Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1577/10.8TBPBL-F.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: INSOLVÊNCIA
PLANO DE INSOLVÊNCIA
CRÉDITO FISCAL
PERDÃO
Data do Acordão: 01/17/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: POMBAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.196 CIRE, 30 LGT, 125 DA LEI Nº 55-A/2010 DE 31/12, 112 CRP
Sumário: 1 – Quando estão em causa processos de insolvência, a procura de um sentido normativo para os textos legais constantes do n.º 2 e do n.º 3 do artigo 30.º da Lei Geral Tributária, na redacção introduzida pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, (Orçamento de Estado para 2011), conjugados ainda com o disposto no artigo 125.º da mesma lei, equivalem a este conteúdo: «O crédito tributário é indisponível…»; esta norma «prevalece sobre qualquer legislação especial», designadamente sobre a relativa aos «… processos de insolvência …».

2 – Esta interpretação implica que se considerem inaplicáveis as normas em vigor constantes de leis especiais, incluindo as previstas no CIRE, onde se previa a possibilidade de ocorrer uma situação de perdão ou redução de créditos tributários.

3 – As referidas normas não enfermam de inconstitucionalidade por violação do princípio geral da igualdade vinculativa entre leis e decretos-leis proclamada no n.º 2 do artigo 112.º da Constituição.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2.ª secção cível):

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Recorrente………………….Instituto de Solidariedade e Segurança Social.

Recorridos……………….….J (…), S. A., e Outros, devidamente identificados nos autos.


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I. Relatório.

a) O presente recurso respeita à decisão tomada na sentença que homologou o plano de insolvência relativo à sociedade J (…), S. A.», no sentido de ter admitido o perdão previsto no plano quanto aos juros de mora, no montante de €12 214,83 euros, reclamados e devidos à Segurança Social.

O Instituto de Solidariedade e Segurança Social discorda por entender que o plano não podia ter previsto tal perdão.

Baseia esta posição no teor da norma constante do n.º 3 do artigo 30.º da Lei Geral Tributária, na redacção introduzida pelo artigo 125.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, norma esta que previu mesmo a aplicação imediata aos processos de insolvência que se encontrassem pendentes e ainda não tivessem sido objecto de homologação.

Esta norma não permite a disponibilidade dos créditos públicos, sendo certo que tal perdão não se mostra imprescindível para a viabilização da empresa insolvente, nem há garantias que acautelem o plano prestacional proposto no plano.

Daí que se pretenda a revogação da sentença.

b) A insolvente contra-alegou sustentando, em síntese, que o artigo 196.º, n.º1, al. a) e c) do Código da Insolvência e da Recuperação da Empresas (doravante designado apenas por CIRE) confere ao plano de insolvência o poder de perdoar ou reduzir todos os créditos privilegiados e comuns, incluindo os do Estado, prevalecendo esta norma sobre as normas de natureza fiscal.

Cita jurisprudência neste sentido, que considera que as normas indicadas pelo recorrente apenas se aplicam no domínio das relações tributárias, isto é, nas relações entre a administração tributária e os contribuintes e já não no âmbito do concurso de credores desencadeado nos processos de insolvência em que existindo incapacidade para pagar todos os créditos e vigorando o princípio de igualdade entre os credores, o Estado não pode obter um tratamento privilegiado em relação aos demais credores do insolvente e recair sobre estes todo o esforço de recuperação da entidade insolvente.

Sustenta ainda que a alteração introduzida através do aditamento do n.º 3 ao artigo 30.º da Lei Geral Tributária, pelo artigo 125.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, enferma de inconstitucionalidade, por violação do n.º 2 do artigo 112.º da Constituição da República Portuguesa, por existir igualdade em termos de valor vinculativo entre as leis e os decretos-lei, não podendo esta lei impor-se ao CIRE no âmbito dos próprios processos judiciais de insolvência.

Acrescenta que a Lei Geral Tributária é uma lei especial que disciplina apenas o ordenamento tributário e não é liquida a intenção do legislador, pois se tivesse pretendido a solução preconizada pelo recorrente teria alterado também os artigos 97.º e 196.º do CIRE que extinguem os privilégios creditórios do Estado e da Segurança Social e permitem a redução e modificação de créditos.

Assim, as normas da Lei Geral Tributária, bem como do Código do Processo e Procedimento Tributário e do Decreto-Lei n.º 411/91 de 17 de Outubro, apenas se aplicam às relações tributárias propriamente ditas, mas não aos processos de insolvência.

Concluiu, pela improcedência do recurso.

II. Objecto do recurso.

O objecto do recurso consiste, por conseguinte, em saber se a norma constante do n.º 3 do artigo 30.º da Lei Geral Tributária, resultante da redacção introduzida pelo n.º 3 do artigo 125.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, impede que nos processos de insolvência o plano de insolvência preveja a redução ou perdão de juros de mora reclamados e devidos à Segurança Social.

Sendo a resposta afirmativa, cumpre em segundo lugar verificar se esta norma enferma de inconstitucionalidade, por violação do n.º 2 do artigo 112.º da Constituição da República Portuguesa.

III. Fundamentação.

a) Matéria de facto.

1 – No plano se insolvência exarou-se o seguinte:

«4.1.4 – Créditos Privilegiados Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social.

Plano de Regularização:

Pagamento do crédito reclamado e reconhecido, em 36 prestações mensais, iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira no último dia do mês seguinte àquele em que se verifique a sentença de homologação do plano de insolvência, com perdão da totalidade dos juros vencidos e vincendos.

4.2 – Créditos Comuns

4.2.1 – Fornecedores e outros credores.

Plano de regularização:

Pagamento de 40% do capital em dívida, perdão dos restantes 60%, em 32 prestações trimestrais, crescentes e sucessivas, vencendo-se a primeira no último dia útil do trimestre seguinte àquele em que se verifique a aprovação do plano de insolvência na assembleia respectiva, com perdão de 60% do capital e da totalidade dos juros vencidos e vincendos».

2 – Este Plano foi homologado por sentença proferida em 4 de Julho de 2011.

b) Apreciação das questões objecto do recurso.

1- Antes de prosseguir cumpre verificar se as dívidas por contribuições à segurança social assumem a natureza de dívidas tributárias às quais se aplica a Lei Geral Tributária.

No seguimento do disposto no n.º 1 do artigo 63.º da Constituição da República, onde se proclama que «Todos têm direito à segurança social» e se acrescenta, no seu n.º 2, que «Incumbe ao Estado organizar e subsidiar…» este sistema, a Lei n.º 4/2007, de 16 de Janeiro (Bases Gerais do Sistema de Segurança Social), estabelece, nas alíneas a) e b) do seu artigo 92.º, que constituem fontes de financiamento do sistema: «a) As quotizações dos trabalhadores; b) As contribuições das entidades empregadoras;…».

Por outro lado, no n.º 1 desta lei determina-se que «O orçamento da segurança social é apresentado pelo Governo e aprovado pela Assembleia da República como parte integrante do Orçamento do Estado».

O mesmo vem referido na al. b) do artigo 1.º da Lei n.º 91/2001, de 20 de Agosto, que estabelece as normas relativas ao enquadramento orçamental do Estado (A Lei n.º 52/2011, de 13 de Outubro, constitui a sexta e mais recente alteração a esta lei, a qual procedeu à respectiva republicação), na qual se refere que a presente lei estabelece «b) As regras e os procedimentos relativos à organização, elaboração, apresentação, discussão, votação, alteração e execução do Orçamento do Estado, incluindo o da segurança social, e a correspondente fiscalização e responsabilidade orçamental».

Verifica-se, por conseguinte, que as contas da Segurança Social estão integradas no Orçamento de Estado e que uma das formas de financiamento das despesas da segurança social é feita através das «quotizações dos trabalhadores» e das «contribuições das entidades empregadoras».

Ora, estas obrigações são impostas coactivamente aos trabalhadores e entidades patronais e, por isso assumem a natureza de tributos pagos ao Estado.

Como refere Nuno de Sá Gomes, «…podemos definir tributo como a “prestação patrimonial definitiva estabelecida por lei, em sentido lato, a favor de uma entidade que tem a seu cargo o exercício de funções públicas, para satisfação de fins públicos, que não constituam sanção de actos ilícitos e não depende de vínculos anteriores», sendo o imposto uma espécie do género «tributo» ([1]).

Embora não seja entendimento pacífico, as contribuições para a segurança social assumem uma natureza mista de imposto e de prémios de seguro de direito público. Com efeito, na parte paga pelas entidades patronais, o tributo é pago sem que estas aufiram qualquer contrapartida, pelo que não estamos perante uma taxa, nem sequer um prémio de seguro de direito público, pois a entidade patronal não auferirá qualquer benefício, pelo que as quantias pagas obrigatoriamente pelas entidades patronais têm as características de verdadeiros impostos. As contribuições pagas pelos trabalhadores não poderão também ser rotuladas de taxas, porque não há bilateralidade entre o pagamento pelo trabalhador e qualquer prestação feita pelo Estado a este, podendo dar-se o caso de haver «…trabalhadores que, tendo pago as contribuições, por não se verificarem os pressupostos aleatórios que legitimam os benefícios, não tenham direito a qualquer prestação», mas estas «…serão verdadeiros prémios de seguro de direito público, atendo o carácter aleatório do benefício auferido, como contrapartida das quantias pagas» ([2]).

Independentemente da qualificação jurídica mais ou menos adequada para este tipo de contribuições, não há dúvida que são contribuições impostas coactivamente por lei, com a finalidade de financiar o direito à segurança social, que constitui um direito constitucional, pelo que se afigura indubitável que constituem uma espécie do género «tributo».

Sendo assim, caem seguramente no âmbito do n.º 2, parte final, do artigo 3.º da LGT, onde se efectua uma classificação dos tributos, nestes termos:

«1 - Os tributos podem ser:

a) Fiscais e parafiscais;

b) Estaduais, regionais e locais.

2 - Os tributos compreendem os impostos, incluindo os aduaneiros e especiais, e outras espécies tributárias criadas por lei, designadamente as taxas e demais contribuições financeiras a favor de entidades públicas.

3 - O regime geral das taxas e das contribuições financeiras referidas no número anterior consta de lei especial».

2 – Vejamos agora se a norma constante do n.º 3 do artigo 30.º da Lei Geral Tributária, resultante da redacção introduzida pelo n.º 3 do artigo 125.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, impede que nos processos de insolvência o plano de insolvência preveja a redução ou perdão de juros de mora reclamados e devidos à Segurança Social.

O artigo 30.º da Lei Geral Tributária, à data da publicação da Lei do Orçamento de Estado para 2011 – Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro –, tinha (e tem) a seguinte redacção, com a epigrafe «Objecto da relação jurídica tributária»:

«1 - Integram a relação jurídica tributária:

a) O crédito e a dívida tributários;

b) O direito a prestações acessórias de qualquer natureza e o correspondente dever ou sujeição;

c) O direito à dedução, reembolso ou restituição do imposto;

d) O direito a juros compensatórios;

e) O direito a juros indemnizatórios.

2 - O crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária.

O artigo 123.º da Lei do Orçamento de Estado para 2011, sob a epígrafe «Alteração à lei geral tributária», veio dispor:

«Os artigos 18.º, 23.º, 30.º, 62.º, 63.º-A e 63.º -B da lei geral tributária, aprovada pelo Decreto -Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro, abreviadamente designada por LGT, passam a ter a seguinte redacção: …».

No que respeita ao artigo 30.º desta lei foi acrescentado um n.º 3, como este teor: «O disposto no número anterior prevalece sobre qualquer legislação especial».

Por sua vez, o artigo 125.º da A Lei do Orçamento de Estado para 2011, no seu artigo 125.º, com a epígrafe «Disposições transitórias no âmbito da LGT», veio determinar o seguinte:

«O disposto no n.º 3 do artigo 30.º da LGT é aplicável, designadamente aos processos de insolvência que se encontrem pendentes e ainda não tenham sido objecto de homologação, sem prejuízo da prevalência dos privilégios creditórios dos trabalhadores previstos no Código do Trabalho sobre quaisquer outros créditos».

Face a este conjunto de normas afigura-se que presentemente não é possível no processo de insolvência reduzir quaisquer créditos da segurança social.

Chega-se a tal conclusão, porém, após algum trabalho de interpretação que implica efectuar uma interpretação correctiva, restringindo o alcance dos preceitos por forma a dar um sentido útil ao que parece não ter sentido.

Vejamos então.

a) O n.º 2 do artigo 30.º da LGT contém a seguinte regra geral: o crédito tributário é indisponível.

Mas logo acrescenta uma excepção: podem ocorrer casos de redução ou mesmo extinção se for respeitado (1) o princípio da igualdade tributária e (2) o princípio da legalidade tributária.

Por igualdade tributária entende-se a não discriminação em matéria de impostos o que implica a generalidade do imposto, isto é, a obrigação de todos contribuírem para os encargos públicos segundo os seus haveres; por legalidade tributária entende-se a reserva de lei em matéria tributária ([3]).

No artigo 8.º da LGT estabelecem-se o alcance da legalidade tributária nestes termos:

«1 - Estão sujeitos ao princípio da legalidade tributária a incidência, a taxa, os benefícios fiscais, as garantias dos contribuintes, a definição dos crimes fiscais e o regime geral das contra-ordenações fiscais.

2 - Estão ainda sujeitos ao princípio da legalidade tributária:

a) A liquidação e cobrança dos tributos, incluindo os prazos de prescrição e caducidade;

b) A regulamentação das figuras da substituição e responsabilidade tributárias;

c) A definição das obrigações acessórias;

d) A definição das sanções fiscais sem natureza criminal;

e) As regras de procedimento e processo tributário».

Verifica-se que esta norma não contemple a «redução ou extinção» de créditos tributários.

Porém, quando no n.º 2 do artigo 30.º se refere que só podendo fixar-se condições para a redução ou extinção dos créditos tributários com respeito pelo princípio da legalidade tributária, está a determinar que esta «redução e extinção» só são possíveis se decretados por lei, com carácter, portanto, geral e abstracto, o que implica a impossibilidade da administração tributária decidir pontualmente a redução ou extinção destes créditos em casos concretos.

Conclui-se, pois, que esta norma do o n.º 2 do artigo 30.º determina que a redução ou extinção do crédito tributário só é possível se prevista na lei, logo com carácter de generalidade.

b) Há normas do CIRE que prevêem a possibilidade de redução dos créditos tributários, cumprindo verificar se respeitam o princípio da legalidade e igualdade tributária.

O artigo 196.º do CIRE prevê o seguinte (escreve-se em itálico a parte que importa assinalar):

1 - O plano de insolvência pode, nomeadamente, conter as seguintes providências com incidência no passivo do devedor:

a) O perdão ou redução do valor dos créditos sobre a insolvência, quer quanto ao capital, quer quanto aos juros, com ou sem cláusula ‘salvo regresso de melhor fortuna’;

b) O condicionamento do reembolso de todos os créditos ou de parte deles às disponibilidades do devedor;

c) A modificação dos prazos de vencimento ou das taxas de juro dos créditos;

d) A constituição de garantias;

e) A cessão de bens aos credores.

2 - O plano de insolvência não pode afectar as garantias reais e os privilégios creditórios gerais acessórios de créditos detidos pelo Banco Central Europeu, por bancos centrais de um Estado membro da União Europeia e por participantes num sistema de pagamentos tal como definido pela alínea a) do artigo 2.º da Directiva n.º 98/26/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de Maio, ou equiparável, em decorrência do funcionamento desse sistema».

Por outro lado, é sabido que o CIRE prevê entre os credores e créditos tributários do insolvente os credores Estado e instituições de Segurança Social.

É disso exemplo o n.º 5 do artigo 66.º do CIRE, sob a epígrafe «Nomeação da comissão de credores pelo juiz», ao dispor que «O Estado e as instituições de segurança social só podem ser nomeados para a presidência da comissão de credores desde que se encontre nos autos despacho, do membro do Governo com supervisão sobre as entidades em causa, a autorizar o exercício da função e a indicar o representante».

Ora, considerando que o CIRE prevê entre os credores e créditos do insolvente o Estado e instituições de Segurança Social e, por outro lado, prevê que o plano de insolvência possa conter providências como o perdão ou redução do valor dos créditos sobre a insolvência, então extrai-se a conclusão de que o CIRE contém normas legais (especiais em relação à LGT) que autorizam o perdão ou redução do valor dos créditos tributários quando tenham como devedores pessoas insolventes abrangidas por plano de insolvência.

Parece efectivamente claro que o legislador ao não excepcionar os créditos tributários da sujeição a perdão ou redução, se isso fosse proposto no plano de insolvência, quis colocar estes créditos no mesmo patamar em que se encontravam os créditos de outros credores do insolvente que, mesmo contra a sua vontade, também poderão ver os seus créditos perdoados ou reduzidos se isso resultasse do plano de insolvência.

Conclusão: sendo o CIRE uma lei da República, o perdão e a redução de créditos tributários aí previstos respeitam, em abstracto, a legalidade tributária, isto é, é a lei que autoriza a possibilidade de haver redução ou perdão de créditos nestes casos.

O mesmo se dirá quanto ao princípio igualdade, que postula tratar o igual de modo igual e o diferente de forma diferente de acordo com a medida da sua diferença, na medida em que esta norma do CIRE se aplicava a todas as pessoas que possam cair no estado de insolvência e no seu âmbito de aplicação.

c) Aceitando-se estas premissas, o novo n.º 3 do artigo 30.º da LGT, introduzido pela Lei do Orçamento de Estado para 2011, ao determinar que «O disposto no número anterior prevalece sobre qualquer legislação especial», parece não provocar qualquer tipo de implicação com as normas do CIRE.

Com efeito, embora o CIRE seja uma lei especial em relação ao corpo de normas fiscais da LGT, o certo é que o n.º 3 é uma disposição que vem apenas proteger a norma do n.º 2, nada acrescenta a esta, a qual já prevê uma situação de excepção, isto é, a possibilidade de perdão e redução de créditos tributários.

Sendo assim, podemos retirar destes textos duas interpretações possíveis.

Uma – No sentido de que (1.º) «O crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária» e (2.º) que esta norma «prevalece sobre qualquer legislação especial», o que equivale a dizer que a situação de excepção antes prevista no n.º 2, prevalece sobre qualquer lei especial.

Mas esta interpretação parece não conduzir a qualquer sentido, pois é o mesmo que dizer que a regra e a excepção à regra antes previstas prevalecem sobre qualquer lei especial.

Ou seja, a lei especial que se pretende tornar inoperacional no n.º 3 é viabilizada pelo n.º 2.

Não faz sentido.

Outra – No sentido de que (1.º) «O crédito tributário é indisponível…» e (2.º) que esta norma «prevalece sobre qualquer legislação especial», o que equivale a dizer que ficam abolidas todas as normas em vigor onde se preveja uma situação de perdão ou redução de créditos tributários.

Mas esta interpretação só é possível se cancelarmos o segmento do n.º 2 onde se diz «… só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária».

Feito este percurso interpretativo, pode concluir-se que de acordo com a primeira interpretação atrás indicada o CIRE respeita a norma do n.º 2 do artigo 30.º da LGT, pois como o n.º 3 deste artigo se limita a tutelar a situação prevista no anterior n.º 2, então este n.º 3, como se disse, não interfere com a aplicação ao CIRE, sendo certo, como se disse, que tal interpretação carece de sentido.

Porém, deparamo-nos de seguida com a norma do artigo 125.º da Lei do Orçamento de Estado para 2011 onde se diz que o «…n.º 3 do artigo 30.º da LGT é aplicável, designadamente aos processos de insolvência que se encontrem pendentes e ainda não tenham sido objecto de homologação, sem prejuízo da prevalência dos privilégios creditórios dos trabalhadores previstos no Código do Trabalho sobre quaisquer outros créditos».

Esta norma contém dois elementos que nos permitem situar na área jurídica visada por ela: «processos de insolvência» e «objecto de homologação».

Verificamos assim que o n.º 3 do artigo 30.º se dirige «designadamente» aos processos de insolvência e, por outro, que este n.º 3 tem conexões com a «homologação» de algo.

Ora, ao lidar com os conceitos de «redução ou perdão de créditos» e de «homologação», o legislador só pôde ter querido dizer que estava a referir-se ao plano de insolvência a que aludem os artigos 192.º, 195.º e 196.º do CIRE.

Pode, pois, descortinar-se que o legislador pretendeu com esta alteração legislativa intervir sobre os processos de insolvência e especificamente sobre planos de insolvência que incidam sobre redução ou perdão de créditos tributários.

Sendo esta a intenção do legislador, então a interpretação que faz sentido é a indicada em segundo lugar, que desactiva a segunda parte do n.º 2 do artigo 30.º da LGT, isto é, «… só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária», ficando então as normas dos n.º 2 e 3 do artigo 30.º da LGT e o artigo 125.º da Lei do Orçamento de estado para 2011 com este sentido útil: «O crédito tributário é indisponível…» e esta norma «prevalece sobre qualquer legislação especial», designadamente sobre os «… processos de insolvência que se encontrem pendentes e ainda não tenham sido objecto de homologação…».

Esta leitura equivale a dizer que ficam abolidas todas as normas em vigor onde se preveja uma situação de perdão ou redução de créditos tributários, incluindo as previstas no CIRE.

Que dizer?

Afigura-se ser esta última a melhor interpretação entre as duas que se afiguram possíveis, pois é a que permite compreender a existência da norma transitória do artigo 125.º da Lei do Orçamento de Estado para 2011.

Ou seja, só se encontra sentido para esta norma se a interpretarmos como pretendendo declarar que não é mais possível qualquer redução ou perdão de créditos tributários no processo de insolvência por força da homologação judicial do plano de insolvência onde se prevê essa redução ou perdão de créditos.

Afigura-se, por conseguinte, ser esta a intenção do legislador.

 Porém, como se vem dizendo, esta interpretação tem de ser feita desactivando ou rasurando interpretativamente o segmento «… só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária», o que implica uma interpretação correctiva, de sentido restritivo, dos textos legais citados, nos termos da segunda interpretação indicada, restringindo o alcance deste segmento que, como se viu, obnubila a intenção do legislador.

Mas esta interpretação não significa que este segmento seja um texto morto, destituído de alcance normativo em todos os casos.

Significa apenas que para efeitos do processo de insolvência e outras normas que possam estar em vigor com sentido idêntico, este texto não faz sentido e, por isso, não se aplica.

Afigura-se, como se disse, ser esta a intenção do legislador, pelo que falece a argumentação da recorrida no sentido de que as normas da LGT, bem como do Código do Processo e Procedimento Tributário e do Decreto-Lei n.º 411/91, de 17 de Outubro, apenas se aplicam às relações tributárias propriamente ditas, mas não aos processos de insolvência.

Com efeito, como se acabou de referir, a norma do 125.º da Lei do Orçamento de Estado para 2011 é expressa na referência que faz aos processos de insolvência.

Conclusão:

Quando estão em causa processos de insolvência, a procura de um sentido normativo para os textos legais constantes do n.º 2 do artigo 30.º da Lei Geral Tributária e da norma constante do n.º 3 deste mesmo artigo, na redacção introduzida pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, conjugados ainda com o disposto no artigo 125.º da Lei do Orçamento de Estado para 2011, equivalem a este conteúdo normativo: «O crédito tributário é indisponível…»; esta norma «prevalece sobre qualquer legislação especial», designadamente sobre a relativa aos «… processos de insolvência …».

Esta interpretação implica que se considerem inaplicáveis as normas em vigor constantes de leis especiais, incluindo as previstas no CIRE, onde se previa a possibilidade de ocorrer uma situação de perdão ou redução de créditos tributários.

3 - Como a resposta à primeira questão foi afirmativa, cumpre agora verificar se esta norma enferma de inconstitucionalidade, por violação do n.º 2 do artigo 112.º da Constituição da República Portuguesa.

O recorrido sustenta que a alteração introduzida através do aditamento do n.º 3 ao artigo 30.º da Lei Geral Tributária, pelo artigo 125.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, enferma de inconstitucionalidade, por violação do n.º 2 do artigo 112.º da Constituição da República Portuguesa, por existir igualdade em termos de valor vinculativo entre as leis e os decretos-lei, não podendo esta lei impor-se ao CIRE no âmbito dos próprios processos judiciais de insolvência.

Não assiste razão à recorrida.

No n.º 2 do artigo 112.º da C.R.P. proclama-se que «As leis e os decretos-leis têm igual valor, sem prejuízo da subordinação às correspondentes leis dos decretos-leis publicados no uso de autorização legislativa e dos que desenvolvam as bases gerais dos regimes jurídicos».

O legislador é uma entidade única.

Havendo igualdade em termos de valor vinculativo entre as leis e os decretos-lei, como a recorrida afirma e corresponde à realidade, sem prejuízo dos casos de competência exclusiva da Assembleia da República, o princípio que vigora é o da sucessão das leis no tempo e nesta matéria o princípio diz que, sobre a regulamentação da mesma matéria, a lei posterior revoga a lei anterior.

É esta a disciplina constante do artigo 7.º, n.º 1 e 2 do Código Civil, que consagram um princípio geral do ordenamento jurídico, onde se determina, respectivamente, que «Quando se não destine a ter vigência temporária, a lei só deixa de vigorar se for revogada por outra lei» e que «A revogação pode resultar de declaração expressa, da incompatibilidade entre as novas disposições e as regras precedentes ou da circunstância de a nova lei regular toda a matéria da lei anterior».

4. Concluindo.

Face às conclusões a que se chegou, verifica-se que o recurso procede e que a decisão homologatória do plano de insolvência não pode manter-se, cumprindo revogá-la para ser elaborado novo plano que respeite a interpretação indicada, no sentido de que, presentemente, não é possível perdoar ou reduzir os créditos tributários.

IV. Decisão.

Considerando o exposto, julga-se o recurso procedente e revoga-se a decisão que homologou o plano, devendo providenciar-se pela elaboração de novo plano de acordo com a interpretação dos artigos 30.º, n.º 2 e 3 da LGT e 125.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro (Orçamento de Estado para 2011), que ficou exarada.

Custas pela massa insolvente.


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Alberto Ruço ( Relator )

Judite Pires

Carlos Gil



[1] Manual de Direito Fiscal, Vol. I, pág. 59. Editora Rei dos Livros, Lisboa, 1995.
[2] Nuno Sá Gomes, ob. cit., pág. 89.
[3] Neste sentido, Pedro Soares Martinez, Manual de Direito Fiscal, pág. 103, Coimbra, Almedina, 1983.