Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1125/21.4T8FIG-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: ALIMENTOS A MENORES
MODO DE OS PRESTAR
DAÇÃO EM CUMPRIMENTO
Data do Acordão: 05/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DA FIGUEIRA DA FOZ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGO 837.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: Resultando do regime estabelecido para o cumprimento das responsabilidades parentais, a respeito da obrigação alimentar, que o progenitor deverá entregar mensalmente ao outro determinada quantia pecuniária, não pode aquele, sem acordo deste, substituir aquela obrigação por géneros correspondentes ao valor daquela quantia, pois que  «a prestação de coisa diversa da que for devida, embora de valor superior, só exonera o devedor se o credor der o seu assentimento».
Decisão Texto Integral:

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I –AA, em 20/10/2021, deduziu incidente de incumprimento de obrigação alimentar, contra BB, no que se refere à filha comum de ambos, CC, tendo requerido, na declaração desse incumprimento, o pagamento coercivo do montante em dívida, no valor de 450,00 €, e que se ordenasse à entidade patronal do Requerido que procedesse ao desconto das prestações vencidas e vincendas sendo os respectivos montantes transferidos para a conta bancária dela, e que, no caso do mesmo não auferir rendimentos, fosse accionado o Fundo de Garantia de Alimentos  Devidos a Menores  para pagamento dos alimentos em sub-rogação daquele.

  Alegou, em síntese, que sendo Requerente e Requerido pais da criança CC, nascida em .../.../2005, e tendo o exercício das responsabilidades  parentais referentes à mesma sido regulado por acordo, tendo ficado estabelecido que «o pai pagará a titulo de pensão de alimentos a quantia mensal de 150,00  € a entregar à mãe até ao dia 8 do mês a que disser respeito, por transferência bancária para a conta da mãe», sucede que, desde a data da conferência de pais – 14 de julho de 2021  - o Requerido não procedeu ao pagamento de qualquer quantia a titulo de pensão de alimentos devidos à CC, devendo, em consequência, a quantia de 450,00 €, referente aos meses de Agosto, Setembro e Outubro de 2021. Refere ainda que vive actualmente com a filha em Casa de Abrigo e, por esse motivo, deixou de haver convívios entre pai e filha, tendo ela o estatuto de vitima por violência domestica, em função de processo em que o Requerido é arguido.

  O Requerido apresentou resposta, referindo, em síntese, que não entregou a prestação de alimentos a que estava adstrito só em dinheiro mas através da entrega à Requerente dos bens de que a menor necessitava em valor correspondente e, por vezes, até em valor superior aos 150,00 € a que estava obrigado, opção que tomou pela má gestão que a Requerente sempre fez do dinheiro, adquirindo produtos que não são essenciais. Acresce que lhe entregou, pelo menos, por quatro vezes, 80,00 €.

  Tendo tido lugar conferência entre os pais, em que não se obteve acordo,  notificaram-se os mesmos, para, em 15 dias, alegarem, juntando a prova que entendessem pertinente ou requerendo a sua produção.

  Ambos apresentaram alegações, invocando e concluindo como nos articulados que anteriormente haviam produzido.

  Na diligência que teve lugar em 16/12/2021, a Requerente ampliou o pedido no que concerne à dívida alimentícia, abrangendo o período de pendência do processo, a saber, os meses de Outubro, Novembro e Dezembro de 2021, o que foi deferido.

  Teve lugar a audiência de julgamento em 29/12/2022, e na mesma, tendo sido tomadas declarações ao Requerido, e tendo o mesmo assumido que desde Outubro a Dezembro de 2021, ambos inclusive, não pagou alimentos, com a concordância de ambas as partes, foi de imediato proferida decisão, em que, e «sem prejuízo da apreciação  relativamente aos meses de Julho, Agosto e Setembro de 2021», se declarou  verificado  o incumprimento do Requerido relativamente aos meses de Outubro a Dezembro de  2021, ambos inclusive, no valor global de € 450,00.

  Finda a audiência de julgamento, em 31/1/2021, foi proferida sentença em que se declarou verificado o incumprimento do Requerido relativamente aos meses de Julho, Agosto e Setembro de 2021, no valor global de € 450,00, a somar aos € 450,00 já declarados em dívida a 29/12/2022.

  II – Do assim decidido, apelou o Requerido tendo concluído as respectivas alegações, nos seguintes termos:

  1. A requerente AA, a 20-10- 2021, deduziu incidente de incumprimento contra o requerido no que concerne à obrigação alimentícia deste último em benefício da criança CC.

  2. Na diligência de 16-12-2021, a requerente ampliou o pedido no que concerne à dívida alimentícia, abrangendo o período de pendência do processo, a saber os meses de Outubro, Novembro e Dezembro de 2021. Tal requerimento foi deferido na própria diligência e sentenciado nessa data.

  3. DA NULIDADE DE FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO RECORRIDA:

  4. Entende o recorrente que na decisão recorrida não são indicados quaisquer factos, nem as provas que levaram a declarar o incumprimento dos meses de Julho, Agosto e Setembro.

  5. Estabelece o art. 615º n.º 1 al. b) que a decisão é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. – NULIDADE QUE DESDE JÁ SE ARGUIU E REQUER PARA OS DEVIDOS EFEITOS LEGAIS.

  6. Essa nulidade existe quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão e não a mera deficiência de fundamentação – cfr. A. Varela, Manual de Processo Civil, 2ª edição, pag. 687; Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, pag. 669.

  7. É essa a situação que ocorre no caso dos autos. Efectivamente, a decisão recorrida, nem sequer dá como provado que o Requerido tinha de efectuar o pagamento por transferência bancária, e que esse pagamento não foi efectuado.

  8. Veja-se que se trata de uma decisão que declarou o incumprimento da regulação do exercício das responsabilidades parentais da Menor CC, deveriam ter sido indicados, ainda que sumariamente, os factos e as provas em que a mesma se fundava.

  9. Não contendo a decisão impugnada, sequer a enumeração de todos os factos em que se deveria fundar, a mesma não pode deixar de ser considerada NULA

  10. Aliás, a decisão recorrida não indica qualquer facto, mas apenas matéria conclusiva, relativamente ao não cumprimento do pagamento da prestação de alimentos. Não se mostra a decisão inteligível, sem que haja um conhecimento global dos autos.

  11. Como facilmente se alcança, não se encontra enunciado um único facto, mas apenas matéria meramente conclusiva, relativa à alegada não liquidação da pensão de alimentos de Julho, Agosto e Setembro de 2021.

  12. Face ao exposto, é nula a decisão que declare o incumprimento da obrigação de alimentos, sem conter os factos em que se fundamenta, como sucede na decisão recorrida.

  13. A exigência de fundamentação da matéria de facto provada e não provada com a indicação dos meios de prova que levaram à decisão, assim como a fundamentação da convicção do julgador, devem ser feitas com clareza, objectividade e discriminadamente, de modo a que as partes, destinatárias imediatas, saibam o que o Tribunal considerou provado e não provado e a fundamentação dessa decisão reportada à prova fornecida pelas partes e adquirida pelo Tribunal.

  14. Na ponderação da natureza instrumental do processo civil e dos princípios da cooperação e adequação formal, as decisões que, no contexto adjectivo, relevam decisivamente para a decisão justa da questão de mérito, devem ser fundamentadas de modo claro e indubitável pois só assim ficam salvaguardados os direitos das partes, mormente, em sede de recurso da matéria de facto, quando admissível, habilitando ao cumprimento dos ónus impostos ao recorrente impugnante da matéria de facto, mormente, quanto à concreta indicação dos pontos de facto considerados incorrectamente julgados e os concretos meios de prova, nos termos das als. a) e b) do nº1 do art. 640º do Código de Processo Civil.

  15. Com o devido respeito, não pode este Alto Tribunal da Relação de Coimbra reconhecer à decisão recorrida tais requisitos de clareza e precisão na indicação da

  16. matéria de facto não provada, para lá da omissão de fundamentação dessa decisão, pelo que enferma de nulidade, nos termos do art. 615º, nº1 b e 684º, nº2, do Código de Processo Civil e, como tal, não poderá manter-se, devendo o mesmo ser anulado.

  17. DOS CONCRETOS PONTOS DE FACTO QUE MERECEM DECISÃO DIVERSA DA RECORRIDA D) O requerido não liquidou a pensão de alimentos, nos meses de Julho, Agosto e Setembro de 2021.

  18. Devendo passar a constar dos factos provados: O requerido não liquidou a pensão de alimentos, nos meses de Julho, Agosto e Setembro de 2021, através de transferência bancária. Tendo o pagamento sido efectuado através da entrega de quantias em numerário, bem como de géneros alimentares e outros, de acordo com o que já vinha a ser praticado pelo Requerido de acordo com a Requerente.

  19. PROVAS QUE IMPÕEM DECISÃO DIVERSA DA RECORRIDA Declarações do Requerido; Declarações da testemunha DD; Declarações da testemunha EE; Não transcrevemos as declarações pois a própria fundamentação contém, uma súmula, que damos como boa.

  20. Vejamos que segundo a própria decisão refere que o Requerido tentou demonstrar o pagamento através dos depoimentos das testemunhas DD e EE.

  21. Sendo que a testemunha DD foi a única que afirmou ter assistido a entregas de numerário.

  22. Ora esta testemunha afirmou ter assistido a entregas em numerário, não conseguindo precisar datas nem montantes. O que com todo respeito nos parece absolutamente normal, estranho seria que a testemunha soubesse exactamente as datas e quantias em causa.

   23. Sendo que a testemunha referiu que foram efectuadas entregas de dinheiro na sua presença, em regra logo em seguida ao seu Filho receber o vencimento mensal. Referiu que o seu filho também entregava o dinheiro para a creche.

  24. Por sua vez a testemunha EE referiu que o Requerido, adquiria mercearia para entregar à sua cunhada AA.

  25. Assim entendemos, que o incumprimento não se mostra provado, face às entregas em numerário cuja fundamentação refere, conjugadas com a compra de géneros para a menor CC.

  26. E cujo tratamento desta matéria será efectuado no que tange à matéria de direito.

   27. Quanto à questão da conflitualidade, a verdade é que a Requerente e o Requerido estiveram separados cerca de um ano até ser homologado acordo em Tribunal, o que denuncia desde logo, que existia acordo vigente entre ambos.

  28. Caso contrário, a Requerente teria intentado desde logo a acção, visto que não tinha meios para fazer face a todas as despesas.

  29. E a verdade é que embora a relação fosse conflituosa, a verdade é que até à instauração do processo-crime o requerido frequentava a casa da Requerente, e o acordo relativo ao direito de visitas da CC não era cumprido nos moldes definidos.

  30. Sendo que o requerido visitava a CC sempre que queria, resultando das declarações prestadas pela Requerida na PSP, que a discussão que motivou o processo crime foi exactamente porque o Requerido comunicou que pela primeira vez levaria a CC para dormir.

  31. Existindo assim, facilitismos de ambas as partem.

   32. Face ao exposto, deve ser dado como provado que o Requerido entregou nos meses de Julho, Agosto e Setembro, valores em numerário e géneros alimentares e outros, que ultrapassavam o valor mensal a que se encontrava obrigado de 150,00 €.

  33. DA MATÉRIA DE DIREITO: DO PAGAMENTO DOS ALIMENTOS EM ESPÉCIE

  34. É certo que o Requerido não entregou a prestação de alimentos a que estava adstrito só em dinheiro, mas através da entrega à requerente dos bens que a menor necessitava em valor correspondente e, por vezes até em valor superior, aos 150,00 € mensais a que estava obrigado, não lhe deixando faltar nada de nada - tudo com a ajuda da sua família, nomeadamente, da ajuda da sua mãe e cunhada.

  35. O Requerido optou por assim fazer, por entender que a requerente não faz uma boa gestão, nem nunca fez, do dinheiro, adquirindo produtos que não são essenciais (produtos de luxo) e os bens essenciais não os adquire, nem os considera importantes.

  36. Para além disso, o Requerido entregou, mensalmente, valores que entregou em numerário à Requerente sempre que esta lhe solicitou, alegando que não tinha um tostão com ela. O requerido entregou-lhe pelo menos por 4 vezes 80,00 €.

  37. Conforme ficou demonstrado, a Requerente não trabalha nem tem qualquer fonte de rendimento, tendo inclusive entrado em incumprimento com o crédito habitação.

   38. Razão pela qual vem a requerente agora falaciosamente alegar que o requerido não paga a prestação de alimentos à sua filha menor e que é a requerente quem tem vindo a sustentá-la sozinha, o que não corresponde – de todo – à verdade.

  39. Tudo não passa de um sentimento de medo por parte da requerente só porque o requerido lhe comunicou a sua intenção de requerer, na justiça se preciso fosse, a guarda da filha de ambos.

   40. A Requerente ficou com medo de que, desempregada o requerido avançasse com o pedido de guarda da menina para ele e por isso, primeiro surge a queixa absurda de violência doméstica e agora a alegação do não pagamento da prestação de alimentos.

   41. E é desta forma a Requerente encontrou uma maneira rápida e garantida de se sustentar (casa abrigo) e de afastar, em absoluto, o Requerido da sua filha e acabar – de uma vez – com o propósito do requerente em pedir a guarda da CC para si, Fê-lo de forma pensada e premeditada, sabendo que a justiça a protegeria.

  42. Esta obrigação de alimentos, nos termos legais, pode ser cumprida em espécie, cumprindo, desta forma, a previsão do artigo 2003º, nº 1 do Código Civil.

  43. Aliás, não pode deixar de se mencionar que, nos termos do artigo 2005º, nº 2 do Código Civil os alimentos podem ser prestados em espécie – o que se requer.

   44. Vejamos então: Em 1.º lugar, a obrigação de alimentos pode ser cumprida em espécie.

  45. Com efeito, nos termos do artigo 2003.º do Código Civil, «1. Por alimentos entende-se tudo o que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário.

  46. No caso dos alimentos, a prestação pode ser cumprida em dinheiro ou em espécie.

  47. Neste último caso, a obrigação é cumprida pelo progenitor obrigado a prestar alimentos quando o filho reside consigo e este lhe assegura os alimentos fornecendo-lhe a residência, alimentação, vestuário, condições de saúde, segurança, etc., cumprindo assim a finalidade prevista no mencionado artigo 2003.º do Código Civil.

  48. Neste caso, como no caso dos autos, a prestação de alimentos foi cumprida em numerário e em espécie.

  49. Ora, tem de se reconhecer, face à complexidade e aos imprevistos da vida quotidiana, que os pais possam, por acordo, cancelar durante algum tempo o regime estabelecido pelo tribunal, para ser retomado mais tarde, substituindo-o temporariamente por outro, sem necessidade de recorrer a tribunal, desde que, claro está, os interesses dos filhos não sejam ofendidos, não devendo essa alteração trazer quaisquer consequências negativas para algum dos progenitores.

  50. Ora, no presente caso, além da separação dos progenitores, não ocorreu qualquer uma das outras causas que implicaria a intervenção inicial do tribunal.

  51. Por conseguinte, sai reforçada a ideia de que não existiu neste caso uma real alteração do acordo homologado, que teria de ter caráter definitivo ou pelo menos prolongado, nem existiu uma situação típica que tivesse demandado a intervenção inicial do Estado devido ao facto dos pais revelarem incapacidade para zelar pelos interesses da filha.

   52. Isto revela que a obrigação de alimentos tendo sido prestada em espécie pelo devedor (pai), parece ter sido adequadamente cumprida.

  53. Então, face a esta situação, entrega de alimentos que o Tribunal a quo referiu ter sido confirmada por ambas as testemunhas, é de considerar que a prestação de alimentos foi adequadamente cumprida e, tendo sido cumprida, extinguiu-se.

  54. O que ocorreu foi uma alteração na modalidade do cumprimento, que de pecuniária passou a ser em espécie, como aliás já o era antes do acordo ser homologado.

  55. A prestação alimentícia a cargo do pai durante este período (Julho e Setembro de 2021) foi cumprida em espécie, pelo que não é devida à menor em dinheiro, neste caso a entregar à mãe da menor.

  56. Por conseguinte, neste caso entende-se também que a prestação em espécie extinguiu a obrigação alimentar devida em relação a este período de tempo. Pelas razões indicadas, conclui-se que o executado cumpriu a obrigação de alimentos devidos à sua filha menor através do pagamento em espécie.

   57. E que este cumprimento extinguiu a obrigação alimentos devida durante o mesmo período, através da entrega da prestação pecuniária fixada pelo tribunal, a qual devia ser entregue à progenitora da menor, ficando prejudicada, por desnecessidade, qualquer outra análise jurídica.

O Ministério Público apresentou contra-alegações, em que não formulou conclusões, pugnando naquelas pela improcedência do recurso.

  A Exma Juíza a quo pronunciou-se a respeito da nulidade arguida, referindo que a «a fundamentação decisória é clara e suficiente para as matérias provada e não provada».

III – O Tribunal da 1ª instância julgou provados os seguintes factos:

  A) CC, nasceu a .../.../2018, sendo filha de BB e de AA.

  B) Nos termos do acordo homologado nos autos principais, a residência da criança ficou fixada junto da mãe, ficando o progenitor obrigado ao pagamento de uma pensão de alimentos de 150,00 euros a entregar à mãe, até ao dia 8 do mês a que disser respeito para a conta aí identificada.

  C) Foi ainda acordado e homologado na mesma ocasião: “12º As despesas com a educação da criança, nomeadamente, mensalidades, matrículas e/ou inscrições, material escolar, livros escolares, visitas de estudo, explicações, e ainda quaisquer despesas inerentes a atividades extracurriculares, desde que escolhidas de comum acordo por ambos os progenitores, serão por estes suportadas em partes iguais, mediante recibo comprovativo da despesa efetuada, a emitir em nome do menor, a apresentar ao outro no prazo de 30 dias, e a liquidar também no prazo de 30 dias.”

   D) O requerido não liquidou a pensão de alimentos, nos meses de julho, agosto e setembro de 2021.

  IV – Vistas as conclusões do recurso e operando o seu confronto com a decisão recorrida, são as seguintes as questões objecto do mesmo:

- se a sentença recorrida é nula, por falta de especificação dos fundamentos de facto  e de direito que justificam a decisão, nos termos do nº 1 al b) do art 651º CPC;

- se deve ser alterada a matéria de facto constante da al D);

- se, em consequência, e porque os alimentos podem ser prestados em espécie, não se verificou o incumprimento da obrigação alimentar.

Cabe em 1º lugar tornar claro que a sentença recorrida é a que foi proferida depois de completa a audiência de julgamento, consequentemente, a que tem por objecto a falta de pagamento das prestações alimentares referentes a Julho, Agosto e Setembro de 2021.

  Dito isto, e relativamente à arguida nulidade, é o próprio apelante quem nas conclusões do presente recurso (conclusão 6ª), conclui pela improcedência da mesma, ao referir que (a nulidade por falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão), (só) existe «quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão e não a mera deficiência de fundamentação», citando a propósito, A. Varela, Manual de Processo Civil, 2ª edição, pag. 687; Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, pag. 669.

  È, de facto, ponto assente na doutrina e jurisprudência, que «a falta de motivação susceptível de integrar a nulidade da sentença é apenas a que se reporta à falta absoluta de fundamentos quer estes respeitem aos factos quer ao direito», e que, «a motivação incompleta, deficiente ou errada não produz nulidade, afectando somente o valor doutrinal da sentença e sujeitando-a consequentemente ao risco de ser revogada ou alterada quando apreciada em recurso». Designadamente, no que respeita aos fundamentos de facto, «para que essa falta se constitua como nulidade da sentença, torna-se necessário que o juiz omita totalmente a especificação dos factos que considere provados, de harmonia com o que se estabelece no nº 3 do art 659º, e que suportam a decisão». Assim  se pronuncia, entre tantos outros autores, Amâncio Ferreira[1].

  Ora, a Exma Juíza a quo procedeu à enunciação dos factos provados.

  Acresce que não é verdade referir, como o faz o apelante (conclusão 7ª), que a decisão recorrida não deu como provado que o Requerido tinha de efectuar o pagamento por transferência bancária, porque esse modo de pagamento consta da al B) dos factos provados («para a conta aí identificada») .   

Apesar da falta de clareza do apelante nesta matéria, percebe-se que, o que verdadeiramente pretende imputar à sentença, é que da mesma não resulte a especifica enunciação como não provados dos factos que em sua defesa invocou na oposição - que  procedeu à prestação de alimentos a que estava adstrito através do valor correspondente de bens que entregou à mãe, além de que lhe entregou, pelo menos, por quatro vezes,  80,00 €.

 Mas, desde o momento em que, em sede de impugnação da matéria de facto, como adiante melhor se verá, refere expressamente, no tocante às provas que impunham decisão diversa da constante da al D), que «não as transcreve, pois a própria fundamentação contém uma súmula que damos como boa», e dessa fundamentação decorre a falta de prova daqueles factos, se, nulidade se verificasse em função da não enunciação expressa da não prova dos mesmos, não faria sentido que o apelante a pudesse fazer valer, porque, afinal, ele próprio, acaba por a considerar suprida em função da referida fundamentação.  

O que nos faz transitar para a segunda questão objecto do recurso.- a alteração da matéria de facto constante da al D), entendendo o apelante que deve passar a constar dessa alínea que “o Requerido não liquidou a pensão de alimentos, nos meses de Julho, Agosto e Setembro de 2021, através de transferência bancária. Tendo o pagamento sido efectuado através da entrega de quantias em numerários, bem como de géneros alimentícios e outros, de acordo com o que já vinha sendo praticado pelo Requerido de acordo com a Requerente».

Como é muito evidente, e o apelante o sabe, a impugnação da matéria de facto exige o cumprimento de vários ónus, entre eles, a especificação obrigatória, sob pena de rejeição, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida – al b) do nº 1 d art 640º - , sendo que, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados,  lhe incumbe, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, que indique com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos enxertos que considere relevantes, como se dispõe na al a) do nº 2 da referida norma.

Ora, o apelante, muito conscientemente, optou por assim não proceder, pois, como acima se referiu, no tocante às provas que impunham decisão diversa da recorrida – declarações do Requerido e das testemunhas DD e EE - , não as transcreveu, por aceitar que «a própria fundamentação contém uma súmula que damos como boa».

  Não pode o apelante, para substituir a convicção do Tribunal da 1ª instância relativamente a determinada matéria de facto, utilizar a fundamentação desse Tribunal a respeito da mesma, sob pena de contradição e desvirtuação do regime da impugnação da matéria de facto.

Evidentemente que o apelante se furtou ao esforço argumentativo implicado no cumprimento do ónus em referência, porque à partida o sabia inútil pois, resulta suficientemente da “súmula” daqueles depoimentos operada pelo Tribunal da 1ª instância, que não se provou com suficiente consistência a entrega pelo Requerido à Requerente, nos meses em questão de géneros ou entregas parcelares de dinheiro que correspondessem, no seu conjunto, ao valor mensal de 150 €. E muito menos se provou – o que sempre seria indispensável, como melhor resultará do que adiante se referirá – o acordo da Requerente relativamente à substituição do valor monetário de 150 € por géneros.

Veja-se, para confirmação do que se veio de referir, a fundamentação enunciada  pelo Tribunal recorrido:

«D) O requerido procurou demonstrar que procedeu ao pagamento das pensões de alimentos de julho a setembro ambos de 2021, através do depoimento das testemunhas DD e EE, ainda que apenas a primeira tenha afirmado ter assistido à entrega de notas por parte do requerido à requerente, entre julho e setembro de 2021, tal como sucedia antes do primeiro destes meses.

  Sucede que a testemunha DD não soube precisar o valor concreto entregue, nem as datas em que o foram.

  Por outro lado, a mesma testemunha confundia a mensalidade da creche frequentada, até setembro de 2021, pela criança CC, sendo que o regime vigente, desde 14 de julho de 2021, é de comparticipação nas despesas escolares, onde se incluem as ditas mensalidades. Logo, mesmo a ter havido entrega de valores em numerário, sendo destinados à mensalidade da creche, sempre ficaria por liquidar a pensão alimentícia, o que constitui, precisamente, o objeto dos presentes autos.

  Em segundo lugar, refira-se que a testemunha DD mostrou-se conhecedora do relacionamento conflituoso entre requerente e requerido, o que torna incompreensíveis os alegados facilitismo e credulidade com que o requerido, mesmo após 14 de julho de 2021, terá pago, sem comprovativo, sendo que tem estado sempre processualmente acompanhado de advogado.

  Por último, a alegação – confirmada por ambas as testemunhas – de que eram comprados géneros para a criança CC, por parte do pai, não desoneram este último da entrega de valores pecuniários, tal como previstos no acordo homologado a 14.07.2021.

  Tudo se conjuga, pois, concluir pela não prova de que o requerido haja liquidado tais pensões alimentícias»

  Improcede, pois, a pretendida alteração da matéria de facto.

  Com o que, necessariamente, improcede a alteração da decisão.

  Aliás, como o Ministério Público o evidencia nas respectivas contra-alegações, «o recorrente estava obrigado ao pagamento de uma quantia pecuniária a título de alimentos devidos a menor. Ao ter entregue esse valor em espécie, o que nem se provou, o recorrente pretende fazer-se valer de uma alegada dação em cumprimento. Ora, nos termos do disposto no art.º 837.º do Código Civil, “A prestação de coisa diversa da que for devida, embora de valor superior, só exonera o devedor se o credor der o seu assentimento.”. Não se demonstrou, nem foi sequer alegado que a progenitora tenha aceitado receber o valor dos alimentos em gêneros. Desta forma, ainda que o tenha feito, o que não se provou, nunca essa entrega o desonerava do pagamento em dinheiro do valor a título de alimentos, pelo que não tem a virtualidade de impedir a verificação do incumprimento».

Com o que se conclui pela improcedência total da apelação.

  V – Pelo exposto, acorda este Tribunal em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.

  Custas pelo apelante.

                                                                       Coimbra, 24 de Maio de 2022
(Maria Teresa Albuquerque)
(Falcão de Magalhães)

                                                                       (Pires Robalo)

(…)


[1] - «Manual dos Recursos em Processo Civil»,  6ª ed, p. 53 ( na citação que se fez,  em vez do art 659º,  há-de ter-se  em consideração no actual CPC, o art 607º)