Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
358/08.3TBTCS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: ACESSÃO INDUSTRIAL
DIREITO DE PREFERÊNCIA
AQUISIÇÃO DE IMÓVEL
INCOMPATIBILIDADE
REGIME
LEGALIDADE
Data do Acordão: 03/25/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRANCOSO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 1316º E 1340º, Nº 1, CC
Sumário: As obras realizadas pelos adquirentes de um imóvel durante o período temporal que decorre entre o momento em que celebraram a respectiva escritura de compra e venda e aquele em que a preferência sobre essa compra a favor de outrem ainda não foi declarada com trânsito em julgado, não podem fundamentar o pedido de acessão imobiliária por os institutos da preferência e da acessão serem incompatíveis nesse espaço temporal.
Decisão Texto Integral:      Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

Relatório

    

No Tribunal Judicial de Trancoso, A.... e B...., residentes ....., propuseram a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra C.... e D...., residentes em ...., pedindo que os RR. sejam condenados a: - a reconhecer que os AA. são donos e legítimos possuidores do edifício identificado nos artigos 11.º a 26.º da petição inicial e do edifício e tanque referidos no artigo 29.º, bem como das vedações identificadas nos artigos 27.º, 30.º e 32.º; - a reconhecer que os AA. procederam a obras de beneficiação constantes dos artigos 33.º e 34.º, bem como implantaram as árvores constantes do artigo 35.º, e colocaram os tubos de rega aí referidos, sendo os AA. donos e legítimos possuidores de tudo isto; - a reconhecer que estes prédios urbanos, vedações e demais constante do parágrafo anterior foram levados a efeito no prédio rústico identificado nos artigos 1.º a 4.º e trouxeram a este terreno, onde se encontram implantados, um valor muito superior ao que o terreno tinha antes da incorporação; - a reconhecer aos AA. o direito de adquirirem o referido prédio rústico por acessão industrial imobiliária, mediante o pagamento aos RR. do valor de € 40.000, que era aquele em que foi valorizado na altura da implantação, ou outro que, em concreto, se venha a revelar mais adequado.

Pedem ainda que se declare retrotraído o efeito desta aquisição à data da incorporação (ou seja, 2004) e ainda que se ordene o cancelamento de qualquer registo do prédio rústico que, entretanto, possa ter sido levado a efeito a favor dos RR..

Alegaram que adquiriram o prédio rústico sito em ..., por compra a E....e F....., tendo procedido a diversas obras de beneficiação e melhoramentos que aumentaram em muito o valor do referido prédio. Sucede que os RR. intentaram acção de preferência relativamente à aquisição desse mesmo prédio, a qual foi julgada procedente, pelo que pretendem os AA. adquirir tal imóvel por acessão industrial imobiliária, atentas as obras que nele realizaram.

Os RR. apresentaram contestação, na qual se pronunciaram pela improcedência da acção, alegando que o contrato de compra e venda celebrado entre os AA. e os vendedores não deixou de produzir eficácia translativa, pelo que, quando os AA. realizaram as obras que invocam, o prédio não era alheio, mas sim sua propriedade. Para além disso, tendo os AA. sido citados para a acção de preferência em 21 de Maio de 2004, a boa fé em que os mesmos poderiam estar cessou nessa data, pelo que não se poderá considerar que levaram a cabo as obras que invocam de boa fé.

Os AA. replicaram, tendo requerido que os RR. fossem condenados em multa e indemnização a favor dos AA. como litigantes de má fé.

No despacho saneador o tribunal apreciou o mérito da acção e decidiu julgá-la improcedente por não provada e absolveu os Réus dos pedidos.

Inconformados com esta decisão dela interpuseram recurso os Autores concluindo que:

[………………………………….… …]

Os AA contra alegaram sustentando o acerto e a confirmação da decisão recorrida.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Fundamentação

O Tribunal de primeira instância considerou provados os seguintes:

    [……………………………………….....]

Tendo presente que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (arts. 684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 3, do CPCivil) nem criar decisões sobre matéria nova, a questão suscitada na Apelação é a de saber se ao direito de preferência do preferente pode ser oposta a acessão industrial imobiliária por parte do comprador do prédio preferido para impedir a preferência.

Nas conclusões de recurso é sustentado que por terem sido realizadas obras e plantações num valor superior ao do imóvel discutido e que trouxerem a este um também maior valor deveria a sentença considerado que os recorrentes podiam adquirir o prédio, contra o preferente, a título de acessão insdustrial imobiliária. E contra a decisão proferida pelo tribunal a quo protestam que as obras foram feitas de boa-fé  que o terreno em que as fizeram se deveria considerar alheio, entre o momento em que é efectuada a escritura de compra e o que é reconhecido o direito de preferência por sentença transitada em julgado.

Apreciando estas questões a partir das determinaçõess legais, sabemos que “se alguem de boa fé construir em terreno alheio ou nele fizer sementeira ou plantação e o valor que as obras, sementeia ou plantação tiverem trazido à toitalidade do prédio for maior do que o valor que este tinha antes, o autor da incorporação adquire a propriedade dele, pagando o valor que o prédio tinha antes das obras, sementeiras ou plantações”- art. 1340 nº1 do CC.

Este preceito reporta a distinção de benfeitoria e de acessão partindo da noção de que aquela é um melhoramento feito por quem está ligado à coisa melhorada com uma relação ou vínculo jurídico enquanto reserva para esta a ideuia de um beneficio material realizado sobnre uma coisa por quem lhe é alheio e não está relacionado juridicamente com a coisa beneficiada[1].

Para que este mecanismo de aquisição da propriedade funcione é necessário que exista uma incorporação em terreno alheio mas, também, que exista boa-fé por parte do autor dessa incorporação no momento em que a realizou - nº4 do art. 1340 - entendendo-se que esta existe “se o autor da obra , sementeira ou plantação desconhecia que o terreno era alheio, ou se foi autorizada a incorporação pelo dono do terreno”.

Em resumo, a acessão industrial imobiliária é uma forma de aquisição do direito de propriedade - cfr. artigos 1316º e 1340º, ambos do Código Civil - sendo os seus elementos constitutivos: a) a construção de uma obra; b) a sua implantação em terreno alheio; c) a formação de um todo único entre o terreno e a obra; d) o valor de um e de outra; e) a boa fé na conduta do autor da obra.

Resulta da prova obtida nos autos que os autores adquiriram por escritura pública o prédio discutido em 14 de Novembro de 2003, e que a acção que reconheceu a preferência dos Réus sobre esse imóvel foi julgada procedente, por sentença transitada em julgado em Outubro de 2008, tendo sido em data não concretamente apurada, mas anterior a 2008, que os AA. realizaram diversas obras em que pretendem agora fazer assentar a acessão.

Importa pois apreciar a que título os autores estiveram no domínio da coisa que compraram enquanto esta não se transferiu, por sentença transitada em julgada, para a titularidade dos réus.

A este propósito importa ter presente o ac. do STJ de 27/05/2008, onde esta questão foi abordada, e no qual se entendeu que durante o período que mediou entre o contrato de compra e venda e o trânsito em julgada da decisão que declarou a preferência, os compradores não preferentes têm uma ligação ao imóvel que pode ser considerada juridicamente relevante para o efeito de se concluir que o mesmo não lhe é alheio.

Para fundar esta decisão adiantou-se que “apesar de a procedência da acção ter como resultado a substituição, com eficácia “ex tunc”, do adquirente pelo preferente, o “contrato celebrado entre o alienante e o adquirente produz a sua eficácia translativa normal, mas em virtude da existência de um direito de opção, a posição jurídica do adquirente fica sujeita, por força da lei, a uma “condição” (conditio juris) resolutiva (…): ele perderá o direito que adquiriu se a preferência vier a ser triunfalmente exercida” – Pires de Lima e Antunes Varela “in” Código Civil Anotado, volume III, 2ª edição, anotação 10.

O contrato celebrado entre o alienante e o primitivo adquirente não deixou de produzir eficácia translativa.

Exercida a preferência, a coisa a ela sujeita passou a ser objecto de dois contratos de compra e venda incompatíveis: o que foi celebrado entre o vinculado à prelação e o terceiro; e o que resultou do exercício, pelo preferente, do seu direito de opção – Henrique Mesquita “in” Obrigações Reais e Ónus Reais, 1990, pag. 227, nota 151.

É que o direito que assiste ao preferente é o de se subrogar ou substituir ao terceiro adquirente na posição que esta ocupa no contrato celebrado com o obrigado à preferência, tudo se passando juridicamente, após a substituição e pelo que respeita à titularidade do direito transmitido, como se o contrato de alienação houvesse sido celebrado com o preferente – mesmo autor e obra, página 220.”

E com base nestes argumentos é de concluir que durante o período que mediou entre o contrato de compra e venda pelo qual os autores adquiriram o imóvel e o acórdão deste Supremo em que foram substituídos pelos réus, aqueles tinham relativamente ao terreno um direito de propriedade.

Por isso mesmo o acórdão citado conclui que esse direito de propriedade é um “Direito sujeito a uma condição resolutiva. Mas direito.

Não pode ignorar-se que foi a (…) quem realizou o negócio, quem assumiu as obrigações dele decorrentes e quem, até à data do acórdão do Supremo, agiu como proprietária do prédio.

Durante o período que mediou entre a aquisição do prédio e o acórdão deste Supremo que julgou procedente a acção de preferência, a (…) exerceu os poderes inerentes ao direito de propriedade do terreno, como, aliás, lhe era licito, face ao disposto no nº2 do artigo 277º do Código Civil.

E não podia ser de outra forma, pois à preferente ainda não tinha sido reconhecido qualquer direito sobre o prédio.

A substituição do preferente ao adquirente, de modo a tudo se passar juridicamente como se tivesse ele próprio adquirido a coisa no momento em que foi adquirida pelo terceiro adquirente, não pode erigir-se em regra absoluta, havendo que apreciar, para variados efeitos, se assim é ou não – Vaz Serra “in” RLJ 100º/472.

E para o efeito de se apreciar da ligação jurídica do adquirente ao prédio no período em causa, aquela substituição não pode operar para apagar esta ligação.”

Em reforço destes argumentos podemos também acrescentar que sendo pacífico que na “base do instituto da acessão há um conflito de direitos reais, uma vez que enquanto a acessão não actua, subsistem duas propriedades” (cfr. Oliveira Ascensão, in "As Relações Jurídicas Reais", pág. 140) não se pode entender nem admitir a existência deste conflito quando apenas a propriedade resultante da escritura de compra e venda do acedente existe e isto porque o anterior proprietário já o não é nem o virá a ser mesmo que seja declarada procedente a preferência e, por outro lado, o preferente que se pretende proprietário ainda não o é porque só o passará a ser quando tal lhe for reconhecido ainda que com eficácia “ex tunc”.

Assim, ao realizarem as obras os recorrentes não estavam a suscitar conflito algum de propriedades, o que está na base da acessão, uma vez que o vínculo jurídico que tinham com a propriedade não permitia que o imóvel fosse tido como alheio.  

Sendo a acessão industrial imobiliária uma forma potestativa de aquisição originária do direito de propriedade (artigo 1317º d) do CC, de reconhecimento necessariamente judicial, em que o pagamento do valor do prédio funciona como condição suspensiva da sua transmissão, embora com efeito retroactivo ao momento da incorporação, cfr.1316º e 1317º, al.d) esta natureza jurídica não se conjuga com a situação de quem realiza as obras no imóvel ter já pago o preço dele, precisamente por o haver adquirido previamente a essa realização.

Repare-se na circunstância de, por um lado, os compradores de um imóvel onerado com uma preferência saberem que com a propositura da acção correspondente podem deixar de ser proprietários passando a sê-lo o preferente, desde a data da escritura de compra e venda e, por outro lado, a admitir-se a acessão, este compradores não preferentes passariam a ter um direito de propriedade a partir do momento da realização das obras, direito este sujeito à condição suspensiva de pagarem o valor do prédio, afinal já pago, o que se resume numa contradição e incompatibilidade, bastando ter presente para a reconhecer que, ao mesmo tempo os recorrentes estariam a “não ser” proprietários, não obstante a escritura de compra e venda celebrada e a ainda “não decisão” de reconhecimento de preferência com trânsito em julgado e, em simultâneo, repita-se, a serem proprietários, não já por força do contrato de compra e venda mas sim em virtude do direito potestativo decorrente da realização das obras, mesmo antes do desfecho da acção de preferência       

Por isto mesmo, por esta incompatibilidade de natureza e de regimes é que consideramos como o faz a jurisprudência mais constante (reportando a já citada) que os institutos da preferência e da acessão são incompatíveis no espaço temporal que medeia entre o momento em que a preferência ainda não foi declarada e aquele em que a realização da obra, fundamento da acessão, se consuma.

Resultando que os autores ora recorrentes mantinham com o imóvel um vínculo jurídico de proprietários quando nele realizaram as obras em que fundam a acessão imobiliária pretendida, improcederia desde logo o seu pedido por falta de um requisito legal, soçobrando o entendimento daqueles quando defendiam que o imóvel por si adquirido de deveria considerar relativamente a ele uma coisa alheia por não haver com essa compra uma efectiva eficácia translativa normal do prédio mas sim uma eficácia precária e dependente do exercício do direito de preferência por quem lhe assiste esse direito.

Mas, ainda que tal se quisesse considerar (e não quer!), então, com esse entendimento estaria sempre instalado um conflito insanável entre o requisito exigido para a acessão de a coisa ser alheia e o de terem os acedentes de agir com boa-fé. É que, dizendo-se no nº4 do art. 1340 que se entende que houve boa-fé se o autor da obra desconhecer que o terreno era alheio ou a incorporação ter sido autorizada pelos donos do terreno, devendo existir no momento da construção e não agindo com esta quem sabe ou admite que a construção é feita em terreno alheio, afirmando os autores/recorrentes que embora tivessem efectuado a escritura de compra e venda do imóvel discutido este lhes continuava a ser alheio (e que disso teriam eles, obviamente, consciência), então eles não teriam agido de boa-fé precisamante por saberem que o terreno que haviam comprado lhes continuava a ser alheio não obstante o negócio haviam realizado.

A boa fé de que trata este instituto jurídico da acessão refere-se à realização das obras e não à posse do imóvel, e esta razão distingue e separa a questão de saber se na realização das obras que fundamentam o pedido de acessão imobiliária os autores, ora recorrentes, agiram com boa-fé, daquela outra que consiste em determinar que tipo de posse sobre o imóvel foi exercida por eles durante o período que decorreu entre o momento em que o adquiriram e aquele em que a preferência veio a ser declarada com trânsito em julgado.

Como dissemos, eventual caracterização desta última como titulada (em virtude da escritura de compra e venda) e de boa-fé em nada contende ou implica na caracterização da realização das obras como de boa-fé uma vez que esta depende do conhecimento ou desconhecimento de o terreno ser alheio e, neste domínio, ou bem que os recorrentes estavam cientes de que pela escritura eram os proprietários do imóvel e não podem fazer valer a acessão porque, como vimos, o terreno não é alheio, ou bem que julgavam estar a realizar obras em terreno alheio e nesse caso teriam de declarar e provar que o negócio de compra e venda que tinham celebrado era inválido e de nenhum efeito, desde a data da sua celebração e que desde essa data também, não obstante a celebração da escritura, nunca se tinham considerado donos do prédio e, então, teriam realizado as obras sem boa-fé por não desconhecerem que o terreno era alheio.

Neste quadro argumentativo percebe-se como irrelevante a questão de saber se a citação para a acção de preferência é ou não importante para caracterizar a actuação dos recorrentes quanto à realização das obras como de boa-fé ou se tal só sucederia se a citação fosse para uma acção de reivindicação ou se contivesse a advertência de os recorrentes se absterem dessas obras. Importa sim saber a natureza do direito em que ficaram investidos depois da escritura de compra e venda, e enquanto a preferência não é reconhecida com trânsito em julgado, e tal direito sendo o de propriedade, independentemente do que os compradores possam ou não ficar cientes depois de serem citados para a acção de preferência, isso nada altera o entendimento segundo o qual as obras realizadas por si no período temporal que decorre entre o momento da escritura de compra e venda e aquele em que a preferência ainda não foi declarada com trânsito em julgado, não podem fundamentar o pedido de acessão imobiliária.

Deste modo, improcedem na totalidade as conclusões de recurso, acrescentando-se que com base nos argumentos enunciados na decisão recorrida não havia necessidade de produção de prova sobre outros factos que não os assentes por acordo para se conhecer desde logo, no saneador, o mérito da causa, nem da eventual prova de tais factos poderia resultar de cisão diversa.

  Sumariando nos termos do art. 713 nº7 o decidido neste acórdão, fixa-se que:

- as obras realizadas pelos adquirentes de um imóvel durante o período temporal que decorre entre o momento em que celebraram a respectiva escritura de compra e venda e aquele em que a preferência sobre essa compra a favor de outrem ainda não foi declarada com trânsito em julgado, não podem fundamentar o pedido de acessão imobiliária por os institutos da preferência e da acessão serem incompatíveis nesse espaço temporal.

… …

 Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a Apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida

Custas pelos Apelantes.


[1] Vd. Pires de Lima /Antunes Varela CC Anotado, 1972, vol. III p. 148 e Quirino Soares, Acessão e Benfeitorias, CJ ano 96, tomo. I, p. 14 e ss.