Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1235/16.0T8LMG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: ACÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DE JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
HERANÇA
LEGITIMIDADE
LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO
Data do Acordão: 02/21/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - LAMEGO - JL CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTS.2075, 2078, 2091 CC, 33, 577 CPC, 101 C NOTARIADO
Sumário: O herdeiro não pode, desacompanhado dos restantes herdeiros, deduzir pedido de impugnação de justificação notarial, nos termos do n.º 1 do artigo 101.º, do Código do Notariado, relativamente a um dos prédios cuja restituição (à herança) é pedida no âmbito de uma ação de petição de herança prevista no artigo 2075.º do Código Civil.
Decisão Texto Integral:











I. Relatório

a) O presente recurso vem interposto da decisão que absolveu os Réus da instância com fundamento na ilegitimidade da Autora recorrente – artigo 577.º, al. e) do C.P.C. –, por não se encontrar acompanhada dos vários interessados na relação jurídica controvertida.

Refere-se na sentença que a Autora «…pretende ver reconhecida a propriedade dos prédios identificados a favor da herança, da qual é herdeira e a ineficácia da escritura outorgada pelos RR. que teve por objecto aqueles prédios, alegando que os imóveis que estão no centro da lide integram a herança aberta por óbito de (…), de quem a A. é herdeira, existindo outros herdeiros que não estão presentes no processo.

Por sua vez, os RR., alguns dos quais herdeiros da referida (…) pugnam pela validade da escritura de justificação que outorgaram, visando em reconvenção a declaração de que são titulares do direito real sobre os mesmos prédios que a A. reivindica a favor da herança».

E concluiu: «… a presente acção deveria ter sido proposta por todos os herdeiros da herança, da qual alegadamente fazem parte os prédios em causa e não tendo a A. feito intervir os demais herdeiros de (…), conforme para tal foi notificada, é de concluir que há uma ilegitimidade decorrente da preterição de litisconsórcio necessário activo, considerando, também, estar em causa a compra e venda realizada concomitante à justificação notarial, exigindo esse negócio e a reconvenção a intervenção no processo dos vários interessados na relação material, sob pena de ilegitimidade».

b) É desta decisão que recorre a Autora tendo formulado as seguintes conclusões:

(…)

c) A recorrida contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão sob recurso.

II. Objeto do recurso

Tendo em consideração que o âmbito objetivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (artigos 639.º, n.º 1, e 635.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as questões que este recurso coloca são as seguintes:

Verificar se os pedidos formulados pela Autora carecem ou não, para assegurar a sua legitimidade, da intervenção dos demais herdeiros da herança de R (...) ([1]), por existir uma situação de litisconsórcio necessário ativo.

III. Fundamentação

Matéria de facto processual a considerar

A - Prédios objeto da ação

Prédio Urbano, situado em X (...), composto por casa de andar e loja, inscrito na matriz sob o artigo 384 e descrito na conservatória do registo predial da freguesia de XX (...) com o nº 407/19890711.

Prédio Rústico, situado em Y (...), composto por cultura, oliveiras, vinha, fruteiras, castanheiros e mato, inscrito na matriz sob o artigo 4602 e descrito na conservatória do registo predial da freguesia de XX (...) com o nº 404/19870711.

Prédio Rústico, situado em Z (...), composto por pinhal, mata e castanheiros, inscrito na matriz sob o artigo 4727 e descrito na conservatória do registo predial da freguesia de XX (...) com o nº 406/19890711.

Prédio Rústico, situado em W (...), composto por pinhal e mato, inscrito na matriz sob o artigo 5716 (que proveio do artigo 4739 da extinta freguesia de XX (...)), descrito na conservatória do registo predial da freguesia de XX (...) com o n.º 405/19890711.

Prédio Rústico, designado Jardim, composto por cultura, videiras, fruteiras e pastagem, inscrito na matriz sob o artigo 5707 e omisso na conservatória do registo predial.

B - Causa de pedir da ação

Que em 11 de Julho de 1989, a falecida (…), filha da (…) e mãe e avó dos quatro primeiros demandados, com base numa escritura de habilitação – celebrada no dia 26 de Abril de 1989, no cartório notarial de XX (...) – e aproveitando o facto de os ditos prédios estarem omissos, fez inscrever quatro deles a seu favor na CRP de XX (...) sob Ap. 7 de 1989/07/11, aos quais couberam as descrições números 404 a 407/19890711.

Que no dia 5 de Maio de 2016, no Cartório Notarial de XX (...), foi celebrada uma escritura de compra e venda e de justificação notarial concomitante, exarada a fls. 18 do Livro de Escrituras Diversas número 83, onde o primeiro demandado (…) figura como justificante e vendedor e os quintos, (…) e esposa, como compradores, declarando, aquele, que vendia a estes, e estes, que lhe compravam, pelo preço de três mil euros, um prédio rústico, que dizia pertencer-lhe, com exclusão de outrem, designado por W (...), constituído por pinhal e mato, descrito na CRP de XX (...) sob o número 405 e aí inscrito a favor de (…), sua mãe, sob Ap. 7 de 1989/07/11 e inscrito na matriz sob o artigo 5716.

Outros factos através dos quais a Autora sustenta que os prédios acima identificados fazem parte da herança deixada por (…), sua avó paterna, falecida em 31-01-1950, a qual nunca foi partilhada e da qual é herdeira.

C- Pedido da ação

«Termos em que, julgada procedente por provada a presente acção, deverá proferir-se sentença que:

A – Declare as transmissões referidas nos itens 11º ([2]) e 15º a 16º ([3]) como absolutamente ineficazes em relação à demandante e aos demais interessados na herança ilíquida e indivisa de (…);

B – Declarando, ainda, a ineficácia, em relação a estes, de tudo o que ficou declarado na escritura de justificação notarial que se impugnou no 18º item deste articulado, requerendo simultaneamente ao tribunal a imediata comunicação ao notário da pendência da acção;

C – Decrete o cancelamento imediato de todos os registos que incidam sobre os prédios identificados no item 2 desta peça, designadamente, a favor da mãe e avó dos quatro primeiros demandados bem como a favor dos dois últimos;

D- Declare que os prédios identificados no 2.º item são da exclusiva propriedade da herança ilíquida e indivisa deixada por óbito de (…), da qual a demandante é um dos herdeiros.

E- Condene os demandados a reconhecê-la como tal e, em consequência, a devolverem aqueles prédios à herança, entregando-lhos livres de quaisquer bens, pessoas ou encargos.

F- Devendo, ainda, ser condenados a indemnizar a demandante pelos alegados danos morais e patrimoniais, em quantia não inferior a 8.000,00€, com os juros legais a partir da citação».

D - Pedido reconvencional:

«… deve a ação improceder e proceder a reconvenção, - era o dono e legítimo proprietário do descrito prédio rústico sito em nossa senhora das necessidades, quando em 26 de agosto de 2016 celebrou escritura pública de compra e venda, e de justificação notarial, por meio da qual transmitiu a  propriedade do mesmo para (…) (seus atuais proprietários);

É o dono e legítimo proprietário do prédio urbano referido pela autora, bem como de todos os demais prédios rústicos a que a mesma fez referência, e agora também referidos nos art. 17º e 19º».

  b) Apreciação da questão objeto do recurso.

Vejamos então se os pedidos formulados pela Autora carecem ou não, para assegurar a sua legitimidade, da intervenção dos demais herdeiros da herança de R (...), por existir uma situação de litisconsórcio necessário ativo.

Cumpre começar por referir que na petição são feitos vários pedidos que podem ser reunidos em três grupos, isto é:

Primeiro – Impugnação da escritura de justificação relativa ao prédio rústico do artigo matricial 5716 (que proveio do artigo 4739 da extinta freguesia de XX (...)), sito em W (...).

Declaração de ineficácia desta escritura em relação à Autora e restantes herdeiros de (…); e

Comunicação ao notário da pendência da ação e cancelamento imediato de todos os registos que incidam sobre o prédio.

Segundo – A Autora pede no confronto com os Réus que o tribunal declare que as transmissões referidas nos artigos 11º ineficazes em relação à demandante e aos demais interessados na herança ilíquida e indivisa de R (...).

Este pedido é configurado pela Autora na petição inicial (ver artigo 14, 22 e 29) como de «petição de herança».

No artigo 11 da petição inicial a Autora refere-se a «transmissão de bens», mas na verdade o que afirma é que a sua prima (…) conseguiu registar em seu nome quatro dos prédios que identificou como pertencendo à herança de (…), pelo que transmissão será apenas a que consta dos artigos 15 e 16 da petição inicial, relativa à escritura de justificação, seguida de venda aos quintos Réus do prédio do artigo matricial 5716, sito em W (...).

Pede que o tribunal declare que todos os cinco prédios identificados na petição são da exclusiva propriedade da herança ilíquida e indivisa deixada por óbito de (…), da qual a demandante é um dos herdeiros.

Condene os demandados a reconhecê-la como tal e, em consequência, a devolverem aqueles prédios à herança, entregando-lhos livres de quaisquer bens, pessoas ou encargos.

E cancelamento imediato de todos os registos que incidam sobre estes prédios.

Terceiro – Pedido de indemnização contra os réus por danos morais e patrimoniais, em quantia não inferior a 8.000,00€, com os juros legais a partir da citação».

Vejamos então se ocorre uma situação de litisconsórcio necessário entre a Ré e herdeiros e (…) que ainda não são partes nesta ação.

(I) Relativamente ao primeiro grupo de pedidos, relacionado com o prédio do artigo matricial  5716, sito em W (...), que foi objeto da escritura de justificação.

Quanto à impugnação judicial da escritura de justificação, o artigo 89.º e o n.º 1 do artigo 101.º, ambos do Código do Notariado, dispõem respetivamente que
«1. A justificação, para os efeitos do n.º 1 do artigo 116.º do Código do Registo Predial, consiste na declaração, feita pelo interessado, em que este se afirme, com exclusão de outrem, titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição e referindo as razões que o impossibilitam de a comprovar pelos meios normais.
2 - Quando for alegada a usucapião baseada em posse não titulada, devem mencionar-se expressamente as circunstâncias de facto que determinam o início da posse, bem como as que consubstanciam e caracterizam a posse geradora da usucapião» e que «Se algum interessado impugnar em juízo o facto justificado deve requerer simultaneamente ao tribunal a imediata comunicação ao notário da pendência da ação».

Como se refere na sentença, estamos perante uma ação de simples apreciação negativa, incumbindo aos réus outorgantes na escritura – n.º 1 do artigo 343.º do Código Civil ([4]) –, alegar e provar os factos constitutivos do direito afirmado na escritura de justificação, como no caso, os factos inerentes à aquisição por usucapião.

Resulta do n.º 1 do artigo 101.º, do Código do Notariado, que qualquer «interessado» tem legitimidade, para instaurar a ação de impugnação da escritura de justificação notarial.

A Autora é interessada porque a procedência do pedido traz-lhe uma vantagem patrimonial, uma vez que impede o registo do bem como pertencendo em propriedade a outrem, que não a herança de que é herdeira, acautelando assim o respetivo direito de propriedade sobre o mesmo por parte da herança.

A questão que vem colocada consiste em saber, como se disse, se a Autora poderá deduzir este pedido individualmente ou carecerá de estar acompanhada dos restantes herdeiros.

(i) Argumentando no sentido de que estamos perante um caso de litisconsórcio necessário, poderá dizer-se o seguinte:

A Autora está a agir na qualidade de herdeira da herança de (…), como ela mesma afirma, e, por isso, carece de estar acompanhada dos restantes herdeiros desta, que ainda não são partes na ação, como resulta do disposto no n.º 1, do artigo 2091.º do Código Civil, onde se determina que «Fora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no artigo 2078.º, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros» ([5]).

Resulta desta norma que, ressalvando o caso da ação de petição da herança – artigo 2078.º – e os casos expressamente previstos nos artigos 2088.º (pedido de entrega de bens que deve administrar e que estão em poder de outrem), 2089.º (cobrança de dívidas), 2090.º (venda de frutos e outros bens deterioráveis e satisfação de encargos da herança), todos os demais atos que importem disposição de bens implicam que sejam exercidos por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros ([6]).

Sobre esta matéria Capelo de Sousa justifica a razão de ser do preceito referindo que «A lei exige a intervenção conjunta de todos os herdeiros para conferir legitimidade activa e passiva a esses actos de disposição, uma vez que tratando-se de actos de disposição que põem em causa o valor e a composição da herança em si mesma, apesar de se poderem referir apenas a alguns dos bens hereditários, justo é que intervenham todos os titulares desse património autónomo» ([7]).

Face ao disposto no artigo 2091.º do Código Civil, relativamente ao pedido de impugnação da justificação notarial, a Autora carece, de estar acompanhada dos restantes herdeiros para instaurar a ação.

Por outro lado, a natureza da relação jurídica em causa nos autos, que respeita a direitos pertencentes a uma herança, carece da intervenção de todos os herdeiros, sob pena da decisão tomada não produzir o seu efeito útil normal – n.º 3, do artigo 33.º do Código de processo Civil.

Como referiu o Prof. Antunes Varela, «Se a lei alude antes ao efeito útil normal da decisão, é manifestamente por ter entendido que o campo de aplicação do litisconsórcio necessário deve ser ampliado de modo a abranger também as acções em que a falta de algum ou de alguns interessados não obsta a que a decisão produza definitivamente algum ou alguns efeitos úteis, mas impede que ela produza, com carácter definitivo, o seu efeito útil corrente, regular, normal» ([8]).

Este autor exemplifica a questão do «efeito útil normal» com as acções em que há mais que um lesado e o responsável apenas responde até determinado montante, co o ocorre no âmbito do contrato de seguro obrigatório.

Neste caso, se a ação não fosse instaurada por todos os lesados, a decisão não produziria o seu efeito útil normal porque «…poderá dizer-se, com razão, que a decisão proferida na (primeira) acção em que interviessem alguns apenas dos lesados não produz o seu efeito útil normal, se for realmente entendido que os vencedores dessa acção podem ser chamados à segunda acção, com risco de serem forçados a abrir mão de parte da indemnização que tenham recebido (…) Essencial é que a decisão a proferir em tais circunstâncias possa regular definitivamente as pretensões formuladas pelas partes» ([9]).

No caso dos autos estamos perante uma ação de impugnação de justificação notarial que é uma ação de simples apreciação negativa ([10]), na qual incumbe ao réu alegar e provar os factos que lhe conferem a titularidade sobre o direito justificado.

Por isso, no caso do bem pertencer alegadamente a uma herança, então o réu deve poder alegar e provar tais factos perante todos os herdeiros e não apenas perante um deles ([11]), sob pena da decisão, sendo-lhe favorável, não produzir o seu efeito útil normal, pois, não tendo sido obtida no confronto com todos, mais tarde, qualquer um dos restantes herdeiros poderia instaurar nova ação de impugnação, sem que o réu lhe pudesse opor o caso julgado formado a seu favor na primeira das ações.

Com efeito, sendo julgada procedente a ação, o tribunal limitar-se-ia, como refere Paulo Pimenta, «a não declarar a inexistência do direito» ([12]).

Neste caso, o efeito útil normal consiste na não declaração da inexistência do direito impugnado em relação a todos os herdeiros, mas isso só pode ocorrer se todos os herdeiros estiverem na ação.

Se assim não fosse, cada um dos outros herdeiros poderia, separadamente, instaurar uma nova ação de impugnação contra o réu e, caso fosse procedente, inviabilizava o efeito produzido com a decisão obtida na primeira ação a favor do réu.

Daí que se afirme que a ação só produz o seu efeito útil se for instaurada por todos os herdeiros.

Concluindo, quer em virtude do disposto no artigo 2091.º do Código Civil, quer do texto do n.º 3, do artigo 33.º do Código de Processo Civil, resulta que no caso estamos perante um litisconsórcio necessário ativo.

(ii) Argumentando no sentido de que não estamos perante um caso de litisconsórcio necessário, poderá dizer-se o seguinte:

Ação é instaurada ao abrigo do disposto no artigo 2078.º, n.º 1, do Código Civil onde se refere que «Sendo vários os herdeiros, qualquer deles tem legitimidade para pedir separadamente a totalidade dos bens em poder do demandado, sem que este possa opor-lhe que tais bens lhe não pertencem por inteiro».

No caso dos autos, dir-se-ia que o pedido relativo à impugnação da justificação notarial se insere no âmbito da ação de petição de herança, tratando-se de um pedido destinado também a obter o efeito jurídico próprio da petição da herança, que consiste na devolução dos bens ao património da herança.


*

Vejamos então.

Não se afigura que o pedido de impugnação judicial da escritura de justificação possa ser considerado como fazendo parte do pedido de petição de herança apenas pelo facto de ser deduzido, digamos, como pedido preparatório do pedido de petição de herança.

Ou seja, previamente ao pedido de petição de herança, o requerente terá de obter a procedência do pedido de impugnação da escritura de justificação notarial, para, desse modo, deixar o réu sem fundamento jurídico para manter o bem na sua esfera jurídica.

Mas, se esta solução processual fosse aceitável, então o autor podia formular qualquer pedido sujeito a litisconsórcio passivo desde que o fizesse no âmbito de uma ação de justificação judicial.

Afigura-se que esta seria uma situação duplamente excessiva em termos processuais, porque tornaria ainda mais excecional o regime processual, já em si excecional, que resulta da possibilidade de preterir o litisconsórcio necessário quando se deduz o pedido correspondente à ação de petição de herança.

Por conseguinte, se um pedido diverso do pedido inerente à ação de petição de herança for formulado ao mesmo tempo que este último, tem de ser observado, como em qualquer outro caso, o litisconsórcio ativo se a relação jurídica em questão o exigir.

E no caso, como acima se expôs, a lei processual exige o litisconsórcio.

ii) Tendo em consideração a argumentação que fica mencionada, conclui-se que o pedido relativo à impugnação da escritura de justificação judicial exige o litisconsórcio necessário, mesmo quando este pedido é feito numa ação em que se formula também um pedido adequado à ação de petição de herança.

(II) Quanto ao segundo conjunto de pedidos, que a Autora qualifica como de petição da herança.

A Autora pede que lhe seja reconhecida a qualidade de herdeira de (…) e que o tribunal declare que todos os cinco prédios identificados na petição são da exclusiva propriedade da herança ilíquida e indivisa deixada por óbito de (…), da qual a demandante é um dos herdeiros; que condene os demandados a reconhecê-la como tal e, em consequência, a devolverem aqueles prédios à herança, entregando-lhos livres de quaisquer bens, pessoas ou encargos.

Vejamos se a lei exige o litisconsócio necessário face a este tipo de pedidos.

No artigo 2078.º, n.º 1 do Código Civil refere-se que «Sendo vários os herdeiros, qualquer deles tem legitimidade para pedir separadamente a totalidade dos bens em poder do demandado, sem que este possa opor-lhe que tais bens lhe não pertencem por inteiro».

Prevê-se nesta norma a possibilidade de um dos herdeiros, sozinho, instaurar a ação de petição de herança a que aludem os anteriores artigos 2075.º e seguintes, ação que visa um duplo fim: por um lado o reconhecimento judicial do estatuto de herdeiro que o autor se arroga e, por outro, a integração dos bens que o demandado possui no ativo ou fração hereditária pertencente ao herdeiro.

Do confronto entre o disposto no n.º 1 do artigo 2078.º e o n.º 1 do artigo 2091.º do Código Civil, resulta que a regra consiste em serem demandados todos os herdeiros ou a ação ser instaurada por todos os herdeiros quando a mesma implique atos que vão além dos atos de mera administração ordinária a levar a cabo pelo cabeça-de-casal. 

Não entra nesta regra, como acaba de se ver, a ação de petição da herança.

Como referem os Prof. Pires de Lima/Antunes Varela, «Essencial, porém, à petição da herança, como resulta do texto e do espírito da lei, é o duplo fim que ela visa: por um lado, o reconhecimento judicial do título ou estatuto (de herdeiro) que o autor se arroga; por outro, a integração dos bens que o demandado possui no activo da herança ou da fracção hereditária pertencente ao herdeiro» ([13]).

Verifica-se que a petição está estruturada nestes termos quanto a estes pedidos e causas de pedir, ou seja, mostra-se configurada como petição de herança

Por conseguinte, a Autora, nos termos do n.º 1 do artigo 2078.º tem legitimidade para a instaurar.

(III) Relativamente ao terceiro pedido, de indemnização, não se suscitam dúvidas, pois a Autora reclama indemnização por danos sofridos na sua esfera jurídica.

(IV) Face ao exposto, concluiu-se pela legitimidade ativa da Autora relativamente aos pedidos de petição de herança e de indemnização.

E pela sua ilegitimidade ativa no que respeita ao pedido de impugnação judicial da escritura de justificação notarial.

IV. Decisão

Considerando o exposto:

1 - Julga-se o recurso parcialmente procedente e revoga-se a sentença recorrida na parte relativa aos pedidos de petição de herança e de indemnização, quanto aos quais se declara que a Autora tem legitimidade ativa.

2 - Julga-se o recurso improcedente na parte relativa à impugnação da escritura de justificação judicial, mantendo-se a sentença nesta parte.

 Custas por Autora e Réus na proporção de metade para cada parte.


*

Coimbra, 21 de fevereiro de 2018

Alberto Ruço ( Relator)

Vitor Amaral

Luis Cravo



[1] Face à petição inicial, os primeiros quatro réus são herdeiros de R (...).

[2] O artigo 11.º tem esta redação:

«11. Sucede que – embora aqueles bens nunca tenham sido partilhados e tenham continuado, por esse motivo, a ser utilizados em comum por todos os herdeiros como coisa indivisa, sempre de acordo com as necessidades e disponibilidade de cada um – em 11 de Julho de 1989, a falecida (…), filha da (…) e mãe e avó dos quatro primeiros demandados, com base numa escritura de habilitação – celebrada no dia 26 de Abril de 1989, no cartório notarial de XX (...) – e aproveitando o facto de os ditos prédios estarem omissos, fez inscrever quatro deles a seu favor na CRP de XX (...) sob Ap. 7 de 1989/07/11, aos quais couberam as descrições números 404 a 407/19890711. (Cf. docs 2 a 6 e 8).
[3] Os artigos 15 e 16 têm esta redação:

«15. Acresce que, no dia 5 de Maio de 2016, no Cartório Notarial de XX (...), foi celebrada uma escritura de compra e venda e de justificação notarial concomitante, exarada a fls. 18 do Livro de Escrituras Diversas número 83, onde o primeiro demandado figurara como justificante e vendedor e os quintos, como compradores. (Cf. doc. 8)».

«16. Declarando, aquele, que vendia a estes, e estes, que lhe compravam, pelo preço de três mil euros, um prédio rústico, que dizia pertencer-lhe, com exclusão de outrem, designado por W (...), constituído por pinhal e mato, descrito na CRP de XX (...) sob o número 405 e aí inscrito a favor de (…), sua mãe, sob Ap. 7 de 1989/07/11 e inscrito na matriz sob o art. 5716. (Cf. doc. 8, cujo teor aqui se reproduz)».

[4] «Nas ações de simples apreciação ou declaração negativa, compete ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga».

[5] Neste sentido, para a ação de impugnação de justificação notarial, o acórdão do T. R. Guimarães, de 7-12-2016, no processo 1718/15.9T8CHV, (Beça Pereira): «Na acção de impugnação de escritura de justificação notarial em que, segundo o impugnante, o bem em causa integra uma herança indivisa de que ele é herdeiro, há que observar a regra enunciada no n.º 1 do artigo 2091.º CC, pelo que nela têm que estar todos os herdeiros. Por isso, há preterição de litisconsórcio necessário activo se um dos herdeiros impugnar essa justificação notarial desacompanhado dos restantes».

[6] Cfr. Prof. Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. VI, pág. 152.

[7] Lições de Direito das Sucessões, Vol. II. Coimbra Editora, 1980, pág. 68.

[8] Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 117, pág. 381/382.
[9] Ob. cit. pág. 382/383.

[10] Acórdão do STJ de 11-11-2010, no processo 33/089TBVNG.P1.S1 (Maria dos Prazeres Pizarro Beleza), «Numa acção de impugnação de justificação notarial, o autor vem reagir contra a afirmação de titularidade do direito de propriedade por parte do justificante; trata-se de um pedido de simples apreciação negativa».
[11] Sem que seja obrigado a deduzir reconvenção, como forma de fazer intervir os restantes herdeiros nos autos ao lado do impugnante.
[12] Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, pág. 39.

[13]  Ob. cit., pág. 131.