Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
279/04.9TAMGR.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: ACUSAÇÃO PARTICULAR
FALTA NOTIFICAÇÃO ASSISTENTE
Data do Acordão: 03/03/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE MARINHA GRANDE – 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 50º,120º, Nº 2, AL. D) 285º CPP
Sumário: A falta de notificação do assistente para deduzir acusação particular em crime de natureza particular constitui insuficiência de inquérito por não ter sido praticado acto legalmente obrigatório.
Decisão Texto Integral: I - RELATÓRIO
1. No processo n.º 279/04.9TAMGR, do 3º Juízo da comarca da Marinha Grande, recorre a assistente T..., melhor identificada nos autos, do despacho do Mmº Juiz que decidiu arquivar os autos, por despacho datado de 29/10/2009, por falta de uma das condições objectivas de procedibilidade e por extinção da responsabilidade criminal da arguida S… .
A assistente, motivando o seu recurso, conclui (em transcrição):
«1ª- A dedução de acusação por crime particular pelo MP, seja acompanhada ou não pelo assistente, constitui uma nulidade sanável, nos termos do art.° 120°, n° 2, al. d) do CPP, por não terem sido praticados actos processuais legalmente obrigatórios, in casu, a notificação prevista no art.° 285° CPP.
2ª- Tal é o caso dos presentes autos; ou seja, estamos perante uma nulidade enquadrável na previsão actualmente contida de forma expressa na Alínea d) do n°2 do art° 120°, do CPP.
3ª- Tal nulidade é sanável nos termos previstos no art.° 121° do mesmo diploma, o que igualmente se verificou no caso dos autos, uma vez que a Assistente, ao ter aderido à d. acusação pública (cfr. fls. 169 e ss) aceitou expressamente os efeitos do acto anulável (art.° 121°, n.° 1, al. b).
4ª- O d. despacho recorrido é ilegal, na medida em que afronta o disposto nos citados normativos (arts. 120°, n°1 e 2, al. d) e 121°, n°1, al. b) do CPP).
5ª- Sendo ainda contrário á jurisprudência deste tribunal superior contida no citado Ac. RC de 09/05/2007, e à Doutrina maioritária, as quais vieram a ser consagradas, de forma expressa, pelo DL. n° 48/07 de 29/8, através da alteração da redacção da Alínea d) do n°2 do art.° 120° do CPP.
6ª- O despacho sub iudice sofre também de vício de insuficiência e incorrecta fundamentação, dado invocar tão-somente o princípio da legalidade, que igualmente sustenta a tese contrária perfilhada pela Recorrente.
7ª- Assim sendo, o despacho sub iudice enferma de nulidade nos termos conjugados dos arts. 374°, n° 2 e 379°, n° 1, a) do C.P.P., nulidade que igualmente se invoca para os efeitos legais, e nomeadamente os previstos no n° 2 do referido art.° 379°.
8ª- A manter-se a decisão recorrida, serão violadas as disposições constantes dos arts. 263°, n° 1, 285°, nº 1, 120°, n° 1 e n° 2, al. d), 121°, n° 1 e 374°, n° 2, todos do CPP.
Termos em que, e nos mais do d. suprimento de V.Exas, deverá ser dado provimento ao presente recurso, sendo em consequência revogado o d. despacho recorrido e substituído por outro que:
a) Declare a nulidade do despacho sub iudice por incorrecta e insuficiente fundamentação, nos termos conjugados dos arts. 374°, n° 2 e 379°, n° 1, a) do CPP;
b) declare a nulidade decorrente da dedução de acusação pública no caso sub iudice, nos termos do art.° 120°, n°2 , al d), 2ª parte do CPP;
c)- considere sanada tal nulidade nos termos do art.° 121°, n° 1, al. b) do mesmo diploma, atenta a adesão da Assistente à d. acusação pública formulada nos autos, e consequentemente,
d)- ordene o prosseguimento dos autos para conhecimento da matéria constante daquela acusação, bem como do pedido cível formulado pela Assistente, tal como ordenado no d. acórdão proferido por este Tribunal em 17/3/2009, assim se fazendo a mui esperada
JUSTIÇA!»

2. Respondeu o Ministério Público, sustentando que concorda com os fundamentos de facto e de direito do recurso apresentado pela assistente, quanto à ilegalidade do despacho por violação do disposto no artigo 120º/2 d) e 121º do CPP, «nada mais tendo a acrescentar à motivação no que a esta questão respeita», entendendo, contudo, que «não se vislumbra o apontado vício da insuficiência de fundamentação».
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3. A arguida S...respondeu, sustentando, em síntese, que:
«(…) A arguida vem acusada de um crime de burla simples p. e p. pelo art. 217 do C.P, que no seu número 4 diz “É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 206º e 207º”.
Nessa senda, dispõe a lei que o procedimento criminal depende de acusação particular no caso de “ O agente for cônjuge, ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao 2 grau da vítima, ou com ela viver em condições análogas às dos cônjuges”.
Ora, no caso em questão, a arguida e assistentes são irmãs, decorrendo da lei a obrigatoriedade de a assistente deduzir acusação pública.
O que não aconteceu!
A assistente cingiu-se a aderir à acusação deduzida pelo Ministério Publico, que não tem legitimidade para o fazer neste caso em particular.
Não sendo deduzida acusação, não poderão os autos prosseguir contra a arguida.
O Douto despacho fundamenta-se no cumprimento do principio basilar do Processo Penal “o Principio da Legalidade”,
Assim e no escrupuloso cumprimento deste princípio basilar, o Mmº Juiz a quo, ordenou o arquivamento do autos e consequentemente a extinção da responsabilidade criminal da arguida.
Não se trata de uma nulidade sanável com alega a recorrente, uma vez que não se trata de aderir a uma acusação, mas sim deduzi-la.
A Assistente teria de deduzir a acusação particular e não aderir à acusação pública como foi o caso.
Termos em que não merece o Despacho de arquivamento dos autos e consequentemente extinção da responsabilidade da arguida qualquer censura devendo o mesmo ser mantido, improcedendo assim o recurso interposto pelo assistente e ora recorrente.
Termos em que, com o mui douto provimento de V.Exas, deve:
a) Ser negado provimento ao recurso interposto, confirmando-se integralmente o Douto Despacho recorrido, mantendo-se a decisão de arquivamento dos autos e consequentemente extinção da responsabilidade criminal da arguida, ASSIM SE FAZENDO A COSTUMADA JUSTIÇA!»

4. Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto deu parecer no sentido de que o recurso merece provimento, opinando, em síntese, que:
«(…) Assim, a falta de notificação ao assistente para deduzir acusação particular, apenas seria susceptível de configurar a nulidade relativa prevista no art° 120°, n° 2, alínea d), que teria de ser arguida pela assistente, nos termos do disposto no art° 120°, n° 3, alínea e), do mesmo Código.
Assim, não tendo a mesma sido arguida nos termos e prazo referidos, sempre teria aquela de se considerar há muito sanada;
Refira-se, por fim, que.
Apesar de relativamente aos crimes que dependem de acusação particular ser aquela acusação que verdadeiramente impulsiona o procedimento, vinculando e determinando
o Ministério Público, tal como decorre do disposto nos art°s 50º, n.° 1 e 285° n.° 3 do CPP, o que configura uma verdadeira condição de procedibilidade.
Com a adesão da assistente, nos seus precisos termos, à acusação deduzida pelo Ministério Público, este readquiriu legitimidade para a prossecução do respectivo procedimento;
Pelo que, também por essa via, se mostra sanado o vício da falta de legitimidade do Ministério Público para o exercício da respectiva acção penal.
Termos em que entendemos, assim, que o recurso merece provimento».

5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea b), do mesmo diploma.

II – FUNDAMENTAÇÃO
1. Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).
Assim, balizados pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso, a única questão a resolver consiste em saber qual o vício processual para a falta de notificação da assistente para deduzir acusação particular em crime de natureza particular.

2. O despacho recorrido, proferido no início da audiência de julgamento marcada na sequência de determinação do Acórdão desta Relação, datado de 17/3/2009, o qual anulou o 1º julgamento por deficiências de gravação da audiência então realizada, tem o seguinte teor:
«A arguida encontra-se acusada de um crime de burla simples p. e p. pelo art°. 217° do CP.
Dispõe o n°. 4 de tal artigo, que é correspondentemente aplicável ao crime de burla o disposto nos art°.s 206° e 207º do CP.
Refere o art°. 207 que “no caso do art°. 203° e do n°. 1 do art°. 205°, o procedimento criminal depende de acusação particular se:
O agente for cônjuge, ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao 2°. grau da vítima, ou com ela viver em condições análogas às dos cônjuges” (nas várias versões deste artigo).
No presente processo arguida e assistente são irmãs (conferir fls. 18 e 19 dos autos).
Sendo irmãs são consequentemente parentes de acordo com os artigos 1558º, 1579º, 1580º do Código Civil.
Ora verifica-se então que nos presentes autos não foi deduzida a acusação particular pela assistente como lhe competia, mas pelo MP.
A fls. 1149 e seguintes consta a acusação pública do MP, a fls. 1169 e seguintes, a adesão da assistente à acusação do MP.
Refere o art°. 50°, no. 1 do CPP: “Quando o procedimento criminal depender de acusação particular, do ofendido ou outras pessoas, é necessário que essas pessoas se queixem, se constituem assistentes e deduzam acusação particular”.
Assim sendo o MP apenas podia acompanhar a acusação particular, nos termos do art°. 285° do CPP.
Em processo penal, vigora antes de todos, o princípio da legalidade nos termos do art°. 2°, do CPP.
Quer isto dizer que, salvo o devido respeito é inadmissível em Processo Penal, e atenta a fase em que nos encontramos, remeter os autos para fase anterior, quando até foi dado um despacho de recebimento de acusação, foi feito julgamento e anulado o mesmo.
É que não existe qualquer disposição legal, que se possa invocar para ordenar a remessa dos autos a uma fase anterior, o que é diferente do suprimento de nulidades eventualmente existentes e que possam ser supridas.
O que temos portanto é a falta de uma condição de procedibilidade, e consequentemente outra decisão não pode ser imposta, sob pena de violação do princípio da legalidade, que não seja a do arquivamento dos autos e consequentemente extinção da responsabilidade criminal da arguida.
Refira-se que esta é a única hipótese a ponderar sob pena de violação do princípio da legalidade.
A finalizar diga-se que a assistente não fica desde já prejudicada, pois caso queira pode propor a respectiva acção civil.
Em suma e atenta a falta de uma de condição objectiva de procedibilidade, ordena o Tribunal o arquivamento dos autos, e a extinção da responsabilidade criminal da arguida.
Quanto ao pedido cível estando este na dependência da acção crime, e por impossibilidade superveniente da lide não se conhece da mesma
Custas criminais a cargo da assistente.
Sem custas cíveis.
Registe e Notifique.
Honorários de acordo com a tabela no que tange à diligência para hoje realizada».

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

3.1. Vem a assistente recorrer do despacho judicial que arquivou o processo em fase tão adiantada do processado, invocando a “falta de uma condição objectiva de procedibilidade”.
Estamos perante um processo que teve a sua denúncia escrita datada de 17/8/2004, uma acusação pública deduzida em 28/11/2005, um 1º julgamento e uma 1ª sentença datada de 19/7/2007, uma anulação desse 1º julgamento, após decisão do Tribunal da Relação de Coimbra datado de 17/3/2009 e um 2º julgamento realizado em 29/10/2009.
Foi, exactamente, no início dessa 2ª audiência, que foi proferido o despacho recorrido.
E tal despacho constatou algo que se torna difícil explicar que tenha passado despercebido a todos os intervenientes processuais durante todo o processado, principalmente, à Digna Magistrada do MP que dirigiu o inquérito – o de que, sendo irmãs a assistente e a arguida (o que resulta de fls 18 e 19), a natureza do delito constante da acusação pública – um crime de burla p. e p. pelo artigo 217º/1 - varia, tornando-se particular, nos termos do artigo 207º, ex vi do artigo 217º, n.º 4 do CP.

3.2. Nos casos em que a lei exige acusação particular, o MP só pode acusar quando aquela tenha sido deduzida - art. 50º, 1 e 285º do CPP -, sendo ela pressuposto de procedibilidade, isto é, pressuposto do próprio exercício da acção penal pelo MP, estando a posição que o MP pode tomar naturalmente condicionada, não só processualmente, mas também materialmente, pela posição do assistente (vide, por exemplo, os limites para alterar factualidade (artigo 285º/4 do CPP).
No caso em causa, relevam os artigos 49.º e 50.º (C.P.P.), atinentes aos crimes semipúblicos e particulares, ou seja, aos crimes em que a legitimidade do Ministério Público para exercer a acção penal necessita de ser integrada ou só com uma queixa (os primeiros), ou, para além dela, de uma acusação particular (os segundos).
Prescreve o artigo 50.º, n.º1: “Quando o procedimento criminal depender de acusação particular, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas se queixem, se constituam assistentes e deduzam acusação particular”.
A queixa é o acto pelo qual se dá conhecimento do facto ilícito à autoridade competente para que seja desencadeado o respectivo processo, constituindo numa manifestação de vontade de perseguição criminal.
Quer isto dizer que o instituto do direito de queixa integra duas componentes: a transmissão da notícia de um crime (o que também sucede com a denúncia) e a manifestação de vontade de que contra o agente ou agentes seja instaurado o respectivo procedimento criminal.
Tratando-se de crime particular, além da queixa é necessário, para que o procedimento possa prosseguir, que o assistente deduza acusação particular na respectiva oportunidade (artigo 285.º, do CPP).
In casu, estamos perante um crime de burla, p. e p. pelo artigo 217.º, n.º 1, com a natureza de crime particular em função da alínea a) do artigo 207.º do Código Penal - agente e vítima são parentes no 2.º grau da linha colateral.
E, como é óbvio, sempre o foram, quero dizer, sempre arguida e assistente foram irmãs e, por certo, teria sido fácil percebê-lo antes, pela mera consulta da respectiva filiação.
Fácil é concluir que cabia ao Ministério Público, findo o inquérito, desencadear os mecanismos do artigo 285.º do C.P.P., o que não fez de todo em todo, tendo antes proferido uma acusação pública, tendo a assistente aderido a tal acusação pública, por requerimento datado de 16/1/2006.
Sabemos que, legalmente, não deveria ter ocorrido o que efectivamente aconteceu: ser o Ministério Público a deduzir acusação pública por um crime particular, com adesão posterior da assistente.
Na situação em que, sendo o crime público ou semipúblico, se inverte igualmente a ordem de actuação, vindo o assistente a deduzir acusação a que adere posteriormente o Ministério Público (em ambos os casos, o teu e esta última hipótese, falta legitimidade à entidade acusadora), o STJ identificou a existência de uma nulidade insanável, do artigo 119.º b), conforme foi definido no Assento n.º 1/2000, publicado no Diário da República, I SÉRIE-A, de 6 de Janeiro de 2000.
Contudo, neste caso, a situação não é similar.
O que fazer, então? Que vício processual se vislumbra aqui?

3.3. Tratando-se de crime de natureza particular, era necessária a constituição de assistente e a dedução de acusação particular. A queixa, a constituição de assistente e a acusação particular constituem, assim, condições de procedibilidade, sem as quais o Ministério Público carecerá de legitimidade.
Que consequências para esta falta de acusação particular?
A ilegitimidade do Ministério Público para promover a acção penal, face ao Código de Processo Penal de 1929, no caso de crimes particulares em que não tivesse sido deduzida acusação particular (dedução que constituía pressuposto da exercício da acção penal), determinava, nos termos do artigo 101.º desse diploma, que o Ministério Público fosse julgado parte ilegítima e o réu absolvido da instância (era precisamente esta a terminologia utilizada pelo C.P.P. de 1929).
Era concebida, pois, como uma excepção de natureza dilatória.
No CPP de 1987, o artigo 119.º, alínea b), dispõe que «a falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48.º (…)» constitui nulidade insanável, que deve ser conhecida, mesmo oficiosamente, em qualquer fase do procedimento, determinando a invalidade do acto em que se verificar, bem como dos que dele dependerem e sejam afectados.
Estaremos nós perante tal nulidade?

3.4. Há quem responda afirmativamente a tal questão.
Para tal tese, como o artigo 48.º, referido na norma, remete, por sua vez, para os artigos 49.º a 52.º, sendo que o artigo 50.º é, precisamente, o que rege sobre a legitimidade em procedimento dependente de acusação particular, não é de excluir que a situação em causa se integre na mencionada previsão, ainda que, uma primeira mirada à alínea b) do artigo 119.º, possa sugerir uma interpretação diferente.
Germano Marques da Silva parece ir neste sentido quando, referindo-se à nulidade prevista no artigo 119.º, al. b), diz que esta nulidade «é apenas consequência da ilegalidade da promoção do MP, por falta de queixa, nos crimes semipúblicos e particulares, ou de acusação particular, nos crimes particulares, ou de qualquer outra irregularidade na promoção do processo, v.g., a adesão do Ministério Público nos crimes públicos ou semipúblicos à acusação primariamente deduzida pelo assistente, mas não à usurpação das funções do MP, caso este que será causa de inexistência do processo» (Curso de Processo Penal, Volume I, p. 47; o mesmo consta do Volume III, p. 34).
Para tal entendimento, e porque qualquer afirmação anterior, em termos meramente tabelares, quanto à inexistência de nulidades e questões prévias, não tem valor de caso julgado formal, estava habilitado o juiz de julgamento a conhecer a questão, a nosso ver na sentença e não por um simples despacho a ordenar o arquivamento em pleno julgamento.
Aliás, carecendo de legitimidade o Ministério Público para acusar, em primeira linha, por crime particular, deveria o Ministério Público ter notificado, atempadamente, a assistente para que deduzisse, querendo, acusação particular, nos termos do artigo 285º, n.º1, do Código Processo Penal, o que não ocorreu.
Para tal tese, também ainda dentro desta linha de pensamento, a adesão da assistente à acusação pública não teria a virtualidade de remediar a situação, pois a acusação dominante, nos crimes particulares, é sempre a do assistente, só podendo o Ministério Público acusar subordinadamente.
Em consequência, teríamos uma nulidade da acusação pública e de todo o processado dela dependente, o que não se traduziria, em rigor, já o assinalámos, numa decisão de arquivamentoPara tal tese, e nas nulidades insanáveis, poderíamos considerar que a situação estaria na al. b) do 119º, já que existiria "falta de promoção do processo pelo MP nas condições do 48º", que ressalva as restrições da acusação particular. Ora, no caso, não há promoção do processo nas referidas condições impostas por lei - há promoção do processo, mas fora dessas condições.
.
É que ela (a desconformidade legal) verificou-se porque o MP não deu cumprimento ao 285º, nº 1 do CPP, o que não pode prejudicar a assistente. Assim, o processo deveria regressar a essa fase (inquérito) e ordenar-se que o MP faça a notificação, repetindo-se todos os actos posteriores.

3.5. Mas este não é o único entendimento possível e não será o por nós prosseguido.
Desde logo, a redacção da referida alínea b) do artigo 119.º, numa leitura mais directa, não abrange a nossa situação – ou seja, só incide [não sendo permitida nesta sede qualquer ímpeto interpretativo extensivo ou analógico, em nome do princípio da legalidade e do sistema taxativo não puro das nossas nulidades (v.g. Das Nulidades Processuais Penais de João Conde Correia)], sobre as situações de falta de promoção do Ministério Público em relação a crimes públicos e semipúblicos (situações de acusação pelo assistente por crimes dessa natureza sem acusação pública ou com adesão posterior do Ministério Público).
Se assim É, os casos de dedução de acusação pelo MP por crime particular e de falta de notificação do assistente para deduzir acusação particular já não serão subsumíveis à dita nulidade insanável, não cabendo em qualquer das alíneas taxativas do artigo 119º do CPP, inexistindo ainda qualquer outra disposição legal que comine com nulidade absoluta a ocorrência de tais vícios.
Não sendo insanável tal nulidade, cairíamos na nulidade sanável, prevista no artigo 120º, n.º 2, alínea d) do CPP, sendo essa a posição de Paulo Pinto de Albuquerque [Comentário do CPP - Universidade Católica Editora, 3ª edição actualizada, página 305, anotação 6 i) ao artigo 120º, e página 744, anotação 10 ao artigo 283º] e dos anotadores do CPP – Comentários e notas práticas, Magistrados do MP do Distrito Judicial do Porto, Coimbra Editora, p. 726-727.
Está afastada a irregularidade, já que se trata de vício menor, reservado para as questões processuais de diminuta importância que não será o caso.
Trata-se, no fundo, de uma insuficiência de inquérito.
Note-se que a alínea d) do n.º 2 do artigo 120º do CP foi modificada na revisão de 2007 (Lei 48/2007 de 29/8).
Antes da revisão, dizia-se que constituía uma nulidade dependente de arguição a insuficiência de inquérito ou da instrução e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade:
Após a revisão, escreveu-se que tal nulidade sanável consiste na insuficiência de inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade.
Esclareceu-se o que significava tal insuficiência.
E TAL INSUFICIÊNCIA, no nosso caso, consubstanciou-se na falta de notificação, pelo MP, à assistente para deduzir acusação particular, ou seja, na omissão de um acto de inquérito legalmente obrigatório.
Sendo tal nulidade sanável, teria de ser arguida pela assistente (a interessada na anulação) no prazo cominado na alínea c) do n.º 3 do artigo 120º do CPP (até 5 dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito, datado tal despacho de 28/11/2005), não podendo ter sido conhecida oficiosamente pelo tribunal de julgamento, tantos anos depois…
Não tendo sido arguida em tempo, está sanada tal nulidade, tornando válido o acto inválido.
Diga-se ainda que a assistente acabou por aderir expressamente à acusação pública, conforme se constata de fls 169, configurando tal acto a sanação da nulidade em causa [artigo 121º/1 d) do CPP].
Decidiu ainda o Acórdão desta Relação de 9/5/2007 (visitado em www.dgsi.pt/jtrc.nsf) que «nos casos em que o procedimento criminal depender de acusação particular e o MP acusar sem notificar o assistente para a deduzir, este, notificado daquela acusação, pode optar por:
a)- suprir a omissão apresentando a sua acusação;
b)- arguir a nulidade perante o juiz até 5 dias após a notificação da acusação;
c)- acompanhar a acusação do MP, ficando associado à eficácia processual desta».
Ora, no caso vertente, a assistente optou pela via c), estando assim naturalmente sanada tal nulidade.

3.5. Como tal, não poderia o juiz «a quo» ter conhecido oficiosamente de tal nulidade já sanada – recorde-se ainda que nunca poderia ter optado pelo arquivamento em despacho exarado em acta -, ficando prejudicado o 2º argumento do recurso (falta de fundamentação do despacho recorrido).
Se assim é, só resta revogar o despacho recorrido, ordenando-se que o tribunal de 1ª instância ordene o legal prosseguimento dos autos, marcando novo dia para julgamento, o qual deverá levar a cabo, após o que deverá proferir sentença em conformidade com o aí apurado.
Conclui-se, assim, sem necessidade de mais considerações, que o recurso merece provimento, sendo essa a solução que menos choca com a confiança que a administração da Justiça deve sempre merecer aos seus utentes, assente o erro processual praticado pelo MP, do qual não poderá a assistente arcar com as suas (incompreensíveis) consequências.

III – DISPOSITIVO

Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso e, em consequência, por sanação há muito da detectada nulidade de inquérito, revoga-se o despacho proferido em 29/10/2009 (fls 417-418), ordenando-se que o tribunal de 1ª instância designe novo dia para julgamento e o realize efectivamente, após o que deverá proferir a competente sentença criminal e cível.
Sem custas.
Serão fixados pela 1ª instância os honorários devidos à Exmª Patrona da Assistente pela interposição do presente recurso.
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Coimbra, _______________________________
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário – artigo 94.º, n.º 2, do C.P.P.)


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(Paulo Guerra)


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(Vieira Marinho)