Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
6918/16.1T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: CONTRATO PROMESSA
RESOLUÇÃO
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
DEVER SECUNDÁRIO
INTERPELAÇÃO ADMONITÓRIA
Data do Acordão: 02/27/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JC CÍVEL - JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.410, 442, 762, 798, 808 CC
Sumário: 1. A violação de um dever secundário com prestação autónoma não acarretará, por regra, a mora da obrigação principal, nem justificará, por maioria de razão, a resolução do negócio.

2. A interpelação admonitória (art. 808º CC) pressupõe a concessão de um prazo suplementar razoável ao devedor, dentro do qual se deverá verificar o cumprimento, sob a cominação expressa da resolução automática do negócio.

Decisão Texto Integral:










Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I – RELATÓRIO

A (…), e mulher, G (…), intentam a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra P (…) e mulher, A (…)

 pedindo:

1. Seja declarado não cumprido e resolvido o contrato-promessa de compra e venda celebrado entre Autores e Réus, por factos a estes imputáveis.

2. Seja declarado que a importância de 92.000,00 euros, entregue, a título de sinal, pelos RR. aos Autores, pertence a estes, devido a incumprimento do contrato por parte dos Réus.

3. A condenação dos Réus a entregar imediatamente aos Autores os prédios urbanos, melhor identificados no artigo 1º desta petição, livres e desocupados e em bom estado de conservação tal como os receberam em 19 de fevereiro de 2005.

Invocando, para tal e em síntese, a celebração de contrato promessa com entrega de sinal que, na qualidade de promitentes vendedores, celebraram com os réus, acordo que por estes e até ao momento não foi cumprido.

Os réus apresentaram contestação que foi desentranhada por falta de pagamento de taxa de justiça, sendo proferido despacho a declarar confessados os factos articulados pelos autores.

Os Autores apresentaram alegações no sentido da procedência da ação.

Pelo juiz a quo foi proferida sentença a julgar a ação totalmente improcedente, absolvendo os réus do pedido.


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Inconformados com tal decisão os Autores dela interpuseram recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:

 I - Ora, da análise dos factos assentes, facilmente concluímos que houve incumprimentos definitivo do contrato por parte dos RR. senão vejamos:

A)- Os RR. deixaram de cumprir os pagamentos mensais em Junho de 2014;

B)- Em 24/11/2014, receberam uma carta para procederem ao pagamento das prestações em falta e à qual nem sequer se dignaram responder;

C)- Não mais procederam ao pagamento de quaisquer importâncias em atraso;

D)- A marcação da escritura de compra e venda era da responsabilidade dos RR. que a teriam de marcar até ao final do mês de Abril de 2015, o que não sucedeu;

E)- Assim os AA. notificaram os RR. para comparecerem no Cartório Notarial de y (...) no dia 24 de Abril de 2015, pelas 09:00 horas, para outorgarem a respetiva escritura de compra e venda;

F)- Nesse dia e hora, os AA. Compareceram no Cartório Notarial a fim de outorgarem a referida escritura;

G)- Os RR. não pagaram o IMT nem o Imposto de Selo nem compareceram no dito Cartório Notarial, no referido dia e hora.

II- Assim, julgamos que estão preenchidos todos os requisitos do incumprimento definitivo por parte dos RR.

III- Com efeito, os RR. ao não procederem ao pagamento atempado das prestações, ao não terem marcado a escritura de compra e venda e ao não terem comparecido no Cartório Notarial para a celebração da referida escritura, na data marcada pelos AA., incorreram no incumprimento definitivo do contrato.

IV- No caso sub judice, estão preenchidos todo os requisitos do incumprimento definitivo, a saber: houve interpelação nos termos do artigo 808.º do C.C., uma vez que estão preenchidos os seguintes elementos:

a) a intimação para o cumprimento;

b) a fixação de um prazo perentório com dilação razoável para o cumprimento;

c) a cominação de que a obrigação se terá como definitivamente não cumprida pelo facto de não se ter cumprido no prazo comunicado aos RR.

Termos em que, e nos melhores de Direito, deverão V/Exas., Venerandos Desembargadores, proferir decisão que nessa conformidade: A) Revogue a sentença proferida pelo Tribunal a quo julgando totalmente procedente o presente recurso e consequentemente totalmente procedente, por provada a presente ação.


*

Não foram apresentadas contra-alegações.
Dispensados que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº4 do artigo 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639, do Novo Código de Processo Civil –, a questão a decidir é uma só:
1. Se se pode ter por demonstrado o incumprimento definitivo do contrato por parte dos promitentes-compradores.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
São os seguintes, os factos dados como provados pelo tribunal recorrido:
1º Por escrito particular datado de 19 de Fevereiro de 2005, os AA., declararam, assinaram e prometeram vender e os RR., por seu turno, declaram, assinaram e prometeram comprar, os seguintes bens:
1-Prédio urbano composto de casa de habitação com dois pavimentos, com a superfície coberta de 88 m2, pátio e telheiro com 47 m2, sito em x (...) , freguesia de y (...) ( z (...) ), concelho de y (...) , a confrontar do norte com w (...) , do nascente com herdeiros de WA(...) , do sul e do poente com WW (...) , inscrito na respetiva matriz sob o artigo 1.851, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 05457/ y (...) ( z (...) ) e aí inscrito a favor dos AA. pela Ap. 6 de 2003/07/01;
2- Prédio urbano composto de parcela de terreno, com a área de 1170 m2, sito em x (...) , freguesia de y (...) ( z (...) ), concelho de y (...) , a confrontar do norte com herdeiros de WWW (...) , do nascente com WA(...) , do sul com w (...) e do poente com barroca, inscrito na respetiva matriz sob o artigo 4.844 e anteriormente inscrito sob o artigo 1.679, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 5072/ y (...) ( z (...) ) e aí inscrito a favor dos AA. pela Ap. 6 de 2003/07/01 (cfr. contrato promessa de compra e venda, cadernetas prediais urbanas e cópias das descrições prediais que se juntam como docs. nºs 1 a 5 e cujo integral teor aqui se dá por reproduzido).
2º Pelo preço de 148.000,00 euros, correspondendo o valor de 100.000,00 euros à casa de habitação e o valor de 48.000,00 euros à parcela de terreno, a pagar da seguinte forma:
a) Como sinal e princípio de pagamento a quantia de 5.000,00 euros;
b) A restante quantia no valor de 143.000,00 euros seria paga em 120 prestações iguais e sucessivas no montante de €1.192,00 cada, vencendo-se a primeira no final do mês da março de 2005 e as restantes no final de cada um dos meses subsequentes, sendo todas importâncias entregues a título de sinal e princípio de pagamento (cfr. cláusulas 2ª e 3ª do contrato promessa – Doc. nº 1).
3º No contrato-promessa ficou estipulado que a escritura de compra e venda seria celebrada até ao final do mês de abril de 2015, sendo da responsabilidade dos promitentes-compradores, ora RR., a sua marcação, obrigando-se estes, por carta registada, a notificar os AA., com a antecedência de 10 dias, do local, e data da respetiva celebração (cfr. cláusula sexta do doc. nº 1).
4º Os AA. autorizaram os RR. a ocupar os prédios identificados no artigo 1º na data da assinatura do contrato promessa, em 19/02/2005, obrigando-se os RR. a pagarem aos AA. as despesas com o prémio de seguro de incêndios e com a contribuição autárquica (cfr., clausula 8ª do contrato-promessa).
5º Mais ficou estipulado que todos os outorgantes, no seu interesse, dispensavam o reconhecimento notarial das respetivas assinaturas, renunciando à invocação da nulidade do contrato por falta de tal reconhecimento (cfr., cláusula 9ª).
6º Também foi estipulado que o contrato ficava sujeito ao regime estabelecido no artigo 442º do Código Civil (cfr., cláusula 10ª do doc. nº 1).
7º Para pagamento do preço acordado, os RR., até junho de 2014, de entregaram aos AA., a importância de €92.000,00.
8º Como os RR. deixaram de cumprir mensalmente os pagamentos e não mais contactaram os AA. para cumprirem os pagamentos em atraso e para a realização da escritura
9º Por carta datada de 20/11/2014, dirigida aos RR. e por eles recebida em 24/11/2014, o mandatário dos AA., comunicou-lhes para procederem ao pagamento das prestações em atraso para pagamento da casa de habitação e da parcela de terreno urbano (cfr. carta, talão de aceitação e aviso de receção que se juntam como docs. nºs 6, 7 e 8).
10º Porém, os RR. não mais procederam ao pagamento das quantias em dívida nem contactaram os AA. para a realização da escritura de compra e venda.
11º Assim, os AA., em 20/04/2015, através do seu mandatário, enviaram uma carta aos RR. comunicando-lhes que deveriam comparecer no Cartório Notarial de y (...) em 24 de Abril de 2015, pelas 09:00 horas para outorgarem a escritura de compra e venda dos prédios urbanos, situados na x (...) , freguesia de y (...) ( z (...) ), concelho de y (...) , inscritos na respetiva matriz sob os artigos 1.851 e 4.844, bem como até ao dia 23/04/2015 levarem ao referido Cartório Notarial cópias dos documentos de identificação, números fiscais e documento comprovativo do pagamento do IMT (cfr. carta e talão de aceitação que se juntam como docs. nºs 9 e 10).
12º No dia 24/04/2015, pelas 9:00 horas, os AA. compareceram no Cartório Notarial de y (...) para procederem à venda aos RR. dos dois prédios urbanos, sitos no lugar de x (...) , freguesia de y (...) ( z (...) ), concelho de y (...) , inscritos na respectiva matriz sob os artigos 1.851 e 4.844 (cfr., Declaração do Cartório Notarial de y (...) que se junta como doc. nº 11 e cujo integral teor aqui se dá por reproduzido).
13º Os AA. apresentaram no referido Cartório Notarial toda a documentação necessária para a outorga da escritura, a saber, duas cadernetas prediais urbanas e duas certidões prediais permanentes online (cfr. doc. nº 11).
14º A escritura de compra e venda não foi outorgada por falta de comparência dos RR. compradores e pelo facto de estes não terem procedido à liquidação do IMT e do imposto do selo devidos pela aquisição (cfr. doc. nº 11).
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1. Se se verifica um incumprimento definitivo por parte dos promitentes-compradores.
 Antes de mais, haverá que referir subscrevermos a orientação dominante na doutrina[1] e na jurisprudência[2], de que, também no contrato promessa, por regra, só o incumprimento definitivo justifica a resolução do contrato e a exigência do sinal em dobro (ou a perda do sinal, se o incumprimento for do promitente-comprador).
Quando a prestação for ainda possível, a situação de mora poderá converter-se em incumprimento definitivo, nas seguintes situações:
a) quando, em consequência da mora, o credor perder o interesse na prestação, perda de interesse a apreciar objetivamente;
b) quando o devedor em mora não realizar a prestação dentro do prazo que razoavelmente lhe for fixado pelo credor;
c) quando o devedor declara, de forma expressa ou tácita, que não cumprirá ou não quer cumprir.
O incumprimento referir-se-á diretamente ao incumprimento da obrigação principal, que, no caso do contrato promessa se traduz na celebração da escritura definitiva – mediante a emissão da declaração negocial correspondente ao contrato prometido.
“Se as partes nada tiverem convencionado, o regime sancionatório legalmente previsto para o sinal só tem aplicabilidade quando a obrigação incumprida for aquela ou aquelas (ou uma daquelas, se o contrato for bilateral) que constitui a relação obrigacional principal e tipificadora do contrato[3]”.
“Os deveres principais de prestação constituídos através de um contrato promessa concretizam-se em obrigações de contratar: a promitente-compradora tem, como dever principal de prestação, a obrigação de comprar – de outorgar no contrato definitivo como compradora –; a promitente-vendedora tem, como dever principal de prestação, a obrigação de vender – de outorgar o contrato definitivo como vendedora[4]”.
Contudo, e uma vez que só a conclusão válida e eficaz do contrato prometido satisfará o interesse do credor, ao comportamento debitório principal encontrar-se-ão incindivelmente ligadas condutas debitórias acessórias, positivas e negativas e instrumentais da sua realização: a conservação do bem no estado em que se prometeu vender, o levantamento de um ónus ou encargo sobre ele incidente, a obtenção de documentos com vista à marcação da escritura, etc.
Ou seja, no contrato promessa, para além da obrigação principal de celebrar o contrato final poderão emergir várias outras obrigações secundárias, levantando-se a questão de qual o regime a aplicar no caso de incumprimento de alguma delas.
De entre as obrigações secundárias, a doutrina e a jurisprudência costumam distinguir entre:
a) os deveres acessórios da prestação, que se destinam a preparar o cumprimento ou a assegurar a perfeita execução da prestação principal;
b) deveres secundários com obrigação autónoma.
Por sua vez, Antunes Varela distingue ainda uma terceira subespécie, ao lado dos deveres primários e secundários de prestação, que são os deveres acessórios de conduta, “que, não interessando diretamente à prestação principal, nem dando origem a qualquer ação autónoma de cumprimento (cfr., arts. 817º e ss.), são todavia essenciais ao correto processamento da relação obrigacional em que a prestação se integra[5]”.
No seu entender, para além de muitos dos deveres acessórios de conduta, inerentes às mais variadas obrigações, se encontrarem dispersos pelo Código Civil e pela legislação avulsa[6], os deveres acessórios de conduta estão hoje genericamente consagrados, na área das obrigações, através do principio geral do art. 762º, segundo o qual “no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa-fé[7]”.
Também Mota Pinto reconhece esta terceira espécie de deveres, denominados de “deveres laterais”, “de comportamento ou de conduta”, “deveres de confiança ou de proteção”[8] – estes deveres, contrariamente aos deveres acessórios, não autónomos da obrigação principal (ex. dever de guardar a coisa, de a embalar, transportar, etc.), não tendem a realizar aquela principal prestação, mas a tutelar outros interesses da contraparte, abrangidos no fim visado com a relação contratual[9].
A natureza dos deveres violados, a gravidade da violação e a influência da mesma na realização do fim contratual, ditarão o respetivo regime.
Os deveres secundários, quando acessórios da obrigação principal não têm autonomia em relação ao dever principal de prestação nem atuam sobre ele, encontrando-se exclusivamente dirigidos à realização do interesse no crédito (interesse no cumprimento), constituindo-se como meros acessórios do dever primário de prestação[10].
Assim, segundo Ana Prata, se o dever incumprido for acessório ou instrumental do cumprimento da obrigação principal, os seus feitos são tipicamente absorvidos e consumidos pelo não cumprimento que ele provoca na obrigação principal[11].
Ou seja, a violação de um dever acessório da prestação principal, por se refletir diretamente no incumprimento da obrigação de contratar, podendo gerar a mora ou o incumprimento definitivo da obrigação principal, poderá acarretar a resolução do negócio.
Já a violação de um dever secundário com prestação autónoma não acarretará, por regra, a mora da obrigação principal, nem justificará, por maioria de razão, a resolução do negócio (embora possa gerar a obrigação de indemnizar, pelos prejuízos emergentes)[12].
Como afirma Ana Sá, qualquer incumprimento de uma das várias obrigações que possam emergir do contrato promessa além da obrigação principal de celebrar o contrato final desencadeia a aplicabilidade do respetivo regime geral pertinente: “o que está excluído é que o inadimplemento de uma obrigação secundária que não se reflita no incumprimento da obrigação de concluir o contrato principal desencadeie a aplicabilidade dos instrumentos de tutela desta ultima obrigação[13]”.
Assim, segundo tal autora, “para determinar os efeitos de um qualquer incumprimento, questão essencial é, desde logo, qualificar a obrigação secundária não cumprida em função da obrigação principal, isto é, determinar a autonomia ou instrumentalidade dessa obrigação relativamente à obrigação de contratar que constitui a obrigação principal[14]”.
E, segundo Mota Pinto, a violação culposa dos deveres laterais, implicando responsabilidade civil com fundamento em violação do contrato (art. 798º), podem dar à contraparte, sob certas circunstâncias, o direito de resolução, tal como se se tratasse do não cumprimento culposo do dever de prestação[15].
“Na medida em que tal violação de deveres constitui uma violação contratual positiva que ponha em perigo o fim do contrato, considerando todas as circunstâncias do caso, segundo a boa-fé, não pode ser exigida ao outro contraente a continuação do contrato e a execução das obrigações que lhe cabem, pode este recusar o cumprimento e pedir indemnização por perdas e danos pelo interesse positivo ou resolver o contrato[16]”.
Retomando o caso em apreço, temos que os promitentes-compradores, deixando, a partir de junho de 2015, de proceder ao pagamento das prestações mensais acordadas, não tendo comparecido no Cartório na data designada pelos autores, nem tendo, eles próprios, marcado a escritura até finais do mês de abril de 2015, em conformidade com o acordado, incorreram em mora.
Quanto à falta de pagamento das restantes prestações nas datas acordadas – prestação secundária –, não constituiria impedimento à celebração da escritura respeitante ao contrato definitivo, bastando para tal que, no ato da escritura, os réus se munissem do valor em falta para o pagamento total do preço acordado.
Quanto ao incumprimento da obrigação secundária (com evidentes reflexos na obrigação principal, respeitante à emissão da vontade respeitante à celebração do negócio prometido) de marcação da data da escritura (marcação esta que se encontrava a seu cargo), a mora na respetiva marcação teria de ter sido convertida em incumprimento definitivo.
Defende a apelante que converteu a mora em incumprimento definitivo através da notificação admonitória, “que se verificou in casu”.
Não explicitam, contudo, os Apelantes qual o comportamento que da sua parte pode ser qualificado como “notificação admonitória”.
Com efeito, da matéria de facto dada como provada temos apenas duas notificações:
- a notificação que os AA. enviaram aos réus através da carta datada de 24.11.2014, através da qual lhes peticionavam a quantia de 51.063,00 €, proveniente de prestações em atraso, advertindo-os de que deveriam proceder ao pagamento daquela quantia no prazo de oito dias, caso contrário “instaurarei de imediato e sem mais qualquer aviso, a respetiva ação judicial para o obter o referido pagamento, despesas e juros ou a restituição imediata dos prédios urbanos” (doc. nº6 junto com a P.I.);
- uma nova carta, comunicando-lhes que deveriam comparecer no Cartório no dia 24 de Abril de 2015, para outorgarem a escritura de compra e venda dos prédios urbanos prometidos vender (notificação esta, aparentemente sem qualquer cominação).
A denominada “interpelação admonitória” consiste na concessão de um prazo suplementar razoável ao devedor, com a advertência de que, caso não cumpra, se considerará definitivamente incumprida a obrigação (artigo 808º, nº1).
Ou seja, incorrendo o devedor em mora, a lei atribui ao credor a faculdade de fixar ao devedor um prazo suplementar razoável – mas perentório – dentro do qual se deverá verificar o cumprimento, sob pena de resolução automática do negócio.
A interpelação admonitória deve conter três elementos:
a) intimação para o cumprimento;
b) fixação de um termo perentório;
c) admonição ou cominação (declaração admonitória) de que a obrigação se terá por definitivamente não cumprida se não se verificar o cumprimento dentro daquele prazo.
No caso em apreço, desde logo, a notificação enviada pelos AA. a 24-11-2014, reporta-se, não à obrigação principal decorrente do contrato promessa (de emissão da declaração respeitante ao contrato prometido), mas à obrigação de pagamento das prestações acordadas por conta do respetivo preço.
Por isso mesmo, a cominação aí prevista respeita, não ao destino do contrato promessa, mas, tão só, à obrigação secundária que já então se encontrava em mora (ao contrário da obrigação principal, relativamente à qual ainda não havia sido ultrapassado o prazo previsto). E na cominação aí anunciada também não há qualquer referência ao incumprimento definitivo do contrato promessa e à intenção de o resolver – a cominação consistia, tão só, na ameaça de instauração de uma ação judicial para pagamento dos valores em dívida. Aliás, nem era esta a intenção dos promitentes vendedores, de tal modo que, alguns meses após tal carta, e apesar de os promitentes compradores não terem ainda procedido ao pagamento dos valores em atraso, notificaram-nos para a realização da escritura. Ou seja, mesmo na ótica dos promitentes vendedores, o negócio continuou de pé após o decurso do prazo por si fixado para pagamento das prestações em atraso.
João Batista Machado adverte[17] não valer para o efeito a interpelação em que o credor se limite a ameaçar o devedor com uma compra de cobertura ou o convide a declarar-se pronto a cumprir dentro do prazo fixado. Também não é suficiente para o efeito em causa a declaração pela qual o credor se reserve o direito de resolver o contrato, na hipótese de ele não ser cumprido dentro do novo prazo. Com efeito, através da fixação de um prazo perentório, via-se uma clarificação definitiva de posições.
E, ao contrário do alegado pelos Apelantes nas suas alegações de recurso, a sentença recorrida não coloca os apelantes “numa situação definitivamente vinculada a um negócio em que a parte contrária se encontra em mora e sem dele se poderem desvincular”. Os Apelantes poderão sempre, e ainda agora, conceder um prazo razoável aos promitentes-compradores para que cumpram, marcando a data da escritura e procedendo ao pagamento das prestações em falta, sob pena de resolução do contrato.

A apelação será de improceder.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordando os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a suportar pelos Apelantes.              

                                                                Coimbra, 27 de fevereiro de 2018

Maria João Areias ( Relatora )

Alberto Ruço

Vítor Amaral


V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.
1. A violação de um dever secundário com prestação autónoma não acarretará, por regra, a mora da obrigação principal, nem justificará, por maioria de razão, a resolução do negócio.
2. A interpelação admonitória (art. 808º CC) pressupõe a concessão de um prazo suplementar razoável ao devedor, dentro do qual se deverá verificar o cumprimento, sob a cominação expressa da resolução automática do negócio.


[1] Cfr., entre outros, João Calvão da Silva, “Sinal e Contrato Promessa”, 11ª ed., Almedina 2006, pág. 123 a 128, e “Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória”, 4ª ed., pag. 299, Ana Prata, “O Contrato Promessa e o se Regime Civil”, Almedina, pp. 780-781, Manuel Januário da Costa Gomes, “Em Tema de Contrato Promessa”, 6ª reimpressão, p. 27, nota 4, e pp. 48 e 49, José Carlos Brandão Proença, “Do Incumprimento do Contrato-Promessa Bilateral, A Dualidade Execução Específica – Resolução”, Separata do número especial do BFDC – Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. António Ferrer Correia, 1984, Coimbra 1987., p. 115, e 117 a 1126, em especial, pp. 125, e 154 e 155.
[2] Cfr., entre muitos outros, Acórdãos do STJ de 03.10.2010, de 28.06.2011, relatados por Moreira Alves, e de 12.11.2009, relatado por Garcia Calejo, 06.10.2011, relatado por Lopes do Rego, e 06.07.2011, relatado por Granja da Fonseca, disponíveis in http://www.dgsi.pt.jstj.
[3] Ana Prata, obra citada, p. 777.
[4] Cfr., Nuno Manuel Pinto Oliveira, “Promessa de Contrato, Promessa de Sinal e Resolução”, anotação ao Ac. do TRC de 12.02.2008, in Cadernos de Direito Privado, nº 25, Janeiro/Março 2009, p. 45.
[5] Cfr., “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, 9ª ed., Almedina, p. 126.
[6] Como ex. de tais deveres acessórios de conduta, Antunes Varela aponta: o dever do depositário de dar conhecimento da privação ao depositante (art. 1188º, nº1, do CC), e o dever do locatário de “avisar imediatamente o locador, sempre que tenha conhecimento de vícios da coisa, ou saiba que a ameaça algum perigo ou que terceiros se arrogam em relação a ela, desde que o facto seja ignorado pelo locador” (al. h), do art. 1038º do CC). No seu entender, trata-se de um dever de que não respeita diretamente, nem à preparação nem à perfeita (correta) realização da prestação debitória (principal), mas que interessa ao regular desenvolvimento da relação locatícia, nos termos em que ela deve processar-se entre contraentes que agem honestamente e de boa-fé nas suas relações recíprocas – obra citada, pp. 126-127.
[7] Obra citada, pp. 128-129.
[8] Compreendendo deveres de informação (sobre as qualidades, o uso da coisa, etc.), de notificação (p. ex., do sinistrado no seguro, do arrendatário na locação), de consideração e de deferência, de custódia e conservação, de cuidado para com a pessoa (p. ex., condições de segurança do trabalhador), de colaboração com a contraparte para lhe evitar possíveis prejuízos, como o manejo de uma arma de fogo que se vende.
[9] “Cessão da Posição Contratual”, Colecção Teses, Almedina, 1982, pp. 264-265.
[10] Neste sentido, Mota Pinto, “Cessão da Posição Contratual”, p. 337.
[11] Cfr., “O Contrato Promessa e o seu Regime Civil”, Almedina, Agosto 2001, pag. 657.
[12] Cfr., neste sentido, Acórdão do STJ de 09.03.2010, relatado por Moreira Alves, disponível in http://www.dgsi.pt/jstj.
[13] Obra citada, p. 655.
[14] Obra citada, pp. 656.
[15] “Cessão da Posição Contratual”, pp. 341 e 342.
[16] Mota Pinto, obra citada, pp. 269, nota (2).
[17] “Pressupostos da Resolução por Incumprimento”, in João Batista Machado, Obra Dispersa, scientia ivridica Braga – 1991, p. 165.