Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4668/17.0T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: USUCAPIÃO.
CAUSAS DE SUSPENSÃO E DE INTERRUPÇÃO DE PRAZOS.
POSSE.
POSSUIDOR DE MÁ FÉ.
Data do Acordão: 05/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JC CÍVEL DE COIMBRA – J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Legislação Nacional: ARTºS 303º, 318º, B) E 1292º C. CIVIL
Sumário: I - Se a usucapião tem que ser invocada por quem dela pretende beneficiar, nos termos do artigo 303º do C. Civil, aplicável ex vi do artigo 1292º do mesmo diploma, não se podendo impor a ninguém a aquisição de um bem contra a sua vontade, não há nenhuma razão para que as causas de suspensão e interrupção dos prazos de usucapião não possam ser conhecidas oficiosamente, utilizando os dados que existem no processo, de modo a proceder-se a uma contabilização correcta da duração da posse relevante para efeitos de usucapião.
II - Considerando os interesses públicos de protecção das relações familiares visados com a previsão da causa de suspensão da contagem dos prazos de usucapião, prevista no artigo 318º, b), ex vi do artigo 1292º, ambos do C. Civil, a mesma tanto se verifica quando quem invoca a aquisição por usucapião são os progenitores a quem estão atribuídas as responsabilidades parentais, como quando quem se pretende fazer valer da usucapião é, inversamente, quem estava sujeito a essas responsabilidades.
III - O possuidor que adquiriu a posse de uma coisa de boa-fé, mas supervenientemente toma conhecimento, por qualquer modo, que o exercício daquela posse está a lesar direitos de outrem, passa a ser considerado possuidor de má-fé, para todos os efeitos, incluindo a duração da posse exigida por lei para a aquisição da coisa possuída, por usucapião.
IV - Quando o artigo 1260º do C. Civil diz que a posse é de boa-fé quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem, estamos perante a exigência de uma ignorância qualificada (boa-fé ética).
V - O estado cognitivo de ignorância, enquanto ausência de uma representação da realidade, é um simples antecedente psicológico da boa-fé, a qual exige um plus que consiste na diligência no apuramento da situação real, pelo que são equiparadas às situações de conhecimento da lesão do direito de outrem todas aquelas em que o possuidor, apesar de não se ter apercebido dessa lesão, tinha todas as condições para a conhecer, o que só não aconteceu porque não teve o cuidado que normalmente seria de esperar de um cidadão diligente, com os seus condicionantes, naquelas circunstâncias.
Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra
O Autor intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, peticionando:
1) Declarar-se o Autor dono e legítimo possuidor do prédio urbano que se destina a habitação e se compõe de rés-do-chão e 1º andar, sito ..., por além do mais o ter adquirido por usucapião;
2) Ordenar-se o cancelamento de todas as inscrições, hipotecas e penhoras e/ou outras, registadas na Conservatória do Registo Predial que ofendam a posse e a propriedade do Autor por, além do mais, serem ineficazes;
3) Ordenar-se a correcção da inscrição que consta da caderneta predial do referido prédio urbano inscrito na matriz sob o ..., conforme consta do levantamento topográfico que se juntou sob o documento nº 5.
Alegou em abono do seu pedido o seguinte:
- nasceu em 23/3/1984, sendo filho dos Réus, que são proprietários de um prédio rústico referente ao artigo matricial sob o artigo ... da freguesia de ..., onde construíram uma casa de habitação, que inscreveram como prédio urbano fiscalmente, então sob o artigo ..;
- esse prédio não tem actualmente a área, configuração ou confrontações que constam na caderneta predial e encontra-se há muito separado e delimitado do anterior prédio rústico;
- em 1983 os Réus começaram a habitar o dito prédio, nele residindo e realizando todos os actos materiais de posse.
- em Julho de 1995 os Réus, perante a restante família e com o acordo de todos os filhos, doaram verbalmente a casa ao Autor, logo lha entregando, passando o Autor a ocupar e usufruir o prédio como sua propriedade, doação sem qualquer ónus ou encargo, que os seus pais aceitaram em sua representação em 1995 e que o Autor confirmou no dia em que perfez 18 anos, sendo que desde 1995 o Autor e, posteriormente ao seu casamento, também a sua esposa, ali tomam refeições, confeccionam as mesmas, pernoitam e realizam a higiene diária, têm residência e mobílias, efectuam limpezas domésticas, recebem familiares e amigos, estacionam os veículos no logradouro, recebem correspondência, à vista de toda a gente, incluindo os pais, pacificamente, de boa fé, sem oposição de quem quer que seja e na convicção de exercer tais actos sobre coisa sua, como legítimo e exclusivo proprietário, invocando em seu favor a usucapião;
- em 2011, o Autor rogou aos seus pais a legalização de tal doação, o que aqueles recusaram, afirmando serem ainda os donos da casa, recusa que mantêm até hoje.
Não foi apresentada contestação.
Foi proferido despacho com o seguinte teor:
De forma a evitar a formação de decisões surpresa, apesar da falta de contestação, atento o alegado e o disposto nos arts. 360.º, 1260.º e 1296.º, todos do CC, notifique o Autor para que se pronuncie, querendo, sobre a eventual improcedência do pedido apresentado.
Notificado o Autor, este apresentou requerimento em que solicitou a aclaração das razões que motivavam a anunciada improcedência da acção.
Foi proferido novo despacho com o seguinte conteúdo:
Explicitando o já consignado, atenta a indivisibilidade da confissão, estão também confessados os factos alegados de 34.º a 36.º da petição inicial, onde se contêm os da recusa em reconhecer o Autor como proprietários, por entenderem os Réus serem donos do imóvel, o que ocorreu há cerca de seis anos, segundo o alegado.
Nessa medida, não sendo pacífica, havendo recusa de reconhecimento, nem havendo título ou registo deste ou da posse, presumida esta de má fé, não está decorrido o período exigido por lei para a procedência do pedido.
O Autor apresentou requerimento em que alegou que, mesmo que se considerasse que a sua posse era de má-fé, tendo-se ela iniciado em 1995, quando propôs a acção já havia decorrido o prazo de 20 anos que a lei exige para a aquisição por usucapião.

Foi proferida sentença que julgou improcedente a acção, tendo absolvido os Réus dos pedidos formulados.
O Autor interpôs recurso desta decisão, tendo concluído as suas alegações do seguinte modo:
...
Não foi apresentada resposta.
1. Do objecto do recurso
O Autor alega que o tribunal a quo violou o n.º3 do art.º 3º do C. P. Civil quando não o convidou a pronunciar-se sobre a subsunção jurídica que iria efectuar no caso sub judice, mais concretamente na aplicação da alínea b) do art.º 318º do C. Civil, que influiu decisivamente na sentença que julgou improcedente o pedido, levando à prolação de uma decisão que o Autor não tinha configurado como possível, pelo que a sentença é nula e de nenhum efeito.
O Recorrente invoca uma nulidade processual consistente no tribunal, previamente à prolação da sentença, não lhe ter dado oportunidade para se pronunciar sobre a eventual aplicação da causa de suspensão da prescrição aquisitiva prevista no art.º 318º, b), do C. Civil.
Embora não se desconheça a existência de opiniões em sentido contrário, o não cumprimento do disposto no n.º3 do art.º 3º do C. P. Civil não constitui uma nulidade da sentença, mas sim uma nulidade, por omissão, da tramitação processual que a antecedeu, a qual poderá determinar, consequentemente, a anulação da sentença. Apenas se poderá reconhecer que o tribunal conheceu de questões que não podia conhecer, caso se conclua que não foi cumprido, em situação que era exigível, o disposto no n.º3 do art.º 3º do C. P. Civil. E esse incumprimento constitui uma nulidade processual, não uma nulidade da sentença.
Na verdade, as nulidades do processo constituem desvios do formalismo processual prescrito na lei, a que esta faça corresponder, embora não de forma expressa, uma invalidação mais ou menos extensa de actos processuais Anselmo de Castro, em Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, pág. 103, ed. de 1982, Almedina.
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A omissão da audição das partes, excepto na falta de citação, não consti­tui nulidade de que o tribunal conhece oficiosamente, pelo que a eventual nulidade daí decorrente tem que ser invocada pelo interessado no prazo de 10 dias após a respec­tiva intervenção em algum acto praticado no processo e perante o tribunal em que teve lugar Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes, in Dos Recursos, pág. 46 a 52, ed. 2009, Quid Juris. e, só perante discordância do despacho que sobre a mesma incidiu é que pode ser apresentado recurso – art.º 197º, n.º 1 e 199º, n.º 1, ambos do C. P. Civil.
O Recorrente, conforme resulta da análise do processo, não arguiu essa nulidade tempestivamente – teve conhecimento da omissão da aludida notificação no momento em que foi notificado da sentença não a tendo arguido no prazo de 10 dias - só a tendo invocado nas alegações de recurso dirigidas a este tribunal, pelo que a mesma, a ter existido, ter-se-á de considerar sanada.
A invocação daquele eventual vício em alegações de recurso já não é, como se disse, o meio idóneo ao seu conhecimento, pelo que não pode este fundamento do recurso ser aqui apreciado.
Contudo, sempre se dirá que tendo o tribunal recorrido dado oportunidade ao Autor para alegar sobre a eventualidade do prazo necessário para a aquisição da usucapião ainda não ter decorrido, permitiu-lhe pronunciar-se sobre todos os factores que podem influir na contagem desse prazo, designadamente sobre as causas suspensivas ou interruptivas desse prazo. Tendo o próprio Autor alegado que era menor quando iniciou a posse do imóvel em questão e que este pertencia aos seus pais, a eventual aplicação da causa suspensiva prevista no art.º 318º, b), do C. Civil, era uma questão que se inseria na contagem do prazo, relativamente ao qual o Tribunal alertou o Autor que poderia não ter ainda decorrido, dando-lhe oportunidade para se pronunciar previamente sobre essa questão.

Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas pelo Recorrente, cumpre apreciar as seguintes questões:
a) Deve ser incluído nos factos provados que os actos referidos na sentença recorrida em f) e g) foram praticados pelo Autor pacificamente e sem oposição de quem quer que seja?
b) Deve ser incluído nos factos provados o que consta do artigo 40.º da p.inicial?
b) O tribunal não pode conhecer oficiosamente das causas de suspensão do prazo de usucapião?
c) Não é possível verificar, neste caso, a ocorrência da causa de suspensão prevista no artigo 318º, b), do C. Civil, porque não está provado que os Réus exercessem responsabilidades parentais sobre o Autor?
d) Essa causa de suspensão não funciona quando quem invoca a aquisição por usucapião é a pessoa sujeita às responsabilidades parentais?
e) A posse exercida pelo Autor é uma posse de boa-fé?
f) A posse exercida pelo Autor já decorreu pelo tempo suficiente para que tenha ocorrido a aquisição do direito de propriedade, por usucapião?
g) Reconhecido o direito de propriedade pretendido, o Autor tem direito ao cancelamento dos ónus e encargos inscritos sobre o prédio em causa e à correcção da descrição matricial?
2. Os factos
2.1. Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto
...
2.2. Os factos provados
Neste processo encontram-se, pois, provados os seguintes factos:
...
3. O direito aplicável
Na presente acção o Autor formulou um pedido de reconhecimento do direito de propriedade sobre um prédio urbano, invocando como causa de aquisição originária desse direito a usucapião.
A usucapião é uma forma de aquisição do direito de propriedade que tem como causa, no dizer do art.º 1287º do C. Civil, a posse de tal direito mantida por certo lapso de tempo.
A posse correspondente ao exercício de um direito de propriedade é um poder de facto que se manifesta quando alguém actua de um modo que se assemelha ao exercício daquele direito – art.º 1251º do C. Civil – e é integrada por dois elementos: o corpus - elemento material - que consiste no domínio de facto sobre a coisa, traduzido no exercício efectivo dos poderes materiais próprios do direito de propriedade sobre ela ou na possibilidade desse exercício e o animus – elemento intelectual ou volitivo – que consiste na intenção de exercer sobre a coisa como seu titular o direito real correspondente àquele domínio de facto.
A prática de actos materiais (actuação de facto) correspondentes ao exercício do direito de propriedade (corpus) com a intenção de exercício deste direito (animus) e a duração e permanência dessa situação, são, pois, os elementos deste "modo de aquisição originária de direitos reais, pela transformação em jurídica de uma situação de facto, de uma mera aparência, em benefício daquele que exerce a gestão económica da coisa" Pires de Lima e Antunes Varela, em Código Civil Anotado, vol. III, pág. 64, 2.ª ed., Coimbra Editora.
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A invocação, com sucesso, da posse, depende da demonstração desses dois elementos, material e psicológico, que presidem ao exercício do direito de propriedade, ou seja, ao gozo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas – art.º 1305º do C. Civil –, durante um período de tempo fixado na lei, que varia conforme as características da posse.
Neste caso estão plenamente demonstrados actos de posse do Autor sobre o prédio reivindicado desde 1995.
3.1. Da causa suspensiva prevista no art.º 318º, b), do C. Civil
3.1.1. Do seu conhecimento oficioso
A sentença recorrida considerou, contudo, que o tempo de posse contabilizável para usucapião só se iniciou quando o Autor atingiu a maioridade ou seja em 23.4.2002, atento o disposto no art.º 318º, b), do C. Civil.
Neste preceito prevê-se uma causa de suspensão da prescrição extintiva, aplicável à usucapião por remissão para aquele preceito determinada pelo art.º 1292º do C. Civil.
O Recorrente questiona, previamente, que o tribunal possa conhecer oficiosamente de uma causa de suspensão do prazo de usucapião, uma vez que os Réus, não tendo contestado a presente acção, não invocaram essa suspensão.
Não se desconhece a existência de jurisprudência que sustentou que o tribunal não pode conhecer oficiosamente das causas de suspensão e interrupção dos prazos de prescrição Acórdão do S.T.J. de 20.1.2010, relatado por Alves Velho.
Acórdão do T. R. C. de 13.10.2009, relatado por Falcão de Magalhães, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
. A mesma posição é, aliás, afirmada por Menezes Cordeiro Em Tratado de Direito Civil I, Parte Geral, tomo IV, pág. 193, Almedina, 2005.
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Contudo, não era esse o entendimento de Vaz Serra, autor do articulado Esse articulado encontra-se no estudo Prescrição Extintiva e Caducidade, publicado nos B.M.J. n.º 105, pág. 5 e seg., n.º 106, pág. 45 e seg., e n.º 107, pág. 159 e seg.
que serviu de base aos Anteprojectos e Projecto Ministeriais do capítulo sobre o tempo e a sua repercussão nas relações jurídicas do Código Civil. Para este autor, apesar de referir o conhecimento de jurisprudência italiana, em sentido contrário, a prescrição não pode ser apreciada oficiosamente pelo juiz (art.º 515.º do nosso Código), mas a suspensão da prescrição parece que deve poder ser oficiosamente apreciada. Se, por exemplo, o credor exige a prestação do devedor e este alega a prescrição, mas esta esteve suspensa em virtude da menoridade do credor, afigura-se dever o juiz conhecer oficiosamente da suspensão, a não ser que a falta de invocação desta pelo credor signifique renúncia ao seu crédito. Com efeito a alegação da prescrição não tem base, desde que a prescrição esteve suspensa, e não pode, portanto, o juiz considerar provada a prescrição Ob. cit., B.M.J. n.º 106, pág. 143-144.
É esta também a posição de Júlio Gomes, no Comentário ao Código Civil. Parte Geral, pág. 747, ed. de 2014, Universidade Católica Editora, e dos Acórdãos da Relação de Coimbra de 30.11.2010, relatado por Martins de Sousa, e da Relação de Lisboa de 4.10.2011, relatado por Torres Vouga, ambos em www.dgsi.pt.
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A necessidade da prescrição ser invocada pela parte a quem aproveita para dela o tribunal poder conhecer baseia-se em que o interessado pode ter escrúpulo em se valer da prescrição Vaz Serra, ob. cit., B.M.J., Ano 105, pág. 148.
, já não se descortinando qualquer razão que justifique que o tribunal esteja impedido de, oficiosamente, verificar se o prazo prescricional invocado já decorreu, socorrendo-se de todos os elementos que disponha no processo, de modo a evitar que sejam considerados prescritos direitos em que manifestamente não decorreu o respectivo prazo, por se verificarem situações de suspensão ou interrupção da sua contagem.
Aliás, se, invocada a prescrição, se entende que o tribunal, com os dados apurados no processo, não está impedido de aplicar oficiosamente um prazo prescricional diferente do invocado pela parte Rodrigues Bastos, em Notas ao Código Civil, vol. II, pág. 66, ed. do autor de 1988.
, também não deve deixar de, oficiosamente, proceder à contagem do prazo aplicável às circunstâncias do caso, utilizando todos os dados que o processo lhe fornece, designadamente verificando os períodos em que o prazo de prescrição não correu, por força da lei.
Estas razões são transponíveis para os prazos de usucapião que se suspendem e interrompem nos mesmos termos que os prazos de prescrição extintiva, conforme determina o art.º 1292º do C. Civil. Se a usucapião tem que ser invocada por quem dela pretende beneficiar, nos termos do art.º 303º do C. Civil, aplicável ex vi do art.º 1292º do mesmo diploma, não se podendo impor a ninguém a aquisição de um bem contra a sua vontade, não há nenhuma razão para que as causas de suspensão e interrupção dos prazos de usucapião não possam ser conhecidas oficiosamente, utilizando os dados que existem no processo, de modo a proceder-se a uma contabilização correcta da duração da posse relevante para efeitos de usucapião.
Por estas razões se conclui que o tribunal recorrido não só podia como estava obrigado a conhecer da causa suspensiva do decurso do prazo de prescrição prevista no art.º 318º, b), do C. Civil, uma vez que dos factos provados constava que o Autor só atingiu a maioridade em 22.4.2002 e que era filho dos Réus, a quem era oposta a aquisição por usucapião de um prédio que estes haviam verbalmente declarado doar ao Autor.
3.1.2. Do âmbito de aplicação do disposto no art.º 318º, b), do C. Civil
Segundo o disposto no art.º 1266º do C. Civil podem adquirir posse todos os que têm uso da razão, não se exigindo uma capacidade de exercício, uma vez que estamos perante a prática de actos e não de negócios jurídicos, pelo que um menor, como o Autor, pode praticar actos de posse. Contudo, o art.º 318º, b), do C. Civil, dispõe que a prescrição não começa entre quem exerça o poder paternal e as pessoas a ele sujeitas, determinando o art.º 1292º do C. Civil que são aplicáveis à usucapião, com as necessárias adaptações, as disposições relativas à suspensão e interrupção da prescrição Conforme afirmam Pires de Lima e Antunes Varela, na ob. cit., pág. 71, no caso da alínea b), do art.º 318º, do C. Civil, a usucapião não começa tal como na prescrição.
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Dispondo a lei que o exercício das responsabilidades parentais pertence a ambos os pais – art.º 1901º do C. Civil – e não tendo sido alegada nenhuma circunstância que tenha excluído esse exercício durante o tempo em que a situação possessória decorreu durante a menoridade do Autor, deve considerar-se que eram os Réus que detinham o exercício das responsabilidades parentais sobe o Autor durante esse período.
Conforme indica o título do art.º 318º do C. Civil estamos perante uma causa bilateral de suspensão dos prazos da posse necessários à aquisição por usucapião, que tem o seu fundamento na ideia de que não é compatível com uma relação parental, naturalmente caracterizada por uma grande proximidade, entendimento e confiança e pela existência de poderes de representação e administração de bens, o exercício de um poder de facto por parte de um dos sujeitos desta relação sobre um bem do outro, de onde pode resultar, reflexamente, a perda desse bem Sobre a teleologia desta causa suspensiva dos prazos de prescrição, Pedro Pais de Vasconcelos, em Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, pág. 262, ed. de 2002, Almedina, Júlio Gomes, ob. cit., pág. 767-768, Ana Filipa Morais Antunes, em Prescrição e Caducidade, pág. 207, ed. de 2014, Coimbra Editora, e Rita Canas da Silva, em Suspensão e Interrupção da Prescrição. Estudo Comparado dos direitos Português e Espanhol, em Themis, Ano X, n.º 18 (2010), pág. 174 -175, e no Código Civil Anotado, coord. por Ana Prata, vol. I, pág. 389, ed. de 2017, Almedina.
. A existência dessa possibilidade obrigaria este último a reagir contra tais actos de posse, o que prejudicaria a harmonia dessa relação.
Considerando os interesses públicos de protecção das relações familiares visados com a previsão desta causa de suspensão da contagem dos prazos de usucapião, tal como indica o título do artigo onde se insere, a mesma é bilateral, isto é, tanto se verifica quando quem invoca a aquisição por usucapião são os progenitores a quem estão atribuídas as responsabilidades parentais, como quando quem se pretende fazer valer da usucapião é, inversamente, quem estava sujeito a essas responsabilidades, como sucede no presente caso Neste sentido, Pedro Pais de Vasconcelos, ob. e loc. cit, e Rita Canas da Silva, no Código Civil Anotado, cit., pág. 388.
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Na verdade, esta causa de suspensão da contagem dos prazos de prescrição extintiva e aquisitiva não corresponde a um medida de protecção dos interesses dos incapazes menores, mas sim a uma opção que visa preservar as relações entre estes e aqueles a quem estão atribuídas as responsabilidades parentais, de modo a que estas sejam exercidas num clima de harmonia e confiança, o qual poderia ser afectado caso a posse dos bens do outro, seja pelos pais, seja pelo filho, no decurso da menoridade, pudesse relevar para a sua aquisição, por usucapião.
Daí que se revele correcta a consideração pelo tribunal recorrido que o início da contagem do prazo da posse do prédio em causa, para efeitos de usucapião, só se iniciou quando o Autor atingiu a maioridade, isto é em 22.4.2002.
3.2. Das características da posse do Autor
Baseando-se a posse do Autor no facto dos Réus, seus pais, em Julho de 1995, verbalmente, terem declarado que lhe doavam a casa aqui em questão, estamos perante uma posse não titulada, pois, não se funda num modo legítimo de adquirir – art.º 1258º e 1259º do C. Civil –, atenta a invalidade formal do negócio de doação – art.º 947º, n.º 1 e 220º do C. Civil – A posse resultante de um negócio afectado por um vício de forma não é titulada, como afirmam unanimemente, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 19, Orlando de Carvalho, Direito das Coisas, pág. 280, ed. de 2012, Coimbra Editora, Oliveira Ascensão, em Direito Civil. Reais, pág. 97, 5.ª ed., Coimbra Editora, Menezes Leitão, em Direitos Reais, pág. 133, ed. de 2009, Almedina, José Alberto Vieira, em Direitos Reais, pág. 570, ed. de 2008, Coimbra Editora, Santos Justo, em Direitos Reais, pág. 169, ed. de 2007, Coimbra Editora, Penha Gonçalves, em Curso de Direitos Reais, pág. 263, ed. de 1993, Universidade Lusíada, Durval Ferreira, em Posse e Usucapião, pág. 272, ed. de 2002, Almedina, e José Luís Ramos, em Manual de Direitos Reais, pág. 163, ed. de 2017, AAFDL.
, presumindo-se, por isso, de má fé – art.º 1260º, n.º 2, do C. Civil.
Esta presunção é uma presunção iuris tantum que pode ser ilidida com a prova do contrário – art.º 350º, n.º 2, do C. Civil –, ou seja, demonstrando-se que a posse exercida pelo Autor é uma posse de boa-fé. Orlando de Carvalho, ob. cit., pág. 282, Carvalho Fernandes, em Lições de Direitos Reais, pág. 303, 6.ª ed, Quid iuris, Santos Justo, ob. cit., pág. 170, Menezes Leitão, ob. cit., pág. 134, Rui Pinto e Cláudia Trindade, em Código Civil Anotado, coord. por Ana Prata, vol. II, pág. 36, ed. de 2017, Almedina, e José Luís Ramos, ob. cit., pág, 164.

A posse diz-se de boa-fé, quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava direito de outrem – art.º 1260º, n.º 1, do C. Civil.
3.2.1. Da má-fé superveniente
Este estado cognitivo de ignorância que caracteriza um possuidor de boa-fé, atenta a redacção do art.º 1260º, n.º 1, do C. Civil, deve verificar-se necessariamente no momento de aquisição da posse. Contudo, a escolha deste critério temporal não significa que seja irrelevante a consciência posterior da lesão de direitos de terceiro. Ocorrendo essa alteração no estado cognitivo do possuidor, a posse de boa-fé passa a ser de má-fé, com todas as consequências daí resultantes. Se é verdade que no direito romano valia a regra mala fides superveniens non nocet Esta regra não tinha, contudo, uma aplicação plena nas situações em que a situação possessória tinha origem num acto gratuito (usucapio pro donato), como advertem Santos Justo, em Direito Privado Romano III, pág. 88, nota 41, ed. de 1997, Coimbra Editora, e J. Iglésias, em Derecho Romano. Historia e Instituciones, pág. 261, nota 312, 11.ª ed., Editorial Ariel.
, a qual foi adoptada pelo nosso Código de Seabra – art.º 520º O artigo 520º do Código de Seabra dispunha que a boa fé só é necessária no momento da aquisição (sublinhado nosso).
– e algumas codificações europeias, onde ainda se mantém operante, como os Códigos Civis Francês – art.º 2269º O artigo 2269 do C. C. Francês dispõe que é suficiente que a boa fé tenha existido no momento da aquisição (sublinhado e tradução nossa). Sobre a irrelevância da má fé superveniente no direito francês, Jean-Louis Bergel, Marc Brushi e Sylvie Cimamonti, em Les Biens, em Traité de Droit Civil, sob a direcção de Jacques Ghestin, pág. 226-227, ed. de 1999, L.G.D.J.

– e Italiano – art.º 1147º O artigo 1147 do C. C. Italiano, no 3.º parágrafo, diz que a boa fé presume-se e é suficiente que se verifique ao tempo da aquisição (sublinhado e tradução nossa).
Sobre esta solução, Alberto Montel, em Il Possesso, em Trattato di Diritto Civile Italiano sob a direcção de Filippo Vassali, vol. V, tomo 4.º, pág. 195-197, ed. de 1962, UTET, Francesco de Martino, em Possesso. Denunzia di nuova opera e di danno temuto, em Commentario del Codice Civile a cura di A. Scialoja e G. Bianca, Libro terzo, pág. 36, ed. de 1984, Zanichelli Editore, Ugo Napoli, em Il Possesso, pág. 131, ed. de 1992, Giuffrè Editore, C. Massimo Bianca, em Diritto Civile, vol. VI, pág. 767-770, ed. de 1999, Giuffré Editore.
. O mesmo não sucedeu no B.G.B. - art.º 937º O § 937º (2) dispõe que a usucapião está excluída se o adquirente no momento da aquisição da posse correspondente ao exercício de um direito de propriedade não está de boa fé ou se posteriormente vem a saber que não é o titular do direito de propriedade (sublinhados nossos).
– e no Código Civil Espanhol – art.º 435º O artigo 435º do C. C. Espanhol dispõe que a posse adquirida de boa-fé não perde este carácter salvo no caso e desde o momento em que existam actos que revelem que o possuidor não ignora que possui a coisa indevidamente. Sobre a relevância da má-fé superveniente no direito espanhol, Miguel Coca Payeras, em Comentario del Codigo Civil, org. do Ministerio de Justicia, Tomo I, pág. 1175-1176, 2.ª ed., Ministerio da Justicia, Centro de Publicaciones, Manuel Albaladejo, em Derecho Civil III. Derecho de bienes, pág.68-69, 9.ª ed., Bosh, e José Puig Brutau, em Fundamentos de derecho civil, tomo III, vol. 1.º, pág. 67-70, 3.ª ed., Bosch.
–, em que prevaleceu a orientação do direito canónico que, para todos os efeitos, incluindo a aquisição por usucapião, confere relevância à má fé superveniente.
Contrariamente ao que sucedeu com as codificações acima referidas que expressaram uma posição genérica sobre a relevância da má-fé superveniente, o nosso C. Civil de 1966 limitou-se a indicar o momento em que era necessário apurar o estado de ignorância do possuidor sobre a lesão de direitos de terceiros – o momento da aquisição da posse – para que esta se pudesse qualificar como de boa-fé, não deixando qualquer indicação sobre uma posição de princípio quanto à relevância de uma má-fé superveniente Esta neutralidade do texto não foi inocente, uma vez que nos trabalhos preparatórios, Pinto Coelho tinha proposto uma redacção muito próximo da adoptada pelos Códigos Civis Francês e Italiano (Artigo 19.º, n.º 3, do articulado publicado no B.M.J, n.º 88, pág. 145), a qual não foi acolhida pelo Anteprojecto saído da 1.ª Revisão Ministerial.
. Contudo, não deixou de regular os efeitos dessa alteração do estado cognitivo do possuidor sobre a lesão de direitos de terceiros quanto a alguns efeitos da relação possessória, como sucede no que respeita à apropriação dos frutos da coisa possuída – art.º 1270º do C. Civil – e ao pagamento de encargos – art.º 1272º. A dúvida é se estes regimes específicos mais não são do que excepções a um princípio que segue a tradição do direito romano ou se apenas reflectem, com algumas especialidades, a solução escolhida pelo direito canónico.
Na ausência de elementos interpretativos mais seguros é possível encontrar uma pista para a resolução desta questão na legislação processual.
Retrocedendo ao Código de Seabra, que no art.º 520º, após a Comissão Revisora ter alterado a orientação que constava do projecto apresentado pelo Visconde de Seabra, reflectia o princípio do direito romano mala fides superveniens non nocet, Cunha Gonçalves, em Tratado de Direito Civil em Comentário ao Código Civil Português, vol. III, pág. 692, ed. de 1930, Coimbra Editora, José Dias Ferreira, em Código Civil Português Anotado, vol. I, pág. 365, ed. de 1894, Imprensa da Universidade de Coimbra, onde se conta: boa-fé exigia o projecto primitivo, tanto no começo como no decurso da posse, seguindo as doutrinas do direito canónico. Prevaleceram porém na comissão revisora as doutrinas do direito moderno.
, verificamos que no art.º 495º, que regulava a aquisição dos frutos pelo possuidor e a responsabilidade pelos encargos, a má fé superveniente já assumia um papel relevante, mas excepcional, nesse regime específico, dispondo o § 4.º que reputa-se ter cessado a boa fé, desde o momento em que os vícios da posse são judicialmente denunciados ao possuidor, pela proposição da acção, ou em que se prove terem sido conhecidos do mesmo possuidor. O conhecimento pelo possuidor dos vícios da posse, em resultado da propositura de uma acção deduzida contra ele ou por outro qualquer modo transmutava a posse de boa-fé, em posse de má-fé, o que teria reflexos no regime da aquisição dos frutos e na responsabilidade pelos encargos da coisa possuída.
Em 1939, um novo Código de Processo Civil, ao enunciar os efeitos da citação, numa acção judicial, no art.º 485º, além de se referir à interrupção da prescrição (alínea a), considerou que tal acto também faz cessar a boa-fé do possuidor (alínea b).
Embora a voz autorizada de Alberto dos Reis refira Código de Processo Civil Anotado, vol. II, pág. 405, 3.ª ed., Coimbra Editora.
que “a partir da citação, o réu passa da condição de possuidor de boa fé para a de possuidor de má fé, com todos os inconvenientes que esta posição acarreta” (sublinhado nosso), admite-se que, apesar deste efeito do acto de citação ter sido efectivamente reconhecido pelo legislador genericamente, tendo em consideração a instrumentalidade do direito processual face ao direito substantivo, tal efeito apenas tinha aplicação nos casos regulados pelo art.º 495º do Código de Seabra, não alargando o alcance da previsão do seu § 4.º, antes a confirmando, na perspectiva processual. A tese subjacente ao disposto no art.º 520º do Código de Seabra de que mala fides superveniens non nocet, continuava vigente, apenas admitindo a excepção prevista no art.º 495º.
No entanto, com a aprovação do C. Civil de 1966 e com a neutralidade da redacção adoptada pelo seu art.º 1260º, a indicação como efeito genérico da citação do fim da boa fé do possuidor, que após a aprovação de um novo Código de Processo Civil em 1961, passou a constar do art.º 481º, ganhou outra repercussão. Deixando este efeito de estar expressamente limitado pela lei substantiva, passou a permitir a interpretação de que o mesmo, não tinha aplicação apenas nos casos de aquisição de frutos e responsabilidade pelos encargos da coisa possuída, agora previstos nos art.º 1270º e 1272º do C. Civil de 1966, podendo, agora sim, afirmar-se que da mudança da condição de possuidor de boa-fé para a de possuidor de má-fé, como efeito da citação judicial, nos termos da alínea b), do art.º 481º, do C. P. Civil, resultavam todos os inconvenientes (como afirmava Alberto dos Reis) que esta nova condição acarreta, incluindo a exigência de um maior prazo da posse para a aquisição por usucapião.
O disposto na alínea b) do art.º 481º do C.P.C. de 1961, com a neutralidade da redacção do art.º 1260º do C. Civil de 1966, embora circunscrito aos efeitos de um acto processual (a citação), revelava, porém, uma nova orientação do legislador – mala fides superveniens nocet.
Reflectindo a referida norma processual essa nova orientação substantiva, a demonstração de que o possuidor de boa-fé, supervenientemente, se apercebeu, por qualquer modo, que o exercício da sua posse lesava direitos de outrem, passando a exercer essa posse de má-fé, altera-se a condição do possuidor, passando o regime dessa posse, em todos os seus aspectos, incluindo o prazo necessário para a aquisição por usucapião, a ser o previsto para uma posse de má-fé.
Daí que, mantendo-se essa previsão no art.º 564º, a), do novo Código de Processo Civil, aprovado em 2013, deve considerar-se que o possuidor que adquiriu a posse de uma coisa de boa-fé, mas supervenientemente toma conhecimento, por qualquer modo, que o exercício daquela posse está a lesar direitos de outrem, passa a ser considerado possuidor de má-fé, para todos os efeitos, incluindo a duração da posse exigida por lei para a aquisição da coisa possuída, por usucapião Neste sentido, Santos Justo, ob. cit., pág. 173, e Carvalho Fernandes, ob. cit., pág. 302.
Sustentando que, mesmo no âmbito do C. Civil de 1966, continua vigente a doutrina do direito romano, Orlando de Carvalho, ob. cit., pág. 282-283, Rui Pinto e Cláudia Trindade, ob. cit., pág. 36, e José Luís Ramos, ob. cit. pág. 166.
.
Aliás, resultando a usucapião do exercício da posse durante um determinado período de tempo, variando esse período consoante a posse é de boa ou má-fé, não faria sentido que para determinar qual o prazo necessário para que ocorra uma aquisição por usucapião, apenas relevassem as características da posse no seu início e não durante todo o período em que ela ocorre. Estamos perante um efeito da posse que postula a sua permanência, pelo que uma alteração ocorrida nas características da posse durante esse período de permanência não pode deixar de ter consequências Adoptando este critério, Penha Gonçalves, ob. cit., pág. 268.
.
No presente caso, em que o tempo da posse, necessário para a aquisição do direito de propriedade por usucapião, só iniciou a sua contagem quando o Autor atingiu a maioridade, deve o desconhecimento da lesão de direitos de terceiro verificar-se nesse mesmo momento, uma vez que só então se considera que a situação possessória tem o seu início para efeitos de aquisição do direito de propriedade, por usucapião.
Face aos factos provados como se deve qualificar a posse do Autor quando atingiu a maioridade, sendo certo que a mesma se presume de má-fé, por ser intitulada.
3.2.2. Dos requisitos da posse de boa-fé
Regista-se uma clivagem na doutrina quanto às características da boa-fé da posse. Para o preenchimento deste conceito bastará a prova de um estado cognitivo de ignorância – a denominada boa-fé psicológica Neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 20, Orlando de Carvalho, ob. cit., pág. 281-282, Henrique Mesquita, em Direitos Reais, Sumário policopiado das lições ao curso de 1966-1967, pág. 91, Durval Ferreira, ob. cit., pág. 276-278, Raúl Guichard, em Da Relevância Jurídica do Conhecimento, pág. 44 e seg., ed. de 1996, Universidade Católica Editora, Abílio Vassalo de Abreu, em Titularidade Registral do Direito de Propriedade Imobiliária versus Usucapião (“Adverse Possession”), pág. 205, ed. de 2013, Coimbra Editora, e Rui Pinto e Cláudia Trindade, ob. cit., pág. 16.
– ou deve exigir-se ainda que essa ignorância seja justificada ou, pelo menos, desculpável – a apelidada boa fé ética Neste sentido, Oliveira Ascensão, ob. cit., pág. 98-99, Menezes Cordeiro, em Da Boa Fé no Direito Civil, vol. I, pág. 415 e seg, ed. de 1984, Almedina, em A Posse. Perspectivas Dogmáticas Actuais, pág. 92-97, ed. de 1997, Almedina, e em Tratado de Direito Civil I, pág. 964-966, ed. de 2012, Almedina, Carvalho Fernandes, ob. cit., pág. 302, , Almedina, José Alberto Vieira, ob. cit., pág. 571-572, Menezes Leitão, ob. cit., pág. 133, Penha Gonçalves, ob. cit., pág. 267-268, Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, pág. 276-277, ed. de 2002, Principia, Rabindranath Capelo de Sousa, em Teoria Geral do Direito Civil, vol. I, pág. 83, ed. de 2003, Coimbra Editora, José Alberto González, em Direitos Reais (introdução), pág. 106, ed. de 1997, Universidade Lusíada, e José Luís Ramos, ob. cit., pág. 164-165.
?
Nos tribunais, apesar de em muitas decisões, a maior parte das vezes em simples obicter dictum, se referir que a noção de boa-fé adoptada pelo C. Civil é a da boa-fé psicológica, citando-se a opinião de Pires de Lima e Antunes Varela Vide, exemplificativamente, os seguintes acórdãos do S.T.J,:
- de 26.4.1995, relatado por Miranda Gusmão, no B.M.J. n.º 446, pág. 262;
- de 8.5.2003, relatado por Ferreira Girão, em www.dgsi.pt;
- de 9.10.2003, relatado por Santos Bernardino, em www.dgsi.pt;
- de 11.1.2005, relatado por Azevedo Ramos, em www.dgsi.pt;
- de 19.3.2009, relatado por Mário Cruz, em www.dgsi.pt;
- de 28.5.2009, relatado por Santos Bernardino, em www.dgsi.pt.
, também se encontram arestos em que é adoptado o conceito da boa-fé ética Entre outros, os Acórdãos:
- do S.T.J., de 25.5.1999, relatado por Francisco Lourenço, na C.J./Supremo, Ano VII, tomo 2, pág. 110;
- da Relação de Lisboa, de 2.6.2009, relatado por Isabel Salgado, em www.dgsi.pt.
.
No direito comparado, enquanto o B.G.B. (§ 932 (2) e o C. Civil Italiano (artigo 1147) Sobre esta solução no direito italiano, Alberto Montel, ob. cit., pág. 171-186, Francesco de Martino, ob. cit., pág. 32-34, Ugo Napoli, ob. cit. pág. 129-131, e C. Massimo Bianca, ob. cit., pág. 764-767.
, para que a posse pudesse ser considerada de boa-fé não deixaram de exigir que o desconhecimento da lesão de direitos de outrem fosse não culposo, o C. Civil Francês – art.º 550 Com excepção da opinião isolada de François Gorphe, em Le principe de la bonne foi, pág. 118 e seg., ed. de 1928, Dalloz, na doutrina e na jurisprudência francesa a boa fé tem sido considerada como fruto da ignorância pura do possuidor, sem qualquer discussão. Vide Alex Weil, em Droit Civil. Les Biens, pág. 344, da 2.ª ed., Dalloz, François Chabas, em Biens. Droit de Propriété et ses Démembrements, em Leçons de Droit Civil de Henri et Léon Mazeaud, Jean Mazeaud e François Chabas, Tomo II, 2.º vol., pág. 211, 8.ª ed., Montchrestien, Jean Carbonnier, em Droit Civil, Tomo 3, Les Biens (monnaie, immeubles, meubles), pág. 223, 16.ª ed., Puf, Jean-Louis Bergel, Marc Brushi e Sylvie Cimamonti, ob. cit., pág. 226.
– e o C. Civil Espanhol – artigo 433 Na doutrina espanhola, tal como em Portugal, também se registam divergências sobre o conceito de boa fé adoptado pelo artigo 433 do C. Civil Espanhol. Sobre estas divergências leia-se MIQUEL GONZALEZ, em La buena fe y sua concreción em el âmbito del derecho civil, em Anales de la Academia Matritense del Notariado, n.º 29 (1988), CASTRO LUCINI, em Algumas consideraciones sobre la buena fe em la obra del professor D. Federico de Castro, em Anuario de Derecho Civil, n.º 35 (1983), e Diez-Picazo y Ponce de Leon, no prólogo ao livro de Wieacker, El principio general de la buena fe, ed. de 1982, Civitas.
– identificaram a boa-fé com o simples desconhecimento dessa lesão.
A boa-fé como característica da posse é uma boa-fé subjectiva em que está em causa um estado cognitivo do sujeito.
Também aqui, enquanto o conceito puramente psicológico de boa-fé tem antecedentes esparsos na bona fides do direito romano Santos Justo, em Direito Privado Romano III, cit., pág. 75, nota 13, e Max Kaser, em Direito Privado Romano, pág. 154, ed. de 1999, Fundação Calouste Gulbenkian.
Note-se que esta configuração da bona fides romana só foi confirmada em 1964 por Hausmaninguer no seu estudo Die bona fides des Ersitzungsbesitzers im klassischen romischen Recht, de 1964, o qual não foi considerado durante os trabalhos preparatórios do C. Civil, nem na anotação de Pires de Lima e Antunes Varela ao artigo 1260.º do C. Civil, quando referem que o conceito de boa fé é de natureza psicológica, e não de índole ética ou moral (como a bona fides dos romanos).
, a concepção ética encontra as suas origens no direito intermédio, no pensamento jurídico-canónico.
Seguindo de muito perto a redacção do art.º 550º do Código de Napoleão Apesar de nos trabalhos que antecederam o Código de Seabra, de Coelho da Rocha, em Instituições de Direito Civil Português, tomo II, pág. 345, § 437, 6.ª ed., Imprensa da Universidade de Coimbra, e Correia Telles, em Digesto Português, Tomo I, pág.73, § 572, 2.ª ed., Livraria Clássica Editora, a noção de má-fé se imputar ao possuidor que conhecia ou devia conhecer o vício da posse.
, o Código de Seabra no art.º 476º expressou uma definição de boa fé e má fé na posse que aparentava uma adesão à concepção psicológica – posse de boa fé é aquela que procede de título cujos vícios não são conhecidos do possuidor. Posse de má-fé é a que se dá na hipótese inversa.
Se, numa primeira fase essa definição foi levada à letra, sem qualquer controvérsia Vide, por exemplo, José Tavares, em Os Princípios Fundamentais do Direito Civil, vol. I, pág. 637, ed. de 1922, Coimbra Editora, e Guilherme Alves Moreira, em Instituições de Direito Civil, vol. III, pág. 19, ed. do autor de 1925.
, mais tarde a noção de boa fé ética, sob influência da pandectística tardia, veio a ganhar adeptos Manuel Rodrigues, em A Posse. Estudo de Direito Civil Português, pág. 296-297, 3.ª ed., Almedina, e António Rodrigues Lufinha, em A Posse de Boa-fé, no Boletim da Faculdade de Direito, Suplem. VIII (1947), pág. 365 e seg., a Redacção da R.L.J., em resposta a consulta, no Ano 61.º (1929), pág. 409-411, Manuel Salvador, em Elementos da Reivindicação, pág. 60, ed. do autor de 1958, e em Suplemento aos Elementos da Reivindicação, pág. 129-130, ed. do autor de 1962.
, o que suscitou reacções dos defensores da boa fé como um simples estado cognitivo Cunha Gonçalves, ob. cit., pág. 497, e Dias Marques, em Prescrição Aquisitiva, pág. 18 e seg., ed. de 1960, Coimbra Editora.
.
Nos trabalhos preparatórios do C. Civil de 1966, Luís Pinto Coelho, no art.º 19º do articulado por si apresentado no capítulo da posse, aderia à noção da boa fé ética ao propor a seguinte redacção: “1. A posse diz-se de boa-fé quando o possuidor ignore que a sua actuação pode ser lesiva de um direito alheio. 2. A ignorância é, contudo, irrelevante se procede de culpa ou negligência grave do possuidor” B.M.J. n.º 88, pág. 145.
.
Contudo, o Anteprojecto saído da 1.ª Revisão Ministerial eliminou aquele n.º 2, tendo adoptado uma redacção muito próxima da que que hoje consta do artigo 1260.º, a qual resultou do Anteprojecto saído da 2.ª Revisão Ministerial Estas redacções podem ser consultadas em Rodrigues Bastos, Direito das Coisas Segundo o Código Civil de 1966, Vol. I, pág. 22-23, ed. do autor de 1975.
, rejeitando uma adesão expressa à tese da boa-fé ética e uma solução idêntica à do C. Civil Italiano de 1942 Como escreveram Pires de Lima e Antunes Varela, em anotação ao artigo 1260.º do C. Civil: possui de boa fé, na verdade, quem ignora que está a lesar direitos de outrem sem que a lei entre em indagações sobre a desculpabilidade ou censurabilidade da sua ignorância (ao contrário do que ocorre, nesse ponto, com o n.º 2 do artigo 1147.º do Código italiano, onde expressamente se exclui a relevância da boa fé “se a ignorância depende de culpa grave.
.
Apesar desta opção inicial, uma leitura actual do art.º 1260º do C. Civil não pode prescindir do apelo a uma coerência sistemática que tenha em consideração toda uma evolução do conceito de boa-fé no direito civil efectuada após a aprovação do Código Civil de 1966 e que, relativamente à boa-fé subjectiva, não prescinde hoje de uma exigência ética. Como afirma Menezes Cordeiro Em Tratado de Direito Civil I, cit., pág. 966., só pode invocar boa-fé quem, sem culpa, desconheça certa ocorrência, invocando as seguintes características do nosso sistema jurídico nesta questão:
- a juricidade do sistema: o Direito não associa consequências a puras causalidades como o ter ou não conhecimento de certa ocorrência; o Direito pretende intervir nas relações sociais; ora, ao lidar com uma boa fé subjectiva ética ele está, de modo implícito, a incentivar o acatamento de deveres de cuidado e de diligência;
- a adequação do sistema: uma concepção puramente psicológica de boa fé equivale a premiar os ignorantes, os distraídos e os egoístas, que desconheçam mesmo o mais evidente; paralelamente, ir-se-ia penalizar os diligentes, os dedicados e os argutos, que se aperceberiam do que escapa ao cidadão comum;
- a praticabilidade do sistema: não é possível (nem desejável) provar o que se passa no espírito das pessoas; assim e em última análise, nunca se poderá demonstrar que alguém conhecia ou não certo facto; apenas se poderá constatar que o sujeito considerado, dados os factos disponíveis, ou sabia ou dia saber; em qualquer das hipóteses, há má-fé.
Daí que quando o art.º 1260º do C. Civil diz que a posse é de boa-fé quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem, estamos perante a exigência de uma ignorância qualificada. O estado cognitivo de ignorância, enquanto ausência de uma representação da realidade, é um simples antecedente psicológico da boa-fé, a qual exige um plus que consiste na diligência no apuramento da situação real. Assim, são equiparadas às situações de conhecimento da lesão do direito de outrem todas aquelas em que o possuidor, apesar de não se ter apercebido dessa lesão, tinha todas as condições para a conhecer, o que só não aconteceu porque não teve o cuidado que normalmente seria de esperar de um cidadão diligente, com os seus condicionantes, naquelas circunstâncias. Só o desconhecimento justificado ou, pelo menos, desculpável da lesão do direito de outrém é que permite a qualificação da posse como de boa-fé.
No presente caso provou-se que o Autor agiu certo de que com os actos de posse, praticados com o intuito de exercer os poderes correspondentes a um direito de propriedade, não violava o direito de outrem, admitindo-se como uma leitura possível que esse estado cognitivo se reportava a todo o período de posse, pelo que está demonstrado que, no momento em que atingiu a maioridade - o momento relevante para aferir da boa-fé do Autor, dado que só nessa data se iniciou a contagem do prazo da posse necessário para a aquisição por usucapião – o Autor desconhecia que, com essa posse, exercida em termos equivalentes aos poderes conferidos pelo direito de propriedade, lesava o direito de terceiros, designadamente dos Réus, seus pais.
Tendo os pais do Autor, em 1995, doado a este a casa em questão e tendo, nessa altura, aceite em seu nome essa doação, o que foi confirmado pelo Autor quando atingiu a maioridade, apesar desse negócio gratuito não ter sido celebrado pela forma exigida por lei, o que determina a sua nulidade, é desculpável que o Autor na data em que atinge a maioridade e em que se inicia a contagem do prazo da situação possessória, com vista à aquisição do direito de propriedade por usucapião, entenda que ao exercer essa posse não está a violar o direito de outrem, designadamente o direito de propriedade dos seus pais, cuja titularidade na pessoa destes se mantém, uma vez que a vontade destes, apesar de incorrectamente exteriorizada do ponto de vista formal, havia sido a de transferir o direito de propriedade para o Autor.
Assim sendo, face aos factos provados, conclui-se que se mostra ilidida a presunção estabelecida no art.º 1260º, n.º 2, do C. Civil, sendo a posse inicial do Autor uma posse de boa-fé.
Mas, posteriormente, em 2011, os Réus, perante uma solicitação do Autor, recusaram-se a formalizar a doação, afirmando que não o fariam, na medida em que ainda eram eles os donos da casa, pelo que, a partir desse momento, já não é possível afirmar-se que o desconhecimento da lesão do direito de propriedade dos Réus fosse desculpável. Na verdade, tendo os Réus dito ao Autor que se recusavam a transferir para este o direito de propriedade do imóvel em questão e vincando que residia neles a titularidade desse direito de propriedade, manifestaram uma vontade diversa da exteriorizada em 1995, pelo que, sendo do conhecimento geral que a propriedade de um bem imóvel não se transfere por simples declaração verbal, qualquer cidadão minimamente informado tem a obrigação de saber que o exercício da posse, em termos correspondentes ao direito de propriedade por alguém que não sejam os Réus, ofende o direito destes, o qual se mantém na sua esfera patrimonial, uma vez que o acto praticado em 1995 é nulo. Tendo, a partir de 2011, deixado de existir por parte do Autor o conhecimento que a vontade dos titulares do direito de propriedade do imóvel em questão era a de que ele lhe pertencesse, já não é compreensível e, por isso, desculpável, que ele continue a entender que a sua posse, exercida em termos equivalentes a um direito de propriedade, não ofende o direito de propriedade dos seus pais.
Daí que a partir desse momento a posse exercida pelo Autor deixa de reunir as características que permitiam ilidir a presunção de má-fé resultante da ausência de título.
Por todas estas razões, a posse exercida pelo Autor sobre o imóvel em questão, entre 22.4.2002 e 2011, pode qualificar-se como uma posse de boa-fé, mas a partir desta última data deve ser qualificada como uma posse de má-fé.
3.3. Da contagem do prazo da posse do Autor
Como em 2011 ainda não havia decorrido o prazo de 15 anos que a lei exige para a aquisição, por usucapião, de um imóvel, quando não existe registo do título, nem da mera posse – art.º 1296º do C. Civil –, mas há posse de boa-fé, como era o caso, deve aplicar-se o critério previsto no art.º 296º, n.º 2, do C. Civil, para a alteração superveniente de prazos, quando o prazo posterior é mais longo. Nessas situações é aplicável este último prazo, devendo computar-se nele todo o tempo decorrido desde o seu momento inicial.
Exigindo o mesmo art.º 1296º do C. Civil, no caso de posse de má-fé, que esta perdure durante 20 anos para que ocorra a aquisição do imóvel por usucapião e não tendo este prazo ainda decorrido, desde que o Autor atingiu a maioridade, quando a presente acção foi proposta, não é possível concluir que o Autor já adquiriu, por usucapião, o direito de propriedade sobre o imóvel que possui, pelo que se revela correcta a decisão recorrida quando não reconheceu esse direito ao Autor.
3.4. Dos restantes pedidos
Além do reconhecimento do direito de propriedade, o Autor pediu ainda:
- que se ordenasse o cancelamento de todas as inscrições, hipotecas e penhoras e/ou outras, registadas na Conservatória do Registo Predial que ofendam a posse e a propriedade do Autor por, além do mais, serem ineficazes;
- e que se ordenasse a correcção da inscrição que consta da caderneta predial do referido prédio urbano.
Não procedendo o pedido de reconhecimento do direito de propriedade, desde logo, o Autor não tem legitimidade substantiva para deduzir tais pedidos, pelo que os mesmos também devem improceder.
Em todo o caso, não se deixa de referir que, não se encontrando o prédio em causa inscrito no registo predial também não existem quaisquer inscrições de ónus ou encargos sobre ele, não sendo, por isso, possível o seu cancelamento, pelo que tal pedido sempre improcederia.
Quanto à correcção da inscrição matricial, há que ter presente que o artigo 130.º, n.º 3, do CIMI, fornece um meio administrativo próprio para os titulares dos prédios obterem a rectificação da descrição destes na matriz, o qual se encontra regulado nos artigos 130º a 133º daquele diploma, não competindo aos tribunais apreciar tais pretensões, mas sim ao chefe de serviço de finanças.
Estaríamos, pois, perante uma situação em que o tribunal também nunca poderia conhecer deste pedido por a sua apreciação não competir ao poder jurisdicional, o que configura uma excepção dilatória inominada, do conhecimento oficioso – art.º 578º do C. P. Civil –, que sempre impediria o conhecimento do mérito de tal pedido Neste mesmo sentido, o Acórdão do S.T.J. de 29.6.2005, relatado por Sousa Leite, sumariado em www.stj.pt (Sumários de Acórdãos)..
3.5. Conclusão
Por todas estas razões, deve o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se integralmente a decisão recorrida.
Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas do recurso, pelo Autor
Coimbra, 8 de maio de 2018
Sílvia Pires
Jaime Ferreira
Jorge Arcanjo.