Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
24/12.5PEFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 10/23/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA FIGUEIRA DA FOZ
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: ALTERADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 18º, Nº 2 DA CRP E 3º, NºS 1 E 2, DO DEC. LEI Nº 2/98, DE 3 DE JANEIRO
Sumário: 1. - O crime de condução de veículo com motor sem habilitação legal, p. e p. pelo artº. 3º, nºs 1 e 2, do Dec. Lei nº 2/98, de 3 de Janeiro é um crime de perigo abstrato, que tutela o bem coletivo segurança rodoviária, e antecipa a tutela de e da antecipação da tutela de outros bens individuais, como a vida, a integridade física e a propriedade;

2. - Os elevadíssimos custos individuais e coletivos causados pela sinistralidade rodoviária portuguesa, que transformaram a circulação rodoviária num problema comunitário premente, constituem justificação razoável para a opção do legislador em incriminar o perigo e fomentar a tutela de bens fundamentais, qualificando a condução inabilitada como crime;

3. - A criminalização da condução inabilitada não constitui uma restrição ilegítima, por desnecessária, aos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente garantidos, não violando por isso, o artº. 18º, nº 2 da Lei Fundamental.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra
 
I. RELATÓRIO


No 1º Juízo do Tribunal Judicial da comarca da Figueira da Foz, o Ministério Público requereu o julgamento em processo comum, com intervenção do tribunal singular, do arguido A..., com os demais sinais nos autos, imputando-lhe a prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3º, nºs 1 e 2, do Dec. Lei nº 2/98, de 3 de Janeiro, com referência aos arts. 121º a 123º do C. da Estrada

Por sentença de 16 de Abril de 2013 foi o arguido condenado, pela prática do imputado crime, na pena de seis meses de prisão.
*
            Inconformado com a decisão, recorreu o arguido, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:
            “ (…).
            I – O digno Tribunal a quo apurou os seguintes factos, com maior relevo para a presente questão: Que «No dia 30 de Março de 2012, pelas 10H20 o arguido conduzia o veiculo ligeiro, modelo A 3 Golf, de cor cinzenta, de matrícula (...)AQ, na estrada Nacional 109, freguesia de Lavos, no sentido este/oeste, em direcção à localidade de Gala, Figueira da Foz».
II – Que o arguido não era titular de carta de condução que habilitasse a conduzir aquele veículo na via pública».
                III – Que o arguido «agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de conduzir tal veículo na via pública, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei».
IV – Que o arguido é uma pessoa a quem se não se conhecem indicadores dignos de registo, mantendo uma postura reserva, mas a quem se conhecem hábitos de trabalho que lhe permitem satisfazer as necessidades do seu agregado familiar.
V – Qualquer que seja a decisão, relativamente à apreciação que vier a ser feita às questões infra alegadas, bastariam estes factos supra enunciados, para tirar ilações relativamente ao ilícito criminal preenchido pela conduta do recorrente.
VI – Imposta ao venerando Tribunal ad quem, atentar, in casu para com a sempre eterna e recorrente questão da eventual inconstitucionalidade dos crimes de perigo abstrato.
VII – Recordando, se bem que seja possível descortinar um bem jurídico protegido por esta incriminação cuja determinação e precisão são constitucionalmente aceitáveis ao ponto de permitir esta restrição da liberdade – esse bem é, necessariamente, a segurança rodoviária –, aceitando-se ainda, de uma outra perspectiva, um grau razoável de antecipação de proteção de bens singulares – bens pessoais e o património –, a verdade é que falece a relação necessária entre a proteção ora referida e a incriminação em causa.
VIII – Os crimes de perigo abstrato, quando se apresentem como um «bem jurídico intermédio espiritualizado», ou de referente individual, admitem o fortalecimento da sua legitimidade democrática por poderem ser apreendidos como crimes de lesão desses bens intermédios.
IX – No entanto, a proibição de que aqui se trata devia estar remetida ao Direito de Mera ordenação Social porque o «substrato da valoração jurídica não é aqui constituído apenas pela conduta como tal, antes por esta acrescida de um elemento novo: a proibição legal».
X – Desta forma o ilícito em causa aparece como meramente formal, sem a preexistência de um bem jurídico-penal que apresente o referente axiológico jurídico-constitucional que permita a sua validade.
XI – Não deve ser esta a técnica de fundamentação de bens jurídicos protegidos em Direito penal pois, independentemente do acolhimento de bens de natureza mais ou menos precisa, de tutela mais ou menos antecipada, não é possível punir criminalmente alguém com base em raciocínios formais, meras lógicas de títulos ou autorizações administrativas, que apenas se entendem segundo critérios de ordenação social.
XII – A inconstitucionalidade material é a consequência desta apreciação, por aferição com o art.º 18.°, n.º 2 da CRP que exige um fundamento de valor essencial para permitir restrições de direitos, liberdades e garantias.
 XIII – Desta forma importará suscitar a questão da inconstitucionalidade do art.º 3.° n.º 1 e n.º 2 do DL n.º 2/98 de 3/2 com fundamento na sua inconstitucionalidade, ao abrigo do art.° 207.° da Constituição.
XIV – A questão de constitucionalidade que importará averiguar no presente processo consiste em apurar se existe um fundamento de valor essencial para se proceder à incriminação da condução sem habilitação legal – prevista no art.º 3.° n.º 2. do Decreto-Lei n.º 2/98 de 3 de janeiro – e, assim, tendo por parâmetro o n.º 2 do artigo 18,º da Constituição, proceder a uma constrição do direito do sujeito a julgamento criminal por aquele ilícito, sabido como é que, num Estado de direito democrático e social, o Direito Penal deverá ter um caráter fragmentário. cumprindo uma função de ultima ratio.
XV – Isto conduz a que é mister saber se o estatuído no art.º 3.°, n.º 2, do Decreto-Lei em causa viola o princípio da congruência ou da analogia substancial entre a ordem axiológica constitucional e a ordem legal dos bens jurídicos protegidos pelo direito penal.
XVI – Do exposto resulta que se haverá de concluir que a norma em apreço poderá não apresentar aquele mínimo de ressonância ética que expressa os valores da coletividade, consequentemente não se mostrando, ao desenhar como ilícito criminal a conduta nela tipificada. como desproporcionada, excessiva de uma justa medida e. por isso, se afigurando como incompatível com a dignidade humana o sancionamento criminal que leva a efeito.
XVII – A tal solução, salvo melhor entendimento. se deveria chegar quando se confronta a situação em apreço com aquela a que se reportam os casos em que somente é sancionado com uma contraordenação.
Sem prescindir
XVIII – A formulação de um juízo de prognose favorável, condição sine quo non para se poder suspender a execução de uma pena de prisão, deve decorrer das circunstâncias pessoais do arguido à data da comissão do ilícito (art. 50° do CP).
XIX – Reportando-se os antecedentes criminais do recorrente a factos ocorridos há mais de 10 anos, em relação à data dos factos em apreço nos autos, no entendimento deste não deveriam ter assumido a preponderância que assumiram para o juízo de prognose desfavorável que foi feito nos termos e para os efeitos do artigo 50° do CP.
XX – Assim sendo, somos de opinião que o quantum penal aplicado ao recorrente poderia e deveria ter sido suspenso na sua execução, ainda que essa suspensão fosse acompanhada de regime de prova (art. 53° e seg. do CP) e condicionando essa suspensão à condição de este em prazo a fixar juntar documento comprovativo aos autos de que concluiu com êxito o processo de aprendizagem que o habilitará a conduzir veículos.
XXI – In casu, também existiam as condições objectivas e subjectivas para que a pena aplicada fosse substituída por uma pena de prestação de trabalho a favor da comunidade (art. 58° do CP).
XXII – Acreditamos que é hora de experimentar na pessoa do recorrente uma reacção penal diversa, uma vez que se trata de alguém integrado familiar, social e profissionalmente e que o recorrente não deixaria de aproveitar a oportunidade que decorre da aplicação deste tipo de pena.
XXIII – Com a sentença proferida foi violado o disposto nos artigos 40°, 50° e 58º do CP.
Termos e fundamentos, conjuntamente com os mais com que mui doutamente suprirão, em que se requer que seja, por Vossas Excelências dado provimento ao presente recurso e consequentemente, sejam declarados nulos, por violação do disposto nos artigos 18° n° 2 da Constituição da República Portuguesa, o estatuído nos nºs 1 e 2 do artigo 3.° do DL 2/98 de 03-02, no que concerne à constitucionalidade do crime de condução sem habilitação legal, tudo com as legais consequências.
Sem prescindir deve o presente recurso ser considerado provido, revogando-se a douta sentença proferida, assim sendo feita acostumada JUSTIÇA.
(…)”.
*

            Respondeu ao recurso o Digno Magistrado do Ministério Público junto do tribunal recorrido, alegando que o crime pelo qual foi o recorrente condenado tutela o bem jurídico da segurança rodoviária, não padecendo de inconstitucionalidade, e que não é possível efectuar um juízo de prognose favorável ao recorrente, não devendo haver lugar à substituição da decretada pena de prisão, e concluiu pelo não provimento do recurso.
*

Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer pronunciando-se pela constitucionalidade da incriminação e pela não substituição da pena de prisão, e concluiu pelo não provimento do recurso.
*

            Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.
           
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.
*
*
*
*

II. FUNDAMENTAÇÃO


            Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.
            Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:
- A inconstitucionalidade material do crime p. e p. pelo art. art. 3º, nºs 1 e 2, do Dec. Lei nº 2/98, de 3 de Janeiro, por violação do art. 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa;
- A substituição da pena de prisão pela pena de suspensão da execução da prisão e assim não se entendendo, pela pena de prestação de trabalho a favor da comunidade.

*

            Para a resolução da última questão proposta importa ter presente o que de relevante consta da sentença recorrida. Assim:

            A) Nela foram considerados provados os seguintes factos:
            “ (…).
            1. No dia 30 de Maio de 2012, pelas 10H20, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros, da marca Volkswagen, modelo A 3 Golf, cor cinzento, com a matrícula (...)AQ, na Estrada Nacional 109, freguesia de Lavos, no sentido este/oeste, em direcção à localidade de Gala, Figueira da Foz.
2. O arguido não era titular de carta de condução que o habilitasse a conduzir aquele veículo na via pública.
3. O arguido sabia que para exercer a condução do mencionado veículo é obrigatória a obtenção de prévia carta de condução, a emitir pela entidade administrativa competente.
4. Agiu o arguido de forma livre, deliberada e conscientemente, com o propósito concretizado de conduzir tal veículo na via pública, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
5. O arguido é o terceiro de cinco irmãos, cujo progenitor faleceu quando tinha 12 anos de idade.
6. Frequentou a escola na idade habitual, sendo considerado um aluno regular.
7. Em virtude das dificuldades económicas do seu agregado familiar após o decesso do seu progenitor, teve o arguido necessidade de abandonar a escola após terminar o 5º ano de escolaridade, para ajudar a mãe na venda ambulante.
8. Mantendo preferencialmente actividades de venda de peças de roupa e brinquedos, o arguido trabalhou também durante alguns períodos de tempo como servente da construção civil.
9. O arguido reside com a companheira B..., que é doméstica, tendo o casal duas filhas, com 2 anos e 9 meses de idade.
10. O arguido exerce a sua actividade profissional essencialmente no mercado da Gala, apanhando ainda berbigão, o que lhe permite manter satisfeitas as necessidades básicas do seu agregado familiar.
11. O arguido acompanha indivíduos de etnia cigana e não existem indicadores dignos de registo, mantendo uma postura reservada.
                12. O arguido sofreu as seguintes condenações:
12.1. No processo n.º 1182/00.7PBLRA, do 3.° Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Leiria, por sentença transitada em julgado no dia 29/09/2000, foi condenado pela prática, em 20/08/2000, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de 600$00, a qual foi convertida em 53 dias de prisão subsidiária.
12.2. No processo n.º 1564/00.4PBLRA, do 3.° Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Leiria, por sentença transitada em julgado no dia 02/04/2001, foi condenado pela prática, em 10/11/2000, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 600$00.
12.3. No processo n.º 175/01, do 2.° Juízo do Tribunal Judicial de Ourém, por acórdão transitado em julgado no dia 08/01/2002, foi condenado pela prática, em 2000, de um crime de tráfico de estupefacientes, na pena de 6 anos de prisão.
12.4. No processo n.º 49/01.6GBTNV, do 2.° Juízo do Tribunal Judicial de Torres Novas, por sentença transitada em julgado no dia 14/01/2002, foi condenado pela prática, em 13/11/2000, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal na pena de 3 meses de prisão, substituída por multa por igual período de tempo, à taxa diária de 1.000$00, tendo sido determinado o cumprimento da pena de prisão.
12.5. No processo n.º 306/00.9GTLRA, do 1.° Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Leiria, por sentença transitada em julgado no dia 08/02/2002, foi condenado pela prática, em 30/08/2000, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de € 4,00.
12.6. No processo n.º 81/01.0PBVNG, do 1.° Juízo do Tribunal Judicial de Ourém, por sentença transitada em julgado no dia 14/12/2002, foi condenado pela prática, em 18/11/2000, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 6 meses de prisão efectiva.
12.7. No processo n.º 1178/00.9PBLRA, do 3.° Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Leiria, por sentença transitada em julgado em 05/03/2003, foi condenado pela prática, em 18/08/2000, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal e de um crime de desobediência simples, na pena única de 1 ano de prisão.
12.7.1. Em cúmulo jurídico das penas mencionadas em 12.2, 12.3, 12.4, 12.5, 12.6 e 12.7, o arguido foi condenado na pena única de 7 anos de prisão e na pena de multa de 200 dias, à taxa diária de € 5,00, posteriormente reduzida para 6 anos e 10 meses de prisão.
12.7.2. O fim da liberdade condicional concedida ao arguido ocorreu em 15/03/2008.
12.8. No processo n.º 213/11.0PBFIG, do 2.° Juízo do Tribunal Judicial da Figueira da Foz, por sentença transitada em julgado em 20/09/2012, foi condenado pela prática, em 02 e 03/03/2011, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, um crime de coação na forma tentada e um crime de violação de domicílio ou perturbação da vida privada, na pena única de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo.
(…)”.

            B) E dela consta a seguinte fundamentação quanto à não substituição da pena de prisão:
            “ (…).
            Atenta a medida concreta da pena aplicada ao arguido, importa ponderar a sua substituição.
Desde já se salienta que nenhuma das penas substitutivas não privativas da liberdade (pena de multa substitutiva – artigo 43°; pena de prisão suspensa – artigo 50°; e prestação de trabalho a favor da comunidade – artigo 58°), não obstante a admissibilidade da sua aplicação em abstracto, se nos afigura suficiente para fazer face às exigências de prevenção já aludidas.
Com efeito, o arguido após ter cumprido pena de prisão efectiva também pela prática do ilícito em consideração, voltou a reincidir, pelo que nenhum juízo de prognose favorável se poderá formular.
As diversas advertências solenes que o Tribunal já lhe fez pareceram, pois, não surtir qualquer efeito, demonstrando o arguido uma personalidade incapaz de se comportar de acordo com o direito, não surgindo tais penas substitutivas como uma opção viável in casu.
Importa, por isso, ponderar o regime de permanência na habitação (artigo 44º, n.º 1, alínea a), do Código Penal), a prisão por dias livres (artigo 45°) e o regime de semidetenção (artigo 46°).
No artigo 44°, do Código Penal, prevê-se agora (após a reforma de 2007) uma nova pena substitutiva da pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano: o regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância. A sua aplicação pressupõe que se revele adequada e suficiente às finalidades da punição, talqualmente se exige na prisão por dias livres e no regime de semidetenção.
Inexistem motivos que nos levem a crer que o regime de semidetenção seja útil na promoção da reinserção do arguido, uma vez que o mesmo trabalha de forma precária como vendedor ambulante e na apanha do berbigão, em nada contribuindo pois para evitar a ruptura profissional, cumprindo antes de mais ponderar a aplicação das restantes penas (este regime é apenas aplicável, conforme se inculca do teor literal do artigo 46°, n.º 1, do Código Penal, se a prisão por dias livres não dever ser aplicada).
Também quanto à prisão por dias livres, entendemos que a mesma não se revela adequada, não só pelos motivos que já ficaram expostos, a propósito da ponderação das outras penas substitutivas, mas também pela circunstância de inexistirem relevantes razões de ordem de inserção social, familiar e profissional do arguido que imponham a sua aplicação, posto que a mesma tem por finalidade evitar os efeitos criminógenos associados à pena de prisão (especialmente a pena curta de prisão em crimes de menor gravidade) e a ruptura da rotina profissional e familiar do arguido, circunstâncias que, no caso, são incipientes ou mesmo inexistentes.
O cumprimento da pena em regime de permanência na habitação, também não se nos afigura adequado, porquanto só a pena de prisão efectiva, face aos antecedentes criminais do arguido e ao demais exposto, é capaz de lhe incutir o desvalor da sua conduta, prevenindo, desse modo, a reincidência do mesmo.
(…)”.
*
*

            Da inconstitucionalidade material do crime do art. art. 3º do Dec. Lei nº 2/98, de 3 de Janeiro, por violação do art. 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa

            1. Diz o arguido [conclusões V a XVII] que o crime pelo qual foi condenado, enquanto crime de perigo abstracto, pode ser materialmente inconstitucional pois que, aceitando que tutele o bem segurança rodoviária e, antecipadamente, bens pessoais e patrimoniais, porque se trata de uma simples proibição formal, carece do valor axiológico jurídico-constitucional que o valide, não tendo o mínimo de ressonância ética inerente aos valores da comunidade, devendo antes ser remetido para o direito de mera ordenação social, sob pena de violação do art. 18º, nº 2, da Lei Fundamental, por ilegítima restrição de direitos, liberdades e garantias. 

            O crime de condução de veículo com motor sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3º, nºs 1 e 2, do Dec. Lei nº 2/98, de 3 de Janeiro é um crime comum e de perigo abstracto. Comum porque pode ser cometido por qualquer pessoa. De perigo, porque a consumação não exige a efectiva lesão do bem jurídico, abstracto, porque o perigo não faz parte do tipo, sendo apenas motivo da proibição, fundando-se a tipificação da conduta na sua perigosidade típica – o que dispensa a prova do perigo no caso concreto –, para o bem jurídico (cfr. Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, pág. 292).
Sanciona-se portanto, todo o agente que pratica a condução inabilitada, assumindo-se que não tem a capacidade e perícia necessárias para o fazer em segurança, por falta de conhecimentos teóricos e práticos, conhecimentos cuja existência é pressuposta pela titularidade da habilitação legal.

            A qualificação do crime de condução de veículo com motor sem habilitação legal como crime de perigo pressupõe a identificação do bem jurídico tutelado pela norma incriminadora.
            Iniciada no começo do século XX a utilização do automóvel conheceu um crescimento exponencial, praticamente em todo o mundo, sendo hoje, especialmente nas sociedades ditas desenvolvidas, um objecto imprescindível ao homem, quer considerado individualmente, quer enquanto membro da comunidade.
A utilização massiva do veículo automóvel leva a que hoje, muitas vezes, ele seja causa, instrumento e objecto de crimes, a que acresce a elevada sinistralidade rodoviária de que as negras estatísticas nacionais são um trágico exemplo. Desta forma, a circulação rodoviária tornou-se numa actividade perigosa cujos elevados custos, em bens não patrimoniais – vida e integridade física – e patrimoniais – individuais e colectivos – lhe conferem uma sempre actual e cada vez mais, relevante importância social.

Tendo isto presente, lê-se no preâmbulo do Dec. Lei nº 2/98 de 3 de Janeiro:
«1 – A experiência resultante da execução das normas do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio, durante o período de vigência já decorrido permitiu uma análise e reflexão sobra a adequação das suas normas, em especial sob o aspecto sancionatório, á realidade social que visa regular, tendo sempre em atenção os objectivos de prevenção e segurança rodoviárias que devem estar presentes na disciplina do trânsito. Importa, assim, introduzir no Código da Estrada as adaptações e correcções que a experiência aconselha, bem como algumas medidas inovadoras tendentes a torná-lo mais ajustado a essa mesma realidade social.   
2 – A necessidade de prevenção de condutas que, por colocarem frequentemente em causa valores de particular relevo, como a vida, a integridade física, a liberdade e o património, se revestem de acentuada perigosidade impõe a criminalização do exercício da condução por quem não esteja legalmente habilitado para o efeito. (…)».      
Daqui resulta que o crime de condução de veículo com motor sem habilitação legal tutela a segurança rodoviária, bem colectivo que se traduz na manutenção de todas as condições garantidas pelo ordenamento jurídico rodoviário no seu todo, no sentido de existir uma circulação rodoviária sem riscos acrescidos ou que vão para além dos riscos normais, ordinários inerentes à circulação rodoviária (Francisco Marques Vieira, Direito Penal Rodoviário, Os Crimes dos Condutores, Publicações Universidade Católica, pág. 92). E, enquanto crime de perigo abstracto, antecipa a tutela de uma pluralidade de bens de natureza individual, designadamente, a vida, a integridade física e a propriedade.

2. O princípio da intervenção mínima do direito penal tem o sentido de que a sua intervenção só deve ocorrer, através da tipificação de condutas, quando a tanto obrigue a defesa dos valores dominantes da comunidade. Naturalmente que o núcleo destes valores varia, quer de Estado para Estado, quer ao longo do tempo, no mesmo Estado, sendo certo que compete sempre a cada sociedade, em cada momento histórico, a definição daquele núcleo, o que vale dizer, a definição dos bens jurídicos fundamentais.

A aplicação de uma pena constitui uma evidente restrição a direitos fundamentais designadamente, ao direito à liberdade, no caso de pena de prisão, e ao direito de propriedade, no caso de pena de multa.
Dispondo o nº 2, do art. 18º da Constituição da República Portuguesa que, a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, a aplicação da pena só é conforme a lei fundamental se visar a protecção de outros direitos fundamentais e na exacta medida do necessário para o efeito.  

No que respeita aos crimes de perigo abstracto, a sua conformidade constitucional depende da razoabilidade da antecipação da tutela penal com a incriminação de acções que têm geralmente aptidão para integrarem o processo causal dos danos referentes à conduta típica, abstraindo de outras condições absolutamente necessárias para que, no caso, se produzam tais danos (cfr. Ac. do Tribunal Constitucional nº 426/91, de 6 de Novembro, in www.tribunalconstitucional.pt

3. Assente que o crime de condução de veículo com motor sem habilitação legal tutela o bem colectivo segurança rodoviária, e antecipa, a nível individual, a tutela de bens de natureza pessoal e patrimonial – e com isto, concorda o recorrente – o que há que saber então é se é razoável tipificar a condução inabilitada mesmo quando, no caso concreto, não estavam reunidas as condições necessárias à produção do dano.

No nosso ordenamento jurídico nem sempre a condução inabilitada tem sido tipificada como crime. Porém, na sociedade actual, com o automóvel transformado num bem essencial, cuja utilização massiva está na origem de elevadíssimos custos individuais e colectivos, tornando a circulação rodoviária um relevante problema comunitário, entendemos razoável a opção do legislador em qualificar a condução inabilitada como crime pois que a tanto impõe a gravidade e o crescimento exponencial dos danos causados pela condução imperita e inexperiente e portanto, a necessidade de, através da incriminação do perigo, fomentar a tutela de bens fundamentais. Não ocorre portanto, aqui, violação do princípio da necessidade das penas, ínsito no art. 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.

Por outro lado, não podemos concordar com o recorrente, ressalvado sempre o devido respeito, quando afirma que a criminalização da condução inabilitada tem como substrato a conduta acrescida da proibição legal, tornando-a um ilícito meramente formal, sem a preexistência de um bem axiologicamente válido, cuja punição tem por base em raciocínios formais, na lógica da mera autorização administrativa, apenas compatíveis com critérios de ordenação social.
Feita a demonstração do bem jurídico que a norma tutela, e da antecipação da tutela de bens jurídicos fundamentais, é evidente que a razão da proibição não é apenas e só, a falta de título habilitante para a condução, mas também a consideração da elevadíssima probabilidade de que só é capaz de praticar uma condução segura, quem para tanto está devidamente capacitado em termos práticos, técnicos e teóricos, capacidade que o Estado testa, sujeitando o cidadão a uma série de provas, em função de cujos resultados o considerará capaz de uma condução sem riscos acrescidos para a circulação rodoviária.  
Afirmar que a condução inabilitada não tem ressonância ética que permita a sua criminalização – deslocando a questão para a violação do princípio da culpa – é negar, quer o bem jurídico tutelado, quer a antecipação da tutela daqueles outros. Mesmo que se aceite que a condução inabilitada tem pequena relevância axiológica e que por isso, o ilícito é constituído não só pela conduta proibida mas também, pela proibição legal, a suficiente definição daqueles bens permite ao agente ajuizar o desvalor da acção. Por outro lado, acrescentamos ainda, se o desconhecimento da proibição pode afectar o pleno juízo de valoração ético-jurídica do agente, a questão que então se pode colocar é já ao nível do erro sobre a proibição.  

4. Em síntese conclusiva:
- O crime de condução de veículo com motor sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3º, nºs 1 e 2, do Dec. Lei nº 2/98, de 3 de Janeiro é um crime de perigo abstracto, que tutela o bem colectivo segurança rodoviária, e antecipa a tutela de e da antecipação da tutela de outros bens individuais, como a vida, a integridade física e a propriedade;
- Os elevadíssimos custos individuais e colectivos causados pela sinistralidade rodoviária portuguesa, que transformaram a circulação rodoviária num problema comunitário premente, constituem justificação razoável para a opção do legislador em incriminar o perigo e fomentar a tutela de bens fundamentais, qualificando a condução inabilitada como crime;
- A criminalização da condução inabilitada não constitui uma restrição ilegítima, por desnecessária, aos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente garantidos, não violando por isso, o art. 18º, nº 2 da Lei Fundamental.
*

Da substituição da pena de prisão [por suspensão da execução da prisão e assim não se entendendo, por prestação de trabalho a favor da comunidade]

5. Alega o arguido que, reportando-se os seus antecedentes criminais a factos ocorridos há mais de dez anos, não deveriam ter assumido papel preponderante na formulação do juízo de prognose desfavorável, pelo que a pena de prisão aplicada deveria ter sido suspensa na respectiva execução, ainda que acompanhada de regime de prova e sujeita à condição de apresentar, em prazo a fixar, documento comprovativo de que concluiu o processo de aprendizagem habilitador da condução de veículos automóveis ou, assim não se entendendo, deveria ter sido a pena de prisão substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade por estarem verificados os respectivos pressupostos. Vejamos.

O critério geral de escolha da pena de substituição da pena de prisão é o de que o tribunal deve dar preferência à pena de substituição desde que, verificados os respectivos pressupostos formais de aplicação, ela realize de forma adequada e suficientes as finalidades de prevenção geral e especial requeridas pela caso concreto (cfr. Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, pág. 331 e Maria João Antunes, Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra, 2010 – 2011, pág. 52).

5.1. A suspensão da execução da pena de prisão, pena de substituição em sentido próprio, no sentido de ser cumprida em liberdade, tem como pressuposto formal que a medida da pena aplicada ao agente não seja superior a cinco anos de prisão (art. 50º, nº 1, do C. Penal), e como pressuposto material a possibilidade de o tribunal concluir pela formulação de um juízo de prognose favorável ao agente, no sentido de que, atenta a sua personalidade, as condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior ao crime e as circunstâncias deste, a simples censura do facto e a ameaça da prisão, realizarão de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição (art. 50º, nºs 1 e 2, do C. Penal).
O objectivo de política criminal visado pelo instituto é o «conteúdo mínimo» da ideia de socialização, traduzida na «prevenção da reincidência». (Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, pág. 343). Por isso, desde que as exigências de prevenção especial de socialização o aconselhem, a pena de substituição só não será aplicada se a execução da prisão se revelar uma exigência insuprível das necessidades de tutela dos bens jurídicos e da estabilização contrafáctica das expectativas da comunidade (cfr. Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, pág. 333).   

 O juízo de prognose a realizar pelo tribunal, elemento essencial do funcionamento da suspensão da execução da pena de prisão, parte da análise das circunstâncias do caso concreto – as condições de vida e conduta anterior e posterior do agente, conjugadas e relacionadas com a sua revelada personalidade –, da qual resultará como provável, ou não, que o agente irá sentir a condenação como uma solene advertência, ficando a sua eventual reincidência prevenida com a simples ameaça da prisão (com ou sem imposição de deveres, regras de conduta ou regime de prova), para concluir ou não, pela viabilidade da sua socialização em liberdade.
Na formulação deste juízo o tribunal deve correr um risco prudente, já que a prognose é apenas uma previsão, uma conjectura, e não uma certeza. Por isso, quando existam dúvidas sérias sobre a capacidade do agente para entender a oportunidade de ressocialização que a suspensão significa, a prognose deve ser negativa. Se o julgador duvida séria e fundadamente, da capacidade do agente para não repetir a prática de crimes se deixado em liberdade, o juízo de prognose deve ser desfavorável e a suspensão negada (cfr. Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, pág. 344).
Posto isto.

A pena de seis meses de prisão, decretada pela 1ª instância, determina a verificação do pressuposto formal do instituto.

Atentemos agora no pressuposto material. O arguido não assumiu a culpa dos seus actos o que, conjugado com os seus significativos antecedentes criminais, revelam uma personalidade com propensão para a prática de factos típicos e portanto, uma incapacidade para agir conforme ao direito.
A propósito dos antecedentes criminais, cabe dizer que o arguido praticou já seis crimes de condução de veículo sem habilitação legal, todos entre Agosto e Novembro de 2000, pelos quais veio a ser condenado em 2000 [um], em pena de multa, 2001 [um], em pena de multa, 2002 [três], em pena de prisão substituída por multa, em pena de multa e em pena de prisão, e 2003 [um], em pena de prisão, um crime de tráfico de estupefacientes em 2000, pelo qual foi condenado em 2002 em pena de prisão, e um crime de desobediência em Agosto de 2000, pelo qual foi condenado em 2003 em pena de prisão. Em cúmulo de todas estas penas, com excepção da primeira, o arguido foi condenado na pena única de 7 anos de prisão e 200 dias de multa à taxa diária de € 5, posteriormente reduzida para 6 anos e 10 meses de prisão, tendo o fim da liberdade condicional concedida ocorrido em 15 de Março de 2008. Não obstante, em Março de 2011, o arguido cometeu um crime de ofensa à integridade física qualificada, um crime de coação na forma tentada e um crime de violação de domicílio ou perturbação da vida privada, tendo sido condenado, por sentença transitada em 20 de Setembro de 2012, na pena única de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na respectiva execução.    
Assim, se é certo que parte significativa dos antecedentes criminais respeitam a factos passados em 2000, o arguido teve um prolongado contacto com o sistema prisional, no cumprimento de uma pena de prisão, inicialmente, de 7 anos e depois, passada a 6 anos e 10 meses, tendo a liberdade condicional concedida cessado em Março de 2008. Pois, as sucessivas condenações e este contacto com o sistema de justiça não fizeram o arguido alterar o seu comportamento pois, em Março de 2011, voltou a praticar uma pluralidade de crimes, e em Maio de 2012 praticou o que constitui o objecto dos autos. Significa isto que nenhuma das anteriores condenações constituiu suficiente estímulo para que o arguido não voltasse a praticar novos factos típicos, que manifesta indiferença perante os valores tutelados pelas normas penais e pela ameaça das respectivas sanções e portanto, incapacidade para entender a oportunidade que a suspensão da execução da pena significa. Não se vê, pois, como possa ser formulado o juízo de prognose favorável, pressuposto pela aplicação do art. 50º, nº 1, do C. Penal.
Por outro lado, atenta a personalidade do arguido e as suas condutas anteriores, dificilmente a substituição da pena de prisão pela suspensão da respectiva execução seria capaz de repor a confiança da comunidade na manutenção da norma violada.

Em suma, estando inviabilizada a formulação do juízo de prognose favorável ao arguido, não pode este ver suspensa a execução da pena de prisão.

5.2. A prestação de trabalho a favor da comunidade é também uma pena de substituição em sentido próprio que tem como pressupostos (art. 58º, nºs 1 e 5, do C. Penal):
- O consentimento ou aceitação do condenado;
- Que a medida da pena de prisão a aplicar ao agente não seja superior a dois anos;
- Que a pena realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Quanto ao primeiro pressuposto, ao consentimento do condenado, não se mostra dado pessoalmente pelo arguido, formalidade que entendemos exigível, dada a natureza e conteúdo da pena em questão, e se nas conclusões XXI e XXII se refere a possibilidade de aplicação desta pena de substituição, a procuração conferida ao Ilustre Mandatário subscritor da motivação (cfr. fls. 114) não confere poder especial para a aceitação ou consentimento. Mas como o tribunal ad quem pode sempre determinar que o arguido venha aos autos declarar pessoalmente o consentimento, este obstáculo formal só assumirá verdadeiro relevo, se e quando verificados os demais pressupostos de aplicação da pena de trabalho a favor da comunidade.

Relativamente ao segundo pressuposto dúvidas não subsistem da sua verificação, uma vez que ao arguido foi cominada, na 1ª instância, a pena de seis meses de prisão.
Atentemos agora no terceiro pressuposto, a suficiência e adequação da pena de trabalho a favor da comunidade às finalidades da punição.
Segundo o critério geral de substituição da pena supra referido, haverá lugar à aplicação da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade sempre que ela se revele capaz de facilitar a ressocialização do condenado, e seja compatível com as exigências mínimas de tutela do ordenamento jurídico.
O arguido havia já sido condenado em seis distintas ocasiões pela prática do crime de condução de veículo sem habilitação legal, três vezes em pena de multa, uma vez em prisão substituída por multa, e duas vezes em pena de prisão. Tais condenações tornaram-se efectivas entre Setembro de 2000 e Março de 2003 e comungam a particularidade de os respectivos factos terem sido praticados, uns em Agosto e outros em Novembro de 2000. Existe pois um período de cerca de onze anos entre a prática daqueles factos, e a prática dos factos que constituem o objecto destes autos.  
Sucede que o arguido praticou um crime de tráfico de estupefacientes, igualmente em 2000, pelo qual veio a ser condenado com trânsito em Janeiro de 2002, na pena de seis anos de prisão que, cumuladas com as penas anteriores, resultou na pena única de sete anos de prisão e multa, depois reduzida para seis anos e dez meses de prisão, com o fim da liberdade condicional em Março de 2008. Porém, logo em Março de 2011 o arguido pratica novos factos típicos, pelos quais veio a ser condenado com trânsito em Setembro de 2012 – já depois de ter praticado os factos objecto destes autos –, em pena de prisão suspensa.
Assim, sendo manifesto que o arguido é portador de uma personalidade avessa ao direito, indiferente aos valores sociais tutelados pelas normas penais e à ameaça das respectivas sanções, que nos autos não revelou sinais de interiorização do desvalor da conduta, ainda que o crime em questão não integre sequer a média criminalidade, entendemos que a comunidade não consideraria reposta a confiança na validade da norma violada com o sancionamento do arguido através da pretendida pena de substituição.

Concluindo, são razões de prevenção geral, de defesa do ordenamento jurídico que, in casu, impedem, e ressalvado sempre o devido respeito por opinião diversa, a substituição da pena de prisão pela pena de prestação de trabalho a favor da comunidade.

6. Os poderes de cognição dos tribunais superiores em matéria de indagação e aplicação do direito sofrem apenas a limitação da reformatio in pejus, podendo por isso afirmar-se que a matéria de indagação e aplicação do direito é de conhecimento oficioso. Vale isto dizer que a reformatio in melius é sempre possível, mesmo que incida sobre aspectos não especificados no recurso.
Tudo isto para se dizer que, não obstante a improcedência das pretensões do arguido de ver a pena de prisão que lhe foi decretada pela 1ª instância substituída pela pena de suspensão da execução da pena de prisão ou pela pena de prestação de trabalho a favor da comunidade, o tribunal ad quem não fica impedido de substituir a pena de prisão por pena de substituição que considere aplicável.

E é o que sucede com a pena de prisão por dias livres, prevista no art. 45º do C. Penal. Trata-se, como é sabido, de uma pena de substituição detentiva que por isso, assegura a necessidade de confrontar o arguido mais uma vez com o sistema prisional. Por outro lado, e discordando agora, ressalvado sempre o devido respeito, do afirmado na sentença em crise, o trabalho na venda ambulante e na apanha do berbigão – que os pontos 8 e 10 dos factos provados não qualificam de precário – não deixa de ser trabalho, e muito menos, despiciendo, nos tempos de crise económica que vivemos. Acresce que, como resulta dos pontos 9 e 10 dos factos provados, é precisamente com o fruto deste trabalho que o arguido provê às necessidades básicas da sua companheira, que é doméstica e das duas filhas, de dois anos e de nove meses de idade, não podendo pois, dizer-se, que são incipientes ou mesmo inexistentes, as rotinas profissional e familiar do arguido, nada havendo de relevante a assegurar, quanto a elas.
Desta forma, estando verificado o pressuposto formal desta pena de substituição [pena de prisão não superior a um ano] e entendendo-se pelas razões apontadas, que ela realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da pena particularmente, a confiança da comunidade na validade da norma violada, deve o arguido ver a pena de prisão substituída por prisão por dias livres.

A pena de prisão por dias livres consiste na privação da liberdade por períodos correspondentes a fins-de-semana, não podendo exceder 72 períodos (art. 45º, nº 2, do C. Penal).
            Cada período equivale a cinco dias de prisão contínua, e tem a duração mínima de trinta e seis horas e máxima de quarenta e oito horas (nº 3 do art. 45º, do C. Penal), podendo os feriados que antecederem ou se seguirem a um fim-de-semana ser utilizados para a execução da prisão por dias livres, sem prejuízo da duração máxima estabelecida para cada período (nº 4 do mesmo artigo).
            Tendo o arguido sido condenado na pena de seis meses de prisão que correspondem a cento e oitenta dias, nos termos das normas supra citadas, deverá cumprir prisão por dias livres durante trinta e seis períodos [36 períodos x 5 dias = 180 dias ou 6 meses].
            Cada período terá a duração de 36 horas e será cumprido entre as 8 horas de sábado e as 20 horas do Domingo imediato, sem prejuízo do disposto no art. 45º, nº 4, do C. Penal quanto a feriados.   

O art. 487º do C. Processo Penal será cumprido pela 1ª instância, após trânsito.

*
*
*
*

            III. DECISÃO


Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação, ainda que por distintas razões, em conceder parcial provimento ao recurso.
Consequentemente, decidem substituir a pena de seis meses de prisão aplicada ao arguido A..., pela pena de prisão por dias livres, durante 36 (trinta e seis) períodos de 36 (trinta e seis) horas cada um, entre as 8 horas de sábado e as 20 horas do Domingo imediato, tudo sem prejuízo do disposto no art. 45º, nº 4, do C. Penal quanto a feriados.
*
            O art. 487º do C. Processo Penal será cumprido pela 1ª instância.
*
           
Sem tributação, atenta a parcial procedência (art. 513º, nº 1, do C. Processo Penal).
*
*
Coimbra, 23 de Outubro de 2013

 (Heitor Vasques Osório - Relator)

 (Fernando Chaves)