Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
162/12.4TBMDA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: PAGAMENTO
MEIOS DE PROVA
INEXIGIBILIDADE DA OBRIGAÇÃO
NÃO
EMISSÃO DE FACTURA
CONDENAÇÃO
INCIDENTE DE LIQUIDAÇÃO
Data do Acordão: 12/16/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA GUARDA - V. N. FOZ CÔA - INST. LOCAL - SEC. COMP. GEN. - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 610.º/1 E 2/A) E 615.º/1/E) DO CPC)
Sumário: 1 - Tendo o contrato (empreitada) sido celebrado por documento, a prova do cumprimento da obrigação de pagar o preço dele emergente (isto é, a prova do facto extintivo da obrigação) não pode, em princípio, ser feita por testemunhas, mas apenas por meios probatórios de força superior.

2 - Não vale como princípio de prova por escrito – a tornar admissível a prova por testemunhas – um documento do próprio, daquele que quer valer-se da prova testemunhal.

3 - Sendo o pedido em incidente de liquidação, a sentença não pode (sem incorrer na nulidade do art. 615.º/1/e) do CPC) condenar em montante líquido (sem um pedido concreto/liquidado o tribunal não conhece o seu limite para condenar).

4 - A emissão obrigatória duma factura, respeitante a um serviço prestado, funciona como uma condição que, enquanto não preenchida, determina não poder considerar-se vencida e exigível a obrigação – toda ela, remuneração efectiva do serviço e imposto IVA – não havendo assim lugar a juros e havendo, isso sim, lugar à aplicação do art. 610.º/1 e 2/a) do CPC (ou seja, ao pagamento da obrigação apenas e só contra a apresentação da competente factura).

Decisão Texto Integral:

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

A... , residente na rua (...) , em Ílhavo, intentou a presente acção declarativa de condenação (hoje, com a forma comum) contra B... , construtor civil, residente na rua (...) , Meda, pedindo que este seja “condenado a proceder, no prazo de 2 meses, à eliminação de todos os defeitos alegados (no art.22.º da PI) e a indemnizar a autora pelo prejuízo sofrido, a liquidar ulteriormente”.

Alegou, em resumo, que celebrou com o R., em 26/01/2007, um contrato de empreitada, de acordo com o qual este se obrigou a construir uma moradia para a A. (pelo preço de € 70.000,00, montante a que, durante a execução da obra/empreitada, foram operados descontos de € 7.500,00 por trabalhos não efectuados e por que acabou por pagar, incluindo o custo dos trabalhos extra e os € 2.500,00 entregues ao engenheiro que elaborou o projecto, € 70.800,00), obra que o R. executou (entre Setembro de 2007 e o Carnaval de 2010) e de que a A. pagou o preço; sucedendo que, a partir de Abril de 2012, a A. “deu conta de fissuras, humidade e manchas de humidade nas paredes da habitação”, situação que comunicou ao R. verbalmente e por carta datada de 3 de Agosto de 2012, comprometendo-se este a efectuar a reparação de tais deficiências, o que ainda não aconteceu, motivo por que a moradia não pode ser utilizada, sofrendo a A. prejuízos que por ora se vê impossibilitada de quantificar.

O R. contestou, confirmando o contrato de empreitada, mas negando qualquer abatimento ao preço de € 70.000,00 (disse que, na fase negocial, propôs o preço de € 75.000,00, acabando por, no fecho do negócio, ser acordada a não instalação de aquecimento central e o desconto de € 5.000,00), preço a que acresce o valor devido de IVA.; e acrescentando que a A. apenas liquidou “a quantia de € 52.500,00, encontrando-se por liquidar a quantia de € 17.500,00 acrescida do IVA à taxa legal de 23%, o que perfaz o montante de € 16.100,00[1].

Ademais, impugnou os prejuízos e defeitos invocados pela A.; e, a título reconvencional, pediu o pagamento da quantia de € 33.600,00 (€17.500,00 + € 16.100 de IVA) e juros à taxa legal, desde a notificação da reconvenção até integral e efectivo pagamento.

Terminou pois pedindo a total improcedência da acção e a condenação da A. no pedido reconvencional formulado.

A A. respondeu, mantendo o alegado quanto ao preço (explicando as alterações ao mesmo ocorridas, durante a execução da obra), quanto ao seu integral pagamento (detalhando os montantes das diversas prestações efectuadas) e quanto a nele estar já incluído o IVA.

Concluiu do mesmo modo que na PI e,ainda, pela improcedência da reconvenção.

Treplicou o R. mantendo a posição antes assumida.

Admitida a reconvenção, foi proferido despacho saneador – que julgou a instância totalmente regular, estado em que se mantém – e organizada a matéria factual com interesse para a decisão da causa.

Instruído o processo, procedeu-se a julgamento – já à luz do NCPC – que decorreu com observância do legal formalismo, após o que foi proferida a seguinte sentença:

“ (…) pelo exposto, e de harmonia com as disposições legais citadas, decido julgar totalmente procedente a presente acção e parcialmente procedente a reconvenção e, em consequência:

 i) Condena-se o Réu a proceder à eliminação dos defeitos dados como provados no prazo de 6 (seis) meses, a contar da data do trânsito em julgado desta decisão.

 ii) Condena-se o Réu no pagamento à Autora no pagamento de uma indemnização pela privação do uso da sua habitação no valor de 150,00 € por cada mês que se viu privada de habitar o imóvel contabilizado desde Junho de 2012 até ao mês em que o Réu termine as obras referidas em i).

 iii) Condena-se a Autora no pagamento ao Réu da quantia global de € 21.675,00 (vinte e um mil seiscentos e setenta e cinco euros), a que acrescem ainda os juros de mora, nos termos peticionados, isto é, contabilizados sobre o valor de € 21.675,00 (vinte e um mil seiscentos e setenta e cinco euros), à taxa anual de 4%, desde a data da notificação da reconvenção até integral e efectivo pagamento da dívida.

 iv) Absolve-se a Autora do demais peticionado na reconvenção pelo Réu. (…)”

Inconformada com tal decisão, interpôs a A. recurso de apelação, visando a sua revogação e a sua substituição por decisão que “absolva a Autora do pedido reconvencional e condene o Réu a pagar à Autora indemnização à razão de 250,00€ por mês desde Junho de 2012 até à data da efectiva reparação dos defeitos do imóvel, bem como os juros de mora à taxa legal”.

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

I – A douta sentença enferma do vício de nulidade, porquanto, o único fundamento que apresenta para ter julgado não provado que a Autora pagou ao Réu a prestação de 7.500,00€ - facto d) dos não provados – é apenas a expressão “por não se ter logrado prova cabal quanto ao mesmo”. Com tal expressão, meramente conclusiva, não foi cumprido o dever de fundamentação, imposto pelos art. 607º, n.º 4, 1ª parte, do C.P.C. e 205º/1, da Constituição da República Portuguesa. Tais disposições não foram aplicadas no ponto em apreço, sendo que o vício da falta de fundamentação tem como consequência a nulidade da sentença, conforme o art. 615º, nº 1, al. c) do C.P.C.

II – Não tendo o R. emitido nem entregado à Autora qualquer recibo das quantias que esta lhe prestou, examinadas as cópias das facturas que constituem os documentos nºs. 18 e 19 da resposta à contestação e confrontando-as com os pagamentos que constam dos factos provados de P a Z e com o teor da carta de 56 a 58, que constitui o documento nº 17 apresentado com a mesma resposta, forçoso é concluir que a prestação em causa, de 7.500,00€ já se encontrava paga em 30/6/2009, quando o réu emitiu a segunda das duas mencionadas facturas; a conduta processual do réu enformada pelos factos descritos de 3.1.1 a 3.1.14.1. deveriam ter alicerçado e fundado presunção judiciária, conforme o artº 349º do C. Civil, em termos de o facto d) dos não provados (se a autora pagou a prestação de 7.5000,00 €) devesse ter sido julgado provado. A douta sentença errou ao não aplicar a citada regra do C. Civil.

III – Aliás, o depoimento da testemunha C..., cuja credibilidade foi, justamente, enaltecida pelo Tribunal (Cf. fundamentação da douta sentença recorrida) é de molde a fundar resposta positiva ao mesmo facto. O Tribunal não teve em consideração tal depoimento, assim aplicando erradamente a norma do art. 607º, nº 4, 1º parte, do C.P.C.

IV – De resto, o pagamento dos 7.500,00 € resulta também de confissão espontânea do próprio réu, ao prestar o seu depoimento de parte, como consta da gravação do seu depoimento e é referido em 3.1.14 supra.

V-A decisão proferida no início da audiência de julgamento, constante da respectiva acta, que ordenou o desentranhamento da carta subscrita pelos Exmos. Advogados do Réu, resulta de errada interpretação do Art. 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados, de acordo com a decisão do Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos Advogados e, como assim, deve ser revogada por forma a que o documento permaneça nos autos, ou, não sendo alterada a decisão, deve o mesmo documento agora apresentado ser admitido.

VI – Pelo que consta de 4. a 4.9. foi erradamente julgado o facto relativo h) dos não provados, devendo a decisão ser alterada por forma a que o mesmo facto seja julgado provado, ou seja, julgado provado que a autora não tem a obrigação de pagar o valor de IVA acrescido ao preço, por tal imposto já estar incluído no preço acordado para a empreitada.

VII – Os elementos de prova descritos de 5. a 5.6. são adequados a gerar a convicção de que a obra foi concluída e entregue à autora entre o final do ano de 2009 e os primeiros meses de 2010.

VIII – Alterada a decisão da matéria de facto, nada é devido ao réu reconvinte pela autora. Por isso a decisão de mérito deve ser no sentido de nada ser devido pela Autora ao Réu reconvinte, ou seja, nem a prestação de 7.500,00€ nem o acréscimo de IVA

IX – A indemnização em que o Réu foi condenado pela privação do uso da habitação mostra-se erradamente quantificada, estando a decisão de direito em desconformidade com a fundamentação de facto, devendo, por isso, aquela ser alterada, por forma a que a mesma indemnização seja calculada à razão de 250,00€ por mês, desde Junho de 2012 até à efectiva reparação dos defeitos do imóvel, de acordo com a decisão relativa aos factos apurados V e Z.

A douta sentença interpretou e aplicou erradamente as normas constantes dos Artºs. 563º, 564º, 798º, 1208º e 1223º do C. Civil (…) ”

Não foi apresentada qualquer resposta.

Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


*

II – “Reapreciação” da decisão de facto

A A/recorrente iniciou a sua alegação recursiva a dizer que discorda da decisão de facto por não ter sido dado como provado que:

a) Para pagamento do preço da empreitada em causa, a Autora fez uma transferência de 7.500,00€, em Abril de 2009 [2]

b) Para além do preço de 70.000,00€, a Autora não se obrigou a pagar o IVA de 16.100,00 €, com a 7ª e última prestação

Acrescentando ainda que, “embora sem interesse relevante para a causa, [também discorda] que tenha sido decidido que:

c). O Réu terminou a moradia por ele construída em Março de 2009;

d). Data em que a entregou à Autora”.

Significa isto que, em termos de reapreciação da decisão de facto, tão só nos vamos pronunciar sobre os dois primeiros factos, ou seja, sobre o pagamento de € 7.500,00 dado como não provado e sobre o preço contratual acordado já incluir o IVA devido.

Quanto aos outros dois factos, que também refere como tendo sido mal julgados, sendo completamente estranhos e alheios ao objecto do que se discute (e ao “pedido”) no recurso[3], não nos pronunciaremos, naturalmente, sobre eles[4].

Debrucemo-nos pois sobre a impugnação dos factos constantes das alíneas c) e h) dos factos não provados da sentença recorrida[5]:

Matéria/impugnação em que, antes, como verdadeira questão prévia, se coloca a questão da admissibilidade dum documento (meio de prova), cuja junção é requerida com a alegação recursiva.

O que – junção de tal documento – é inadmissível.

Por uma razão bem simples (e que não tem sequer a ver com relevância ou não do documento): por a A/apelante ter deixado transitar o despacho, proferido no início da audiência de julgamento (fls. 202 a 205), que não admitiu a junção de tal documento por, segundo tal despacho, a sua junção “violar o segredo profissional consagrado no art. 87.º do E.O.A.”.

E deixou transitar, uma vez que só com a presente apelação (ver conclusão V supra transcrita) vem a A. colocar em crise tal despacho do início da audiência, quando o mesmo, por força do art. 644.º/2/d) do CPC, devia ter sido impugnado autonomamente no prazo de 15 dias (cfr. 638.º/1 do CPC); o que não aconteceu.

Não está pois em causa o “fundo” da questão (saber se a junção do documento – carta enviada pelos mandatários do R. à mandatária da A. – viola ou não o segredo profissional consagrado no art. 87.º do E.O.A.) e tão pouco se discute a bondade do pedido de dispensa de sigilo profissional dirigido à O. dos Advogados e a decisão desta dizendo que o documento/carta em causa não está sujeita a “segredo profissional, não carecendo de autorização do Presidente do Conselho Distrital para que possa ser junta ao processo”.

O obstáculo à junção é, como já se referiu, outro: a A/apelante deixou estabilizar e que no processo fizesse caso julgado formal o despacho que rejeitou a junção do documento de fls. 61, pelo que não pode recolocar a questão (e com um fundamento que, no caso, até implicaria dizer que está errada a fundamentação do despacho de rejeição que deixou estabilizar) e pedir a junção daquilo que já foi rejeitado por despacho transitado em julgado.

Em consequência, não podendo já ser junto tal documento, não se pode também autorizar (com a alegação da A/Apelante) a junção da decisão do Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos Advogados (meramente instrumental, em relação à junção do documento/carta); ordenando-se a final, após o trânsito, o desentranhamento e restituição dos documentos juntos pela A/Apelante com a sua alegação.

Isto dito – concluído que o doc. de fls. 61 (e repetido a fls. 272) é um meio de prova que não pode ser tomado em conta – entremos na reapreciação da decisão de facto (incidente sobre as alíneas c) e h) dos factos não provados da sentença recorrida) propriamente dita.

Questão em que, tabelarmente, costumamos começar por dizer que “foram gravados os diversos depoimentos prestados em audiência, nos quais a 1ª instância se baseou para decidir a matéria de facto, constando assim do processo todos os elementos probatórios com que aquela instância se confrontou quando decidiu a matéria de facto, pelo que e é possível modificar aquela decisão, se enfermar de erro de julgamento.

Faculdade – de modificar a decisão de facto – em cujo uso, costumamos “avisar”, é nosso dever ser contidos, cautelosos e prudentes, uma vez que existem elementos intraduzíveis e subtis, como a mímica e todo o processo de exteriorização e verbalização dos depoentes, não importados para a gravação, susceptíveis de influir, quase tanto como as suas palavras, no crédito a prestar-lhes. O que, porém – salienta-se e enfatiza-se, para que não haja quaisquer equívocos interpretativos sobre o que se acabou de dizer – não significa que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto apenas envolve a correcção de pontuais, concretas e excepcionais erros de julgamento; efectivamente, a Relação, quando aprecia as provas – e pode para tal atender a quaisquer elementos probatórios – faz um novo julgamento da matéria de facto, vai à procura da sua própria convicção, assegura o duplo grau de jurisdição em relação à matéria de facto (ou seja, a actividade da Relação não se pode/deve circunscrever a um mero controlo formal da motivação efectuada na 1.ª Instância).

O que (acabado de transcrever) vale também aqui, embora, no caso e para a impugnação/reapreciação sob análise, importe também salientar que, além dos contributos resultantes dos meios probatórios gravados, é igualmente (ou talvez mais) relevante o que se extrai das posições processuais das partes (expressas nos articulados), dos documentos juntos e do que já se encontra (instrumentalmente) dado como provado.

Vejamos:

Está em causa saber, estamos a repetir-nos, se o preço contratual combinado já incluía o IVA devido e se ocorreu um concreto pagamento (de € 7.500,00, em 03/04/2009) de tal preço.

Trata-se, em ambos os casos, de factos relacionados com o preço – embora um tenha ver com fase estipulativa e o outro com a fase executiva – que estão assim ligados e cuja análise crítica se debruça sobre os mesmos contributos probatórios, pelo que vamos apreciá-los/analisá-los sequencialmente.

Começando, logicamente, pelo preço combinado:

No relatório inicial extractámos propositadamente o que o R. alegou nos art. 8.º e 12.º da sua contestação (em 29/01/2013), mais exactamente, que o R. alegou que a A. apenas liquidou “a quantia de € 52.500,00, encontrando-se por liquidar a quantia de € 17.500,00 acrescida do IVA à taxa legal de 23%, o que perfaz o montante de € 16.100,00”.

Trata-se de alegação que não bate certo com o que consta e está provado no processo; designadamente, não bate certo com os € 63.300,00 que, neste momento e fora de toda a dúvida, está já provado (e consta de documentos bancários juntos aos autos) a A. haver entregue ao R. (até 28/12/2009); e não bate certo com as duas facturas (juntas a fls. 59 e 60), no valor global de € 65.000,00 (IVA incluído), que, em 31/03/2009 e 30/06/2009, o R. emitiu em nome da A..

Trata-se ainda de alegação que não bate certo com a regra da exigibilidade do IVA – que é devido quando a prestação de serviço se considera realizada – de acordo com a qual, tendo a prestação de serviço ocorrido em 2009/princípio de 2010, seria suposto que a taxa invocada fosse de 20% (e não, como se refere nos artigos 8.º e 12.º da contestação, a taxa de 23%, cuja vigência é do inicio de Janeiro de 2011); “contradição” que só é explicável por, do valor de € 33.600,00, invocado e peticionado nos art. 8.º e 12.º da contestação (e na reconvenção), não ter sido emitida – oportuna ou sequer tardiamente – uma qualquer factura.

E se o não cumprimento das obrigações tributários não constitui, é certo, obstáculo à marcha processual e ao exercício de direitos (sem prejuízo do que se dispõe no art. 274.º do CPC), discutindo-se, como é o caso, se um concreto preço combinado já inclui ou não o IVA devido, não pode/deve deixar de dar que pensar a circunstância do prestador de serviço nunca ter emitido as facturas que, somadas, perfazem o montante correspondente ao que seria o preço combinado mais o respectivo IVA, ou seja, a circunstância de se apresentar em juízo a pedir (na reconvenção) o pagamento dum serviço de que nunca emitiu a devida factura, a pedir o pagamento dum serviço que verdadeiramente nunca “manifestou/comunicou” – oportuna ou sequer tardiamente – à administração fiscal.

O que, tendo decorrido 3 anos – entre a data em que devia ter sido emitida a factura e a data em que se apresentou a pedir o pagamento dos € 33.600,00 – é algo que não pode ser considerado irrelevante ou inconcludente; tanto mais que, em tal lapso temporal – em face do alegado (e do próprio pedido reconvencional, em que os juros são pedidos apenas da notificação de tal pedido) – nunca o R. terá pedido à A. que lhe pagasse tais € 33.600,00.

Enfim, circunstâncias que, “somadas” e devidamente apreciadas/articuladas segundo as regras da experiência, nos levam a concluir e a dar como provado que o preço combinado/estipulado pelas partes – os € 70.000,00 que constam do doc. de fls. 9 e os preços depois combinados para os trabalhos extra e custo do projecto – era já toda a soma pecuniária que a A. tinha que desembolsar[6], pertencendo depois ao R. (ao prestador do serviço) acomodar fiscalmente, à luz do CIVA, a soma recebida da A..

É que é isto que resulta, objectivamente, dos factos ocorridos até à propositura da acção: o R. emitiu, em datas coevas da prestação do serviço, as duas facturas que constam de fls. 18 e 19 e que perfazem  um montante próximo (65.000,00, IVA incluído) do efectivamente recebido da A. e por aí se ficou o R. nos 3 anos seguintes; deixando claramente transparecer – pela objectividade do acontecido quer durante a execução contratual quer nos 3 anos seguintes – que não havia IVA “em cima” do preço combinado/estipulado (e, claro está, sendo o IVA devido, havia que acomodá-lo “por baixo” do preço combinado).

Com a contestação, é certo, o R. juntou um documento (fls. 35), denominado “orçamento”, em que consta o preço de “€ 75.000,00 acrescido de IVA”, porém, para além de tal documento estar apenas assinado pelo R., sucede que o “contrato de empreitada” (junto a fls 9) – este, sim, assinado por ambos os contraentes – não faz qualquer alusão ao IVA, permitindo a “interpretação” que vimos de fazer (sem os estorvos e limitações dos art. 393.º e 394.º do C. Civil)[7].

Passemos pois aos € 7.500,00, dado como não provados:

Há que começar por referir que tal pagamento (assim como os outros que foram dados como provados) está, em princípio, sujeito à limitação probatória do art. 395.º do C. Civil, ou seja, tendo o contrato de empreitada sido celebrado por documento, a prova do cumprimento da obrigação de pagar o preço dele emergente (isto é, a prova do facto extintivo da obrigação) não pode, em princípio, ser feita por testemunhas, mas apenas por meios probatórios de força superior.

Dissemos “em princípio”, uma vez que há muito que a doutrina e a jurisprudência excogitaram excepções e desvios a tal limitação probatória, designadamente, vem-se admitindo que, em tal hipótese, a prova seja feita por testemunhas “quando exista um começo ou princípio de prova por escrito[8].

Sucede – é o ponto – que não existe nos autos, em relação aos € 7.500,00 dados como não provados, um princípio de prova por escrito.

Efectivamente:

Não vale para tal efeito – como princípio de prova por escrito – um documento do próprio, daquele que quer valer-se da prova testemunhal; isto é, no caso, não vale como princípio de prova por escrito a carta (manuscrita) da A. junta a fls. 56 a 58[9].

Assim como não produzem tal efeito as duas facturas (juntas a fls. 59 a 60) emitidas pelo R.; é que – chama-se a atenção – são apenas facturas, não significando que os montantes das mesmas já tivessem sido recebidos quando foram emitidas[10].

Temos pois, concluindo neste ponto, que os € 7.500,00 dados como não provados, só podiam/podem ser provados por documento ou por confissão.

Sendo assim, não tendo sido junto qualquer documento bancário (cheque ou transferência) demonstrativo de tal pagamento, resta o depoimento de parte do R., em que este, efectivamente, antecipando a nossa conclusão, confessou haver recebido € 2.500,00 de tais € 7.500,00.

Pelo seguinte:

A determinada altura da sua alegação recursiva, a A/apelante extracta o que, a seu ver, o R. terá dito no seu depoimento de parte, atribuindo-lhe o ter dito que o valor das facturas (€ 65.000,00) correspondia ao dinheiro que no momento da emissão de tais facturas já havia recebido da A..

Não foi, porém, bem isto que o R. disse; ou melhor, depois de algumas hesitações, de avanços e retrocessos no seu depoimento (decorrentes das intervenções e perguntas quer do tribunal quer de ambos os mandatários), o R. acabou por se fixar em dizer que, à época da emissão das facturas, havia recebido menos € 5.000,00 que o valor das facturas que emitiu[11], ou seja, admitiu/confessou que, em 30/06/2009, já tinha recebido da A. € 60.000,00, isto é, mais € 2.500,00 (que os € 57.500,00 que estão dados como provados ter recebido até tal data).

Mais do que isto (destes € 2.500,00) é que não confessou e por isso não se pode dar como provado qualquer outro pagamento.

Aliás, em linha com tal conclusão, importa referir que se extrai claramente da carta manuscrita da A./apelante (junta a fls. 56/58) que, desde o final de 2009, havia alguma divergência, entre as partes, sobre os pagamentos efectuados pela A., pelo que devia a A. ter diligenciado (e teve quase 5 anos) pela “prova bancária” de todos os pagamentos[12]; pelo que, embora estivesse/esteja vedado dar como provado o pagamento dos € 7.500,00 por presunção judicial (ex vi art. 351.º do C. Civil), a verdade é que, ainda que assim não fosse/seja, também lá não “chegaríamos” por ilações/presunções[13]: de certo modo até, em face dos documentos juntos, a ilação/presunção seria a de que não houve tal transferência bancária de € 7.500,00 (doutro modo, ela estaria nos autos).

E de toda esta convicção, que acabámos de expor[14], irradia, necessariamente, para os 2 pontos de facto sob análise/apreciação, como provado:

“ que a A. entregou € 2.500,00 em Abril de 2009 ao R.

“ que, para além do preço de € 70.000,00, do preço dos extras e do referido em O), a autora não se obrigou a pagar outras quantias, sendo em tais montantes que o R. (que o prestador do serviço) acomodava o IVA que fosse devido”

Mantendo-se como não provado:

“ que a Autora fez uma transferência de € 7.500,00 da CGD n.º (...) a 03 de Abril de 2009”

É quanto há a dizer e concluir sobre o recurso de facto, que procede nos termos que acabam de ser referidos e estabelecidos.


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III – Fundamentação de Facto

III. A – Factos Provados

A) B... , como primeiro outorgante e A... como segundo outorgante celebraram escrito em 26 de Janeiro de 2007 que denominaram de “Contrato de Empreitada” onde acordaram entre si, reciprocamente, o seguinte:

 “(…)


1.ª

O primeiro outorgante obriga-se para com o segundo outorgante a executar os trabalhos de construção de uma moradia de acordo com a planta e projecto apresentada pelo segundo outorgante, pelo valor global de 70.000,00 (setenta mil euros).

2.ª

O segundo outorgante obriga-se para com o primeiro ao pagamento total deste contrato conforme acordado por ambos os outorgantes, o valor global de 70.000 (setenta mil euros).

3.ª

O pagamento do valor total do contrato será feito em prestações faseadas da seguinte forma:

1.º Prestação: Ao assinar o contrato – 10.000€

2.º Prestação: Ao colocar a placa de tecto – 10.000€

3.º Prestação: Ao arrematar o telhado – 10.000€

4.º Prestação: Todos os rebocos estiverem prontos – 10.000€

5.º Prestação: Todos os mosaicos e azulejos aplicados – 10.000€

6.º Prestação: Todas as portas interiores e exteriores aplicadas – 10.000€

7.º Prestação: Quando todos os trabalhos estiverem concluidos – 10.000€ (…)”

B) Na negociação preliminar ao contrato referido em A), a Autora mostrou ao Réu o terreno onde queria implantada a construção da moradia, bem como um esboço ou desenho da compartimentação pretendida feito por designer.

C) No seguimento, foi o Réu quem contratou o engenheiro que elaborou o projecto.

D) O qual, por corresponder à construção que esta pretendia, teve a concordância da Autora quando o Réu lho apresentou.

E) Após o projecto, foi celebrado o escrito mencionado em A) agindo o Réu como construtor civil, titular do alvará n.º 15330 ICC, actividade que exerce regular e habitualmente, da qual retira o rendimento de que vive, bem como o seu agregado familiar.

F) A moradia construída pelo Réu é de um piso e cinco divisões e situa-se na Rua da (...) , freguesia da (...) , Concelho de Mêda, confinando de Norte com (...) , de Sul com caminho público, de Nascente com (...) e de Poente com (...) , inscrito na matriz urbana sob o artigo 461.º.

G) A Autora quando negociou e aceitou o escrito mencionado em A) teve em vista possuir uma casa, na sua terra natal e dos seus antecessores para ali se deslocar, nas férias e fins-de-semana, na companhia do seu agregado familiar e para efeitos de arrendamento, eventualmente na forma de turismo rural.

H) Por alvará de obras de construção foi concedido prazo para a conclusão da obra descrita em A) de um ano a iniciar em 12 de Março de 2008 a 11 de Março de 2009.

I) O Réu iniciou por fazer trabalhos de preparação de terreno e abertura de valas para os alicerces.

J) No decurso da obra a Autora e o Réu acordaram em este não instalar aquecimento central na moradia, descontando € 5.000,00 no preço referido.

L) E acordaram também que a Autora forneceria as louças sanitárias, descontando o Réu, no preço da obra, a quantia de €2.500.00.

M) Ao valor inicial acrescentaram-se € 5.000,00 relativos a trabalhos extra de execução de passeios.

N) Bem como € 800,00 relativos a extras de carpintaria.

O) E € 2.500,00 relativos ao custo do projecto descrito em C) e D).

P) Para além do preço de € 70.000,00, do preço dos extras e do referido em O), a autora não se obrigou a pagar outras quantias, sendo em tais montantes que o R. (o prestador de serviço) acomodava o IVA que fosse devido”

Q) A Autora pagou ao Réu a quantia de € 5.000,00 por transferência da CGD n.º (...) a 27 de Fevereiro de 2008.

R) A Autora pagou ao Réu a quantia de € 5.000,00 por transferência da CGD n.º (...) a 13 de Junho de 2008.

S) A Autora pagou ao Réu a quantia de € 12.500,00 por cheque n.º02624142 sacado do BES com o n.º 230283410005 a 19 de Junho de 2008.

T) A Autora pagou ao Réu a quantia de € 10.000,00 por transferência da CGD n.º (...) a 5 de Julho de 2008.

U) A Autora pagou ao Réu a quantia de € 5.000,00 por cheque n.º2243068399 sacado da CGD n.º (...) a 7 de Agosto de 2008.

V) A Autora pagou ao Réu a quantia de € 10.000,00 por cheque n.º9082624431 sacado da CGD n.º (...) a 3 de Agosto de 2008.

X) A A. entregou ao Réu € 2.500,00 em Abril de 2009.

Z) A Autora pagou ao Réu a quantia de € 10.000,00 por cheque n.º7170776519 sacado da CGD n.º (...) a 6 de Abril de 2009.

AA) A Autora pagou ao Réu a quantia de € 800,00 por cheque n.º5370776521 sacado da CGD n.º (...) a 2 de Julho de 2009.

BB) A Autora pagou ao Réu a quantia de € 5.000,00 por transferência da CGD n.º (...) a 28 de Dezembro de 2009.

CC) Os sobreditos pagamentos foram creditados, a pedido do Réu e por sua indicação, em três contas do seu interesse com os nºs. (...) e (...) , junto da CGD.

DD). Estando nesses valores incluídos os € 2.500,00 destinados ao engenheiro projectista que foram ao Réu sob a razão de os destinar ao engenheiro projectista, bem como os € 800,00 a destinar ao carpinteiro.

EE) O Réu terminou a moradia por ele construída.

FF) Data em que a entregou à Autora.

GG) A qual a aceitou sem opor qualquer reserva.

HH) Em data não concretamente apurada mas após Março de 2009 e anterior a 3 de Agosto de 2012, a Autora deu conta de que na face interior de todas as paredes que contactam com o exterior e também nas das divisões que têm contacto com essas paredes da moradia em causa surgiram fissuras, bem como humidade e manchas de humidade.

II) E que também os móveis e armários de madeira mostravam sinais de humidade.

JJ) A moradia apresenta hoje fissuras em algumas paredes e tectos em especial das divisões com parede de contacto com o exterior.

LL) Bem como humidade, manchas e outras deteriorações por aquela causadas nas paredes e tectos, em especial das mesmas divisões referidas em AF).

MM) Bem como humidade e deterioração nas peças de madeira situadas no interior e na parte inferior de armários e da bancada de cozinha da moradia em causa.

NN) A porta envidraçada da cozinha permite a entrada de água.

OO) O piso do exterior apresenta desnível superior a 3cm e inferior a 10 cm.

PP) Em 3 de Agosto de 2012, a Autora, através de advogado, dirigiu carta interpelativa ao Réu no sentido de obter a reparação.

QQ) O Réu já foi tentar reparar o desnível do piso exterior, mas voltou à mesma situação.

RR) Até à data o Réu não concluiu qualquer reparação.

SS) Devido à humidade e ao estado em que se encontram as paredes, madeiras e tectos, bem como à existência de bolores e outros fungos causados pela humidade, a moradia deixou de poder ser utilizada para habitação desde Junho de 2012.

UU) O valor locativo da moradia em questão estima-se em € 250,00 por mês.

VV) A Autora ainda tem mobiliário e electrodomésticos no interior da moradia.

XX) As deficiências apontadas podem ser eliminadas em não menos do que €12.000,00, dependendo das condições climatéricas o prazo de dois meses para o efeito.


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III. B – Factos Não Provados

Não se provou:

a) Que no âmbito do escrito mencionado em A) Autora e Réu acordaram também que, no dito preço estava incluído o custo do projecto.

b) Que o Réu iniciou a obra em Setembro de 2007 e concluiu-a por altura do Carnaval de 2010.

c) Que a Autora fez uma transferência de €7.500,00 da CGD n.º (...) a 03 de Abril de 2009.

d) Que os sobreditos pagamentos foram creditados, a pedido do Réu e por sua indicação ainda na conta n.º (...) , junto do Banco Millenium BCP.

e) Que até à data de entrada da presente acção apenas haviam sido entregues 2 recibos no valor total de € 65.000,00.

f) Que a Autora comunicou verbalmente tais defeitos ao Réu.

g) Que este comprometeu-se a efectuar a sua reparação.

h) Que o Réu por diversas vezes solicitou à Autora o pagamento da quantia de € 33.600,00.

i) Que a Autora tem no interior electrodomésticos que estão a deteriorar-se.


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IV - Fundamentação de Direito

Não se discute – nunca se discutiu – que as partes celebraram um contrato de empreitada; que, por definição legal (art. 1207.º do C. Civil), é o contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço.

E quando alguém se obriga a realizar uma obra, mediante um preço – como aconteceu entre A. e R. – fica obrigado, não só a efectuar os trabalhos e a fornecer os materiais necessários à execução da obra, como também e fundamentalmente a que o resultado final – obra – fique concluído em conformidade com o convencionado e sem vícios; é o que claramente resulta do art. 1208.º do CC.

Daí o dizer-se que é obrigação do empreiteiro executar a obra sem defeitos; que, no contrato de empreitada, o cumprimento do empreiteiro ter-se-á por defeituoso quando a obra tenha sido realizada com deformidades ou vícios (1208.º CC), configurando “deformidades” as discordâncias relativamente ao plano convencionado e constituindo “vícios” as imperfeições que excluem ou reduzem o valor da obra ou a sua aptidão para o uso ordinário ou previsto no contrato.

Temos pois que em litígios, como é o caso, emergentes de contrato de empreitada podemos ter dois momentos de discussão: um primeiro, tendo em vista fixar/estabelecer os elementos essenciais da fase estipulativa do concreto contrato invocado, tendo em vista apurar os concretos trabalhos/obras a executar, bem como o preço dos mesmos; e um segundo, sobre as vicissitudes ocorridas na fase executiva e dinâmica do contrato, em que se apura se o empreiteiro executou todos os trabalhos acordados e sem defeitos ou vícios e em que se apura se o dono da obra pagou ou não o preço.

Era/é o caso do litígio dos autos: em que as partes/contraentes colocaram sob discussão, quer o perímetro dos trabalhos a executar e o preço do contrato, quer a perfeição da execução dos trabalhos e o pagamento do preço.

Discussão que, quanto à acção, o objecto da apelação circunscreve (desde logo por apenas a A. estar a interpor recurso) ao montante da indemnização mensal pela privação do uso da habitação (indemnização que a sentença recorrida fixou em € 150,00 e que a A. pretende ver majorada para € 250,00); outro tanto não sucedendo quanto à reconvenção, em que o objecto da apelação (englobando a fase estipulativa do preço e o seu pagamento) se aproxima do objecto da própria reconvenção.

Isto dito, delimitado o objecto da apelação;

Começando pela acção:

Como acabámos de referir, o objecto da apelação circunscreve-se tão só ao montante da indemnização mensal pela privação do uso da habitação (indemnização que a sentença recorrida fixou em € 150,00 e que a A. pretende ver majorada para € 250,00); estando assim já consolidado nos autos que à A. assiste o direito a uma indemnização e que a mesma visa indemnizar a A. pela privação do uso da habitação.

Efectivamente, expendeu-se na sentença recorrida – sem que tal suscite (naturalmente) qualquer censura da A/apelante – que “quando [o dono da obra] pede que o empreiteiro elimine os defeitos, pode cumulativamente exigir o pagamento de uma indemnização – artigo 1223.º do Código Civil. Trata-se do direito que o dono da obra tem de ser indemnizado pelos prejuízos que não fiquem reparados, por exemplo, com a eliminação dos defeitos de uma casa, quando, para eliminação do vício for preciso certo tempo e isso levar o empreiteiro a entregar o imóvel com atraso, privando o dono da obra durante algum tempo do uso e gozo da coisa, causando-lhe prejuízos.

Acrescentando-se, mais à frente, que “resulta provado que devido à humidade e ao estado em que se encontram as paredes, madeiras e tectos, bem como à existência de bolores e outros fungos causados pela humidade, a moradia deixou de poder ser utilizada para habitação desde Junho de 2012, encontrando-se o valor locativo da moradia em questão estimado em € 250,00 por mês.

Existe manifestamente um dano por privação de uso da habitação. A Autora deixou de poder habitar na casa que procurou construir desde Julho de 2012 e ficou impedida de usufruir dos seus frutos – mormente arrendando o imóvel de acordo com os valores do mercado imobiliário – sendo certo que o valor locativo de um imóvel similar não seria inferior a 250,00 € por mês. Ou seja, ficou demonstrado que se mantém a Autora privada da sua casa por culpa do Réu e tolhida no seu direito de propriedade pleno, em especial nas suas vertentes de gozo, uso e de habitação.”

Concluindo-se que “apesar de provado, não se considera o valor locativo, nem o dano se traduz no facto de a Autora ter deixado de arrendar o imóvel devido aos defeitos da obra, até porque não foi alegado que a construção se destinava ao arrendamento, mas sim à habitação da Autora e da família, optando-se assim por um valor ou referência mensal adequado e proporcional, inferior, no valor de € 150,00 mensais.

Observações estas que de que em substância não divergimos.

Sem prejuízo, claro está, da condenação proferida representar a nulidade de sentença do art. 615.º/1/e) do CPC; uma vez que o pedido era em incidente de liquidação e a sentença liquida já a condenação.

Em face dos danos alegados e provados – concorda-se com a sentença recorrida – não se justificava (à luz da economia processual) uma condenação a liquidar em posterior incidente, porém, foi isto que foi pedido (e que foi admitido como pedido) e acima de tudo – é este o grande obstáculo processual com que numa situação desta nos deparamos – sem um pedido concreto/liquidado o tribunal não conhece o seu limite para condenar (não sabe se está a respeitar ou não o princípio do pedido).

Assim, não sendo a nulidade em causa de conhecimento oficioso, só nos referimos a ela por que estamos, aqui e agora, perante uma consequência de tal “obstáculo processual”; ou seja, não tendo a A/apelante liquidado/concretizado o pedido indemnizatório não sabemos (não podemos dizer) que tenha ficado vencida (cfr. 631.º/1 do CPC) na indemnização que lhe foi concedida.

Seja como for – e sem completo rigor processual (esquecendo que não sabemos em que pedido concreto/liquido, formulado na acção, nos movemos) – admitimos, não havendo razão substantiva para majorar a indemnização, que o decidido pode/deve ser mantido.

Pelo seguinte:

A privação do uso de uma coisa, inibindo o proprietário ou detentor de exercer sobre a mesma os inerentes poderes, constitui, em termos naturalísticos, uma perda, cuja constatação não é escamoteável.

E, conferindo o nosso sistema ao lesado o direito à reconstituição natural (art. 562.º e 566.º/1 do CC), sendo esta impossível, a recomposição da situação danosa reclama que, pela única via possível, ou seja, pela atribuição de um equivalente pecuniário, o lesado seja reintegrado; uma vez que, sendo inquestionável que o direito de propriedade integra, como um dos seus elementos fundamentais, o poder de exclusiva fruição, também nesta perspectiva, sendo a indisponibilidade material dos bens um dos principais reflexos do direito de propriedade, deve “por defeito” afirmar-se que a privação representa um dano merecedor de alguma indemnização[15].

Efectivamente, não deve ser considerado como pressuposto necessário da indemnização a alegação e prova dos concretos e exactos ganhos que a A. retiraria da habitação; tal alegação e prova contende já com o quantum da indemnização, com a possibilidade de aceder a montantes “acrescidas”.

Assim, no caso em apreço, na falta de prova de prejuízos concretos e quantificados, deve a mera privação do uso da habitação ser desde já ressarcida com recurso à equidade; figura que tem na responsabilidade civil um campo de eleição, uma vez que se está recorrentemente perante a indisponibilidade de elementos objectivos ou face à impossibilidade duma determinação exacta dos danos (566.º/3).

E, ponderando as diversas circunstâncias do caso, designadamente o valor locativo de um imóvel similar não ser inferior a € 250,00, tomando em conta “todas as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas, da criteriosa ponderação das realidades da vida[16], temos que o montante/indemnização fixado (150,00 € por mês) não peca por reduzido e insuficiente; e, nesta estrita medida, julga-se improcedente tal parte da apelação.

Passando à reconvenção:

Sobre o preço (elemento essencial do contrato de empreitada), em termos de momento/fase estipulativa, a discussão que transita para a apelação cinge-se ao IVA; mais exactamente, cinge-se a saber se o preço (já dado como provado) incluía ou não o IVA.

Não/nunca está/esteve em causa que pelo serviço/empreitada executado é devido IVA (que o serviço/empreitada é um facto gerador de IVA, como resulta, entre outros, do art. 7.º/1/b) do CIVA); a questão – toda a questão – está em saber se o preço era na modalidade de IVA incluído ou de IVA a acrescer.

Efectivamente, concorda-se com a sentença recorrida, a incidência do IVA sobre o preço – sem prejuízo de se entender que caso se não demonstre o que foi estipulada por vontade das partes se deve concluir que a modalidade aplicável é a de IVA a acrescer (o ónus da prova da modalidade IVA incluído recai sobre o adquirente), uma vez que, tratando-se de um imposto sobre o consumo, recai sobre o dono da obra – pode ser convencionada contratualmente quer na modalidade de IVA incluído quer na modalidade de IVA a acrescer.

O que significa que nada impedia que, no momento/fase estipulativa, as partes/contraentes acordassem que o preço fixado era já com IVA incluído, acordo que não contraria qualquer norma legal imperativa.

É/foi justamente o caso; como resulta da modificação operada à decisão de facto, em que passou a dar-se como provado o que antes constava como não provado na alínea h) da sentença recorrida, isto é, passando a ficar provado (com o que a A. cumpriu o seu ónus da prova da modalidade de IVA incluído) que “para além do preço de € 70.000,00, do preço dos extras e do referido em O), a autora não se obrigou a pagar outras quantias, sendo em tais montantes que o R. acomodava o IVA que fosse devido” (alínea P) dos factos provados deste acórdão).

Em síntese, o preço da empreitada era/foi na modalidade de IVA incluído, pelo que, em face do que se provou, o preço global/final, IVA incluído, foi de € 67.500,00[17].

Deste preço de € 67.500,00 – passando à fase executiva, o mesmo é dizer à fase em que a A. procedeu ao pagamento do mesmo – a A. pagou ao R. a quantia global de € 62.500,00[18]; é o que resulta do que já vinha provado da 1.ª Instância e da modificação operada à alínea c) da sentença recorrida, em que se passou a dar como provado que a A. entregou ao Réu mais € 2.500,00 em Abril de 2009 (alínea X dos factos provados deste acórdão).

Encontra-se assim por liquidar ao R. o montante de € 5.000,00; montante este em que, como resulta do antes referido, o IVA já está incluído.

Montante este que só é/será devido contra a apresentação da respectiva factura (em que, repete-se, o IVA deve estar acomodado dentro de tais € 5.000,00); que, como resulta dos autos/factos, nunca foi emitida e apresentada à A..

Efectivamente, a emissão e apresentação duma factura, respeitante a um serviço prestado, não constitui apenas uma obrigação legal imposta pelos arts. 29.º/1/b) e 36.º/1 do CIVA; acaba por funcionar também como uma condição de cuja verificação/preenchimento depende a exigibilidade do pagamento em causa.

Vale a pena ter presente que o IVA é um imposto cobrado por uns, mas suportado economicamente por outros; daí o disposto nos referidos arts. 29.º/1/b) e 36.º/1 do CIVA, segundo os quais (e sem prejuízo do disposto no art. 7.º/1/a) do CIVA, de acordo com o qual o IVA é devido e torna-se exigível no momento da realização do serviço) a obrigação do pagamento deste imposto só nasce com a emissão do documento contabilístico competente, ou seja, da respectiva factura.

Emissão obrigatória de factura que é pois uma condição legal da exigibilidade do IVA pela prestadora do serviço à utilizadora do serviço (que é quem deve efectivamente suportá-lo, que é a contribuinte de facto); e, sendo assim, não é apenas o IVA que não pode ser exigido sem prévia emissão e apresentação de factura (com os requisitos estabelecidos no art. 36.º/5 do CIVA), é antes toda a dívida, ainda em discussão, que não pode ser exigida (uma vez que, sendo o IVA exigível no momento de realização do serviço, a remuneração deste serviço não pode ser exigida sem ser exigido o respectivo IVA).

Em conclusão – perspectivando em termos jus-civilistas o que vimos dizendo[19] – a emissão obrigatória de factura funciona como uma “implícita” condição legal (cfr. art. 270.º do C. Civil), que, enquanto não preenchida, determina não poder considerar-se vencida e exigível a obrigação[20] – toda ela, remuneração efectiva do serviço e imposto IVA – aqui litigada, havendo, por isso, lugar à aplicação do art. 610.º/1 e 2/a) do CPC.

Daí que se tenha começado por dizer que os € 5.000,00 só são/serão devidos contra a apresentação da respectiva factura (em que, repete-se, o IVA deve estar acomodado dentro de tais € 5.000,00[21]).


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V - Decisão

Nos termos expostos, decide-se julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida quanto ao decidido sobre a acção e revoga-se o decidido quanto à reconvenção, substituindo-se o aí decidido pela condenação da autora no pagamento da quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros) ao réu, mas apenas contra a apresentação da competente factura (cfr. 610.º/2/a) do CPC); absolvendo-se a A. do demais peticionado na reconvenção.


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Custas: na 1.ª Instância, da acção e reconvenção pelo R.[22]; nesta instância, 1/5 pela A./apelante e 4/5 pelo R/apelante.

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Ordena-se, após o trânsito, o desentranhamento e restituição a A./apelante dos documentos juntos com a alegação.

Custas do incidente a seu cargo.

Taxa: 1 UC.


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Coimbra, 16/12/2015

(Barateiro Martins)

(Arlindo Oliveira)

(Emídio Santos)



[1] Artigos 8.º e 12.º da contestação.
[2] Por lapso, diz que se trata da alínea d) – mas é alínea c) – dos factos não provados da sentença.
[3] Concorda-se pois com a A/recorrente quando os considera irrelevantes, não se percebendo, sendo assim, por que os incluiu na impugnação.
[4] E para que não haja dúvidas sobre a irrelevância do que se impugna, até retiraremos as datas em causa dos factos provados.

[5] Que são/eram do seguinte teor (ou seja, não se provou que): “c) Que a Autora fez uma transferência de €7.500,00 da CGD n.º (...) a 03 de Abril de 2009.”; “h) Que para além do preço de € 70.000,00 a autora não se obrigou a pagar o IVA no montante de €16.100,00 com a 7ª e última prestação.

[6] Não se ignora que é/foi isto que a testemunha C... referiu, porém, vivendo em união de facto com a A. (e sendo por isso “parte interessada”), não é o seu depoimento que reputamos como decisivo ou sequer relevante para extrair tal conclusão.

[7] Pode até dizer-se, duma certa perspectiva, que o documento de fls. 35 indicia o contrário do pretendido: é suposto (pondo de lado a data rasurada do mesmo), no iter negocial, que um orçamento (fls. 35) é temporalmente anterior ao documento de formalização/fecho do contrato (fls. 9) e que um orçamento exprima ainda intenções/declarações negociais não convergentes, pelo que, se no orçamento se diz que “acresce IVA” e, depois, no documento de formalização/fecho do contrato, se omite tal menção, então, poder-se-á dizer, tal resultou da negociação que continuou a haver e de ter sido, sem tal menção, que se fez a convergência negocial, ou seja, de ter sido acordado um novo e diferente preço, mais baixo (o que a inclusão do IVA no preço reflecte).
[8] Cfr. RLJ, ano 103.º, 13 e ss, e ano 107.º, 311 e ss.

[9] Carta que o R. não tinha que impugnar especificadamente – ao contrário do que a A. sustenta na alegação recursiva – uma vez que a sua impugnação já resultava da versão dada dos factos (pelo R.) nos articulados.

[10] Referimo-nos, naturalmente, à argumentação (também constante da alegação recursiva) em que a A. sustenta que é com tal pagamento de € 7.500,00 (dado como não provado) que se perfazem os € 65.000,00 das duas facturas emitidas.

[11] Foi isto mesmo que o mandatário da A. verbalizou/sintetizou (e bem) no final de tal trecho do depoimento do R., não se compreendendo assim o que, diferentemente, extractou na sua alegação recursiva.

[12] E dizemos “prova bancária”, por não ter sido alegado que os € 7.500,00 hajam sido pagos em “cash” e por os movimentos/transferências bancárias deixarem um rasto que é possível reconstituir e demonstrar.

[13] Não é por o R. ter faltado à verdade sobre alguns pagamentos que recebeu (e que negou ter recebido) que se deve presumir (retirar a ilação) que todos os pagamentos alegados pela A. foram efectuados.

[14] Em que não aludimos à nulidade do art. 615.º/1/c), invocada logo na conclusão I, por ser de todo evidente, a nosso ver, que a mesma não se verifica.

Efectivamente, segundo a referida alínea c), constitui causa de nulidade da sentença os fundamentos estarem em oposição com a decisão, porém, quando se fala, a tal propósito, em “oposição entre os fundamentos e a decisão”, está-se a aludir à contradição real entre os fundamentos e a decisão; está-se a aludir à hipótese de a fundamentação apontar num sentido e a decisão seguir caminho oposto. Assim, segundo a lógica da A/apelante, a nulidade de sentença que deveria estar a ser invocada era a da alínea b), segundo a qual constitui causa de nulidade da sentença a falta de fundamentação, porém, quando aqui se fala em “falta de fundamentação”, está-se a aludir à falta absoluta e não às situações em que a fundamentação é deficiente, incompleta ou não convincente.

Explicado o sentido de tais causas de nulidade de sentença, é de todo evidente que só por manifesto lapso se pode invocar o vício de nulidade em relação a uma sentença em que os fundamentos, de facto e de direito, se encontram expostos, em que se conclui em harmonia com o exposto e em que se conheceu, sem excesso ou omissão, das questões devidas.

Mas ainda mais do que isso, uma vez que é na motivação de facto – em ter-se dito, para se dar como não provado o facto c), tão só que “não se logrou prova cabal quanto ao mesmo” – que a A/apelante situa a nulidade e não exactamente na fundamentação de facto propriamente dita; e para tal situação, de insuficiência da fundamentação da motivação de facto, estabelece a lei (em face da sua instrumentalidade em relação à fundamentação de facto propriamente dita) outro tipo de reacção no art. 662.º/2/d) do NCPC.

[15] Em termos de distribuição do ónus da prova, pode dizer-se que a privação do uso corresponde ao facto constitutivo do direito de indemnização correspondente ao dano imediatamente emergente; e que, constatada a privação do uso determinativa da perda temporária das faculdades inerentes ao direito de propriedade, a negação da indemnização pressuporá a contraprova de factos atinentes ao inerente prejuízo patrimonial, isto é, que há um ónus da prova (contraprova) dos factos impeditivos, a cargo do responsável pela privação.
[16] Pires de lima e Antunes Varela, C. C. Anotado, 4ª ed., Vol. 1º, p. 501.

[17] Aos € 70.000,00 iniciais, descontámos os € 2.500,00 devidos pelo não fornecimento pelas loiças sanitárias e os € 5.000,00 devidos pela não instalação do aquecimento, acrescentando a quantia de € 5.000,00 da execução dos passeios; e não tomámos em conta os € 2.500,00 para o engenheiro projectista e os € 800,00 para o carpinteiro.

[18] Do mesmo modo que não tomámos em conta, para o cálculo do preço global/final, os € 2.500,00 para o engenheiro projectista e os € 800,00 para o carpinteiro, também aqui, no cálculo do pagamento, também não tomámos em conta os valores que lhes eram/foram destinados (cfr. alínea DD) dos factos deste acórdão).

[19] O caminho jurídico da “excepção de não cumprimento” (428.º/1 do C. Civil) afigura-se-nos de afastar: embora a emissão e apresentação de factura deva ser vista como uma obrigação acessória, não se vê que deva configurar-se como sendo a contrapartida da prestação cujo cumprimento se recusa.

[20] Não pode atribuir-se à citação (no caso, à notificação da reconvenção) a virtualidade de substituir a emissão e apresentação da factura; e também não será caso, no momento processual em que os autos já se encontram, de efectuar a comunicação prevista no art. 274.º/3 do CPC (que, efectuada oportunamente, abarcaria a totalidade do montante pedido reconvencionalmente).

[21] Um eventual agravamento do IVA, por a factura não ter sido oportunamente emitida, para além de ser, tudo leva a crer, da responsabilidade do R., é matéria que exorbita esta jurisdição comum (assim como eventuais infracções ao CIVA).

[22] A A. não deu “causa” (cfr. art. 610.º/3 do CPC) à parte do pedido reconvencional que foi julgada procedente.