Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1729/12.6TBCTB-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
TRADIÇÃO DA COISA
DIREITO DE RETENÇÃO
Data do Acordão: 12/10/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE CASTELO BRANCO - 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 410, Nº 3 E 755, Nº 1, AL.ª F), DO C. CIVIL
Sumário: 1. A nulidade decorrente da inobservância dos requisitos previstos no art.º 410, nº 3, do C. Civil não pode ser invocada por terceiros.

2. Para que se opere a tradição exigida para o direito de retenção a que se reporta o art.º 755, nº 1, al.ª f), do C. Civil, é necessário que a coisa objecto do contrato prometido se encontre perfeitamente concluída e apta a desempenhar a função a que se destina.

3. Não pode existir tradição de um apartamento integrado num prédio a submeter ao regime da propriedade horizontal quando este prédio se encontra ainda em construção e o dito apartamento nem sequer dispõe de fechadura ou porta.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

Nos autos de verificação e reclamação de créditos a correr termos por apenso à insolvência de A..., LDA, que foi declarada no 3º Juízo do Tribunal Judicial de Castelo Branco, veio o respectivo Administrador de Insolvência apresentar a lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos nos termos e para os efeitos doa art.º 129, nºs 1 e 2, do CIRE.

No prazo que lhes foi concedido impugnaram a referida lista os credores B...e mulher C..., sustentando que o seu crédito, proveniente do incumprimento do contrato promessa celebrado com a insolvente, deveria ter sido graduado como dispondo de garantia, visto beneficiar do direito de retenção sobre o imóvel prometido vender.

Respondendo, o credor BANCO D..., SA, alegou que o crédito dos impugnantes se cingia ao sinal prestado no contrato promessa que celebraram com a insolvente, e não ao dobro dessa quantia (por eles reclamado); e também que esse crédito deveria ser graduado como comum por aos seus titulares não assistir qualquer direito de retenção.

Prosseguiram os autos com a selecção da matéria assente e a organização da base instrutória, de forma que a final se prolatou sentença do seguinte teor:
“I. Julgam-se verificados os créditos identificados na lista de credores elaborada pelo Sr. Administrador de Insolvência;
II. Reconhece-se como privilegiado o crédito reclamado por B... e mulher C...; e
III. Procede-se à graduação dos créditos reconhecidos para serem pagos pelo produto da massa insolvente da seguinte forma:

A. (…);
B. Relativamente ao bem imóvel identificado no auto de apreensão de bens de fls. 2 do apenso A:
- Em primeiro lugar, deverá pagar-se o crédito privilegiado da Fazenda Nacional referente ao IMI no valor de € 1.475,93;
- Em segundo lugar o crédito de B... e mulher C...;
- Em terceiro lugar o crédito garantido do Banco D..., SA, até ao montante máximo inscrito no registo;
- Em quarto lugar, pagar-se-á o crédito privilegiado da Segurança Social;
- Do remanescente, se o houver, dar-se-á pagamento aos créditos comuns reconhecidos, a solver por rateio, na proporção dos seus créditos.
6. Por fim, depois de integralmente pagos os créditos privilegiados, garantidos e comuns, serão pagos os créditos referentes a juros vencidos após a declaração de insolvência, em conformidade com o disposto nos art.ºs 48, alínea b) e 177 do CIRE”.

Inconformado, desta sentença recorreu o credor BANCO D..., recurso admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos autos de verificação e graduação e com efeito meramente devolutivo.

Dispensados os vistos, cumpre decidir.

São os seguintes os factos dados como provados em 1ª instância:

1. Por sentença datada de 20 de Novembro de 2012, foi declarada a insolvência de “Albitece – Investimento Imobiliário, Lda”.
2. Da relação de créditos reconhecidos pelo Sr. Administrador de Insolvência, e notas explicativas à mesma, consta, além do mais, o seguinte: “ B... e mulher C... (…) crédito reconhecido como comum de €100.000,00 de capital e €5.358,90 de juros de mora: (z) Crédito reclamado: Origem do mesmo: Da entrada a título de sinal e principio de pagamento no montante de € 50.000,00, acrescido deste montante em dobro, ou seja, €100.000,00 pelo incumprimento do contrato promessa de compra e venda, sendo que, por isso os reclamantes disseram em tempo que perderam todo o interesse na aquisição do objecto do contrato promessa de compra e venda, dando por resolvido o mesmo, salientando também que a devolução em dobro do valor do sinal prestado (…) é nos termos do art. 442º, nº 2 do Código Civil.
- de juros vencidos desde a resolução do contrato até à data da declaração de insolvência no montante de € 5.358,90.
O crédito global reclamado de 105.358.90 deve ser reconhecido como crédito comum nos termos da alínea c) do nº 4 do art.º 47º do CIRE.”
3. Em 25 de Setembro de 2009 a insolvente acordou, por escrito, com os aqui impugnantes que lhe prometia transmitir, e estes prometeram-lhe receber, livre de ónus e encargos, o apartamento correspondente ao 3º andar esquerdo e o parqueamento número 10 a construir no terreno destinado a construção urbana, sito em Quinta do Bosque, lote 46, freguesia e concelho de Castelo Branco, inscrito na respectiva matriz sob o art. 14257, que se encontra em construção, com o alvará de construção nº 01/2008, ainda não averbado na matriz nem sujeito ao regime da propriedade horizontal.
4. Pelo valor de € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros).
5. Como sinal e pagamento integral do preço os impugnantes entregaram à insolvente a quantia de €50.000,00 (cinquenta mil euros), na data da assinatura de do acordo referido em 2).
6. A aqui insolvente e os impugnantes acordaram que a escritura de compra e venda seria outorgada até dia 28 de Fevereiro de 2010, em dia, hora e local a designar pela insolvente, por carta registada e aviso de receção a enviar os impugnantes com antecedência mínima de 30 dias (…).
7. Consta da cláusula sétima que a aqui insolvente compromete-se transmitir a posse do imóvel prometido aos impugnantes, logo que os acabamentos estejam efetuados.
8. No mencionado acordo ficou, ainda, estipulado que, caso a construção do prédio não estivesse concluída até ao dia 28 de Fevereiro de 2010, haveria lugar a uma penalização mensal de 1% sobre o mencionado preço de € 150.000,00, a descontar neste e contada a partir daquela data (28 de Fevereiro de 2010).
9. O prédio identificado em 3) está descrito na Conservatória do Registo Predial de Castelo Branco sob o nº (...) da freguesia de Castelo Branco.
10. A Insolvente Albitece não concluiu a construção do prédio nem em 28 de Fevereiro de 2010 nem posteriormente.
11. Em 27 de Agosto de 2010, a pedido da insolvente, esta e os aqui impugnantes acordaram, por escrito, outorgar o aditamento ao “contrato promessa de compra e venda ” aludido em 3) junto nos autos a fls. 21 a 24 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
12. Consta da cláusula sexta do aditamento que a insolvente transmite de imediato aos aqui impugnantes a posse da fracção autónoma e parqueamentos prometidos vender (3º andar esquerdo e o parqueamento número 10).
13. A insolvente obrigou-se ainda a efectuar os acabamentos na fracção autónoma (3º andar esquerdo) e parqueamento (nº 10) prometidos vender.
14. Nos termos da cláusula nona do referido aditamento os aqui impugnantes também poderiam designar data para a celebração da escritura de compra e venda.
15. Aquando da assinatura do aditamento identificado em 11), a insolvente entregou aos aqui impugnantes as chaves de acesso ao prédio, nessa data o apartamento aludido em 3) não tinha, e ainda não tem, porta de entrada nem fechadura.
16. A partir de então os aqui impugnantes já acederam ao prédio em causa fazendo uso da chave que lhe fora entregue, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.
17. Por carta datada de 30 de Janeiro de 2011 os aqui impugnantes notificaram a Insolvente para no dia 28 de Fevereiro de 2011, pelas 14 horas, no Cartório Notarial da Drª E... , em Castelo Branco comparecer para outorgar da escritura de compra e venda, que a insolvente não respondera.
18. Por carta registada com aviso de recepção datada de 30 de Junho de 2011, os aqui impugnantes notificaram a Insolvente para no dia 1 de Agosto de 2011, pelas 14 horas, no Cartório Notarial da Dr.ª E..., em Castelo Branco comparecer para outorgar da escritura de compra e venda.
19. Por carta datada de 5 de Julho de 2011, junta nos autos a fls. 32 a 33 cujo teor aqui damos por integralmente reproduzido, a insolvente comunicou aos aqui impugnantes que não compareceria, no dia 1 de Agosto de 2011, no Cartório Notarial da Drª E..., em Castelo Branco, para outorga da escritura de compra e venda.
20. Por a insolvente não estar em condições de celebrar a escritura de compra e venda, nomeadamente por os acabamentos do prédio não se encontrarem concluídos, faltar a licença de habitação e ter ocorrido a caducidade da licença de construção do prédio, os aqui impugnantes perderam interesse na aquisição do imóvel identificado em 3) e por carta datada de 21 de Julho de 2011, junta nos autos a fls. 36 a 38, cujo teor se reproduz, comunicaram à insolvente que consideravam resolvido o supra identificado contrato-promessa de compra e venda, com a obrigação da Insolvente de proceder à em dobro do valor do sinal prestado, ou seja da quantia de € 100.000,00 (€ 50.000,00 x 2), nos termos do art.º 442º, nº 2, do Cód. Processo Civil.
21. Recebida tal carta a Insolvente Albitece não entregou aos aqui impugnantes a quantia de € 100.000,00.
22. Os aqui impugnantes entregaram à insolvente a quantia de €50.000,00 aludida em 5).

*

A apelação.

Nas conclusões com que encerram a respectiva alegação o Banco apelante levanta as seguintes questões:

1º - A relativa a saber se o contrato-promessa e o posterior aditamento celebrado pela insolvente com os credores B... e mulher são nulos por não terem sido objecto de escritura pública nem conterem a certificação da existência de licença de utilização ou construção da fracção prometida vender;
2º - Se não existe direito de retenção a favor dos credores impugnantes, desde logo por a estes não ter sido transmitida qualquer posse da fracção prometida vender;
3º - Se no caso de se considerar verificado o direito de retenção dos promitentes o mesmo deve ceder perante a hipoteca anteriormente registada pelo recorrente.

Os impugnantes e apelados contra-alegaram, batendo-se pela confirmação do decidido.

Apreciando.


Quanto à primeira questão: a forma.

Invoca o recorrente a nulidade do contrato-promessa de 25 de Setembro de 2009 e do aditamento que os credores B...e mulher e a insolvente lhe introduziram em 27 de Agosto de 2010 por um e outro não terem sido plasmados em escritura pública e, bem assim, não conterem a certificação da existência de licença de utilização ou construção do imóvel conforme é exigido pelo art.º 410, nº 3, do CC.
Mas não tem razão.

Não estando em causa a atribuição de eficácia real, o contrato promessa de compra e venda de imóveis basta-se com a sua redução a escrito em documento assinado pela parte que se vincula ou por ambas: cfr. os art.ºs 410, nº 2 e 413, nº 2 do C. Civil.
Daí que mostrando-se o contrato e seu aditamento materializados em documento assinado por ambos os contraentes a exigência legal de forma se deva ter por cumprida.
Mas o recorrente adversa ainda a inobservância do requisito da certificação da existência de licença de utilização ou construção que é imposta pelo nº 3 do art.º 410 do CC.
Vejamos então.

Preceitua o nº 3 do art.º 410 do CC:
“No caso de promessa respeitante à celebração de contrato oneroso de transmissão ou constituição de direito real sobre edifício ou fracção autónoma dele, já construído ou a construir, o documento referido no número anterior deve conter o reconhecimento presencial das assinaturas do promitente ou promitentes e a certificação pela entidade que realiza aquele reconhecimento, da existência da respectiva licença de utilização ou construção; contudo o contraente que promete transmitir ou constituir o direito só pode invocar a omissão destes requisitos quando a mesma tenha sido culposamente causada pela outra parte.

É inegável que relativamente ao contrato promessa cuja cópia certificada se acha junta a fls. 7-9 do presente apenso foi efectuado o reconhecimento presencial das assinaturas dos intervenientes (cfr. fls. 12-13). Mas já não se constata a certificação da existência de licença de utilização ou construção do imóvel.
Aliás, a licença de utilização nunca poderia estar certificada na data do contrato promessa porquanto neste se menciona a existência de um edifício em construção. Nessa altura o que poderia existir era, pois, a licença de construção.
Sucede que o vício em causa – a nulidade do contrato – não pode ser conhecido oficiosamente nem ser invocado por terceiros, como se nos afigura resultar do pensamento do legislador.
Com efeito, da parte final do nº 3 do art.º 410, que acima se deixou transcrita, decorre com meridiana clareza que a invocação da ausência dos aludidos requisitos é apanágio do contraente beneficiário da promessa, para ele sem qualquer condicionalismo; e que havendo culpa dele nessa omissão, também o outro promitente se pode prevalecer da consequência legal da respectiva nulidade.
Na realidade, não estamos perante uma nulidade em sentido próprio, dada a legitimidade restrita da sua arguição.
Refere Gravato Morais1 que desde o Assento 15/94 de 28 de Junho de 1994 (BMJ 438 – p.66) está hoje pacificada na doutrina e na jurisprudência a orientação que nega aos terceiros a faculdade de arguir a nulidade do contrato-promessa com base na falta de qualquer dos aludidos requisitos, da qual apenas diverge ALMEIDA COSTA quanto à ausência de certificação da licença de utilização ou construção, por entender de que nessa situação está essencialmente em jogo a protecção do interesse público do combate à construção clandestina.
Cremos, porém, e salvo melhor opinião, que este argumento é dificilmente defensável, pois, se assim fosse, ou seja, se o interesse decisivo da lei consistisse na dissuasão da construção clandestina, nenhuma limitação de arguição se justificaria fazer incidir sobre os próprios contraentes, e, designadamente, aquela que emerge do segmento final do aludido nº 3 do art.º 410.
Aliás, só por isso se compreende que a lei não consagre o conhecimento oficioso da nulidade em qualquer das suas causas, conhecimento que praticamente toda a jurisprudência e a esmagadora maioria da doutrina vem igualmente considerando estar vedado2.
Também não vemos motivo para que nos afastemos desta bem vincada tendência.
Assim, como terceiro que é, não pode o recorrente fazer valer a aludida omissão (sendo até de relevar que só agora o faz como questão ex novo, o que igualmente esbarraria com uma inadmissibilidade processual).
Pelo que a questão suscitada improcede.


Sobre a inexistência do direito de retenção a favor dos promitentes compradores.

Também aduz o apelante BANCO D... que não há direito de retenção a favor dos promitentes apelados porque não há posse que pelo contrato-promessa lhes tenha sido transmitida. E que não haveria posse porque a entrega da fracção – a tradição simbólica realizada pela entrega das chaves – não foi acompanhada do elemento subjectivo, ou seja, do chamado “animus possidendi”.
Afirmou-se na decisão recorrida que os credores e aqui apelados dispunham de direito de retenção sobre o imóvel apreendido, por força do contrato-promessa e da verificação do condicionalismo do art.º 755, nº 1, alínea f), do C. Civil.
Sendo de reconhecer que neste genérico conspecto – dos pressupostos do direito de retenção – assiste fundamento substancial ao apelante na sua insurgência quanto ao decidido, há todavia que proceder à correcta configuração desses pressupostos, nomeadamente quanto ao que releva da distinção entre posse e tradição.
É o que se fará de seguida.
Preceitua o art.º 754 do CC que “O devedor que disponha de um crédito sobre o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela o de danos por ela causados”.
Por sua vez, estabelece o art.º 755, nº 1, alínea f), do mesmo diploma:
“1. Goza ainda do direito de retenção:
(…)
f) O beneficiário de promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art.º 442 do CC.
2. (…)”.

São deste modo três os pressupostos que fulcralmente marcam o direito de retenção:

A existência de um crédito emergente de promessa de transmissão ou constituição de um direito real (que pode não coincidir com o direito de propriedade);
A entrega ou tradição da coisa abrangida ou objecto da promessa;
O incumprimento definitivo da promessa imputável ao promitente como fonte do crédito do retentor.

Da mera enunciação deste requisitório é logo possível concluir que radicando o direito de retenção num contrato-promessa não é necessário que o beneficiário da promessa tenha a posse da coisa objecto do contrato prometido. É suficiente que a detenha por simples tradição.
Daí que seja despicienda a tarefa de averiguar se aquele beneficiário passou a ser titular de uma verdadeira posse sobre a coisa, situação que, de resto, não é a que mais frequentemente ocorre.
Aliás, está de há muito jurisprudencialmente estabilizado o princípio de que o contrato-promessa não é em si mesmo um instrumento para a outorga da posse, visto que o que através dele típicamente nasce para o promissário da transmissão ou constituição é um direito de crédito: o crédito à celebração do contrato prometido3.
Mas a tradição de que fala a alínea f) do nº 1 do art.º 755 do CC não se confunde com a posse e pode existir – e existirá muitas vezes – sem esta.
A tradição de que aqui se fala identifica-se com a alienação material da coisa que investe o seu receptor no “corpus”, ou seja, na respectiva detenção e apreensão material: surpreende-se aí um mecanismo consensual não só prática mas também juridicamente relevante porquanto concede ao beneficiário um mero poder de gozo que acompanhará a vigência da relação obrigacional criada pelo negócio em que se expressa a promessa4.
Note-se que o próprio direito de retenção é um direito de garantia: como tal a sua vida prolonga-se até que a satisfação do crédito por ele garantido pelas forças do património do devedor se revele assegurada.5 E extinguir-se-á quando tal suceder.
Pode, por conseguinte, dizer-se que a traditio é um acto materialmente translativo que atribui ao accipiens o domínio efectivo e empírico sobre a coisa; ele é o produto da confluência, por um lado, de uma vontade negativa do possuidor de deixar a relação material que exercia ao abrigo da posse, e por outro, da vontade positivamente manifestada do promissário em iniciar essa mesma relação material.
Mesmo quando se dá a chamada tradição simbólica não se prescinde de uma relação material efectiva do accipiens com a coisa, de um novo poder de facto sobre ela, sem embargo de ainda se não poder falar de uma nova posse6.
Ora o que se colhe da factualidade provada é que nem a promitente-vendedora ora insolvente nem os credores e promitentes-compradores podiam proceder à tradição material ou simbólica do bem objecto da promessa.
O que no contrato-promessa se pretendia era a futura transmissão da propriedade de um apartamento e de um lugar de aparcamento num edifício em construção, a constituir em regime de propriedade horizontal, ou seja, de uma ou mais fracções do prédio respectivo.
A tradição a favor dos impugnantes e beneficiários da promessa teria que concretizar-se sobre esse bem.
No entanto, decorre do provado em 10 que a insolvente A... não concluiu a construção nem em 28 de Fevereiro de 2010 nem posteriormente; e do provado em 15 e 16 que tendo os impugnantes recebido daquela as chaves de acesso ao prédio, “nessa data o apartamento aludido em 3) não tinha, e ainda não tem, porta de entrada ou fechadura”.
Como é evidente, a entrega das chaves do prédio que iria ser afecto ao regime de propriedade horizontal não se pode equiparar à entrega das chaves de um dos seus apartamentos.
Por si, não é um acto idóneo a conferir um poder material individualizado sobre um dos apartamentos do edifício, o qual, ao que se apura, permanecia inacabado à data da decisão recorrida ou, pelo menos, do encerramento da discussão.
É que sem porta de entrada ou fechadura não é viável uma relação material com a coisa transmitida, segundo a funcionalidade a que esta se destina: o apartamento não pode ser usado e fruído com essa natureza, pelo que também não pode ser objecto de qualquer traditio, seja material seja simbólica. Sem a privacidade e o isolamento que advêm da porta e da fechadura, e mesmo que praticamente concluído interiormente, o apartamento prometido vender aos credores impugnantes poderia reunir algumas das características que proporcionam a aparência de uma habitação, mas não se apresentava com todos os elementos necessários ao exercício de um poder fáctico exclusivo pelos beneficiários de tal promessa. Não tinha autonomia em relação ao edifício na sua globalidade, nem podia ser transmitido a alguém com a natureza e função próprias de um imóvel vocacionado para habitação.
Donde que por falta de condições para tradição do imóvel o crédito dos impugnantes e beneficiários da promessa de venda não possa valer-se da garantia do direito de retenção, e, por via disso, tenha de ser graduado, não como crédito garantido, mas como crédito comum.
Queda portanto prejudicada a questão subsequente, atinente à hierarquia de pagamento entre o crédito do recorrente, garantido por hipoteca, e o crédito dos impugnantes.
Pelo que, na procedência desta questão, a graduação operada na sentença recorrida não pode manter-se.

Pelo exposto, na procedência da apelação, revogam em parte a decisão recorrida, declarando-se que o crédito reclamado por B... e mulher C... tem a natureza de crédito comum; e que relativamente ao bem imóvel identificado no auto de apreensão de fls. 2 do apenso A, aludido em B), da sentença, o pagamento obedece à seguinte ordem:
- Em primeiro lugar, pagar-se-á o crédito privilegiado da Fazenda Nacional referente a IMI, no valor de € 1.475,93;
- Em segundo lugar, pagar-se-á o crédito do apelante Banco D..., SA, até ao montante máximo inscrito no registo;
- Em terceiro lugar, pagar-se-á o crédito da Segurança Social;
- Em quarto lugar, dar-se-á pagamento aos créditos comuns reconhecidos.
No mais mantém-se a sentença recorrida.
Custas pelos apelados.


Freitas Neto ( Relator)
Carlos Barreira
Barateiro Martins