Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5972/10.4YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: MANDATO
REPRESENTAÇÃO
MANDATO SEM REPRESENTAÇÃO
SOCIEDADE DE ADVOGADOS
Data do Acordão: 03/24/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CASTELO BRANCO - INSTÂNCIA LOCAL - SECÇÃO CÍVEL - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 1180.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I. A par do mandato representativo -aquele em que coexistem o mandato e a procuração, nascendo para o mandatário o dever de celebrar o acto, não só por conta do mandante, mas também em nome dele- a lei admite o mandato sem representação (mandato nomine proprio), caso em que o mandatário é parte no contrato que celebra, cabendo-lhe depois, na execução do contrato de mandato, transferir para a esfera jurídica do mandante os direitos adquiridos.
II. Se a ré, sociedade de advogados, na execução do mandato, celebra com terceiros contrato de prestação de serviços, aos quais dá apenas a conhecer que o trabalho cuja realização é solicitada se destina a uma cliente, actua por conta da mandante, mas já não em nome desta.

III. No caso, rege o disposto no art.º 1180.º do Código Civil, ficando a sociedade ré obrigada ao pagamento do preço.

Decisão Texto Integral:

I. Relatório

C(...) , Lda., sediada na Avenida (...) em Castelo Branco, veio instaurar contra J(...) - Sociedade de Advogados, RL procedimento injuntivo, tendo em vista a condenação da requerida no pagamento da quantia de €6 557,03 (seis mil, quinhentos e cinquenta e sete euros e três cêntimos), sendo € 5263,50 a dívida de capital, €992.53 de juros vencidos, €250,00 a título de "outras quantias" e €51,00 de taxa de justiça paga, mais reclamando os juros vincendos, computados à taxa em vigor para as dívidas de natureza comercial.

Em fundamento alegou, em síntese, que no exercício da sua actividade, prestou à ré, a solicitação desta, os serviços discriminados na factura que junta, emitida em 12/12/2007, que a demandada não pagou apesar para tanto ter sido interpelada.

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Citada, a requerida deduziu oposição, peça na qual impugnou ter celebrado, em nome próprio, qualquer contrato com a requerente, na data indicada ou em qualquer outra. Alegou ser uma sociedade de advogados, qualidade na qual exerce poderes de representação dos seus clientes munindo-se, para o efeito, da necessária procuração forense, sendo certo, porém, que nem na aludida qualidade celebrou com a requerente qualquer contrato de prestação de serviços na referida data de 12/12/2007.

Mais esclareceu que no exercício da sua actividade de advocacia aceitou patrocinar, em 14/9/99, M(...) , mandato celebrado para a regularização matricial e cadastral de cinco prédios a esta pertencentes, entre os quais o prédio rústico denominado “ (...) ”, para cuja regularização foi necessário proceder a um levantamento topográfico. Para o efeito contactou efectivamente a requerente, a qual apresentou uma proposta em 23/7/2003, que a contestante, após ter submetido à apresentação da sua cliente, aceitou em representação desta, conforme claramente deu a conhecer à demandante.

Afirmou ainda desconhecer se os serviços em causa foram ou não pagos pela sua identificada cliente, que deles foi a única beneficiária. Deste modo, porque o contrato foi celebrado entre a referida M (...) e a aqui autora, tendo a contestante intervindo apenas como procuradora desta última, nenhuma obrigação assumiu, impondo-se a sua absolvição.

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Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, com observância do legal formalismo que da acta consta, vindo no seu termo a ser proferida sentença que, na parcial procedência do pedido, condenou a ré a pagar à autora “a quantia de € 5.263,50 (cinco mil duzentos e sessenta e três euros e cinquenta cêntimos) acrescida de devidos juros de mora legais, calculados com base nas taxas legais referentes às operações comerciais, desde a data do vencimento da factura, nos termos conjugados dos art.ºs 806.º, n.º2, do CC, 102.º, parágrafo 3.º do Código Comercial, na redacção que lhe foi dado pelo DL. 32/2003, de 17 de Fevereiro, e ao abrigo dos art.ºs1º e 3º da Portaria n.º1105/2004, de 16/10, e 597/2005 de 19 de Julho, com os correspondentes avisos da DGT, até integral e efectivo pagamento”, no mais se absolvendo.

Inconformada, apelou a ré e, tendo apresentado alegações, rematou-as com as seguintes conclusões:

“1ª – Vem o presente recurso interposto da decisão do Tribunal “a quo” que julgou a acção parcialmente procedente, condenando a Requerida a pagar à Requerente a quantia de 5 263,50 € acrescida dos devidos juros de mora legais.

2.ª – Não pode a Recorrente, de todo, conformar-se com a referida Decisão, atenta a prova produzida em sede de audiência de julgamento e o teor dos documentos juntos aos autos, pois crê-se que a Decisão recorrida não procedeu à melhor apreciação da prova produzida. Assim, o presente recurso tem por objecto a reapreciação da prova gravada, nos termos dos artigos 638.º, n.º 7 e 640.º do CPC;

3.ª – Ao contrário do decidido na douta Sentença, deveria ter sido dado como provado o facto “A Requerida tivesse deixado claro junto da Requerente que o serviço a prestar teria como benefici (...) e a ela devia ser facturado”.

4.ª – A prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento e a prova documental constante dos autos, designadamente fls. 56/57, permitia ao Tribunal a quo e permite ao Tribunal ad quem concluir que a Recorrente contratou com a Recorrida por conta e em nome da sua representada, tendo aquela conhecimento de que a beneficiária do serviço era a Sra. M (...) e que era esta quem iria efectuar o pagamento do respectivo preço.

5.ª – Assim, ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 1 al. a e b) do CPC impõe-se ao Tribunal ad quem proceder à alteração da matéria de facto dada como não provada passando a constar como provado que “A Requerida deixou claro junto da Requerente que o serviço a prestar teria como benefici (...) e a ela devia ser facturado”.

6.ª – O Tribunal a quo concluiu erroneamente que a Recorrente não logrou provar que a empreitada foi celebrada em nome da sua representada.

7.ª – Não foi valorado o depoimento da testemunha G(...) , nem apresentada qualquer justificação para a sua não consideração, no que concerne à identificação da mandante da Recorrente junto da ora Recorrida, o que configura uma omissão de pronúncia.

8.ª – Ao contrário do referido na douta Sentença, consta do documento de fls. 56/57 a seguinte inscrição: “M (...) ”, com domicílio profissional na “ (...) Lisboa”.

9.ª – O julgamento da matéria de facto alicerça-se no princípio da livre apreciação da prova sustentado por critérios racionais e objectivos, em juízos de ilações e inferências razoáveis e que deve conduzir a um juízo positivo de prova.

10.ª – Pelo que, o Tribunal “a quo” apreciou erroneamente o documento junto aos autos a fls. 56/57, pois dele resulta de forma inequívoca quem é o titular inscrito do prédio rústico a que se reporta tal documento.

11.ª – Salvo o devido respeito, a errada apreciação do documento não permitiu ao Tribunal a quo dar como provado o único quesito não provado.

12.ª – Da análise desse documento e da valoração do testemunho do G(...) permitia ao Tribunal a quo e permite ao Tribunal ad quem dar o facto como provado.

13.ª – Confrontando a procuração e o documento de fls. 56/57, impunha-se conclusão diversa da retirada pelo Tribunal “o quo”, tendo incorrido este num erro de julgamento.

14.ª – Nos presentes autos, não foi questionada a nenhuma testemunha a exibição ou não da procuração à Requerente, não sendo lícito retirar a ilação de que só com a exibição de tal documento o mandatário age por conta do mandante.

15.ª – A Requerente sabia que a Recorrente actuava em nome da sua representada, não necessitando da exibição de qualquer procuração para o saber, dado que lhe foi fornecido em reunião no escritório da Recorrente todos os elementos necessários sobre a identificação da mandante e do local onde deveria efectuar o serviço, bem como a quem teria de o facturar, atendendo que esperou pelo aval desta ao orçamento que elaborou.

16.ª – A Recorrente não só interveio por conta e no interesse da mandante (M (...) ), como a ora Recorrida sabia que aquela lhe apareceu revestida na qualidade de representação da sua cliente pois que, nenhum acto praticado pela Recorrente, foi tido pela Requerente como sendo praticado em nome próprio daquela.

17.ª – Nunca a Recorrente omitiu a existência da sua mandante à Requerente, bem pelo contrário, e nem a identificação da mandante da Recorrente foi, por esta, subtraída à Requerente.

18.ª – Os negócios jurídicos celebrados pelo mandatário por conta e em nome do mandante repercutem-se na esfera jurídica deste último, não sendo por isso a ora Recorrente responsável por a sua mandante/cliente não ter (ainda) procedido ao pagamento do serviço contratado com a Recorrida. O certo é que tal incumprimento não pode ser imputado à ora Recorrente.

19.ª – Ao decidir como decidiu o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 258º, 396.º e 1178º do Código Civil e o n.º 4 do artigo 607.º, o n.º 1 in fine do artigo 513.º, as alíneas b) e d) do artigo 662.º do Código Processo Civil, devendo pelo exposto o Tribunal ad quem alterar a decisão proferida, substituindo por outra que absolva a ora Recorrente do pedido,

20.ª – Assim como deverá ser decidido o pedido constante do requerimento com a referência CITIUS 6180634”.

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A apelada não contra alegou.

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Assente que o objecto do recurso se define e delimita em função das conclusões, as questões submetidas pela recorrente à apreciação deste Tribunal são:

i. modificação da matéria de facto, em ordem a ser dado como provado o facto nuclear, único que a Mm.ª juiz “a quo” deu como não provado, da requerida ter deixado claro junto da Requerente que o serviço a prestar teria como beneficiária e a ela devia ser facturado;

ii.  por via dessa modificação, considerar-se ter a apelante actuado em representação da sua cliente, sendo aplicável quanto dispõe o art.º 258.º do CC, ex vi do disposto no art.º 1178.º do mesmo diploma legal, devendo por isso ser absolvida do pedido;

iii. apreciar a conduta processual da apelada e, nessa medida, condená-la como litigante de má-fé (pedido que foi objecto do requerimento com a Ref. Citius 6180634 a que alude a apelante na sua 20.ª e derradeira conclusão).

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I. da impugnação da matéria de facto

Invoca a apelante ter ocorrido erro de julgamento porquanto, ao ter dado como não provado que a mesma recorrente deixou claro perante a requerente/apelada que o serviço teria como beneficiáriae a esta devia ser facturado -facto que, diversamente, pretende seja dado como inteiramente demonstrado- desconsiderou a Mm.ª juiz, indevida e injustificadamente, os testemunhos prestados por F (...) , O (...) e, essencialmente, G(...) , nas passagens que identificou e transcreveu (tendo este último depoimento sido mesmo totalmente ignorado, sendo certo que se tratava de testemunha com conhecimento privilegiado), conjugados com o documento de fls. 56/57, em cuja análise incorreu o Tribunal em evidente lapso.

Quanto à matéria objecto da impugnação, a convicção do Tribunal foi alcançada, tal como consta da respectiva motivação, pela valoração, essencialmente, “[d]a factura constante dos autos a fls. 44, declarações de parte da sócia gerente da Autora, A (...) , F (...) , funcionária da Requerente, O (...) , funcionária da Requerida, e G(...) , advogado que à data procedeu ao contacto com a C (...) , L.da para efeitos do serviço em causa e que se encontrava à época a prestar serviço para a requerida.

Na verdade, das declarações de todas as pessoas inquiridas foi possível extrair um denominador comum, e que se prende com o facto de que nunca ninguém da Requerente estabeleceu qualquer contacto com a cliente da Requerida, M (...) . Tudo havia sido tratado entre o advogado G(...) e a C (...) , Lda. sendo que o primeiro, por sua vez, fazia a “ponte” entre esta e a cliente da sociedade de advogados.

Veja-se que, não obstante a sociedade de advogados, aqui requerida, possuir uma procuração passada a seu favor para representar a cliente M (...) (cf. fls. 32), datada de 14 de Setembro de 1999, o certo é que tal procuração nunca foi exibida à Requerente.

Mais, a Requerida não logrou demonstrar que a identificação da cliente foi fornecida à Requerente a fim de esta proceder à facturação em seu nome.

Na verdade, o Tribunal não pôde atribuir qualquer crédito ao depoimento da testemunha O (...) , que afirmou ter sido fornecida tal identificação à requerida, pois tal foi desmentido categoricamente, quer pela sócia-gerente, quer pela funcionária da Requerente F (...) , as quais, de modo sério e espontâneo, afirmaram nunca ter visto a cliente em causa, nem sequer saber o seu nome. Ademais, a testemunha em causa referiu ainda que, quanto mais não fosse, foi fornecida à Requerente cópia da caderneta predial do prédio cujo levantamento foi requerido, constando no mesmo a identificação da cliente. No entanto, conforme decorre à saciedade do compulso da tal caderneta constante dos autos a fls. 56/57, nada consta nesse sentido; pelo contrário, o prédio figura averbado em outro nome que não a cliente que a Ré alega que se encontrava a representar.

Dessa forma, não foi possível ao Tribunal dar a factualidade vertida em a) como demonstrada”.

Pois bem, começando pelo fim, não é rigoroso que da caderneta em poder da requerente não constasse a identificação da cliente da requerida e reconhecidamente (com)proprietária do prédio cujo levantamento topográfico foi solicitado à primeira. Com efeito, ali consta dactilografado e perfeitamente legível o nome de M (...) , que corresponde efectivamente à identidade da cliente da agora apelante, indicando-se como morada (...) em Lisboa. Todavia, do teor do documento em causa não decorre mais do que isso e, designadamente, que tivesse sido dado conhecimento à recorrida que esta pessoa em concreto fosse a cliente da apelante e a ela devesse ser facturado o trabalho solicitado. Pelo contrário, dos depoimentos produzidos em audiência e cuja reprodução foi integralmente escutada, apesar deste Colectivo se ter convencido que a autora tinha conhecimento que o trabalho solicitado se destinava a uma cliente da ré, convenceu-se igualmente que não lhe foram fornecidos os elementos de identificação desta e ainda que, face à conduta assumida por esta sua cliente, foi pela apelante dada ordem para que a factura fosse emitida em seu nome. Vejamos das razões de tal convencimento:

Não subsistiu dúvida, dada a convergência de todos os depoimentos, que a ré usava recorrer aos serviços da autora quando tinha necessidade de trabalhos da especialidade (topografia e projectos), sendo as facturas emitidas em conformidade com as instruções da própria, ocorrendo a emissão quer em nome da sociedade, quer em nome dos clientes desta aos quais se destinavam.

Resultou igualmente demonstrado que a autora era invariavelmente contactada pela ré, não chegando a conhecer, na maior parte dos casos, os clientes desta última, tudo assentando na relação de confiança que se estabelecera entre os legais representantes da C (...) , Lda. e o sócio da JMA, RL, Sr. Dr. J JM(...) , infelizmente, e ao que resultou da prova produzida, entretanto falecido. E no que respeita ao caso dos autos, mais uma vez assim aconteceu, conforme referiram de forma concordante a sócia gerente da autora, A (...) , e a testemunha Dr. G(...) , colaborador da ré entre Maio de 2002 e final do ano de 2006, tendo-lhe sido distribuído o processo da D.ª M (...) .

Declarou a referida testemunha que, após análise do processo, chegou à conclusão de que, no que respeita ao prédio a que se reporta a factura, a regularização da sua situação cadastral e registral demandava a prévia realização de um levantamento topográfico. Do facto deu conhecimento ao referido Sr. Dr. JM(...) , tendo este referido que para esse tipo de trabalhos contava com os serviços da aqui autora e que entraria em contacto com os seus legais representantes, pessoas com as quais, tanto quanto a testemunha se apercebeu, mantinha uma relação de confiança e até de amizade, o que, de resto, foi confirmado pela sua sócia gerente A (...) . Aludiu ainda à realização de uma reunião mantida nos escritórios da ré, na qual estiveram presentes, para além do próprio e do Dr. JM(...) , ambos os sócios gerentes da autora, aos quais foi solicitada a apresentação de uma proposta escrita, a fim de ser submetida à apreciação da cliente, o que veio a ocorrer. Mais esclareceu ter sido o próprio a enviar a proposta à cliente M (...) a qual, não obstante tê-la aprovado, nunca chegou a confirmar por escrito essa aceitação, conforme lhe havia sido solicitado. Na sequência da aprovação por banda da cliente, a testemunha, conforme declarou, contactou a autora dando ordem para a realização do trabalho, o qual, passados alguns meses, lhe viria a ser entregue no escritório pela funcionária da C (...) , L.da, a testemunha F (...) , o que a mesma confirmou.

Confirmou por último que depois disso foi contactado diversas vezes pela autora, indagando se a cliente já havia enviado o dinheiro, o que nunca aconteceu, pelo menos até ter permanecido ao serviço da ré, isto apesar da própria testemunha ter contactado a dita Sr.ª M (...) , inclusivamente através de carta (documentos que vieram a ser juntos aos autos na sequência de prévia autorização por banda da AO), lembrando que o levantamento fora feito e precisava de ser pago. Acrescentou que face à insistência da autora chegou a sugerir que fosse esta a contactar directamente a cliente, caso acreditasse que assim seria mais fácil obter o pagamento, reconhecendo no entanto que nunca lhe foram solicitados os contactos desta última para esse efeito, nem tão pouco tomou a iniciativa de os facultar, isto apesar de reafirmar ter “dado autorização para entrarem [a C (...) ] em contacto directo com a senhora”.

Não subsistiu assim dúvida quanto à circunstância, reconhecida pela legal representante da autora, do trabalho se destinar a uma cliente do escritório, o que era do prévio conhecimento daquela. Todavia, conforme também afirmou e foi confirmado pelos depoimentos das demais testemunhas inquiridas, nunca a autora manteve com a dita cliente qualquer contacto.

E assim se tendo passado as coisas até à realização do trabalho e sua entrega à ré, e sendo uso da autora, nas relações que com aquela estabelecera, facturar logo após, foi pela testemunha F (...) efectuado contacto telefónico a perguntar, conforme era hábito, a quem deveria facturar, tendo-lhe sido solicitado que aguardasse. E assim fez a autora até que, decorridos anos -e aqui são concordantes os depoimentos da legal representante da autora e da sua funcionária administrativa, não tendo suscitado qualquer reserva, dada a espontaneidade das declarações e sua referenciação por apelo a um facto de ambas conhecido-, tendo-se o Dr. JM(...) deslocado ao escritório da C (...) , Lda. por ocasião da aquisição de uma nova fotocopiadora, com a finalidade de a ver trabalhar (e esta visita é, também ela, perfeitamente natural, se atentarmos nas boas relações que uniam a autora à ré, personalizadas naquele sócio, e o interesse num equipamento comummente usado em ambos os escritórios), foi-lhe recordada pela A (...) a existência do referido trabalho ainda por facturar, ao que aquele terá respondido “então facture-me a mim, já não quero ouvir falar mais disso”.

O descrito episódio foi também presenciado pela testemunha F (...) , que o narrou em termos em tudo idênticos, embora na reprodução daquelas que terão sido as palavras do falecido Dr. JM(...) , tenha referido “façam a factura e enviem”.

Ora, apesar das declarações da gerente da autora e da sua funcionária administrativa não serem coincidentes quanto às palavras exactas então proferidas pelo legal representante da ré, tendo em consideração que, tal como aquela última sublinhou, não foram facultados a identidade da cliente, seu n.º de contribuinte e morada, elementos indispensáveis à emissão da factura e que, nos casos em que a mesma devia ser emitida em nome do cliente eram invariavelmente fornecidos pela ré, não poderia deixar de ser entendido, tal como foi, que mesmo na formulação mais curta, o “Façam a factura e enviem” respeitava à sociedade ré. De resto, e tal como salientou a mesma testemunha, a verdade é que, recebida a factura nos escritórios da agora apelante, não foi devolvida, nem esta acusou qualquer erro na respectiva emissão com fundamento no facto de dever ter sido emitida em nome da cliente.

E eis-nos chegados ao testemunho prestado por O (...) , assistente administrativa na ré desde 1996 ou 1997.

A primeira nota que a audição do depoimento prestado impõe é a constatação de que estamos perante uma testemunha cheia de certezas, perdendo-se a conta às vezes que afirmou ser óbvio quanto declarava. Aliás, significativo o seu intróito, logo tendo declarado saber ao que vinha, estando ali “por causa de uma dívida que nos é pedida e que entendemos não ser da nossa responsabilidade” (sic).

Relatou a testemunha ter sido solicitada uma proposta à autora com a finalidade de a submeter à aprovação prévia da cliente “porque se tratava de um trabalho com custos enormes”, cliente que deu a sua anuência, na sequência do que foi mandado executar. Acentuou sempre a ideia de que nós [a ré] somos “mandatários dos clientes”, “meros intermediários”, reconhecendo embora que chegou a acontecer trabalhos destinados a clientes serem facturados e pagos pela apelante, que depois recebia dos clientes.

Invocou ainda a demora na emissão da factura para daí extrair um argumento no sentido da mesma não dever ter sido emitida em nome da ré, pois quando assim ocorria as facturas eram emitidas logo a seguir à execução do trabalho. Todavia, tal facto não se afigura relevante, uma vez que, tal como haviam explicado a legal representante da autora e a testemunha F (...) , sendo as facturas emitidas em conformidade com as instruções que recebiam da ré e tendo-lhes sido pedido neste caso concreto que aguardassem, assim fizeram naturalmente. Aliás, compaginando tais depoimentos com o teor das cartas que o colaborador da ré, a testemunha Dr. G(...) , foi remetendo à cliente ao longo dos tempos, percebe-se que tenha sido solicitado à autora que aguardasse, tentando garantir o pagamento pela referida M (...) , atendendo ao elevado montante em causa.

A referida testemunha O (...) afirmou ainda, a instâncias da Il. Mandatária da ré, que “obviamente”, haviam sido fornecidos todos os elementos relativos à cliente, e isto porque sem eles a autora não teria sequer os elementos necessários para se deslocar ao prédio e fazer o trabalho. Todavia, logo de seguida, reconhecendo ter recebido vários telefonemas por parte da legal representante da autora a propósito da facturação deste trabalho, referiu não ter a certeza de lhe terem sido solicitados os elementos da cliente, embora “a terem sido pedidos concerteza que foram dados”, acrescentando ter conhecimento de que a autora “tentou o pagamento junto da D.ª M (...) e, como não conseguiu, em desespero facturou à autora”.

Em relação ao assim afirmado, o mínimo que se pode dizer é que não obteve a menor confirmação. Com efeito, e conforme se referiu já, o Dr. G(...) , que tinha a seu cargo o processo daquela cliente em concreto, apesar de ter autorizado a autora a com ela contactar directamente, não tinha memória de lhe terem sido solicitados os contactos ou de, por sua iniciativa, os ter fornecido. A própria testemunha O (...) , senhora de muitas certezas, quanto a este específico aspecto não as tinha, e do elemento que reconhecidamente se encontrava em poder da autora, a saber, a cópia da caderneta predial, dela constando embora o nome da referida senhora (sobre um outro, riscado), sabemos, pelo mero confronto da morada que ali constava com aquela para a qual foram pela ré enviadas as diversas cartas, que aquele não seria o endereço actual. Não tendo assim sido feita prova de que a autora tivesse conhecimento do endereço ou números de contacto da cliente da ré -aliás, em bom rigor, nem foi feita prova de que a autora tivesse preciso conhecimento da identidade da mesma, não bastando para tanto que tivesse em seu poder uma caderneta com determinado nome- fica sem qualquer sustentação a referida afirmação da testemunha O (...) que, de resto, não indicou a fonte de tal conhecimento.

Afirmou ainda a testemunha ter sido a própria a fornecer à autora a identidade da cliente, acrescentando mais à frente, habilmente, ter dado os elementos da M (...) “através das fotocópias da caderneta, com a indicação de que era a nossa cliente”. Ora, sabemos pelo testemunho do Dr. G(...) , que por ocasião da reunião havida no escritório da ré com os legais representantes da autora ainda antes da realização do trabalho, foi logo na altura providenciada a cópia da caderneta, não se percebendo por que razão já depois do trabalho ter sido executado a testemunha O (...) iria fornecer de novo tal emento. De resto, e conforme se fez notar, para além da identidade da cliente, nome aposto por cima de um outro riscado, nada mais se ficava a saber pela análise do dito documento.

Por último, e relevantemente, se a testemunha Dr. G(...) não chegou ela a fornecer os contactos da cliente, não se vê como o faria a testemunha O (...) de moto próprio e sem que lhe tivesse sido dada ordem nesse sentido, sendo certo que à eventual existência de tais instruções não fez qualquer referência.

Todavia, forneceu a testemunha uma informação que auxilia a compreender a conduta do referido sócio da ré, Sr. Dr. J JM(...) , quando mandou executar o trabalho face a uma proposta de valor bastante elevado sem usar da precaução de obter provisões da cliente. Conforme a dita O (...) referiu -facto a que também a testemunha G(...) aludira- aquele sócio da apelante e a dita Sr.ª M (...) eram conhecidos, naturais da mesma terra, (...) , tendo o primeiro expressado por diversas vezes ter confiança em que a cliente pagaria, dado que seria até detentora de muitos bens. Não surpreende por isso que, face à omissão da cliente e decorridos anos sobre a execução do trabalho, tenha dado ordem à legal representante da autora para que o trabalho fosse finalmente facturado à própria ré.

Atento o que vem de se dizer, nenhuma censura merece a decisão de facto proferida pelo Tribunal “a quo”, que se mantém sem alteração.

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II. Fundamentação

De facto

São os seguintes os factos a considerar:

1. A autora dedica-se à realização de projectos e levantamentos topográficos;

2. A Ré é uma sociedade de advogados que pratica actos próprios do exercício da actividade de advocacia;

3. A Ré, no ano de 2003, contactou a Autora a fim de solicitar um orçamento relativo a um serviço de levantamento de áreas numa propriedade sita em (...) ;

4. A Autora apresentou a proposta do que cobraria pelo aludido serviço, in casu, €30,00 (trinta euros) por cada um dos 140 hectares de que era constituída a propriedade em causa a que se alude em 3);

5. Tal serviço fora requerido à Ré pela sua cliente M (...) , que aceitou a proposta apresentada pela Autora;

6. Após esta aceitação pela cliente, a Ré solicitou a realização do aludido serviço à Autora;

7. A autora tinha conhecimento de que o serviço se destinava a uma cliente da ré.

8. O referido serviço foi prestado em data não concretamente apurada do ano de 2003;

9. O serviço foi facturado em nome da Requerida a 12 de Dezembro de 2007, com data de vencimento a 11.01.2008 no montante de € 5.263,50 (cinco mil duzentos e sessenta e três euros e cinquenta cêntimos);

10. O serviço prestado pela Autora não foi pago, quer pela Requerida, quer pela sua cliente.

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De Direito

Da actuação em nome da mandante.

Atenta a factualidade assente nos autos não suscita particulares dificuldades a qualificação do contrato aqui em causa como de prestação de serviços, nos termos do qual a autora se obrigou a proporcionar um certo resultado do seu trabalho, neste caso intelectual, mediante o pagamento de uma retribuição que, para além do mais, foi previamente acordada (cf. art.º 1154.º do Código Civil)[1].

Indiscutido nos autos ainda o facto de a autora ter cumprido o acordo celebrado, realizando a prestação a que se vinculara, donde ser-lhe devido o preço respectivo.

Pretende no entanto a ré apelante que, tendo actuado no cumprimento de contrato de mandado celebrado com uma sua cliente, a quem se destinou o serviço que pela autora foi prestado, conforme era do conhecimento desta, a obrigação de pagamento do preço recai sobre a mandante. Vejamos da razão que lhe assiste (ou não).

Da factualidade apurada emerge que, efectivamente, e no exercício da sua actividade de advocacia, a apelante foi mandatada por M (...) para proceder à regularização da situação cadastral e registral de determinados prédios, dos quais seria titular (ou contitular) do direito de propriedade. E foi no âmbito e em cumprimento desse mandato que a apelante celebrou com a autora o aludido contrato de prestação de serviços, sendo certo ainda que, conforme também se apurou, a apelada tinha conhecimento de que o serviço que lhe fora solicitado e que se obrigou a prestar se destinava a uma cliente da ré. Todavia, e tal como se considerou na sentença apelada, tal factualidade não é suficiente para que se considere ter sido o contrato celebrado entre a autora e a mandante.

Nos termos do art.º 1178.º, disposição legal que a recorrente pretende ver aplicada, “Se o mandatário for representante por ter recebido poderes para agir em nome do mandante, é também aplicável ao mandato o disposto nos artigos 258.º e seguintes” (vide n.º 1). E logo dispõe o n.º 2 que “O mandatário a quem hajam sido conferidos poderes de representação tem o dever de agir não só por conta, mas em nome do mandante, a não ser que outra coisa tenha sido estipulada”.

O mandato, conforme resulta do art.º 1157.º, é o contrato pelo qual uma das partes, o mandatário, se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta de outrem, o mandante. Essencial ao contrato é a celebração de um acto jurídico por conta do mandante, já não em nome deste.

Resulta assim dos termos conjugados das referidas disposições legais que, a par do mandato representativo -aquele em que coexistem o mandato e a procuração, nascendo para o mandatário o dever de celebrar o acto, não só por conta do mandante, mas também em nome dele- a lei admite o mandato sem representação (mandato nomine proprio), caso em que o mandatário é parte no contrato que celebra, cabendo-lhe depois, na execução do contrato de mandato, transferir para a esfera jurídica do mandante os direitos adquiridos.

Revertendo ao caso dos autos, não há dúvida que entre a ré e a dita M (...) foi celebrado contrato de mandato, no âmbito do qual a apelante se obrigou a praticar os actos jurídicos necessários à regularização dos prédios, incluindo pois a celebração de um contrato de prestação de serviço tendo em vista a realização do levantamento topográfico do prédio denominado “ (...) ”, sito em (...) , necessário àquele fim. E tratou-se também de um mandato representativo, posto que a dita cliente outorgou procuração, conferindo à ré os poderes para tanto necessários. Todavia, daqui não decorre necessariamente que esta última, ao celebrar com a autora o sobredito contrato de prestação de serviços, tendo actuado efectivamente por conta da mandante, o tenha feito também em nome desta. Aliás, em rigor, nem sequer se apurou que a ré tenha dado conhecimento à autora da existência da dita procuração e, consequentemente, dos poderes representativos que lhe haviam sido conferidos, pelo que, sendo a apelante conhecedora da existência do mandato, não o era necessariamente -nem isso se provou- da procuração.

Preceitua o art.º 1180.º, convocado na sentença apelada, que “O mandatário, se agir em nome próprio, adquire os direitos e assume as obrigações decorrentes dos actos que celebra, embora o mandato seja conhecidos dos terceiros que participem nos actos ou sejam destinatários destes.” (é nosso o destaque).

No mandato sem representação o mandatário apresenta-se e age em nome próprio, actuando no interesse ou por conta do mandante não surge como seu representante e, por isso, ingressam na sua esfera jurídica os direitos e obrigações decorrentes dos actos e negócios jurídicos que celebra.

No caso que nos ocupa, e face ao acervo factual assente nos autos, tendo resultado apurado que a autora apelada tinha conhecimento da existência de uma cliente, à qual se destinaria o levantamento topográfico que se obrigou a executar, a verdade é que já não logrou a ré fazer prova de que contratou com aquela citando os poderes de representação que lhe haviam sido conferidos pela M (...) e nas vestes de sua representante, de modo a ficar claro que o contrato com esta última estava a ser celebrado. Pelo contrário, foi a apelante quem se apresentou a solicitar a proposta (a qual, de resto, foi emitida em nome do seu colaborador a quem o processo em causa fora distribuído), foi a apelante que a aceitou (ainda que precedendo tal acto da prévia aprovação da cliente), foi à apelante que o levantamento topográfico solicitado foi entregue depois de executado e, finalmente, foi em nome desta que foi emitida a pertinente factura (segundo as instruções da própria apelada, conforme se apurou).

À luz de tal factualidade impõe-se considerar que a ré celebrou o contrato em seu nome, pelo que os efeitos jurídicos daí decorrentes se produziram na sua esfera jurídica. Daí que, tendo recebido da autora a prestação a que esta se havia vinculado, ficou obrigada a pagar o preço respectivo (cf. art.ºs 1154.º e 1180.º).

Nestes termos, improcedendo todos os argumentos recursivos, e remetendo quanto ao mais para a sentença apelada, é a mesma de manter.

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iii. da má-fé

Pretende a apelante que, tendo actuado de má-fé, deverá a autora como tal ser sancionada.

Dispõe o art.º 542.º do NCPC (reproduzindo o anterior art.º 456.º) que, tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir (vide n.º 1).

Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave, tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não podia ignorar, alterando a verdade dos factos ou omitindo fatos relevantes para a decisão da causa (cf. als. a) e b) do n.º 2).

O instituto visa reprimir e sancionar comportamentos processuais que, correspondendo a um incumprimento doloso ou gravemente negligente dos deveres de cooperação e de boa-fé processual a que as partes estão sujeitas -deveres que se encontravam previstos nos art.ºs 266º e 266º-A do anterior C.P.C. e que se encontram actualmente consagrados art.ºs 7º e 8º-, é censurável por atentar contra o respeito devido aos Tribunais e prejudicar a acção da justiça.

Pois bem, no caso dos autos não se vê, nem a apelante o especifica, no que é que a autora terá violado os assinalados deveres. Na verdade, e nada obstando a que a parte vencedora possa incorrer em comportamentos susceptíveis de sanção, tal não se verifica no caso em apreço, não se vislumbrando que a apelada tenha vindo a juízo invocar inverdades ou tenha feito do processo uso indevido. Daí que não haja lugar à sua condenação.

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III. Decisão

Em face a todo o exposto, acordam os juízes da 1.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso interposto pela ré J (...) - Sociedade de Advogados, RL, mantendo em consequência a sentença apelada.

Custas pela apelante.

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Maria Domingas Simões (Relator)
Nunes Ribeiro
Helder Almeida

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[1] Diploma a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem.