Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
439/13.1TBTND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: DOCUMENTOS
JUNÇÃO COM AS ALEGAÇÕES DE RECURSO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CONTRATO DE SEGURO
PAGAMENTO INICIAL DO PRÉMIO
VALIDADE DE CONTRATO
Data do Acordão: 01/12/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU – TONDELA – INST. LOCAL . SEC. COMP. GENÉR.
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 423º, 425º E 640º DO NCPC; 19º E 29º, Nº 4 DO DL 291/2007, DE 21 DE AGOSTO; 59.º A 61.º DO DL 72/2008.
Sumário: I – Fora do âmbito de aplicação do art.º 423.º do nCPC, só nos casos escolhidos previstos no n.º 1 do art.º 651.º é permitido às partes juntar documentos às alegações.

II - Tais situações excepcionais são, por força da remissão para o art.º 425.º, aquelas em que a junção dos documentos não foi possível até ao encerramento da discussão (por impossibilidade ou superveniência), ou ainda quando a sua apresentação se tornou necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.

III – Pretendendo-se impugnar a decisão atinente à matéria de facto, impõe-se ao Recorrente o cumprimento dos ónus especificados no art.º 640.º do nCPC, por cujos termos se encontra vinculado a especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, e ainda a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (cf. als. a), b) e c) do n.º 1).

IV - A emissão pela seguradora do recibo de seguro, sem que este se mostre validado por alguma das formas previstas no n.º 4 do art.º 29.º do DL 291/2007, de 21 de Agosto (ou ainda por talão multibanco, conforme sugere a Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensão no seu Parecer 82/10/DMC/DSP, de 3/2, acessível no sítio respectivo) não faz, por si, prova do pagamento.

V – No contrato de seguro, o egurador, entidade para tal especialmente autorizada, mediante uma retribuição, o prémio, assume o risco económico da verificação de um dano, na esfera jurídica do tomador do seguro ou de terceiro.

VI - Pela celebração do contrato, o tomador do seguro fica vinculado ao pagamento do prémio, ao passo que o segurador fica obrigado a efectuar determinada prestação pecuniária no caso da ocorrência do evento aleatório previsto pelas partes.

VII - Nos termos do art.º 19.º do DL 291/2007, ao pagamento do prémio do contrato de seguro ali previsto e consequências pelo seu pagamento aplicam-se as disposições legais em vigor, assim remetendo para os art.ºs 59.º a 61.º do DL 72/2008.

VIII - Epigrafado de “Cobertura”, o art.º 59.º do regime jurídico do contrato de seguro é claro na consagração do princípio “no premium, no cover”, estabelecendo de forma terminante que “A cobertura dos riscos depende do prévio pagamento do prémio”.

IX - Resulta do regime legal assim desenhado a absoluta necessidade do pagamento antecipado do prémio ou fracção para que se verifique, consoante se trate da prestação inicial ou subsequente, o início da cobertura do risco ou a renovação do contrato de seguro, ou ainda, no caso de estar em causa fracção do prémio no decurso da anuidade, a sua não resolução automática e imediata.

Decisão Texto Integral:

I. Relatório
M..., a residir na Rua ..., instaurou contra G..., SPA, com sucursal em Portugal na Av. ..., acção declarativa de condenação, então a seguir a forma sumária do processo comum, pedindo a final a condenação da ré no pagamento, a si ou à C..., SA, sediada na ..., cuja intervenção requereu, da quantia de €16.120,00, acrescida dos juros de mora desde a citação.

Em fundamento alegou, em síntese, ser o proprietário do veículo da marca Ford, modelo Fiesta, com a matrícula ..., para cuja aquisição recorreu a financiamento, mediante contrato celebrado com a C..., a favor de quem foi constituída reserva de propriedade sobre a viatura.

Mais alegou ter celebrado com a ré contrato de seguro em 21 de Dezembro de 2010, válido até 30 de Junho de 2011, titulado pela apólice n.º ...

O autor procedeu ao pagamento do respectivo prémio, dando origem à emissão pela ré do correspondente recibo, em 19 de Janeiro de 2011.

Nos termos do contrato celebrado, a ré garantiu ainda a cobertura dos danos sofridos pelo veículo, incluindo a cobertura furto ou roubo, no valor de €16.120,00, conforme consta da apólice emitida.

Sucede que a viatura segura foi furtada no dia 19/03/2011, quando se encontrava estacionada perto do ..., tendo as portas e os vidros fechados, tudo conforme consta da denúncia oportunamente efectuada à GNR, a qual deu origem aos autos de inquérito n.º ..., no qual veio a ser proferido despacho de arquivamento por não se ter apurado a identidade do(s) autor(es) do furto.

O veículo nunca foi recuperado, motivo pelo qual o demandante, que continuou a pagar à entidade financiadora as prestações acordadas, notificou a demandada para que procedesse ao pagamento da indemnização no valor de €16.120,00 contratualmente fixada para o dano decorrente do furto da viatura, o que esta nunca se dispôs a fazer, recusa que justifica a presente demanda.

Regularmente citada, a ré contestou e, no que qualificou como defesa por excepção, invocou a inexistência do contrato de seguro que, segundo alegou, nunca chegou a ser celebrado, uma vez que o prémio de seguro, contrariamente ao alegado pelo autor, não foi liquidado. Em conformidade com tal defesa, impugnou quanto em adverso fora alegado pelo autor, concluindo pela sua absolvição do pedido formulado.

O autor respondeu, afirmando ter procedido ao pagamento do prémio de seguro a R..., mediador com quem tratou a contratação do seguro, e tanto assim que foram emitidos a carta verde e o recibo comprovativo do pagamento, o que não teria ocorrido caso o mesmo não tivesse ocorrido. Porque o contrato foi validamente celebrado e se encontrava em vigor à data do sinistro, concluiu pela responsabilização da ré, tal como peticionado.

Admitida nos autos a intervenção do chamado C..., SA, após citação apresentou articulado próprio no qual, defendendo a celebração e vigência do contrato de seguro, pediu a condenação da ré no montante peticionado.

Dispensada a realização da audiência prévia, foi proferido despacho saneador tabelar e enunciados os temas da prova[1], peça de que as partes não reclamaram, prosseguindo os autos para julgamento.

Teve lugar audiência de discussão e julgamento com observância do legal formalismo, conforme consta da acta respectiva, finda a qual foi proferida douta sentença que decretou a improcedência da acção, absolvendo a ré do pedido.

Inconformado, apelou o autor e, tendo desenvolvido nas alegações apresentadas as razões da sua discordância com o decidido, sintetizou-as nas seguintes necessárias conclusões:

“1.ª- Face aos documentos juntos aos autos, aos que ora se juntam e à prova testemunhal indicada, deve dar-se como provado que o Autor pagou o prémio de seguro em apreço, ainda que por intermédio de terceiro.

2.ª- O Meritíssimo Juiz a quo violou o disposto nos artigos 5.º n.º 2 al. b), 7.º n.º 2 e 411.º, todos do CPC, e ainda o disposto nos artigos 78.º n.º 3 al. a) e 29.º n.º 3 do Dec. Lei nº 291/2007 de 21/8”.

Ofereceu ainda o apelante com as alegações 7 documentos, com os quais pretende fazer prova de que os seus pais eram credores da empresa dos pais do R..., da quantia de €829,90, justificando a junção tardia por se tratar de documentos que não se encontravam em seu poder “e cuja junção não foi possível até ao momento do depoimento dos mesmos e que só se tornaram necessários em virtude da sua audição”, requerendo a final a revogação da sentença apelada e sua substituição por decisão que condene a ré no pedido.

Contra alegou a demandada seguradora e tendo suscitado, a título de questões prévias, o deficiente cumprimento por banda do apelante dos ónus consagrados no art.º 640.º do CPC e, bem assim, a inadmissibilidade dos documentos oferecidos com as alegações, concluiu naturalmente pela manutenção do julgado.

Questão prévia: da admissibilidade dos documentos juntos com as alegações

Destinando-se os documentos a fazer prova dos factos (vide o art.º 341.º do Código Civil), consoante se destinem à prova dos fundamentos da acção ou da defesa, assim devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes, consoante dispõe o n.º 1 do art.º 423.º do CPC. No entanto, logo o n.º 2 do preceito prevê a possibilidade da junção até ao 20.º dia anterior à data em que se realize a audiência final (ficando embora a parte sujeita a condenação em multa, excepto se provar que os não pôde oferecer com o articulado respectivo).

Fora do âmbito de aplicação do citado art.º 423.º, só nos casos escolhidos previstos no n.º 1 do art.º 651.º é permitido às partes juntar documentos às alegações. Tais situações excepcionais são, por força da remissão para o art.º 425.º, aquelas em que a junção dos documentos não foi possível até ao encerramento da discussão (por impossibilidade ou superveniência), ou ainda quando a sua apresentação se tornou necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.

No entanto, e como justamente adverte a apelada seguradora nas suas contra alegações, a junção só tem razão de ser quando a fundamentação da sentença faz surgir a necessidade de provar factos com cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes dela e já não quando, como é o caso, a parte, há muito sabedora da necessidade de produzir prova sobre certos factos, vindo a ser confrontada com uma decisão que lhe é desfavorável, pretende infirmar o juízo já proferido. Por outras palavras, a excepção consagrada na segunda parte do n.º 1 do art.º 651.º “pressupõe a novidade da questão decisória justificativa da junção do documento com o recurso, como questão operante (apta a modificar o julgamento) só revelada pela decisão recorrida”, o que exclui que essa decisão se tenha limitado a considerar o que o processo já desde o início revelava ser o “thema decidendum”[2]. Tal é precisamente o que ocorre em relação aos factos visados demonstrar com a junção dos referidos documentos, uma vez que desde o início alegou o autor ter procedido ao pagamento do prémio de seguro, ainda que a tese da compensação só mais tarde tenha surgido. Daí a intempestividade do oferecimento dos documentos, cuja desentranhamento e devolução ao apresentante se ordena.

Delimitação do objecto do recurso:

Assinalou a ré, nas contra alegações, o deficiente cumprimento por banda do apelante do ónus consagrado no art.º 640.º do CPC, fazendo ainda notar que, tendo impugnado no corpo das alegações os pontos 7., 10., 15., 16., 19. e 20. da sentença proferida, acaba por, nas conclusões formuladas, fazer menção apenas à discordância que lhe mereceu a decisão quando deu como não provado que o apelante procedeu ao pagamento do prémio do seguro, omitindo qualquer referência à restante factualidade.

Conforme resulta claramente do disposto no art.º 639.º do mesmo diploma legal, o recorrente encontra-se duplamente onerado: cumpre o ónus de alegar “apresentando uma peça processual onde expõe os motivos da sua impugnação, explicitando as razões por que entende que a decisão é errada ou injusta, através de argumentação sobre os factos, o resultado da prova, a interpretação e aplicação do direito, para além de especificar o objectivo que visa alcançar com o recurso”; dá cumprimento ao ónus de formular conclusões “terminando a sua minuta pela indicação resumida, através de proposições sintéticas, dos fundamentos de facto e/ou de direito por que pede a alteração ou anulação da decisão” [3].

Por outro lado, e conforme decorre do preceituado no n.º 5 do art.º 635.º, pelas conclusões se define e delimita o objecto do recurso, de modo que se o recorrente, apesar de contemplar na alegação as razões da sua discordância com determinado segmento da decisão, omitir nas conclusões qualquer referência a tal questão, terá de se entender que restringiu, ainda que tacitamente, o objecto inicialmente delineado para o recurso.

Por último, pretendendo impugnar a decisão atinente à matéria de facto, impõe-se-lhe ainda o cumprimento dos ónus especificados no art.º 640.º do nCPC, por cujos termos se encontra vinculado a especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, e ainda a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (cf. als. a), b) e c) do n.º 1).

No caso que nos ocupa, sendo verdade que o recorrente afirmou pretender impugnar os factos vertidos nos pontos 7., 10., 15., 16., 19. e 20., o que se constata, face aos meios de prova por si invocados - depoimento prestado pelo próprio e declarações das testemunhas ... e ..., seus progenitores, nas passagens que identificou e transcreveu, para além dos documentos que referenciou - é que a matéria abordada respeita apenas e tão só ao pagamento do prémio de seguro, assim resultando omitida a necessária referenciação aos meios de prova que, conforme exige a lei, impunham decisão diferente quanto aos demais pontos enunciados.

Acresce que, conforme certeiramente assinada a ré/apelada, nas conclusões formuladas foi omitida qualquer referência a estes pontos da matéria de facto, donde, quer por força do incumprimento do assinalado ónus da especificação, quer por dever entender-se que tal matéria foi excluída do objecto do recurso, não se conhecerá da impugnação da decisão proferida quanto aos factos vertidos nos pontos 10., 15., 16. e 19.

No que respeita aos pontos 7. e 20., porque a sua impugnação decorre directa e necessariamente da pretensão de ver dado como provado o facto, que o tribunal deu como não demonstrado, de o apelante ter pago o prémio de seguro, deles se conhecerá em conjunto.

Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, são as seguintes as questões submetidas à apreciação deste Tribunal:

i. da impugnação da matéria de facto; 

ii. da violação do disposto nos artigos 78.º n.º 3 al. a) e 29.º n.º 3 do Dec. Lei nº 291/2007 de 21/8”.

*

i. Da impugnação da matéria de facto:

O Mm.º juiz deu como assente os seguintes factos:

7. Entre as 11:30 horas do dia 21/12/2010 e o dia 19/01/2011 o aqui Autor não liquidou o prémio de seguro devido.

20. O autor não procedeu ao pagamento do prémio do seguro.

Deu ainda, em coerência, como não provado que “o pagamento da apólice de seguros fosse efectuado”. Mau grado a incorrecção da expressão, não há dúvida de que o sentido é o de que o autor não logrou fazer prova do pagamento do prémio do seguro.

O apelante insurge-se contra este segmento da decisão e, fazendo apelo às suas próprias declarações, testemunhos prestados por seus pais e documentos juntos aos autos, concretamente, o recibo, a apólice e o certificado internacional, pretende seja dado como assente que o prémio foi pago, ainda que por um terceiro, no caso a testemunha R..., que a tanto se obrigou por via de acertos de contas provenientes de negócios celebrados entre os progenitores de ambos (apelante e o mesmo R...).

Pois bem, a despeito da emissão dos referidos documentos, não subsiste dúvida, quer em face dos depoimentos invocados pelo apelante, quer dos testemunhos muito consistentes de R... e do agente de seguros T..., que no caso em apreço o prémio de seguro não foi efectivamente pago, o que ocorreu porque o próprio recorrente decidiu, e isso mesmo comunicou, que não pretendia celebrar o contrato nas condições constantes da apólice emitida, o que conduziu à anulação do recibo e certificado internacional de seguro, v.g. carta verde, que entretanto haviam sido emitidos.

Com efeito, e tendo presente o muito reticente depoimento prestado pelo próprio apelante, dele resultou apenas e tão só que, por vezes, o pagamento dos prémios referentes a contratos de seguro em que os tomadores eram seus pais, era efectuado pelo R..., isto no caso de existirem facturas vencidas por cujo pagamento eram responsáveis os progenitores deste último, procedendo-se depois ao acerto de contas. Não obstante, revelou que, no respeitante ao contrato relativo a um jipe, em que o tomador do seguro era o próprio, sempre liquidou o prémio respectivo em dinheiro, fora, portanto, do sistema de compensações descrito.

E se o testemunho prestado pelo pai do apelante, E..., pouca relevância assumiu, uma vez que, tal como a testemunha esclareceu, tais assuntos eram tratados por sua mulher, a testemunha A..., ouvida esta, melhor se percebeu que a invocada compensação operou apenas nalguns casos e, como não podia deixar de ser, quando existiam créditos a compensar.

Esclareceu a referida testemunha A... que, ao ser contactada pelo R... avisando do próximo vencimento de algum prémio de seguro e se, como disse, “calhava ter alguma factura para tirar”, facturas que tinham origem em serviços prestados pelo marido aos pais daquele, então dizia ao R... para pagar o seguro e depois acertavam as contas, facto que foi por este confirmado. O que a testemunha já não afirmou - nem ela, nem nenhuma outra, de resto - foi que tal tenha ocorrido em relação a este prémio de seguro em concreto.

E a verdade é que ouvidas as testemunhas R... e T..., dos depoimentos consistentes por ambos prestados resultou inequívoco, não só que o prémio não foi efectivamente pago, mas ainda que tal ocorreu porque o autor, depois da apólice, recibo e certificado internacional de seguro terem sido emitidos e entregues, veio afinal a declarar que não pretendia a vinculação ao contrato naquelas condições (ainda que delas tivesse tido conhecimento aquando da proposta que lhe foi presente e assinou, conforme resulta dos autos e das declarações das aludidas testemunhas). Tal tomada de posição, comunicada ao R..., que a transmitiu ao mediador, de quem era amigo e para o qual chegou a angariar clientes, incluindo o aqui autor, motivou a subsequente anulação do recibo emitido por falta de pagamento dado que, apesar de tal lhe ter sido solicitado, nunca o autor chegou a devolver os documentos em causa.

Verificando-se assim que a emissão de tais documentos, conforme explicou a testemunha T..., é originada automaticamente pelo sistema quando a proposta é aceite, a sua entrega ao autor antes do pagamento do prémio assentou decisivamente na relação de confiança existente entre este e o R... Com efeito, apesar deste último não ser o mediador, qualidade de que apenas aquele T... se revestia, serviu de elo de ligação entre ele e o autor, tendo procedido à entrega dos referidos documentos baseado na relação de confiança e amizade que com ambos mantinha. E foi estribado neste elementos probatórios que o Mmº juiz deu como provado quanto consta dos impugnados pontos 7. e 20., dando como não provado o alegado pagamento do prémio, juízo que não nos merece qualquer censura.

A este propósito dá o apelante como violadas as disposições contidas nos artigos 5.º, n.º 2, al. b), 7.º, n.º 2 e 411.º, todos do CPC, por não ter o Mm.º juiz usado das faculdades previstas nestes últimos preceitos. Queixa-se assim o apelante de não ter o Mm.º juiz “a quo” desencadeado as diligências de instrução tendo em vista comprovar a existência de eventual crédito de que o(s) progenitor(es) do autor fossem titulares sobre o(s) progenitor(es) da testemunha R..., factos que diz complementares ou concretizadores dos oportunamente alegados.

Antes de mais, cabe referir que, tendo alegado na petição inicial haver pago o prémio devido pela celebração do contrato de seguro (cf. art.º 6.º da petição inicial), confrontado com a alegação da ré no sentido de tal quantia nunca ter sido satisfeita, respondeu o autor insistindo no pagamento, mas sem precisar o modo ou as circunstâncias em que o mesmo teria sido efectuado. Deste modo, apenas no decurso da audiência emergiu a tese da compensação do valor do prémio com créditos de que os pais do ora apelante seriam titulares sobre os pais da testemunha R... que, conforme se veio a apurar, procedeu à angariação de alguns clientes para o seu amigo T..., este mediador de seguros, angariação todavia restrita a uns poucos casos, dentre os quais o aqui autor, e com assento na relação de amizade que os unia.

Acresce que, tendo o recorrente e a sua progenitora prestado depoimento na primeira sessão de julgamento, nada obstava a que tivesse procedido à junção dos documentos tendentes a fazerem prova da existência do invocado crédito, titulado por seus pais, caso entendesse tal elemento relevante, uma vez que sobre as partes recai naturalmente o ónus de fazer prova dos factos por si alegados.

Dir-se-á, em todo o caso, que reputando o Tribunal o facto como relevante e subsistindo dúvida, incumbiria ao Mm.º juiz promover as diligências tidas por pertinentes tendo em vista a sua remoção, aceitando que se tratava de facto de que lhe era lícito conhecer, por concretizador do oportunamente alegado pagamento (cf. art.º 411.º do CPC). Todavia, conforme resulta claro dos termos da motivação elaborada pelo Mm.º juiz em ordem a fundamentar a decisão proferida, e também do que se teve já oportunidade de referir, nenhum elemento probatório permitiu considerar que o autor tenha pretendido extinguir a sua obrigação de pagamento do prémio por via da compensação com um crédito de seus pais ou qualquer outro, ou que o R... se tenha obrigado a liquidar o prémio, acertando posteriormente contas com os pais do autor; pelo contrário, a prova produzida conduziu antes ao convencimento de que o prémio não foi pago porque o autor não pretendeu vincular-se ao contrato por não concordar com algumas das condições particulares que dele constavam. E por assim ser, inútil seria a promoção de quaisquer diligências destinadas a apurar a existência do tal crédito, por nenhuma relevância assumir para a decisão. Daí que não tenha ocorrido violação de nenhum dos invocados preceitos legais.

Dir-se-á, por último, que a emissão pela ré do recibo, sem que este se mostre validado por alguma das formas previstas no n.º 4 do art.º 29.º do DL 291/2007, de 21 de Agosto (ou ainda por talão multibanco, conforme sugere a Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensão no seu Parecer 82/10/DMC/DSP, de 3/2, acessível no sítio respectivo) não faz, por si, prova do alegado pagamento.

Atento o que vem de se expor, e demonstrado que o prémio atinente ao contrato de seguro aqui em causa não foi efectivamente pago, é inteiramente de confirmar a decisão proferida sobre a matéria de facto, improcedendo a impugnação que lhe foi dirigida.

II – Fundamentação

De facto

São os seguintes os factos a considerar, tal como nos chegam da 1.ª instância:

...

De Direito
ii. da existência e validade do contrato de seguro
O autor aqui apelante veio a juízo, pretendendo haver da ré seguradora indemnização pelo dano decorrente de ter sido furtada a viatura que havia adquirido com recurso a financiamento, risco coberto por contrato de seguro que alegou ter sido validamente celebrado e encontrar-se em vigor à data do sinistro.

A ré defendeu-se com fundamento na inexistência do contrato, que invocou ter anulado por falta do pagamento do prémio devido, tese que, como vimos, obteve aceitação na sentença apelada.

Insiste agora o autor na existência e validade do contrato de seguro, dando como violadas as disposições contidas nos artigos 78.º n.º 3 al. a) e 29.º n.º 3 do Dec. Lei nº 291/2007 de 21/8.

Considerando a data da ocorrência dos factos em discussão e a natureza do contrato em causa, ainda que se trate de uma cobertura facultativa, são aplicáveis o regime do sistema de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel (SORCA) aprovado pelo DL 291/2007, de 21 de Agosto (rectificado pela rectificação 96/2007, de 19 de Outubro, e alterado pelo DL 153/2008, de 6 de Agosto) e o regime jurídico do contrato de seguro (RJCS), este aprovado pelo DL 72/2008, de 16 de Abril.

Renunciando embora a definir o contrato de seguro, diz-nos o art.º 1.º do anexo ao diploma acima citado em último lugar que “Por efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente”.

Estamos assim perante um contrato nos termos do qual uma das partes, o segurador, entidade para tal especialmente autorizada, mediante uma retribuição, o prémio, assume o risco económico da verificação de um dano, na esfera jurídica do tomador do seguro ou de terceiro. Pela celebração do contrato, o tomador do seguro fica vinculado ao pagamento do prémio, ao passo que o segurador fica obrigado a efectuar determinada prestação pecuniária no caso da ocorrência do evento aleatório previsto pelas partes.

Nos termos do art.º 19.º do DL 291/2007, ao pagamento do prémio do contrato de seguro ali previsto e consequências pelo seu pagamento aplicam-se as disposições legais em vigor, assim remetendo para os art.ºs 59.º a 61.º do DL 72/2008.

Epigrafado de “Cobertura”, o art.º 59.º do regime jurídico do contrato de seguro é claro na consagração do princípio “no premium, no cover”, estabelecendo de forma terminante que “A cobertura dos riscos depende do prévio pagamento do prémio”.

As disposições subsequentes ocupam-se do aviso de pagamento e da falta de pagamento, dispondo-se no art.º 61.º que “A falta de pagamento do prémio inicial, ou da primeira fracção deste, na data do vencimento, determina a resolução automática do contrato a partir da data da sua celebração”. Esta norma, à semelhança do que ocorre com o convocado art.º 59.º, é, nos termos do n.º 1 do art.º 12.º do mesmo diploma, absolutamente imperativa, não podendo ser arredada por convenção em contrário.

Resulta do regime legal assim desenhado a absoluta necessidade do pagamento antecipado do prémio ou fracção para que se verifique, consoante se trate da prestação inicial ou subsequente, o início da cobertura do risco ou a renovação do contrato de seguro, ou ainda, no caso de estar em causa fracção do prémio no decurso da anuidade, a sua não resolução automática e imediata.

Pode questionar-se se a solução da lei não contraria uma prática frequente das seguradoras, assente numa relação de confiança com o tomador do seguro, nos termos da qual a emissão da apólice precede o pagamento do primeiro prémio, tal como, de resto, ocorreu no caso em apreço. Pois bem, admitindo-se que nalguns casos em que tal se verifique, a tutela do tomador que erroneamente confiou em que beneficiava da cobertura possa encontrar arrimo no instituto do abuso de direito, não é claramente o caso dos autos, conforme evidencia o acervo factual apurado, uma vez que foi o próprio autor quem, depois de ter aceitado, subscrevendo-a, a proposta apresentada pela seguradora (cf. fls. ... dos autos), dando origem à formação do contrato e emissão da correspondente apólice nos termos previstos nos art.ºs 27.º e 32.º do RJCS, recusou depois permanecer vinculado ao mesmo, optando por não pagar o prémio respectivo.

Assente, pois, que até ao pagamento do primeiro prémio o contrato de seguro não produz efeitos nos termos do art.º 59.º, a falta de tal pagamento é causa da resolução automática do mesmo desde a data da sua celebração, nos termos estatuídos no já citado art.º 61.º, n.º 1, associando assim a lei à mora no cumprimento da aludida obrigação o efeito extintivo do contrato, sem necessidade da sua prévia conversão em incumprimento definitivo.

Por outro lado, efectivando-se a resolução, nos termos gerais, mediante declaração à outra parte (cf. artigo 436.º, n.º 1 do CC) e tornando-se eficaz, de acordo com a teoria da recepção consagrada no n.º 1 do artigo 224.º do mesmo diploma legal, logo que chega ao poder do destinatário ou é dele conhecida, parece ter o legislador dispensado tal formalidade, associando à falta de pagamento, de forma automática, o aludido efeito extintivo. De todo o modo, e ainda que se perfilhe entendimento segundo o qual a resolução só opera mediante notificação à contraparte, subsiste a suspensão da eficácia do contrato imperativamente decretada pelo art.º 59.º.

Argumenta o apelante que face à emissão do certificado provisório de seguro, cuja emissão é antecipada ou contemporânea do pagamento, e que comprova a existência de seguro válido e eficaz, ficou convencido de que o seguro estava pago.

A este respeito dir-se-á, apelando a quanto se deixou ponderado em sede de apreciação da impugnação dirigida à decisão proferida sobre a matéria de facto, que não tendo o apelante procedido ao pagamento do prémio, não se vê como é que poderia ter-se convencido de que o havia pago.

De todo o modo, e para o que aqui releva, sendo certo que quer o certificado provisório de seguro, quer o certificado internacional, deverão ser emitidos apenas após o pagamento do prémio ou fracção devidos (cf. n.ºs 1 e 3 do art.º 29.º do SORCA), uma vez que fazem prova, a par do aviso-recibo, da existência de seguro válido e eficaz, tal ocorre apenas, conforme a lei não deixou de expressar, “quando válidos” (cf. art.º 28.º, n.º 1 e sua ressalva final). Vale isto por dizer que se o contrato de seguro subjacente à emissão de tais documentos não produz quaisquer efeitos, nomeadamente porque o prémio inicial não foi pago e/ou porque operou a resolução do mesmo, prejudicada fica a validade dos aludidos documentos a que a lei reconhece idoneidade para fazerem prova do contrato.

Tal como se ponderou no aresto da Relação de Évora de 16 de Janeiro de 2014, processo n.º 291/12.4TBRMZ.E1, acessível em www.dgsi.pt “(…) embora o certificado internacional de seguro (carta verde) carta verde demonstre perante terceiros a existência de contrato de seguro, a sua validade está necessariamente dependente da validade e eficácia do contrato de seguro que determinou a sua emissão. Donde, está dependente do pagamento atempado e efectivo do prémio de seguro. Ocorrendo extinção do contrato de seguro por ter operado a resolução automática prevista na lei, tal implica que a carta verde deixe de poder considera-se válida, uma vez que tal documento não pode atestar uma qualidade (validade/eficácia) que o contrato de seguro que permitiu a sua emissão já não detém” (no mesmo sentido, acórdãos da Relação de Lisboa de 17/4/2009, processo n.º 574/05.0 TBLNH e da Relação do Porto de 4/12/2007, processo n.º 0731502, acessíveis no mesmo sítio, ambos reportando-se à legislação anterior ao DL 72/2008 que, todavia, e no que respeita ao pagamento do prémio ou fracção dele e efeitos da falta de pagamento, consagrava soluções idênticas às acolhidas no regime que lhe sucedeu).

Em remate, não tendo o autor procedido ao pagamento do prémio inicial, o contrato celebrado nunca chegou a produzir efeitos, consoante estabelece imperativamente o art.º 59.º do DL 72/2008, de 16 de Abril, operando de forma automática a resolução do mesmo a partir da data da sua celebração nos termos prescritos no art.º 61., n.º 1 do mesmo diploma legal, aplicáveis por força do citado art.º 19.º do DL 291/2007, de 21 de Agosto. Por assim ser, à data em que ocorreu o sinistro, o evento verificado não beneficiava de cobertura, impondo-se a absolvição da demandada seguradora, tal como foi decidido.

III. Decisão

Em face do exposto, acordam os juízes da 3.ª secção cível deste Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso interposto pelo autor M..., confirmando a sentença apelada.

Custas a cargo do apelante.

Relatora:

Maria Domingas Simões

Adjuntos:

1º - Jaime Ferreira

2º - Jorge Arcanjo


***

[1] Com o seguinte conteúdo:

1. Foi celebrado o contrato de seguro conforme é descrito em 4º a 10º da PI?

2. O autor pagou o prémio comercial do seguro nos termos descritos em 10º da Contestação apresentada pela ré G (...)?

3. Foi a pedido do autor que o mediador emitiu a apólice obtida no portal da seguradora?

4. O autor, não satisfeito com as condições da apólice, solicitou ao medidor que fossem as mesmas alteradas para incluir o valor de €5.000,00 a título de extras no capital seguro relativo a danos próprios?

5. Porque o mediador ter afirmado que não poderia ser alterado o autor disse que não queria o seguro?

6. O mediador no mesmo momento após 19-01-2011 solicitou ao autor a devolução dos documentos relativos ao seguro?

7. A anulação do contrato de seguro foi comunicada ao autor pela ré G...?

[2][2] Neste sentido, citando-se a título meramente exemplificativo, acórdão desta mesma Relação de 18/11/2014, proferido no processo n.º 628/13.9TBGRD.C1, acessível em www.dgsi.pt.
[3] Fernando Amâncio Ferreira, in “Manual dos recursos em processo civil”, 9.ª edição, págs. 175 e 178.