 67) / fls. 321 e 322;

4 - Bens intimamente relacionados com as edificações (verbas 68 a 70) / fls. 323;

5 - Meios de movimentação de cargas (verbas 71 a 74) / fls. 324/333;

6 - Transportes - Bens móveis sujeitos a registo (verbas 75 a 79) / fls. 325 e 326.

d) Nos bens referidos em II. 1. c) 1., incluem-se, designadamente, dois conjuntos compostos por seis secretárias metálicas e um outro conjunto composto por duas secretárias metálicas.

e) No que concerne aos equipamentos industriais foram relacionados, entre outros bens, uma mesa de oxicorte, uma calandra de três rolos e outra de quatro rolos, uma prensa excêntrica, uma máquina de curvar tubo, uma quinadeira hidráulica, uma guilhotina hidráulica, uma prensa hidráulica de oficina, dois engenhos de furar verticais de coluna, dois tornos mecânicos, uma fresadora universal, uma fresadora convencional, uma escateladora, uma estufa (e respectivo equipamento acessório), dez máquinas de soldar semi-automáticas, dois rectificadores trifásicos para soldadura, uma máquina de corte a plasma e um esmerilador de bancada.

f) No tocante aos bens aludidos em II. 1. c) 3., foram relacionados, nomeadamente, duas envolvedoras de paletes, um moinho para rações em granulado, uma máquina de embalar, uma máquina de coser sacos e uma estrutura para máquina de coser sacos.

g) Quanto aos meios mencionados em II. 1. c) 5. foram inventariados e relacionados uma auto-grua, dois empilhadores de contrapeso e um porta paletes.

h) No desenvolvimento da sua actividade a insolvente utilizava os seguintes veículos automóveis (que se encontravam na respectiva “unidade fabril”):

- Ligeiro de mercadorias matrícula " (...)NS", indicando "414 536 km";

- Ligeiro de mercadorias matrícula " (...)LU", indicando "569 305 km";

- Ligeiro de mercadorias matrícula " (...)XM", indicando "199 196 km";

- Ligeiro de mercadorias matrícula " (...)VD", indicando "282 412 km";

- Ligeiro de mercadorias matrícula " (...)XP", indicando "252 236 km";

- Ligeiro de mercadorias matrícula " (...) IJ", indicando "50 183 km";

- Ligeiro de mercadorias matrícula " (...) ID", indicando "55 953 km";

- Ligeiro de mercadorias matrícula " (...) IG", indicando "50 183 km";

- Ligeiro de passageiros matrícula " (...) EP", indicando "89 758 km".

i) Reclamaram e/ou viram reconhecidos os seus créditos (classificados como “privilegiados”) os seguintes trabalhadores da insolvente:

(…)

j) Os trabalhadores mencionados em II. 1. i) sob os n.ºs 1, 2, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 12, 13, 15, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24 e 25 estiveram ao serviço da empresa insolvente até 30.6.2011; os indicados em 3, 10, 11, 14, 16 e 17 viram cessados os respectivos vínculos laborais em 02.5.2011, 09.3.2011, 19.4.2011, 07.3.2011, Maio de 2011[5] e 06.4.2011, respectivamente.

k) Reclamaram e viram reconhecidos os seus créditos, classificados como “comuns”, (…) (gerente), (…) (gerente), (…) (trabalhador) e (…)(trabalhadora) - os contratos de trabalho destes cessaram, por sua iniciativa, em 08.6.2011 e 01.7.2011, respectivamente.

2. Perante o descrito enquadramento fáctico e processual, cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

Como vimos - cingindo-nos, agora, à “questão-de-facto” -, é a própria recorrente que, de forma algo contraditória [face à pretensão formulada no recurso], acaba por afirmar e concluir (por ilação): “tendo os trabalhadores reclamado os seus créditos, cabia-lhes alegar e demonstrar onde prestavam a sua actividade”; “porque foi apenas esse bem que efectivamente foi apreendido para a massa insolvente [imóvel mencionado em II. 1. b), supra], nada nos impede de presumir que os mesmos exercessem a sua actividade nesse local”.

Ora, atendendo à factualidade aludida em II. 1., supra, se a credora/recorrente, e bem, concluiu tratar-se de uma (natural) ilação a extrair da realidade conhecida, por maioria de razão, nesse mesmo sentido poderia/deveria concluir o Tribunal recorrido.

Ademais, sendo apenas aquela a realidade que poderá sustentar a decisão sob censura, também nada obstará a que esta Relação faça uso de idênticos procedimentos para delimitar/fixar a materialidade relevante para a reclamação e graduação de créditos em análise.

Na verdade, o juiz poderá lançar mão do instrumento probatório das presunções judiciais, de facto, hominis ou simples, enquanto meios lógicos ou mentais da descoberta de factos entregues “às luzes e à prudência do magistrado” - valendo-se de certo facto e de regras de experiência, o juiz conclui que aquele denuncia a existência de um outro facto, é consequência típica de outro -, presunções que, condicionadas a uma utilização prudente e sensata, não deixam de constituir um instrumento precioso a empregar, quando necessário e tal for legalmente admitido na formação da convicção que antecede a resposta à matéria de facto (art.ºs 349º e 351º, do Código Civil/CC).[6]

3. No caso em apreço, a sociedade insolvente tinha por objecto de actividade a construção, importação, exportação, comercialização e montagem de máquinas e equipamentos industriais e de estruturas e coberturas metálicas e construção civil.

Dúvidas não restam de que o lastro ostensivo que corporizava o respectivo estabelecimento industrial (e comercial) se encontrava implantado no seu único bem imóvel, sito num parque industrial, podendo-se assim afirmar, com suficiente segurança - atendendo, principalmente, aos equipamentos industriais supra referidos -, que a maioria dos seus trabalhadores aí desenvolvia (nesse espaço físico) a sua actividade como operários/técnicos industriais.

Por outro lado, nesse local, foram necessariamente instalados serviços de apoio, designadamente, administrativo e comercial, a cargo dalguns trabalhadores [cf., v. g., II. 1. c) 1 e d), supra].

Finalmente, sendo igualmente evidente que a actividade da empresa não se confinava ao sector da produção industrial, os restantes trabalhadores desenvolveriam a sua actividade junto dos clientes da empresa, na instalação/montagem de equipamentos e/ou na venda/revenda de produtos industriais, razão de ser da existência das viaturas ligeiras de mercadorias indicadas em II. 1. h), supra.

Ou seja, atento o universo de trabalhadores aludido em II. 1. i) e j), supra, e dada a dimensão da empresa insolvente (considerando, desde logo, aos meios empregues no desenvolvimento da respectiva actividade industrial e comercial), nada nos diz (nada indicia) que o trabalho desenvolvido por qualquer um dos referidos trabalhadores não se encontrasse necessariamente ligado à actividade, principalmente, de produção industrial levada a cabo no único imóvel da insolvente.

Perante o descrito circunstancialismo fáctico [II. 1. supra], temos, pois, o inequívoco suporte ou “base” (“os factos não podem mentir”) para afirmar que os trabalhadores da insolvente exerciam a sua actividade no imóvel apreendido nos autos ou em estreita ligação com a actividade que aí se determinava e organizava.

4. Por conseguinte, e não obstante a incompletude dos elementos fornecidos na sequência do despacho de fls. 237[7], não se vê qualquer utilidade na realização, pelas instâncias, de quaisquer outras diligências complementares [cf., v. g., o art.º 662º, n.º 2, alíneas b) e c), do CPC de 2013], pela simples razão de que não se deverá persistir em questionar o que (já) se antolha claro e distinto e permite ao Tribunal julgar segundo a verdade.[8]

5. Privilégio creditório é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros (art.º 733º, CC).

Trata-se de uma garantia que visa assegurar dívidas que, pela sua natureza, se encontram especialmente relacionadas com determinados bens do devedor, justificando-se que sejam pagas de preferência a quaisquer outras até ao valor dos mesmos bens.

Os privilégios creditórios podem ser mobiliários ou imobiliários (art.º 735º, n.º 1, do CC). Os mobiliários podem ser gerais ou especiais, mas os privilégios creditórios imobiliários estabelecidos no Código Civil são sempre especiais (art.º 735º, n.ºs 2 e 3, do CC, na redacção conferida pelo DL n.º 38/2003, de 08.3)[9].
Os privilégios imobiliários especiais são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores (art.º 751º, do CC, na redacção conferida pelo DL n.º 38/2003, de 08.3).
6. De forma inovadora, relativamente ao direito anterior, o art.º 377, n.º 1, alínea b), do Código do Trabalho/CT (aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27.8), veio conceder aos trabalhadores privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade - o referido normativo legal criou, assim, um privilégio imobiliário especial, em substituição do preexistente privilégio imobiliário geral que, para os mesmos créditos, vigorava ao abrigo das Leis n.ºs 17/86, de 14.6, e 96/2001, de 20.8.

Os créditos dos trabalhadores passaram, assim, com o novo Código do Trabalho, a gozar, ao invés do que anteriormente sucedia, de privilégio imobiliário especial - o que, em abstracto, e não obstante a redução dos bens imóveis do empregador sobre os quais recai a garantia, não deixa de traduzir um reforço inquestionável da tutela dos créditos dos trabalhadores[10] -, tendo ficado, dessa forma, claramente abrangidos pela letra do art.º 751º, do CC (na sua actual redacção, introduzida pelo DL n.º 38/2003).[11]

7. A alínea b) do n.º 1 do art.º 333º, do CT [aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12.02, aplicável ao caso vertente], confere privilégio imobiliário especial sobre bem imóvel do empregador no qual o trabalhador preste a sua actividade, aos respectivos créditos de natureza laboral e, quando os créditos laborais concorram, por referência a bens imóveis do empregador onde os trabalhadores prestavam a sua actividade, com créditos de terceiros garantidos por hipoteca voluntária constituída sobre os mesmos bens, esse concurso é submetido, ainda, ao disposto nos art.ºs 686º, n.º 1[12], e 751º, do CC, o que equivale a dizer que o crédito laboral fica graduado antes do crédito garantido por hipoteca, ainda que esta garantia seja anterior.

8. Tem-se entendido que ao trabalhador que reclame um crédito emergente do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação incumbe, para poder beneficiar do aludido privilégio imobiliário especial, alegar, não só a existência e o montante desse crédito, como também alegar que se trata do imóvel onde prestava a sua actividade, fazendo, depois, e se necessário, a prova de tais factos (art.º 342º, n.º 1, do CC).

Contudo, inserindo-se o procedimento de reclamação, verificação e graduação de créditos num processo global de insolvência, deve considerar-se processualmente adquirido o facto que se consubstancia na identificação de imóvel afecto à actividade da empresa insolvente, factualidade que sempre relevará, quando documentada nos autos, ainda que não haja sido especificamente alegada no requerimento apresentado pelo trabalhador reclamante mas resulte da actividade de indagação do próprio tribunal [art.ºs 265º e 515º, do Código de Processo Civil/CPC de 1961/6º e 413º, do CPC de 2013][13].

No caso vertente, nenhuma dúvida se levanta quanto à natureza laboral de todos os créditos reclamados pelos trabalhadores recorridos e à circunstância de o imóvel em questão se encontrar afecto à actividade por eles desenvolvida ao serviço da insolvente.

9. A jurisprudência tem vindo a considerar que os trabalhadores gozam do privilégio relativamente à universalidade dos bens imóveis existentes no património da falida (insolvente) e afectos à sua actividade industrial, e não apenas sobre um específico prédio onde trabalham ou trabalharam, v. g., um escritório, um armazém, um prédio destinado à produção, etc., supondo que o património da empresa é constituído por vários prédios. Ou seja, o trabalhador do escritório, de armazém, e da produção não gozam apenas de privilégio creditório, respectivamente, sobre o escritório, sobre o armazém e sobre o pavilhão de produção, sob pena de, violando-se a “ratio legis” do mencionado art.º do CT, vir a ser criada uma injustificada discriminação entre os trabalhadores de uma mesma empresa[14]; o legislador teve em mente, não um concreto ou individualizado local de trabalho, mas os imóveis em que esteja implantado o estabelecimento para o qual o trabalhador prestou a sua actividade, independentemente de essa actividade ter sido aí desenvolvida ou no exterior – (…) apenas se exclui o património do empregador não afecto à sua organização empresarial, notadamente os imóveis exclusivamente destinados à fruição pessoal do empregador tratando-se de pessoa singular, ou de qualquer modo integrados em estabelecimento diverso daquele em que o reclamante desempenhou o seu trabalho[15].

Neste mesmo contexto, escreveu-se, recentemente, numa decisão sumária desta Relação: Todos os trabalhadores da falida, independentemente da sua categoria profissional ou funções, beneficiam do privilégio imobiliário especial sobre todos os imóveis da empresa que constituam o suporte organizacional da sua actividade empresarial por se dever entender que todos esses lugares físicos são o local de trabalho dos seus trabalhadores uma vez que a complementaridade desses lugares e funções impõe tal igualdade de tratamento quer se tratem trabalhadores nas obras de construção quer se tratem de trabalhadores de escritório.[16]

10. Adere-se, sem reservas, a este entendimento das coisas, daqui se concluindo, por tudo quanto fica exposto, que os créditos reclamados pelos recorridos gozam de privilégio imobiliário especial sobre o imóvel dito em II. 1. b), supra, afecto à actividade da insolvente, independentemente de uma qualquer conexão específica ou imediata entre o imóvel e a concreta actividade laboral de cada um dos trabalhadores reclamantes/recorridos, sob pena de se propiciar a verificação de situações de manifesta desigualdade e arbitrariedade envolvendo trabalhadores de uma mesma empresa e com igual condição em face da realidade social, laboral e empresarial, e que apenas teriam cobertura numa leitura que olvidasse a razão de ser daquela estatuição legal do Código do Trabalho e os interesses prevalecentes.[17]

Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.

*

III. Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação e confirma-se a decisão recorrida.

Custas pela apelante.

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25.02.2014

Fonte Ramos ( Relator )

Inês Moura

Fernando Monteiro


[1] Diploma a que respeitam os normativos adiante citados sem menção da origem.

[2] Sublinhado nosso, como os demais a incluir no texto.
[3] Entre outros elementos, solicitou-se a “cópia do relatório do administrador da insolvência”, solicitação que, apesar de se haver insistido, não foi satisfeita… (cf. fls. 237, 240 e seguintes, 337 e 339 e seguintes).
[4] Tendo em conta, sobretudo, o que decorre da relação de créditos reconhecidos de fls. 2 e seguintes e dos elementos juntos na sequência do despacho do Relator de fls. 237.
[5] Não foi referida a data precisa mas existem elementos que indiciam a prestação de trabalho até final de Maio de 2011 (fls. 69 verso e 70).
[6] Cf., nomeadamente, Vaz Serra, Provas (Direito Probatório Material), BMJ, 110º, págs. 190 e seguintes e, de entre vários, o acórdão da RL de 25.3.2003, in CJ, XXVIII, 2, 91.
[7] Cf. a “nota 3”, supra.
[8] Vide, a propósito, Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. III, 4ª edição (reimpressão), Coimbra Editora, 1985, págs. 262 e seguintes e, entre outros, o acórdão do STJ de 06.7.2011-processo 897/06.0TBOBR-B.C1.S1, publicado no “site” da dgsi [concluindo-se neste aresto: “Entendendo o Juiz do processo que os elementos constantes da reclamação de créditos laborais não evidenciava, claramente, se, ao tempo da declaração de insolvência, os trabalhadores reclamantes trabalhavam em imóveis do insolvente, nada impedia que solicitasse tal informação ao administrador da insolvência: não se tratou de considerar factos não alegados, mas antes de obter informações para que a sentença fosse consonante com a realidade material em consideração do princípio da ´primazia da materialidade subjacente`.”].
[9] Na primitiva redacção do n.º 3 do art.º 735º, do CC, preceituava-se: “os privilégios imobiliários são sempre especiais”.
   Contudo, alguns diplomas avulsos posteriores à publicação do Código Civil, vieram criar privilégios que designaram por imobiliários gerais, como foi o caso da Lei n.º 17/86, de 14.6 (art.º 12º).

[10] Vide, entre outros, Pedro Romano Martinez, Código do Trabalho, Anotado, 4ª edição, 2005, págs. 619; Miguel Lucas Pires, Dos privilégios creditórios: regime jurídico e sua influência no concurso de credores, págs. 288 e seguintes, e Joana Vasconcelos, Sobre a garantia dos créditos laborais no Código do Trabalho, in “Estudos de Direito do Trabalho em homenagem ao Prof. Manuel Afonso Olea”, Almedina, 2004, págs. 322 e seguintes.
[11] Cf., de entre vários, o acórdão do STJ de 02.7.2009-processo 752-S/2002.C1.S1, publicado no “site” da dgsi.

[12] A hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo, sendo certo que é a natureza imobiliária dos bens por ela abrangidos que justifica a solução excepcional de a sua eficácia depender de registo, mesmo em relação às partes, nos termos das disposições combinadas dos art.ºs 686º, n.º 1 e 687º, do CC, e 4º, n.º 2, do Código do Registo Predial.

[13] Cf., neste sentido, de entre vários, os acórdãos do STJ de 22.10.2009-processo 605/04.0TJVNF-A.S1 e 10.5.2011-processo 576-D/2001.P1.S1, da RL de 28.9.2010-processo 345/09.4TBRMR-C.L1-1, da RP de 08.02.2011-processo 1272/09.0TBPRD-D.P1 e da RC de 28.6.2011-processo 494/09.9TBNLS-C.C1, 12.6.2012-processo 1087/10.3TJCBR-J.C1 e 26.11.2013-processo 2534/09.2TBVIS-F.C1, publicados no “site” da dgsi.
[14] Cf. o acórdão da RC de 27.02.2007-processo 530/04.5TBSEI-X.C1, publicado no “site” da dgsi.
[15] Cf. o acórdão da RC de 16.10.2007-processo 3213/04.2TJCBR-AL.C1, publicado no “site” da dgsi.
[16] Decisão sumária de 12.11.2013-processo 2579/04.9TJCBR-A.C2, publicada no “site” da dgsi.
[17] Entendimento que vem sendo acolhido na jurisprudência dos Tribunais Superiores e expresso no acórdão desta Relação de 28.6.2011-processo 494/09.9TBNLS-C.C1, cit..