Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
889/13.3TBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: CASO JULGADO
Data do Acordão: 02/18/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE POMBAL – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 497º, Nº 1, 498º Nº 4, 671º E 672º, DO C. P. CIVIL.
Sumário: I – A lei distingue nos art.º 671º, nº 1, e 672º, do C. P. Civil, entre o caso jul­gado material e o caso julgado formal, conforme a sua eficácia se estenda ou não a processos diversos daqueles em que foram proferidos os despachos, as sentenças ou os acórdãos em causa.

II - A propósito do caso julgado material, expressa a lei que, transitados em julgado os despachos, as sentenças ou os acórdãos, a decisão sobre a relação mate­rial controvertida tem força obrigatória nos limites fixados pelos art.º 497º e 498º do C. P. Civil – (art.º 671º, n.º 1, do C. P. Civil).

III - Os limites a que se reporta o mencionado artigo têm a ver com a proposi­tura de uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, em termos da decisão da segunda implicar o risco de o tribunal contradizer ou reproduzir a decisão da primeira – art.º 497º, n.º 1 e 2, e 498º, n.º 1, do C. P. Civil.

IV - No que respeita ao alcance do caso julgado, a sentença constitui caso jul­gado nos limites e termos em que julga, conforme dispõe o art.º 673º do C. P. Civil.

V - O caso julgado material tem força obrigatória no processo e fora dele, impedindo que o mesmo ou outro tribunal, ou qualquer outra autoridade, possa definir em termos diferentes o direito concreto aplicável à relação material objecto do litígio.

VI - A autoridade do caso julgado implica uma aceitação duma decisão profe­rida numa acção anterior, decisão esta que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda acção, enquanto questão prejudicial.

VII - O caso julgado abrange todas as possíveis qualificações jurídicas do objecto apreciado, dado que o que releva é a identidade de causa de pedir, ou seja os facto concretos com relevância jurídica, e não a identidade das qualificações jurídicas que esse fundamento comporte – art.ºs 497º, nº 1 e 498º nº 4, do C. P. Civil.

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

A Autora instaurou acção declarativa de condenação com processo ordinário, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia € 47.297,82, acrescida de juros de mora vencidos desde 1.5.2008 até 29.4.2013, no montante de € 17.718,86, e vincendos até integral pagamento.
Para fundamentar a sua pretensão alegou, em síntese:
Ø A Ré intentou, contra si e contra a sociedade comercial responsável pela elaboração dum projecto de construção de um pavilhão industrial, uma acção declarativa de condenação sob a forma de processo ordinário que correu termos com o nº … da secção única do Tribunal Judicial da Comarca de Ansião.
Ø    Para justificar o não pagamento do preço a ali Autora invocou a exis­tência de defeitos na construção do pavilhão.
Ø    No âmbito daquela acção, a agora Autora deduziu reconvenção, pedindo a condenação da agora Ré a pagar-lhe a quantia de € 100.280,42, acrescida de juros de mora à taxa de 12%, desde a data da citação até integral pagamento, alegando que a última factura emitida por si, com o nº …, datada de 16 de Dezem­bro de 2002, com o valor de € 74.574,57, a que acrescia IVA de € 14.169,17, não foi paga, pedido que foi julgado improcedente, vindo a reconvinte a ser condenada na eliminação dos defeitos e a pagar à agora Ré a pagar a quantia de € 35.328,50, acrescida de IVA.
Ø    A Autora procedeu à eliminação de defeitos, conforme determinado no referido acórdão e a Ré procedeu ao pagamento da quantia de € 41.445,92 (€ 35.328,50 + IVA), referente à parte do valor da factura nº 149.
Ø    Para além dos materiais e mão-de-obra constantes das restantes factu­ras, a Autora aplicou ainda, na construção do pavilhão industrial, os materiais e mão-de-obra a que se refere a factura nº … e que descriminou no artigo 30º da petição inicial.
Ø    Tendo a Ré pago apenas a quantia de € 41.445,92, após a reparação dos defeitos efectuada em cumprimento do decidido no referido acórdão, está a Autora empobrecida no valor de € 47.297,82 (€ 88.743,74 - € 41.445,92).
Ø    A Ré entrou em mora relativamente ao pagamento dessa quantia na data em que foi citada para a acção ...
A Ré contestou e, invocando a excepção de caso julgado, alegou, em sín­tese:
Ø    Acordou com a Autora a empreitada de construção de um edifício destinado à comercialização e reparação de veículos automóveis ligeiros e pesados e igualmente os factos alegados relativamente à acção instaurada.
Ø    A Autora deduziu reconvenção naquela acção, pedindo a condena­ção da agora Ré a pagar-lhe a quantia de € 100.280,42 a título de preço da obra, invocando que o preço que deveria ser pago era o resultante de horas de mão-de-obra e material empregue, que iam sendo registados e posteriormente facturados, quantias constantes da factura nº ...
Ø    Naquela acção discutiu-se o direito da agora Autora a ser paga pelos trabalhos constantes da mencionada factura, tendo o Tribunal da Relação acabado por considerar que esse valor era parcialmente devido.
Ø    Nesta acção a Autora visa receber a parte restante da mesma factura nº ...
Ø A decisão final proferida na acção de processo ordinário nº … transitou em julgado e a agora Ré pagou pontualmente o montante de € 35.328,50, acrescido de IVA, em que foi condenada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra.
Ø    A Ré defende que se verifica a excepção de caso julgado, não obs­tante agora ser invocado o enriquecimento sem causa, porque o que é decisivo são os factos alegados, aos quais o tribunal dará o figurino de direito que entender mais apropriado ao caso concreto.
Conclui pela procedência da excepção do caso julgado.
A Autora replicou, pugnando pela improcedência da invocada excepção, alegando, em síntese, a inexistência da identidade de causa de pedir, sendo que na anterior o seu pedido radicava no incumprimento de um contrato de empreitada, e neste processo invoca, para fundamentar a sua pretensão, o enriquecimento sem causa da Ré.
E sustentou ainda que não alega que o enriquecimento tenha por objecto obras que executou ao abrigo do contrato de empreitada, pretendendo sim demonstrar que, para além das obras executadas e do respectivo preço fixado ao abrigo do contrato de empreitada, ainda foram executadas outras obras, fora do âmbito do contrato, que implicaram empobrecimento da demandante e enriquecimento da demandada.
E não se tendo provado a execução de determinadas obras com base no contrato de empreitada, pode a demandante alegar e fazer prova da execução de tais obras e de outras para efeitos de enriquecimento sem causa, por força do disposto no artigo 474º do Código de Processo Civil (na redacção anterior à Lei nº 41/2003 de 26 de Junho).
Veio a ser proferido saneador-sentença que, julgando procedente a excepção dilatória do caso julgado, absolveu a Ré da instância.
A Autora inconformada com a decisão interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:

A Ré apresentou resposta, pugnando pela confirmação da decisão profe­rida.
1. Do objecto do recurso
Sendo o objecto do recurso definido pelo recorrente nas conclusões das alegações apresentadas, cumpre apreciar a seguinte questão:
A decisão proferida na acção n.º … do Tribunal Judicial de Ansião não formou caso julgado quanto ao pedido formulado na presente acção?
2. Os factos

3. O direito aplicável
Vem este recurso interposto da decisão que julgou procedente a excepção dilatória do caso julgado entre a presente acção e aquela que correu termos no Tribunal Judicial de Ansião sob o n.º ...
O caso julgado visa garantir, fundamentalmente, o valor da segurança jurí­dica, fundando-se a protecção a essa segurança jurídica, relativamente a actos jurisdicionais, no princípio do Estado de Direito, pelo que se trata de um valor constitucionalmente protegido, destinando-se a evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior.
Ninguém põe em causa que o caso julgado abrange a parte decisória do despacho, sentença ou acórdão.
A lei distingue nos art.º 671º, nº 1, e 672º, do C. P. Civil, entre o caso jul­gado material e o caso julgado formal, conforme a sua eficácia se estenda ou não a processos diversos daqueles em que foram proferidos os despachos, as sentenças ou os acórdãos em causa.
A propósito do caso julgado material, expressa a lei que, transitados em julgado os despachos, as sentenças ou os acórdãos, a decisão sobre a relação material controvertida tem força obrigatória nos limites fixados pelos art.º 497º e 498º do C. P. Civil – (art.º 671º, n.º 1, do C. P. Civil).
Os limites a que se reporta o mencionado artigo têm a ver com a proposi­tura de uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, em termos da decisão da segunda implicar o risco de o tribunal contradizer ou reproduzir a decisão da primeira – art.º 497º, n.º 1 e 2, e 498º, n.º 1, do C. P. Civil.
No que respeita ao alcance do caso julgado, a sentença constitui caso jul­gado nos limites e termos em que julga, conforme dispõe o art.º 673º do C. P. Civil.
Assim, a excepção do caso julgado pode assentar em decisão de mérito proferida num processo anterior ou em decisão anterior proferida sobre a relação processual.
O caso julgado material tem força obrigatória no processo e fora dele, impedindo que o mesmo ou outro tribunal, ou qualquer outra autoridade, possa definir em termos diferentes o direito concreto aplicável à relação material objecto do litígio.
O caso julgado material pode funcionar como excepção ou como autori­dade [1].
A autoridade do caso julgado implica uma aceitação duma decisão profe­rida numa acção anterior, decisão esta que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda acção, enquanto questão prejudicial.
Quando vigora como autoridade de caso julgado, o caso julgado mate­rial manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transi­tada: a autoridade de caso julgado é o comando de acção ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva à repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do con­teúdo da decisão anterior [2].
Ora, como já se disse para se verificar a excepção dilatória do caso jul­gado, a lei exige a verificação de uma identidade tríplice: sujeitos, pedidos e causa de pedir.
Quanto aos sujeitos é manifesta a existência de identidades entre os sujei­tos das duas acções, pois a existência de mais uma Ré na acção anterior não tem virtualidade para descaracterizar esta identidade, conforme decorre do art.º 498º,  n.º 2 do C. P. Civil.
No que respeita ao pedido também poderemos dizer, sem qualquer pro­blema que existe identidade, uma vez que é peticionada a condenação da Ré em montante pecuniário contido no pedido reconvencional anteriormente formulado.
Resta, pois, apreciar da identidade, ou não, da causa de pedir de cada uma das acções, questão que justifica o desacordo da Recorrente quanto à decisão profe­rida.
A identidade de causas de pedir que releva para verificação da excepção do caso julgado afere-se pelo facto jurídico de que emergem as pretensões deduzidas.
Haverá identidade de causas de pedir sempre o facto jurídico concreto de que procede o direito ou interesse alegado pela parte seja o mesmo [3].
O caso julgado abrange todas as possíveis qualificações jurídicas do objecto apreciado, dado que o que releva é a identidade de causa de pedir, ou seja os facto concretos com relevância jurídica, e não a identidade das qualificações jurídicas que esse fundamento comporte – art.º  497º, n.º 1 e 498º n.º 4,  do C. P. Civil. [4]
A acção identifica-se e individualiza-se, não pela norma abstracta da lei, mas pelos elementos de facto que converteram em concreto a vontade legal. Daí vem que a simples alteração do ponto de vista jurídico não implica alteração da causa de pedir. [5]
Deste modo, ocorrerá a excepção de caso julgado quando o autor pretenda ver reconhecido, na nova acção, o mesmo direito que já lhe foi negado por sentença proferida noutra acção, identificando-se esse direito não só através do seu conteúdo e objecto, mas também através da sua causa ou fonte.
Na acção anterior a Autora formulou o pedido de condenação da agora Ré a pagar-lhe o valor da factura n.º …, respeitante a mão-de-obra e materiais utiliza­dos e não facturados, no âmbito do contrato de empreitada que as unia.
A decisão aí proferida apenas condenou a agora Ré a pagar parte daquele valor, uma vez que só considerou provados parte dos valores constantes daquela factura.
Nesta acção, retomando a mesma factura n.º … por si emitida no âmbito do contrato de empreitada celebrado com a Ré, alegando que a mesma se refere a material e mão de obra por si utilizados na obra que realizou para esta na execução do contrato de empreitada entre ambas celebrado e, deduzindo o montante que na decisão proferida no processo anterior a Ré foi condenada a pagar-lhe, peticiona a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia correspondente à diferença entre aquilo que a esse título a Ré, no cumprimento do acórdão proferido, lhe pagou e aquilo que ela entende ser o valor dos bens e serviços em causa.
Tal como na acção anterior o pedido reconvencional formulado se fun­damentava em factos tendentes a demonstrar o incumprimento pela dona da obra do pagamento de parte do preço devido pelo contrato de empreitada, na presente acção, os factos alegados são em tudo coincidentes com os que fundamentaram aquele pedido, limitando-se a Autora a alegar que a sua pretensão tem por fundamento o instituto do enriquecimento sem causa, sem que tenha excluído a realização daqueles trabalhos do âmbito do contrato de empreitada.
Na decisão recorrida considerou-se:
… como a própria autora reconhece, por força do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, viu-lhe reconhecido apenas parcialmente o direito a cobrar os trabalhos descritos na factura em causa.
Tendo a ré já cumprido na parte em que foi condenada.
Aquilo com que a ré não se conforma é com a parte em que não obteve ganho de causa mas necessariamente tal parte está a coberto do caso julgado material (artigo 673º do Código de Processo Civil).
E não se diga que invocando o enriquecimento sem causa se está perante diferente causa de pedir, na medida em que tal configura apenas uma qualificação jurídica dos mesmos factos, ou seja, da mesma causa de pedir.
Na verdade, o que a autora pretende é pôr em causa a sentença proferida, sendo patente que nunca poderia proceder o alegado enriquecimento ilegítimo, dado que a deslocação patrimonial que a autora enfatiza, funda-se exactamente na parte em que não obteve ganho de causa na outra acção.
Ou seja, a procedência da presente acção colocaria necessariamente em causa a autoridade de caso julgado da decisão anterior.
Efectivamente, nesta acção, a Autora invoca os mesmos factos que alegou na acção anterior, não aduzindo qualquer realidade fáctica diversa, reiterando que a mão de obra e materiais em causa saíram do seu património e ingressaram no da Autora por virtude de um contrato de empreitada entre ambas celebrado.
Verificamos, assim, que nas duas acções o facto jurídico concreto no qual a Autora fundamenta o pedido de condenação da Ré é o mesmo, ou seja o custo da mão-de-obra e material utilizados por si na obra que realizou para a Autora, pelo que existe identidade de causas de pedir entre as duas acções.
Por estas razões, deve ser julgado improcedente o recurso interposto pela Autora, confirmando-se a sentença recorrida.

Decisão
Nos termos acima expostos decide-se julgar improcedente o presente recurso de apelação e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
Custas do recurso pela Autora.

Coimbra, 18 de Fevereiro de 2014.

Sílvia Pires (Relatora)
Henrique Antunes
José Avelino


[1] Sobre a existência destas duas figuras vide Manuel de Andrade, em Noções elementares de Processo Civil, pág. 305, ed. de 1993, Coimbra Editora; Anselmo de Castro, em Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, pág. 384, ed. de 1982, Almedina; Castro Mendes, em Limites objectivos do caso julgado em processo civil, pág. 162, ed. 1968, Edições Ática; Teixeira de Sousa, em Estudos sobre o novo Código de Processo Civil, pág. 576, ed. 1997, Lex; Antunes Varela, Miguel Beleza e Sampaio Nora, em Manual de processo civil, pág. 703, nota 1, ed. 1985, Coimbra Editora; Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, em Código de processo civil anotado, vol. 2º, pág. 325-326, ed. 2001, Coimbra Editora , e Mariana França Gouveia, em A causa de pedir na acção declarativa, pág. 394, ed. 2004, Almedina.

[2] Miguel Teixeira de Sousa, in Objecto da Sentença e Caso Julgado Material, publicado no BMJ n.º 325, pág. 49 e ss.
[3] Lebre de Freitas in Caso julgado e causa de pedir. O Enriquecimento sem causa perante o artigo 129 do Código Civil, ROA, Ano 2006, Dezembro de 2006, Vol. III.

[4] Miguel Teixeira de Sousa , in Estudos Sobre O Novo Processo Civil, 2ª ed.,  pág. 576, LEX.

[5] Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, vol. III, ed. 1950, págs. 121 e segs., Coimbra Editora.