Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
98/14.4TANZR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO CHAVES
Descritores: ESCUTAS TELEFÓNICAS
Data do Acordão: 05/11/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (INSTÂNCIA CENTRAL)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.187.º E 188.º DO CPP; ART. 6.º DA LEI N.º 5/2002
Sumário: I - Enquanto anteriormente as escutas podiam ser validamente realizadas se houvesse razões para crer que a diligência tinha «grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova», agora só é possível o recurso a este meio de prova se ele se afigurar indispensável à descoberta da verdade ou se se entender que, de outra forma, a prova é impossível ou muito difícil de obter.
II - Quando procede à análise do pedido de autorização de realização de escutas telefónicas, o juiz terá que apurar, primeiro, se existem indícios da prática de algum dos crimes para cuja investigação é possível utilizá-las, depois tem que decidir se este meio de prova é indispensável ou se, sem ele, a prova é muito difícil ou impossível de obter e, por último, tem que se certificar que o alvo se enquadra dentre o elenco das pessoas escutáveis.

III - A Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, não exige, como requisito de admissibilidade do registo de voz e de imagem, a «indispensabilidade» da diligência mas sim a sua necessidade para a investigação – artigo 6.º, n.º 1.

IV - Sendo o tráfico de estupefacientes um crime de grande danosidade social devido ao leque de consequências que resulta desta actividade criminosa, a compressão dos direitos individuais que implica a utilização dos referidos meios de obtenção de prova não pode considerar-se desproporcionada.

V - Havendo razões para crer que o recurso às escutas telefónicas não só se mostra indispensável para a descoberta da verdade, como a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter, justifica-se a requerida intercepção e gravação das comunicações telefónicas, assim como se justifica a recolha de imagens pois os resultados de investigação que se pretendem com a realização de tal diligência não são passíveis de ser alcançados através do recurso a outros meios de produção de prova.

Decisão Texto Integral:




Acordam na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

1. Nos autos de inquérito (Actos Jurisdicionais) n.º 98/14.4TANZR, a correr termos no Tribunal da Comarca de Leiria – Leiria – Instância Central – Secção de Instrução Criminal – J2, de que os presentes autos constituem apenso, por despacho proferido em 29/01/2016, o M.mo Juiz de Instrução Criminal indeferiu a realização de escutas telefónicas e a recolha de imagens a suspeitos de tráfico de estupefacientes.

2. A Ex.ma Magistrada do Ministério Público interpôs recurso dessa decisão, terminando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

«1. Por despacho proferido no dia 29 de Janeiro de 2016, entendeu o MM. Juiz de Instrução indeferir a autorização das promovidas intercepções telefónicas e recolha de imagens.

2. Por considerar que “os indícios recolhidos em Agosto de 2015 foram totalmente perdidos pela investigação. Não só porque ficou meses a fio sem realizar qualquer diligência, mas também porque a quantidade e qualidade dos resultados piorou consideravelmente. Antes conseguia ver-se e fotografar-se a entrada de indiciados consumidores e de estupefacientes na casa dos suspeitos, agora quase nada se consegue e ver e nenhum registo fotográfico é conseguido”;

3. Bem como que a “indiciação suficiente de que a intercepção e gravação de comunicações telefónicas ou a recolha de imagens se revela indispensável à prova do crime investigado, julgo inverificados os pressupostos legais de admissibilidade de realização de escutas telefónicas (artigo 187º, n.º 1, do C. Penal e 6º da Lei n.º 5/2002, de 11/01).

4. A razão aduzida pelo Juiz de Instrução para não autorizar a recolha de imagens, é dada no seguinte segmento do despacho “Na actualidade, nem sequer há justificação para deferir a recolha de imagens à actividade dos suspeitos, que o OPC confessa não conseguir descortinar em moldes minimamente fiáveis”.

5. É certo que a investigação, claramente, esperava melhor prova para as suas suspeitas, sendo esse o objectivo de qualquer processo de inquérito - determinar os agentes do crime, a responsabilidade deles e descobrir e recolher provas, em ordem à decisão sobre a acusação - artigo 262º, n.º 1 do CPP - a qual deverá ser deduzida se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de que se tenha verificado crime e de que, foi o seu agente - artigo 283.º, n.º 1 do CPP.

6. No entanto, não foram reunidos elementos que permitam concluir pela mitigação dos indícios iniciais contra os suspeitos.

7. O que se verifica é a impossibilidade de, recorrendo a outros métodos de investigação, os demonstrar em concreto, daí a imprescindibilidade do recurso a intercepções telefónicas.

8. Ao contrário do Juiz de Instrução entendemos que, no caso dos autos, onde se investiga crime de tráfico de estupefacientes, as intercepções telefónicas não são o complemento de outras provas, que até podem não existir.

9. É bem patente, que a intercepção dos telefones dos suspeitos assume primordial importância para a descoberta da verdade.

10. Olhando à especial natureza e perigosidade social do crime de tráfico de estupefacientes, é óbvio que o dever do Estado em preservar a privacidade dos cidadãos cederá perante o dever que também lhe incumbe de perseguir os autores de crimes tão anti-sociais como o que é investigado nos autos.

11. Atentando no disposto nos artigos 34º n.º 4 da C.R.P. e 187º, nº 1 do C. Penal, não sendo as intercepções telefónicas neste tipo de crime em geral e no dos autos em particular um meio de prova subsidiário, não se vê razão para que o Juiz de Instrução tenha indeferido as intercepções requeridas.

12. O Juiz de Instrução violou o disposto nos artºs. 34º, nº 4 da C.R.P. e 187º, nº 1 do C. Penal, por interpretação e aplicação menos adequada daquelas normas.

13. Entendemos que os inícios existentes nos autos, se correctamente analisados, fundam uma suspeita suficientemente alicerçada da prática de crime cuja natureza e gravidade, só por si, impõe os sacrifícios e perigos que a escuta telefónica envolve.

14. a intercepção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas, só podem ser ordenadas ou autorizadas, por despacho do juiz e se houver razões para crer que a diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, nos termos do art. 187.º, n.º 1, b), do CPP.

15. Depreende-se da mera leitura deste preceito que o recurso à escuta telefónica, deve obedecer aos princípios de subsidiariedade e da adequação, isto é, não sendo um meio de prova proibido, mas um meio excepcional, está condicionado à natureza do crime em investigação e ainda cumulativamente se tal diligência seja indispensável para a descoberta da verdade, ou que a prova seja, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter.

16. Nos autos já foram efectuadas diversas diligências que permitam fundamentar a suspeição que recai sobre os suspeitos, como se verifica designadamente dos relatos de diligência externa

17. Face aos elementos dos autos, entendemos estarem reunidos os requisitos mínimos legalmente exigíveis para serem autorizadas as escutas telefónicas, pois estamos perante a denúncia de um crime de tráfico de estupefacientes, que requer cuidados especiais, na produção de prova oral, sob pena de se perturbar a investigação, dada a interdependência existente, como é facto notório, entre os consumidores e o traficante.

18. O despacho que esteve na base do indeferimento, acolhe toda a informação relevante recolhida, evidenciando que a diligência se revela de grande interesse para a descoberta da verdade e/ou para a prova.

19. Ora, quando no artigo 187.º, n.º 1, do CPP, se refere que as escutas telefónicas só são de autorizar, se houver razões para crer que a diligência se revelará indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter, atenta a fase inicial do processo de investigação não podem ser entendidas a um grau de exigência equiparável aos fortes indícios.

20. A intercepção e gravação de escutas telefónicas não devem nem podem ser autorizadas pelo Juiz de Instrução apenas e só quando existirem indícios suficientes da pratica do crime, pois nessa situação nem seriam já necessárias.

21. Quanto à recolha de imagens, diga-se que não se nos afigura resultar da Lei 5/2002 de 11 de Janeiro que a autorização referida no n.º 2 do artigo 6º dependa do facto de a recolha de imagens ser viável ou facilmente obtida pelo OPC.

22. É certo que os pressupostos legais para tal autorização se verificam em concreto, como aliás, já considerou o Juiz de Instrução em momento anterior.

23. Na verdade, dispondo o artigo 6.º, n.º 1 da Lei 5/2002 de 11 de Janeiro que: “É admissível, quando necessário para a investigação dos crimes referidos no artigo 1.º, o registo de voz e de imagem, por qualquer meio, sem consentimento do visado” e estando em investigação a prática de crime “do catálogo” – cfr. alínea a) do n.º 1 da mesma Lei – não poderá ser outra a conclusão a formular.

24. O requisito de admissibilidade para a autorização da recolha de imagem é, para além do supra referido, o da necessidade para a investigação.

25. Atendendo ao carácter excepcional deste meio de obtenção de prova e à restrição que o mesmo acarreta para direito fundamentais, devemos considerar que existe necessidade, quando as provas obtidas são insuficientes para a investigação, o que acontece no caso dos autos.

26. O que ficou dito afigura-se-nos suficiente para mostrar que o recurso deve ser julgado procedente, sendo certo que, a circunstância de não se poder recorrer a recolha de imagens e a intercepções telefónicas neste tipo de crime em geral e no caso dos autos, em particular, fere de morte a investigação e o objectivo de alcançar qualquer resultado, de nada servindo o segredo de justiça validado, o qual não se aplica ao Ministério Público e aos investigadores…

27. Aduzidos os argumentos, merecerá provimento o presente recurso, devendo ser revogado o despacho em causa e substituído por outro que autorize as requeridas intercepções e recolha de imagens.

V. Ex.as, porém, melhor apreciarão, fazendo, como sempre, JUSTIÇA.»

3. Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto limitou-se a apor o seu visto.

4. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão.

                                          *

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. É o seguinte o teor do despacho recorrido (transcrição):

«Promove o Ministério Público, a fls. 198 a 203, se autorize a realização de escutas telefónicas incidentes sobre comunicações efectuadas de e para cinco telemóveis da suspeita A... , bem como recolha de imagens aos suspeitos (além da citada, também B... e C... ), com fundamento em que tal se revela indispensável à investigação da prática pelos mesmos de crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22/01.

Para tanto, alegou o seguinte:

«(…) Como já se referiu no despacho de fls. 160, os factos apurados pelo investigador até ao momento são susceptíveis de integrar a prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. pelo artigo 21.º do DL 15/93, sendo suspeitos A... ( A... ), B... ( B... ou B... ) e C... , sendo os dois primeiros companheiros um do outro e o último filho de ambos.

A actividade indiciariamente delituosa tem lugar nas traseiras do lote (...) da Rua (...) , residência dos suspeitos, pelo menos desde Abril de 2014, como resulta da participação de fls. 3, encontra-se a localização demonstrada a fls. 113 a 152 e 183.

Visando a confirmação da denúncia, foram realizadas várias diligências. Para além das já elencadas a fls. 160 e 161 e espelhadas a fls. 11, 18; 25; 28 a 60 e 99, em virtude das quais se logrou confirmar a identidade dos suspeitos e contactar com indivíduos conhecidamente toxicodependentes residentes naquela cidade; apurar que vários indivíduos toxicodependentes se deslocam à residência dos suspeitos, dali saindo com “das mãos fechadas”, modo habitual de transporte de droga; abordar directamente consumidores após abandonarem as traseiras da residência dos suspeitos guardando cocaína consigo, foram realizadas vigilâncias nos dias 30 de Outubro de 2015, 8 e 9 de Janeiro de 2016.

Conforme se encontra documentado nos respectivos relatórios de vigilância que fazem fls. 171, 173 a 175 e 184 foi possível registar que considerável número de indivíduos, alguns conhecidos como toxicodependentes e nenhum residente no referido número ou rua, a diferentes horas, pela porta das traseiras do imóvel correspondente à habitação dos suspeitos, acedem ao seu interior saindo do local passados um ou dois minutos.

Importa esclarecer que, muita dessa afluência é registada sem que a A... se encontre na habitação, podendo mesmo acontecer quando esta se encontra a cumprir o seu horário de trabalho, no parque de campismo da localidade de (...) (como aconteceu no dia 8 de Janeiro de 2016) daí se podendo concluir que, as entregas de estupefaciente aos indivíduos que ali afluem, é feita pelo marido desta, B... ou o filho, C... , factos consonantes com o conhecimento funcional tido, relativamente ao “modus operandi” destes indivíduos para fazerem chegar o estupefaciente aos “clientes”.

Apurou-se que diversos indivíduos se deslocarem para as traseiras da residência dos suspeitos (alguns que ali chegam a pé, outros em viaturas automóveis) contudo, conforme também é dali perceptível, nem sempre é possível confirmar se realmente entram na residência dos suspeitos, ou qual destes últimos faz efectivamente a entrega/venda do produto estupefaciente naquele momento.

Tal dificuldade prende-se com a localização geográfica da residência dos suspeitos, a qual é acessível por vários caminhos pedonais, de difícil vigilância por parte da polícia, sem que seja prontamente detectada, quer pelos suspeitos, quer pelos próprios indivíduos que ali se deslocam, facto constatado directamente pela signatária nos dias 8 de 9 de Janeiro de 2016, o que poe em causa o sucesso da investigação, levando os mesmos a alterar por completo o “modus operandi” e assim, a conclusão deste Inquérito no mais curto período de tempo.

Torna-se pertinente salientar que, muitos dos indivíduos que se encontram com os suspeitos, primeiramente contactam-nos telefonicamente, quer para dar conhecimento das suas deslocações junto dos suspeitos, quer para saber se estes efectivamente possuem o estupefaciente, acção essa que é habitual neste tipo de actividade ilícita, conforme se pôde constatar aquando da vigilância efectuada no dia 08-01-2016, pelas 16H37.

A A... , para poder então por em prática a actividade ilícita em investigação, apesar de se tentar rodear dos maiores cuidados – comportamento comum à maioria dos indivíduos que se dedicam a este tipo de actividade – recorre à utilização de telemóvel para poder ser contactada pelos indivíduos que pretendem adquirir o estupefaciente para consumo sendo que, actualmente, lhes são conhecidos para esse fim, os números: 932 (...) , 934 (...) , 938 (...) , 914 (...) e 915 (...) .

Demostrando que está a ineficácia das vigilâncias, por um lado, mas a continuidade da actividade de venda de cocaína, por outro, cumpre recorrer à intercepção das comunicações móveis, que se encontram a ser utilizados para a prática da actividade de tráfico de estupefacientes no âmbito do presente inquérito, meio de obtenção de prova, neste caso, essencial, determinante e indispensável para atingir tal fim, porquanto demonstra ser a única forma possível de:

· Perceber eventuais alterações na estrutura responsável pela venda de estupefaciente delimitando individualmente o grau de envolvimento de cada indivíduo; ou mesmo deslocações para outros pontos do país;

· Permitir, em tempo real, antever alterações de moradas ou alterações às suas rotinas ou mesmo deslocações para outros pontos do país;

· Prever o momento da chegada do produto estupefaciente à posse dos suspeitos e deste modo poder interceptar uma maior quantidade das substâncias traficadas;

· Identificar e localizar os locais de armazenamento do produto estupefaciente aquando da sua recepção por parte dos indiciados;

· Localização dos alvos em tempo real para uma abordagem com sucesso, sem possibilidade de, caso tal não aconteça, existir a forte probabilidade de culminar na perturbação da investigação, com destruição de provas e/ou ausência dos alvos para parte incerta;

· Esclarecer o volume de vendas, preço e quantidades.

Assim, pelos fundamentos da promoção que antecede, bem como pelos argumentos aduzidos pelo investigador na informação de serviço que antecede, sustentados nos factos observados, atenta a natureza do ilícito em causa, os métodos utilizados e os factos já verificados, somos de entender que se verifica a necessidade urgente, pertinente e urgência de se proceder à intercepção telefónica dos indicados números de telefone, visto estar demonstrado que o prosseguimento e a eficácia da investigação está manifestamente dependente da realização de escutas telefónicas e, bem assim, da recolha de imagem, com a indicação, quanto à recolha de imagem, se e sempre que existam condições físicas e técnicas para a obter (…)».

Cumpre apreciar.

O presente inquérito iniciou-se em Abril de 2014 (fls. 1 a 3), mas apenas mereceu desenvolvimentos significativos em Agosto de 2015. Durante esse mês, a PSP efectuou diversas vigilâncias à indicada residência dos suspeitos, recolhendo abundantes imagens demonstrativas da inusitada afluência a tal casa de um grande número de indivíduos, aparentando serem toxicodependentes, alguns deles referenciados pela PSP como tal, aí permanecendo poucos minutos, saindo de “mãos fechadas”, com quem traz algo de pequenas dimensões aí guardado. A PSP logrou inclusivamente interceptar uma pessoa que saía dessa residência na posse de cocaína (cfr. fls. 28 a 33, 35, 37 a 79, 81 a 86, 90 a 96 e 104 a 152). Tais vigilâncias, findadas em 31/08/2015, motivaram o pedido de autorização de recolha de imagem à investigada actividade ilícita dos suspeitos, sendo que tal pedido só foi formulado e deferido em Outubro de 2015 (cfr. fls. 153 a 158, 160/161 e 164). Na altura, pese embora o decurso de mais de trinta dias sem diligências concretas de investigação, era legítimo considerar vigentes os indícios recolhidos em Agosto de 2015.

Posteriormente a essa autorização, inexplicavelmente, não mais foram recolhidas imagens à habitação dos suspeitos, a estes ou às pessoas que aí se deslocariam.

Desde 31/08/2015, num período de praticamente cinco meses, a actividade investigatória limitou-se, tanto quanto resulta dos autos, à realização de três vigilâncias policiais. Na primeira, realizada em 30/10/2015, apurou-se que A... se encontrava no Parque de Campismo de (...) , onde trabalha, não sendo visualizada qualquer actividade de tráfico, muito menos na residência dos suspeitos (cfr. fls. 171). A segunda vigilância realizou-se apenas em 08/01/2016, tendo constatado, em concreto, que uma pessoa se deslocou à casa dos suspeitos às 15:17 horas e que uma outra, pelas 16:37 horas, depois de usar o telemóvel por breves segundos, se dirigiu igualmente à casa dos suspeitos de onde saiu passados dois minutos. Foram detectados outros indivíduos a dirigirem-se em direcção às traseiras da casa dos suspeitos, mas não foi possível confirmar que aí entraram (cfr. fls. 173 a 175). Considerando as características do local (habitação integrada num vasto conjunto de outras – cfr. fls. 183), não pode considerar-se indiciado que tais pessoas se dirigiram à casa dos suspeitos. O mesmo vale para a vigilância realizada no dia seguinte em que, de concreto, apenas se apurou que uma pessoa se dirigiu para o interior da residência dos suspeitos (cfr. fls. 184/185).

Os indícios recolhidos em Agosto de 2015 foram totalmente perdidos pela investigação. Não só porque ficou meses a fio sem realizar qualquer diligência, mas também porque a quantidade e qualidade dos resultados piorou consideravelmente. Antes conseguia ver-se e fotografar-se a entrada de indiciados consumidores de estupefaciente na casa dos suspeitos, agora quase nada se consegue e ver e nenhum registo fotográfico é conseguido.

Extrair-se do facto de alguém, em 08/01/2016, usar o telemóvel antes de ir a casa dos suspeitos que tal significa que a actividade de tráfico que, em Agosto de 2015, se indiciava ser por eles praticada nesse local se continua a exercer e com recurso a cinco telemóveis é, no mínimo, esforçado e infundado.

Não se fundamenta a fonte de conhecimento do uso pela suspeita A... dos cinco números de telemóvel indicados, sendo que tal informação surge numa altura em que, durante cinco meses, a actividade investigatória foi pouco menos que nula.

Não se percebe a razão pela qual é precisamente a suspeita que, segundo a promoção, muitas vezes nem sequer estará na residência quando “os clientes” lá vão adquirir droga, aquela que usa cinco números de telemóvel para a prática de actividades de tráfico.

Com base em tão curtos indícios nos últimos cinco meses, não pode autorizar-se diligência tão intrusiva e excepcional como as escutas telefónicas. Sobretudo tendo em vista investigação de actividade de tráfico de estupefacientes que ocorre exclusivamente ou maioritariamente na habitação do suspeito.

Na actualidade, nem sequer há justificação para deferir a recolha de imagem à actividade dos suspeitos, que o OPC confessa não conseguir descortinar em moldes minimamente fiáveis.

Assim, considerando inexistir indiciação suficiente de que a intercepção e gravação de comunicações telefónicas ou a recolha de imagens se revela indispensável à prova do crime investigado, julgo inverificados os requisitos legais de admissibilidade de realização de escutas telefónicas (artigo 187º, n.º 1, do C. P. Penal e 6º da Lei n.º 5/2002, de 11/01).

Razão pela qual indefiro o promovido pelo Ministério Público.

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Relativamente ao segredo de justiça decidido, concordo que só a sujeição a esse regime permitirá investigar eficientemente a prática de crime de tráfico de estupefacientes, assumindo que melhores indícios virão a ser recolhidos. Servirá igualmente para acautelar que aqueles recolhidos em Agosto de 2015 não sejam acessíveis livremente antes da conclusão das investigações.

Razão pela qual, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 86º do C. P. Penal, valido a decisão do Ministério Público no sentido de aplicar tal segredo ao processo durante a fase de inquérito, até porque não existem ainda arguidos constituídos.

                                          *

Devolva ao DIAP.»

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2. Apreciando

Como é sabido, o âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso.

Assim, a questão a decidir consiste em saber se deve subsistir, ou não, o despacho que indeferiu a requerida realização de escutas telefónicas e a recolha de imagens a suspeitos de crime de tráfico de estupefacientes.

O artigo 34.º da Constituição da República consagra a inviolabilidade do domicílio e da correspondência, estabelecendo no seu n.º 1 que o domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis e acrescentando no seu n.º 4 que é proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvo os casos previstos na lei em matéria de processo criminal.

Por sua vez, o artigo 18.º n.º 2 da Constituição da República determina que a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, sendo que, de harmonia com o n.º 3, as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.

Não pode, pois, haver intromissão arbitrária quer no domicílio, quer na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação de qualquer cidadão.

Por outro lado, a Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, estabelece um regime específico de recolha de prova, quebra do segredo profissional e perda de bens a favor do Estado, em relação aos crimes enunciados no n.º 1 do seu artigo 1.º.

Segundo o artigo 6.º, n.º 1 desta lei, é admissível, quando necessário para a investigação de crimes referidos no artigo 1.º, o registo de voz e de imagem, por qualquer meio, sem consentimento do visado.

Nos termos do n.º 2 do citado artigo, a produção destes registos depende de prévia autorização ou ordem do juiz, consoante os casos, acrescentando o n.º 3 do mesmo artigo que são aplicáveis aos registos obtidos, com as necessárias adaptações, as formalidades previstas no artigo 188.º do Código de Processo Penal.

Assim, foi propósito do legislador estender a aplicação, com as necessárias adaptações, das formalidades a observar na realização das escutas telefónicas, ao registo de voz e imagem regulado na Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, estando na base da extensão do regime razões de ordem constitucional.

Na verdade, a Constituição da República Portuguesa tutela, no seu artigo 26.º, n.º 1, além de outros, os direitos à imagem, à palavra e à reserva da intimidade da vida privada e familiar, impondo, no n.º 2, à lei ordinária a obrigação de estabelecer as efectivas garantias de respeito por tais direitos.

Na legislação processual penal, o artigo 187.º estabelece as condições de admissibilidade da intercepção e da gravação de conversações ou comunicações telefónicas, elencando os crimes em relação aos quais é possível efectuar escutas telefónicas.

Nos termos do seu n.º 1 a intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas só podem ser autorizadas «se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter, por despacho fundamentado do juiz de instrução e mediante requerimento do Ministério Público (…)».

Esta redacção foi introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, que procedeu à revisão do Código de Processo Penal de 2007, a qual pretendeu tornar mais apertada a possibilidade de realização de escutas devido à sua natureza manifestamente intrusiva.

Enquanto anteriormente as escutas podiam ser validamente realizadas se houvesse razões para crer que a diligência tinha «grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova», agora só é possível o recurso a este meio de prova se ele se afigurar indispensável à descoberta da verdade ou se se entender que, de outra forma, a prova é impossível ou muito difícil de obter.

São enumerados vários crimes relativamente aos quais poderá ocorrer a referida autorização, entre os quais se conta o de tráfico de estupefacientes – alínea b) do n.º 1.

Além de um catálogo de crimes cuja investigação pode ser efectuada mediante escutas telefónicas, a revisão do Código de Processo Penal de 2007, introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, estabeleceu ainda um catálogo de alvos susceptíveis de escuta telefónica, nos quais se inclui o suspeito ou arguido – alínea a) do n.º 4.

Como assinala Germano Marques da Silva, a lei não exige que existam já indícios de crime, nem que as informações pretendidas não possam ser obtidas por outros meios: é, no entanto, necessário que esse interesse seja indispensável, o que significa que não será legítimo utilizar a escuta quando os resultados que através dela se visavam obter possam ser alcançados, sem dificuldades particularmente acrescidas, por outro meio que afronte com menor intensidade os direitos fundamentais; além disso, é necessário que a escuta telefónica se revele apta a obter o resultado previsto([1]).

Assim, quando procede à análise do pedido de autorização de realização de escutas telefónicas, o juiz terá que apurar, primeiro, se existem indícios da prática de algum dos crimes para cuja investigação é possível utilizá-las, elencados no n.º 1 do artigo 18.º, depois tem que decidir se este meio de prova é indispensável ou se, sem ele, a prova é muito difícil ou impossível de obter e, por último, tem que se certificar que o alvo se enquadra dentre o elenco das pessoas escutáveis.

Se as respostas a todas estas perguntas forem positivas, então o juiz autorizará a realização de escutas.

No caso em apreço, o M.mo Juiz de Instrução indeferiu a realização das promovidas intercepções telefónicas e recolha de imagens por considerar «inexistir indiciação suficiente de que a intercepção e gravação de comunicações telefónicas ou a recolha de imagens se revela indispensável à prova do crime investigado».

A Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, não exige, como requisito de admissibilidade do registo de voz e de imagem, a «indispensabilidade» da diligência mas sim a sua necessidade para a investigação – artigo 6.º, n.º 1.

Para as escutas telefónicas é que a lei exige que a diligência seja «indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter» - artigo 187.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.

Como salienta Paulo Pinto de Albuquerque, «o catálogo legal do artigo 6.º da Lei n.º 5/2002 é mais apertado do que o do artigo 187.º, n.º 1 do CPP, mas o crivo “da necessidade para a investigação” é mais lasso que o crivo da “indispensabilidade para a descoberta da verdade” do CPP»([2]).

Sendo certo que não cabe ao juiz definir a estratégia da investigação em respeito à estrutura acusatória do processo penal, refira-se que as diligências realizadas nos últimos cinco meses não infirmam os indícios que já foram recolhidos acerca da actividade de tráfico de estupefacientes desenvolvida pelos suspeitos.

As diligências realizadas neste período são, aliás, bastante esclarecedoras acerca das dificuldades da investigação, tanto assim que a diligência de vigilância levada a cabo no dia 9 de Janeiro de 2016, a que se alude no despacho recorrido, teve que ser terminada com vista a não comprometer a investigação porque a presença do órgão de polícia criminal foi detectada devido às características do local, o que ocorreu decorridos apenas 18 minutos após ter sido iniciada (cfr. relatório de vigilância de fls. 184 a 185).

Sendo o tráfico de estupefacientes um crime de grande danosidade social devido ao leque de consequências que resulta desta actividade criminosa, a compressão dos direitos individuais que implica a utilização dos referidos meios de obtenção de prova não pode considerar-se desproporcionada.

Também não pode ser considerada desnecessária na medida em que constituem um meio de prova documental de grande relevância para a prova do crime, pois quer as escutas telefónicas, quer o registo de voz e de imagem, constituem documentos no sentido de uma declaração corporizada num suporte técnico (artigos 164.º do Código de Processo Penal e 255.º, a) do Código Penal), meio que está sujeito ao controlo judicial, a quem são presentes, sendo judicialmente valorado se os elementos recolhidos são, ou não, relevantes para a prova.

Assim, sendo conhecidas as cautelas usadas pelos traficantes de estupefacientes, as estratégias e os meios que utilizam para se furtarem ao controlo policial, a rapidez e a dissimulação na concretização dos actos de tráfico e a circunstância de, em muitos dos casos, conhecerem os agentes policiais e as viaturas que utilizam, torna-se evidente que as escutas telefónicas, tal como o registo voz e de imagem, constituem um poderoso instrumento de investigação particularmente adequado e eficaz.

É sabido que no tipo de crime em investigação é difícil e improvável a obtenção de outros meios de prova, como, por exemplo, a prova testemunhal (quase impossível atentas as relações, dependências e cumplicidades normalmente estabelecidas entre os intervenientes no tráfico de estupefacientes), além de que as cautelas usualmente observadas pelos intervenientes neste tipo de actividade criminosa para manutenção do anonimato e fácil mobilidade se traduzem habitualmente no recurso à utilização de telemóveis para a realização dos contactos entre esses intervenientes, tendo em vista o desenvolvimento dessa mesma actividade.

Deste modo, havendo razões para crer que o recurso às escutas telefónicas não só se mostra indispensável para a descoberta da verdade, como a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter, justifica-se a requerida intercepção e gravação das comunicações telefónicas, assim como se justifica a recolha de imagens pois os resultados de investigação que se pretendem com a realização de tal diligência não são passíveis de ser alcançados através do recurso a outros meios de produção de prova.

Procede, portanto, o interposto recurso.

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III – DISPOSITIVO

Pelo exposto acordam os juízes desta Relação em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, revogar o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que defira o requerido.

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Sem tributação.

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(O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.º 2 do CPP)

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Coimbra, 11 de Maio de 2016

(Fernando Chaves - relator)

(Orlando Gonçalves - adjunto)


[1] - Curso de Processo Penal, II, Verbo, 2008, págs. 248-249.
[2] - Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição actualizada, página 528, nota 12.