Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1230/09.5TBPBL-R.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO SANTOS
Descritores: INSOLVÊNCIA
ENTREGA DE IMÓVEL
DESOCUPAÇÃO
CASA DE HABITAÇÃO DO INSOLVENTE
NULIDADES DA SENTENÇA
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
VIOLAÇÃO DO CONTRADITÓRIO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
Data do Acordão: 07/13/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: DECLARADA NULA
Legislação Nacional: ARTS17, 36, 149, 150 CIRE, 3 Nº3, 154, 615 Nº1 B) E D) CPC.
Sumário: I- A desocupação de um imóvel que constitua a casa de habitação do insolvente não resulta directamente da sentença que declara a insolvência; o que resulta directamente desta é a apreensão do imóvel.

II- Deste modo, o pedido de desocupação da casa de habitação, a fim de ela ser entregue ao administrador, para que dela fique depositário, representa uma modificação da situação definida pela sentença, quanto ao depositário de tal bem.

III- Em consequência, a decisão sobre tal pedido está sujeita ao princípio do contraditório e ao dever de fundamentação.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 1230/09.5TBPBL

Sumário:
I- A desocupação de um imóvel que constitua a casa de habitação do insolvente não resulta directamente da sentença que declara a insolvência; o que resulta directamente desta é a apreensão do imóvel.
II- Deste modo, o pedido de desocupação da casa de habitação, a fim de ela ser entregue ao administrador, para que dela fique depositário, representa uma modificação da situação definida pela sentença, quanto ao depositário de tal bem.
III- Em consequência, a decisão sobre tal pedido está sujeita ao princípio do contraditório e ao dever de fundamentação.

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

No processo de insolvência de M (…) foi apreendido para a massa insolvente o seguinte imóvel: metade indivisa de um Prédio Urbano – Construída uma casa de r/c, destinada a jardim-de-infância, 1º andar destinado a habitação, sótão destinado a arrumos, dependência destinada a garagem e logradouro, sito na Rua(…), com a área total de 730m2, área coberta de 165m2 e área descoberta de 565m2, confronta (…). Descrito na Conservatória do Registo Predial de (…), sob o n.º 2423, freguesia de(…), concelho de(…), inscrito na matriz sob o artigo 1566, com o Valor Patrimonial de € 30.093,14.

Em 14-04-2020, o administrador judicial da insolvência requereu que fosse emitida certidão para a requisição do auxílio de força pública no sentido de poder, dentro das suas funções, ordenar a mudança de fechaduras da creche e do primeiro andar, do imóvel arrolado nos autos, sendo que, no primeiro andar, encontrava-se a residir a insolvente, há mais de cinco anos, tornando-se peremptório o apoio da entidade auxiliar de força pública.

Em 22-04-2020, a Meritíssima juíza do tribunal a quo ordenou a notificação do administrador para informar o estado da notificação judicial avulsa e eventual despejo quanto ao rés-do-chão do imóvel, em que era arrendatária a sociedade “O (…) Lda”, e para esclarecer se já haviam sido apresentadas propostas para aquisição do imóvel em questão (na sua totalidade, rés-do-chão e 1.º andar).

O administrador da insolvência, na resposta, apresentou a comunicação da insolvente M (…) e informou que a massa insolvente teve uma proposta de 170.000€ na data de 15 de Fevereiro de 2019, mas face ao tempo demorado para aceitar a mesma, a proposta estava cancelada e que a massa insolvente não conseguiu tornar firme outras propostas, já que o imóvel encontrava-se ocupado por pessoas.

Em 30-04-2020, a Meritíssima juíza do tribunal a quo ordenou que, com cópia do requerimento do administrador datado de 14.04.2020 (ref.ª6738000), se notificasse a insolvente para, no prazo de 45 dias, proceder à entrega do imóvel livre de pessoas e bens.

A insolvente não se conformou com esta decisão e interpôs o presente recurso de apelação, pedindo se declarasse nulo o despacho recorrido por absoluta falta de motivação e por violação do princípio do contraditório, para que, previamente à prolação de uma decisão, a insolvente fosse notificada para se pronunciar sobre o requerimento do administrador da insolvência e outras questões sobre as quais o tribunal a quo pretenda proferir decisão (nomeadamente, a eventual entrega do imóvel apreendido nos autos ao senhor administrador da insolvência, onde reside a Insolvente), seguindo-se os demais termos legais.

Subsidiariamente, para o caso de assim não se decidir, pediu a revogação do despacho recorrido e a substituição dele por decisão que mantivesse a insolvente como fiel depositária do imóvel apreendido a favor da massa insolvente até à data da concretização da compra e venda do mesmo.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:
1. O despacho recorrido é nulo por falta de fundamentação, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil (aplicável aos despachos por força do estatuído no artigo 613.º, n.º 3 do CPC), uma vez que o mesmo não especifica os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, obrigação essa prevista, também, no artigo 154.º, do CPC;
2. A Meritíssima Juiz a quo limitou-se a ordenar na decisão recorrida que a insolvente entregasse o imóvel livre de pessoas e bens, no prazo de 45 dias, sem que à mesma tenha sido dada qualquer oportunidade para se pronunciar, não sendo respeitado o contraditório (artigo 3.º do CPC), princípio esse basilar do nosso processo civil que manda que seja observada uma estrutura dialéctica, excepto nos casos de manifesta desnecessidade; o que consubstancia nulidade processual secundária, nos termos do disposto no n.º 1, do artigo 195.º, do Código de Processo Civil, havendo, pois, que declarar a nulidade decorrente da falta de cumprimento do contraditório ora invocada, o que, nos termos do disposto no n.º 2, do do artigo 195.º, do CPC, implica também a anulação dos actos ulteriores.
3. Caso não sejam procedentes as nulidades supra aludidas, sempre se diga que o despacho ora em crise deverá ser revogado, por violar o disposto nos artigos 36.º, alínea g), 150. º, n.º 1, ambos do CIRE, e 756.º, n.º 1, alínea a) do CPC.
4. De facto, nos termos das normas referidas, se o bem apreendido para a massa insolvente constituir casa de habitação efectiva do insolvente é este o depositário, por imposição legal, apenas se podendo proceder à sua substituição com fundamento justificado, conforme estabelece o artigo 761.º do CPC;
5. Ora, no caso dos autos, a insolvente tem a sua residência no imóvel apreendido (juntamente com os seus dois filhos), conforme referido na sentença que declarou a insolvência, e que fixou, de resto, a residência da mesma naquele local, pelo que a mesma é fiel depositária daquele imóvel, devendo tal situação manter-se até à concretização da compra e venda do mesmo.

A massa insolvente respondeu ao recurso, sustentando a manutenção da decisão recorrida. Para o efeito alegou:
1. Que por força dos artigos 36º, n.º 1, alínea g), e 149º e 150º do CIRE, qualquer pedido de desocupação de imóvel apreendido para a massa insolvente que seja formulado pelo administrador de insolvência enquadra-se na execução de resolução judicial anterior, concretamente, a de declaração de insolvência do devedor e subsequente liquidação do seu património;
2. Que a decisão que ordena à insolvente a entrega de imóvel apreendido para a massa insolvente não carece de ser fundamentada, pois a recorrente sabe perfeitamente que foi declarada insolvente e que a apreensão e entrega do bem imóvel já lhe foi ordenada na Sentença que declarou a sua insolvência;
3. Do mesmo modo, não descortinamos qualquer violação do princípio do contraditório, pois, em primeiro lugar, porque a decisão recorrida foi proferida na execução de resolução judicial muito anterior, não cabia ao tribunal auscultar a insolvente previamente à sua decisão;
4. Acresce que se a insolvente entedia que se impunha contraditar o que quer que fosse, aduzir a argumentação que muito bem entendesse e requerer o que tivesse por conveniente, sempre poderia e deveria tê-lo feito dentro do prazo legal supletivo, pois ao proferir despacho que fixa um prazo (até consideravelmente longo) para a entrega do imóvel, o tribunal não deixou de assegurar à recorrente a possibilidade de aduzir o que considerasse pertinente em face da ordem que recebeu;
5. Por último e a propósito da entrega do imóvel ao administrador de insolvência, considera a recorrente, que tal decisão está ferida de ilegalidade e sustenta essa sua posição em violação do “disposto nos artigos 36.º, alínea g), 150.º, n.º 1, ambos do CIRE, e 766.º, n.º 1, alínea a) do CPC”;
6. Parece-nos que a recorrente entende que o facto de um insolvente residir num imóvel apreendido para a massa insolvente determina, automaticamente, que esta nela poderá permanecer atá ao momento da venda;
7. Ressalvado o devido respeito por distinta opinião diversa, cremos que o facto de a insolvente residir no imóvel apreendido (in casu, no primeiro andar do imóvel, dado que o rés-do-chão está autonomizado) não determina nem pode determinar que esta recuse proceder à sua entrega ao insolvente quando tal lhe for exigido;
8. De facto, o n.º 5 do artigo 150º do CIRE estabelece que à desocupação de casa de habitação onde resida habitualmente o insolvente é aplicável o disposto no artigo 862.º do Código de Processo Civil”;
9. Significa isto que, entendendo que se verificam razões sociais imperiosas e mediante requerimento e imediata prova de preenchimento dos requisitos legais, estabelecidos no artigo 864º do CPC, pode ser requerido o deferimento de desocupação do imóvel, que não opera automaticamente;
10. In casu, sem prejuízo de estarmos convencidos que a insolvente nem sequer preencheria os requisitos legais de que sempre depende o deferimento da desocupação do imóvel, o certo é que a insolvente não o veio requerer e muito menos provar.


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Síntese das questões suscitadas pelo recurso:

Saber se a decisão recorrida é nula por falta de fundamentação e por violação do princípio do contraditório.

Para o caso de ser negativa a resposta a questão anterior, saber se a decisão recorrida violou o disposto na alínea g) do n.º 1 artigo 36.º e o disposto no n.º 1 do artigo 150.º, ambos do CIRE, e o disposto no artigo 756.º, n.º 1, alínea a), do CPC.


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Os factos relevantes para a decisão do recurso são constituídos pelos antecedentes processuais do despacho recorridos narrados no relatório deste acórdão.

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Nulidade por falta de fundamentação:

Pelas razões a seguir expostas é de julgar procedente o recurso.

Segundo o n.º 1 do artigo 154.º do CPC – aplicável ao processo de insolvência por remissão do n.º 1 do artigo 17.º do CIRE - as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.

Por sua vez segundo a alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, combinada com o n.º 3 do artigo 613.º, ambos do CPC – aplicáveis ao processo de insolvência também por remissão do n.º 1 do artigo 17.º do CIRE – é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto ou de direito que justificam a decisão.

Para estes efeitos, não especificar os fundamentos de facto ou de direito que justificam a decisão é omitir, por completo, as razões de facto e/ou de direito da decisão.

No caso, o despacho sob recurso - proferido sobre o pedido do administrador da insolvência no sentido de lhe ser passada certidão para a requisição do auxílio de força pública a fim de poder, dentro das suas funções, ordenar a mudança de fechaduras da creche e do primeiro andar, do imóvel arrolado nos autos – ordenou à ora recorrente a entrega do imóvel supra descrito, dentro do prazo de 45 dias, sem especificar as razões de facto e de direito que justificavam a decisão.

O despacho estava sujeito, no entanto, a fundamentação. Vejamos.

A questão decidida pelo despacho recorrido foi a da desocupação efectiva de imóvel que constituía a casa de habitação do insolvente.

Ora, salvo o devido respeito que nos merece a alegação da recorrida, a obrigação de a insolvente desocupar a casa de habitação não resultava directamente da sentença que declarou a insolvência.

Com efeito, a sentença, reproduzindo os dizeres da alínea g) do n.º 1 do artigo 36.º do CIRE, decretou a apreensão, para imediata entrega ao administrador da insolvência, de todos os bens da insolvente, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos, mas ressalvou o disposto no n.º 1 do artigo 150.º do CIRE.

Esta ressalva significou o seguinte: não seriam entregues ao administrador os bens apreendidos quando se verificassem as hipóteses previstas nos números 1 e 2 do artigo 756.º do CPC.

Entre tais hipóteses figurava a de o bem apreendido constituir a casa de habitação efectiva do insolvente [alínea a) do n.º 2 do artigo 756.º do CPC]. Em tal situação, quem ficaria depositário da casa de habitação seria o insolvente, ou seja, tal bem seria apreendido para a massa, mas não seria entregue ao administrador.

Segue-se do exposto que a desocupação do imóvel acima descrito, cujo 1.º andar constituía a casa de habitação da ora insolvente, não resultava directamente da sentença que declarou a insolvência. O que resultava directamente era a apreensão do imóvel, mas esta não estava em causa no requerimento do administrador da insolvência.

Assim sendo, o pedido de desocupação da casa de habitação, a fim de ela ser entregue ao administrador, para que dela ficasse depositário, representava uma modificação da situação definida pela sentença, quanto ao depositário de tal bem.

Em consequência devia considerar-se que tal pedido revestia a natureza de pedido controvertido no processo, carecendo, por isso, a decisão sobre ele de ser fundamentada [n.º 1 do artigo 154.º do CPC].

Além de carecer de fundamentação, a decisão sobre o pedido de desocupação da casa de habitação estava sujeita ao princípio do contraditório, por força do n.º 3 do artigo 3.º do CPC, na parte em que dispõe que o juiz deve observar ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta necessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.

Ao ordenar à insolvente que entregasse, ao administrador da insolvência, o imóvel apreendido que constituía a casa de habitação daquela, omitindo, por completo, as razões de facto e de direito da decisão, o despacho sob recurso incorreu na nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.

Por sua vez, ao proferir tal decisão sem facultar à insolvente a possibilidade de se pronunciar sobre a questão, a decisão incorreu na causa de nulidade prevista na 2.ª parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC [consistente no conhecimento de questões de que não podia tomar conhecimento].

Com efeito, este tribunal considera que a causa de nulidade prevista em tal segmento normativo compreende tanto os casos em que o tribunal conhece de questões que nem foram suscitadas pelas partes nem são de conhecimento oficioso, como as hipóteses em que o tribunal, embora conhecendo de questões suscitadas pelas partes, conhece delas sem observância do princípio do contraditório (citam-se em abono desta interpretação o acórdão do STJ de 23-06-2016, no processo n.º 1937/15.8T8BCL, publicado em www.dgsi.pt., bem como o entendimento do Senhor Professor Miguel Teixeira de Sousa, expresso designadamente em comentário ao acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido em 2/3/2015, no processo n.º 39/13.6TBRSD, em comentário ao acórdão do tribunal da Relação de Guimarães proferido em 31/10/2018, no processo n.º 1101/15.658PVZ-C, e em comentário ao acórdão do tribunal da Relação do Porto proferido em 2/12/2019, no processo n.º 14227/19.8T9PRT, publicados em https://blogippc.blogspot.com/, respectivamente, nos dias 23/03/2015, 04/03/2019 e 20/5/2020]

Pelo exposto, é de julgar procedente a arguição de nulidade da decisão por falta de fundamentação e por violação do princípio do contraditório.

Em consequência, deve a Meritíssima juíza do tribunal a quo, proferir nova decisão devidamente fundamentada depois de ouvir a insolvente sobre o requerimento do administrador da insolvência.

Observe-se que é sobre o tribunal a quo que impende o dever de suprir as nulidades da decisão visto que a regra do n.º 1 do artigo 665.º do CPC, segundo a qual ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal deve conhecer do objecto da apelação, vale apenas para as decisões nulas que põem termo ao processo, o que não é o caso da decisão recorrida.

Julgada procedente a arguição de nulidade da decisão recorrida, fica prejudicado conhecimento do pedido deduzido a título subsidiário.

Decisão:

Julga-se procedente o recurso e, em consequência:
1. Declara-se nula a decisão recorrida;
2. Determina-se que o tribunal a quo profira nova decisão sobre o requerimento apresentado pelo administrador da insolvência, após audição da ora insolvente.


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Responsabilidade quanto a custas:

Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e o facto de a recorrida ter ficado vencida, condena-se a mesma nas custas do recurso.

Coimbra, 13 de Julho de 2020

 

Emídio Santos ( Relator)

Catarina Gonçalves

Maria João Areias