Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | EMÍDIO SANTOS | ||
Descritores: | INSOLVÊNCIA ENTREGA DE IMÓVEL DESOCUPAÇÃO CASA DE HABITAÇÃO DO INSOLVENTE NULIDADES DA SENTENÇA FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO VIOLAÇÃO DO CONTRADITÓRIO EXCESSO DE PRONÚNCIA | ||
Data do Acordão: | 07/13/2020 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 1 | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | DECLARADA NULA | ||
Legislação Nacional: | ARTS17, 36, 149, 150 CIRE, 3 Nº3, 154, 615 Nº1 B) E D) CPC. | ||
Sumário: | I- A desocupação de um imóvel que constitua a casa de habitação do insolvente não resulta directamente da sentença que declara a insolvência; o que resulta directamente desta é a apreensão do imóvel. II- Deste modo, o pedido de desocupação da casa de habitação, a fim de ela ser entregue ao administrador, para que dela fique depositário, representa uma modificação da situação definida pela sentença, quanto ao depositário de tal bem. III- Em consequência, a decisão sobre tal pedido está sujeita ao princípio do contraditório e ao dever de fundamentação. | ||
Decisão Texto Integral: |
Processo n.º 1230/09.5TBPBL
Sumário:
Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra
No processo de insolvência de M (…) foi apreendido para a massa insolvente o seguinte imóvel: metade indivisa de um Prédio Urbano – Construída uma casa de r/c, destinada a jardim-de-infância, 1º andar destinado a habitação, sótão destinado a arrumos, dependência destinada a garagem e logradouro, sito na Rua(…), com a área total de 730m2, área coberta de 165m2 e área descoberta de 565m2, confronta (…). Descrito na Conservatória do Registo Predial de (…), sob o n.º 2423, freguesia de(…), concelho de(…), inscrito na matriz sob o artigo 1566, com o Valor Patrimonial de € 30.093,14. Em 14-04-2020, o administrador judicial da insolvência requereu que fosse emitida certidão para a requisição do auxílio de força pública no sentido de poder, dentro das suas funções, ordenar a mudança de fechaduras da creche e do primeiro andar, do imóvel arrolado nos autos, sendo que, no primeiro andar, encontrava-se a residir a insolvente, há mais de cinco anos, tornando-se peremptório o apoio da entidade auxiliar de força pública. Em 22-04-2020, a Meritíssima juíza do tribunal a quo ordenou a notificação do administrador para informar o estado da notificação judicial avulsa e eventual despejo quanto ao rés-do-chão do imóvel, em que era arrendatária a sociedade “O (…) Lda”, e para esclarecer se já haviam sido apresentadas propostas para aquisição do imóvel em questão (na sua totalidade, rés-do-chão e 1.º andar). O administrador da insolvência, na resposta, apresentou a comunicação da insolvente M (…) e informou que a massa insolvente teve uma proposta de 170.000€ na data de 15 de Fevereiro de 2019, mas face ao tempo demorado para aceitar a mesma, a proposta estava cancelada e que a massa insolvente não conseguiu tornar firme outras propostas, já que o imóvel encontrava-se ocupado por pessoas. Em 30-04-2020, a Meritíssima juíza do tribunal a quo ordenou que, com cópia do requerimento do administrador datado de 14.04.2020 (ref.ª6738000), se notificasse a insolvente para, no prazo de 45 dias, proceder à entrega do imóvel livre de pessoas e bens. A insolvente não se conformou com esta decisão e interpôs o presente recurso de apelação, pedindo se declarasse nulo o despacho recorrido por absoluta falta de motivação e por violação do princípio do contraditório, para que, previamente à prolação de uma decisão, a insolvente fosse notificada para se pronunciar sobre o requerimento do administrador da insolvência e outras questões sobre as quais o tribunal a quo pretenda proferir decisão (nomeadamente, a eventual entrega do imóvel apreendido nos autos ao senhor administrador da insolvência, onde reside a Insolvente), seguindo-se os demais termos legais. Subsidiariamente, para o caso de assim não se decidir, pediu a revogação do despacho recorrido e a substituição dele por decisão que mantivesse a insolvente como fiel depositária do imóvel apreendido a favor da massa insolvente até à data da concretização da compra e venda do mesmo. Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes: A massa insolvente respondeu ao recurso, sustentando a manutenção da decisão recorrida. Para o efeito alegou: * Síntese das questões suscitadas pelo recurso: Saber se a decisão recorrida é nula por falta de fundamentação e por violação do princípio do contraditório. Para o caso de ser negativa a resposta a questão anterior, saber se a decisão recorrida violou o disposto na alínea g) do n.º 1 artigo 36.º e o disposto no n.º 1 do artigo 150.º, ambos do CIRE, e o disposto no artigo 756.º, n.º 1, alínea a), do CPC. * Os factos relevantes para a decisão do recurso são constituídos pelos antecedentes processuais do despacho recorridos narrados no relatório deste acórdão. * Nulidade por falta de fundamentação: Pelas razões a seguir expostas é de julgar procedente o recurso. Segundo o n.º 1 do artigo 154.º do CPC – aplicável ao processo de insolvência por remissão do n.º 1 do artigo 17.º do CIRE - as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas. Por sua vez segundo a alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, combinada com o n.º 3 do artigo 613.º, ambos do CPC – aplicáveis ao processo de insolvência também por remissão do n.º 1 do artigo 17.º do CIRE – é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto ou de direito que justificam a decisão. Para estes efeitos, não especificar os fundamentos de facto ou de direito que justificam a decisão é omitir, por completo, as razões de facto e/ou de direito da decisão. No caso, o despacho sob recurso - proferido sobre o pedido do administrador da insolvência no sentido de lhe ser passada certidão para a requisição do auxílio de força pública a fim de poder, dentro das suas funções, ordenar a mudança de fechaduras da creche e do primeiro andar, do imóvel arrolado nos autos – ordenou à ora recorrente a entrega do imóvel supra descrito, dentro do prazo de 45 dias, sem especificar as razões de facto e de direito que justificavam a decisão. O despacho estava sujeito, no entanto, a fundamentação. Vejamos. A questão decidida pelo despacho recorrido foi a da desocupação efectiva de imóvel que constituía a casa de habitação do insolvente. Ora, salvo o devido respeito que nos merece a alegação da recorrida, a obrigação de a insolvente desocupar a casa de habitação não resultava directamente da sentença que declarou a insolvência. Com efeito, a sentença, reproduzindo os dizeres da alínea g) do n.º 1 do artigo 36.º do CIRE, decretou a apreensão, para imediata entrega ao administrador da insolvência, de todos os bens da insolvente, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos, mas ressalvou o disposto no n.º 1 do artigo 150.º do CIRE. Esta ressalva significou o seguinte: não seriam entregues ao administrador os bens apreendidos quando se verificassem as hipóteses previstas nos números 1 e 2 do artigo 756.º do CPC. Entre tais hipóteses figurava a de o bem apreendido constituir a casa de habitação efectiva do insolvente [alínea a) do n.º 2 do artigo 756.º do CPC]. Em tal situação, quem ficaria depositário da casa de habitação seria o insolvente, ou seja, tal bem seria apreendido para a massa, mas não seria entregue ao administrador. Segue-se do exposto que a desocupação do imóvel acima descrito, cujo 1.º andar constituía a casa de habitação da ora insolvente, não resultava directamente da sentença que declarou a insolvência. O que resultava directamente era a apreensão do imóvel, mas esta não estava em causa no requerimento do administrador da insolvência. Assim sendo, o pedido de desocupação da casa de habitação, a fim de ela ser entregue ao administrador, para que dela ficasse depositário, representava uma modificação da situação definida pela sentença, quanto ao depositário de tal bem. Em consequência devia considerar-se que tal pedido revestia a natureza de pedido controvertido no processo, carecendo, por isso, a decisão sobre ele de ser fundamentada [n.º 1 do artigo 154.º do CPC]. Além de carecer de fundamentação, a decisão sobre o pedido de desocupação da casa de habitação estava sujeita ao princípio do contraditório, por força do n.º 3 do artigo 3.º do CPC, na parte em que dispõe que o juiz deve observar ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta necessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem. Ao ordenar à insolvente que entregasse, ao administrador da insolvência, o imóvel apreendido que constituía a casa de habitação daquela, omitindo, por completo, as razões de facto e de direito da decisão, o despacho sob recurso incorreu na nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC. Por sua vez, ao proferir tal decisão sem facultar à insolvente a possibilidade de se pronunciar sobre a questão, a decisão incorreu na causa de nulidade prevista na 2.ª parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC [consistente no conhecimento de questões de que não podia tomar conhecimento]. Com efeito, este tribunal considera que a causa de nulidade prevista em tal segmento normativo compreende tanto os casos em que o tribunal conhece de questões que nem foram suscitadas pelas partes nem são de conhecimento oficioso, como as hipóteses em que o tribunal, embora conhecendo de questões suscitadas pelas partes, conhece delas sem observância do princípio do contraditório (citam-se em abono desta interpretação o acórdão do STJ de 23-06-2016, no processo n.º 1937/15.8T8BCL, publicado em www.dgsi.pt., bem como o entendimento do Senhor Professor Miguel Teixeira de Sousa, expresso designadamente em comentário ao acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido em 2/3/2015, no processo n.º 39/13.6TBRSD, em comentário ao acórdão do tribunal da Relação de Guimarães proferido em 31/10/2018, no processo n.º 1101/15.658PVZ-C, e em comentário ao acórdão do tribunal da Relação do Porto proferido em 2/12/2019, no processo n.º 14227/19.8T9PRT, publicados em https://blogippc.blogspot.com/, respectivamente, nos dias 23/03/2015, 04/03/2019 e 20/5/2020] Pelo exposto, é de julgar procedente a arguição de nulidade da decisão por falta de fundamentação e por violação do princípio do contraditório. Em consequência, deve a Meritíssima juíza do tribunal a quo, proferir nova decisão devidamente fundamentada depois de ouvir a insolvente sobre o requerimento do administrador da insolvência. Observe-se que é sobre o tribunal a quo que impende o dever de suprir as nulidades da decisão visto que a regra do n.º 1 do artigo 665.º do CPC, segundo a qual ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal deve conhecer do objecto da apelação, vale apenas para as decisões nulas que põem termo ao processo, o que não é o caso da decisão recorrida. Julgada procedente a arguição de nulidade da decisão recorrida, fica prejudicado conhecimento do pedido deduzido a título subsidiário. Decisão: Julga-se procedente o recurso e, em consequência: * Responsabilidade quanto a custas: Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e o facto de a recorrida ter ficado vencida, condena-se a mesma nas custas do recurso. Coimbra, 13 de Julho de 2020
Emídio Santos ( Relator) Catarina Gonçalves Maria João Areias
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