Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
69/09.2TBOHP.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: EXCEPÇÕES
DEDUÇÃO
ESPECIFICAÇÃO
VENDA DE COISA DEFEITUOSA
ACÇÃO DE ANULAÇÃO
CADUCIDADE DA ACÇÃO
Data do Acordão: 06/19/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DE OLIVEIRA DO HOSPITAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 917º E 287º Nº2 DO CC
Sumário: I. O incumprimento, pelo réu, do ónus consagrado na parte final do art.º 488.º do CPC implica a libertação da contraparte do ónus de impugnação prescrito no art.º 505.º, assim se restaurando o equilíbrio entre as partes, pressuposto de um processo justo e equitativo;

II. Só assim não sucederá quando se demonstre que a omissão não prejudicou o exercício, cabal e esclarecido, do contraditório, por banda da contraparte;

iii. A caducidade da acção de anulação, por erro, da venda de coisa defeituosa, estabelecida no art.º 917.º do Código Civil, encontra-se subtraída ao conhecimento oficioso do Tribunal, carecendo, para ser eficaz, de ser invocada pela parte a quem aproveita (art.º 303.º, ex vi do disposto no n.º 2 do art.º 333, ambos os preceitos do Código Civil);

iv. Não pode o Tribunal julgar verificada a caducidade do direito de acção e decretar o efeito extintivo do direito da autora por terem decorrido mais de seis meses sobre a data da denúncia do defeito, se a ré invocou a aludida excepção mas com fundamento na intempestividade da denúncia, que não logrou provar.

Decisão Texto Integral: No Tribunal Judicial de Oliveira do Hospital,
A... , Lda., contribuinte fiscal nº (...), representada pelo sócio-gerente B..., com domicílio em (...), Oliveira do Hospital, veio instaurar acção declarativa, a seguir a forma ordinária do processo comum, contra C... , sociedade comercial registada na Conservatória do Registo Mercantil de Barcelona sob o n.º (...), com sede em (...) Santa Esteve Sesrovires, Espanha, pedindo a final a condenação da demandada a reconhecer que o contrato entre ambas celebrado é nulo e a pagar-lhe a quantia de € 62 545,81 (sessenta e dois mil, quinhentos e quarenta e cinco euros e oitenta e um cêntimos) a título de indemnização pelos danos de natureza patrimonial e não patrimonial sofridos ou, caso assim não seja entendido, deverá a ré ser condenada a pagar à demandante os danos causados desde a data da entrega da máquina, em 20 de Outubro de 2006, no indicado montante de € 62 548,81.

Em fundamento alegou, em síntese útil, ter adquirido à ré em 20 de Outubro de 2006 uma máquina da marca C..., modelo SAI-350, pelo preço de € 35 000,00, que satisfez integralmente. A Ré procedeu à entrega e montagem da aludida máquina nas instalações da demandante, equipamento que, todavia, e desde o seu início, nunca funcionou nas condições e para os fins constantes da sua aquisição. O equipamento vendido padecia assim de defeito que foi prontamente denunciado à ré a qual, apesar das sucessivas intervenções, nunca logrou eliminá-lo, tendo a autora sofrido, em consequência, os prejuízos que discrimina. O alegado constitui fundamento de resolução do contrato celebrado, com a inerente restituição do preço pago, a que acresce indemnização pelos prejuízos sofridos, pretensões que formula e encontram acolhimento nos art.ºs 908.º e 913.º do CC, que expressamente convoca.

Citada a ré, contestou nos termos da peça que consta de fls. 22 a 34, na qual alegou que a máquina vendida à autora, conforme era do conhecimento desta, não tinha quaisquer especificações particulares, tendo começado a funcionar apenas em 23 de Novembro de 2006, data em que a demandante procedeu ao respectivo pagamento, funcionando então correctamente. Cerca de sete meses depois foi solicitada a intervenção dos técnicos da demandada, não para proceder à eliminação de qualquer defeito, mas para fazer provas de afiamento, tendo em vista conseguir uma particular forma de dente pretendida pela cliente, tal como, de resto, ficou a constar da respectiva ficha de intervenção, sendo certo que tal tipo de dente não estava contemplado nas características da máquina, implicando a satisfação deste pedido da compradora a modificação dos parâmetros do equipamento com a finalidade de o adaptar a outro tipo de serra, fora do seu padrão. Mais impugna que os prejuízos alegados tenham tido origem em qualquer deficiente funcionamento do equipamento vendido, por inexistente, assinalando a ausência de registo de quaisquer defeitos, reclamações da compradora ou intervenções por banda da demandada com a finalidade de os eliminar.

Finalmente, no art.º 42.º da mesma peça, refutou a contestante a existência de motivo para a resolução da venda, alegando não se encontrar a autora dentro do prazo legalmente estabelecido para o fazer, reforçando no art.º 46.º que, mesmo a admitir a razão da demandante, sempre esta teria deixado caducar totalmente os prazos previstos no art.º 916.º do Código Civil.

Com tais fundamentos, conclui pela improcedência da acção.

A autora não replicou.

Após convite ao aperfeiçoamento, a demandante complementou o articulado inicial, especificando e concretizando os alegados defeitos da máquina, na sequência do que a ré manteve a contestação antes apresentada.

        *

Teve lugar audiência preliminar e, frustrada a tentada conciliação das partes, prosseguiram os autos com prolação de despacho saneador tabelar, selecção dos factos assentes e organização da base instrutória, peças que se fixaram sem reclamação das partes.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, tendo o Tribunal respondido à matéria de facto controvertida pela forma constante de fls. 206 a 210, respostas não reclamadas. Na devida oportunidade foi proferida sentença que, estribando-se no art.º 917.º do Código Civil e com fundamento na caducidade do direito de acção, julgou a mesma improcedente, absolvendo a ré do pedido formulado.

Inconformada, apelou a autora e, tendo apresentado as pertinentes alegações, rematou-as com as seguintes relevantes conclusões:

“1.ª- Na medida em que estamos perante direitos disponíveis das partes, a excepção de caducidade deixa de ser de conhecimento oficioso (cfr. artigos 303.º e 333.º n. ºs 1 e 2 do Código Civil), na deficiência da sua invocação e falta de fundamentação legal coerente, deve desde logo improceder.

2.ª- Assim sendo, para que o tribunal pudesse conhecer desta pretensa caducidade tinha a mesma de ser invocada por quem a aproveitaria, ou seja, pela Ré C....

3.ª- É pacífico que, sendo aplicável à caducidade o disposto no artigo 303.º, esta pode ser invocada por qualquer modo, judicial ou extrajudicialmente, por via de acção ou de excepção: porém, neste último caso, tem de ser deduzida na contestação (vide, por todos, Acórdão do STJ de 25/02/1993: CJ/STJ, 1993, 1º-150).

4.ª- Analisada a contestação da Ré verificamos que a mesma apresenta apenas defesa por impugnação, pois não distingue qualquer defesa por excepção.

5.ª- No artigo 46.º da mesma contestação a Ré refere que “Mesmo que a A. tivesse razão – o que não se admite a não ser por mera hipótese para raciocínio – sempre esta teria deixado caducar totalmente os prazos previstos no artigo 916º”.

6.ª- Acontece porém que a Ré termina a sua contestação dizendo simplesmente “Nestes termos e nos demais de direito, que doutamente não deixarão de ser supridos por V. Ex.ª, deve a R. ser absolvida do pedido em virtude da improcedência da presente acção, por não provada, nos termos do já impugnado, tudo com as demais consequências”.

7.ª- No recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05/07/2012, em que foi relator o insigne Conselheiro LOPES DO REGO, processo n.º 628/03.7TCFUN.L1.S1, publicado em www.dgsi.pt, foi analisada uma questão em tudo idêntica à dos presentes autos.

8.ª- Concluindo assim que “Não pode considerar-se suscitada em termos procedimentalmente adequados a excepção peremptória de caducidade do direito de resolução de um contrato, incidente sobre direitos disponíveis, feita «camufladamente» na contestação, a propósito de defesa que se qualifica expressamente como «por impugnação»”.

9.ª- Pelo que, salvo o devido respeito por melhor opinião, andou mal o Tribunal “a quo” ao conhecer da pretensa caducidade, absolvendo a Ré com esse fundamento.

Sem prescindir,

10.ª- Como se diz no artigo 331.º n.º 2 do Código Civil “quando, porém, se trate de prazo fixado por contrato ou disposição legal relativa a direito disponível, impede também a caducidade o reconhecimento do direito por parte daquele contra quem deva ser exercido”.

11.ª- Seguindo ainda o referido na sentença de que ora se recorre, a nível dos factos provados apenas uma circunstância aponta para um reconhecimento eventual do direito da Autora A... por parte da Ré C...,

12.ª- Que foi o facto dos técnicos da Ré C... se terem deslocado, por diversas vezes, à sede da Autora, a solicitação desta, para colocar a máquina a funcionar.

13.ª- Sempre com o merecido respeito que é devido, não podemos de forma alguma concordar com a conclusão retirado do Tribunal que tal facto não consubstancia um reconhecimento por parte da Ré do direito da Autora.

14.º- Desde logo, se a Ré não aceitasse que efectivamente a máquina se encontrava defeituosa, não teria com certeza feito deslocar os seus técnicos inúmeras vezes sem qualquer custo para a Autora.

Mas mais:

15.ª- Se atentarmos à documentação junta aos autos, nomeadamente os relatórios de serviço de assistência técnica, e destes mais precisamente aquele datado de 27/06/2007, é referido pelo próprios técnicos da Autora que “Nota: Las sierras afiladas en la SIA350 no cortan”.

16.ª- Quanto a isto não há muito a dizer, que aliás foi também entendido pelo Exmº Senhor Perito que elaborou o Relatório Pericial junto aos autos, que nessas folhas de registos de intervenções são referidas várias anomalias detectadas na máquina.

17.ª- Pelo que não podemos concluir doutra forma senão que a Ré tenha efectivamente reconhecido de forma clara e inequívoca os defeitos na máquina objecto do negócio.

18.ª- Ao assim decidir, violou o Meritíssimo Juiz do Tribunal “a quo”, entre outros, os artigos 488.º, 515.º, 655.ºe 659.º do Código de Processo Civil, 303.º, 331.º, 333.º e 916.º do Código Civil.

19.ª- Pelo exposto, como se referiu na sentença, atenta a matéria de facto provada relativa aos defeitos apresentados pela máquina “trata-se de um vício relevante, que, à partida, confere à autora o direito de reagir contra o contrato, designadamente o direito à anulação do contrato”.

Com tais fundamentos pretende a revogação da sentença proferida e sua substituição por decisão que condene a ré no pagamento à recorrente das quantias peticionadas.

A apelada contra alegou e concluiu como se segue:

“1. Tendo a R. invocado na contestação a caducidade estribada em factos concretos, a sentença proferida em 1.ª instância apreciou, e bem, essa questão fazendo correcta aplicação da lei, nomeadamente na aplicação do disposto nos artigos 916.º, 303.º, 331.º, 333.º todos do C.C.;

2. Ao contrário do que ocorreu no processo 628/03.7TCFUN.L1.S1, onde foi proferido douto Acórdão do STJ de 05/07/2012 (que a recorrente invoca para fundamentar as suas alegações de recurso) no caso “sub judice” foram alegados factos concretos que permitem suportar a afirmação que o prazo de caducidade para instauração da acção pela A. começou a correr a partir da data em que foi feita a pretensa denúncia, isto é, nunca após 14 de Fevereiro de 2007;

3. “In casu”, na contestação a R. alegou factos concretos que foram incluídos na base instrutória, aceitou outros plasmados na matéria assente e tomou posição motivada em sede de impugnação sobre outros factos, sendo que no conjunto, estes factos e o seu circunstancialismo, permitiram à 1.ª instância pronunciar-se sobre o mérito da questão da caducidade que havia sido enunciada com base nestes factos e nestes termos;

4. Desde logo, resultou provado que o alegado problema do dente pretendido pela A. foi conhecido em data não apurada situada entre o dia 23 de Novembro de 2006 e o dia 14 de Fevereiro de 2007 (vide ponto 3.7 da douta sentença);

5. Resultou provado que, a A. solicitou os serviços dos técnicos da R. para colocar a funcionar devidamente a 14 de Fevereiro, 27 de Junho, 25 de Outubro e 6 de Dezembro de 2007 (ponto 3.12);

6. Que, a assistência prestada pelos técnicos da R. referida em 12 não conseguiu colocar a máquina a fazer o dente pretendido pela A. (ponto 3.16);

7. Que, entre outros objectivos, a intervenção visou adaptar a máquina a uma forma de dente pretendido pela A., o que não foi logrado (ponto 3.22);

8. Ora, dos factos dados como provados não se vislumbra que a R., ao deslocar-se para dar assistência pós-venda, respondendo a solicitações do cliente respeitantes a pretensas ou efectivas anomalias, tenha reconhecido o direito da A., antes se deslocou para dar assistência e verificar os motivos da denúncia e eventualmente reparar anomalias.

9. Repare-se que em momento algum se alegou e provou que, ao vender a máquina, a R. garantisse um determinado nível de rendimento e todas as formas de dente que a A. entendesse produzir;

10. Não se provou que a máquina sofra de avaria que impeça de executar o trabalho a que se destina, tanto assim, que a A. não logrou provar ter deixado de utilizar a máquina (cfr. ponto 3.23 dos factos provados na douta sentença);

11. Se a máquina não tivesse servido o fim a que se destinava, a A. no momento da compra ou da eventual denúncia teria imediatamente denunciado essa situação, devolvendo a mesma, ou se esta não servisse para os fins a que se destinava a A. não teria concordado com os técnicos da R. que a colocaram em funcionamento sempre que se deslocaram para dar assistência;

12. A A. não logrou provar que a máquina era de todo inadequada à função a que se destinava, bem como não logrou provar os alegados prejuízos nem os respectivos montantes, conforme se infere dos factos dados como provados na douta sentença;

13. A questão da caducidade (em que a A. baseou todo o pilar do seu suporte recursivo) é um “minus” relativamente à questão de fundo e, face ao alegado nas antecedentes conclusões sempre a acção teria de improceder;

14. Pelo que, não há qualquer violação dos artigos 515.º, 655.º e 659.º do CPC, não merecendo a douta sentença qualquer reparo por ter realizado correcta aplicação da lei.”

Com tal argumentação conclui naturalmente pela manutenção do julgado.

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Sabido que o objecto do recurso se limita -e delimita- em face das conclusões insertas nas alegações da recorrente, como resulta do preceituado nos art.ºs 684 n.º 3 e 685.º-A, ambos do CPC, as questões suscitadas pela recorrente e que demandam apreciação por banda deste Tribunal são, por um lado, saber se a ré suscitou em termos processualmente adequados a excepção peremptória da caducidade e, na afirmativa, se à procedência de tal excepção obsta o reconhecimento, por banda da mesma demandada, da existência de defeito relevante.

Tendo ainda em conta o teor das contra alegações apresentadas pela ré/apelada -que, por ter sido absolvida, não tinha legitimidade para recorrer atento o disposto no n.º 1 do art.º 680.º do CPC- por força e ao abrigo do disposto no art.º 684.º-A do mesmo diploma legal conhecer-se-á também, assim resultando ampliado o objecto da apelação, da existência do defeito reconhecido na sentença recorrida, questão que, por preceder logicamente as demais, será abordada em primeiro lugar.

                                                              *

II. Fundamentação

De facto

Não tendo sido impugnada a matéria de facto que nos chega da primeira instância, e não sendo caso para proceder à sua alteração oficiosa, são os seguintes os factos a considerar:

A-  A autora adquiriu à ré, em 20-10-2006, uma máquina C... modelo SAI-350 (al. A).

B- A máquina indicada em A) é uma máquina automática para afiar serras de cinta, circulares e alternativas, com afiamento em húmido e aspiração (al. C).

C- Foi com as características referidas em B) que a ré procedeu à venda à autora da máquina a que se alude em A) (resposta ao art.º 34.º).

D- A autora liquidou e pagou a quantia de € 33 500,00 e entregou à ré como retoma um Limador C... Canne no valor acordado de € 1 500,00 (al. B).

E- A máquina foi paga em 23 de Novembro de 2006 (resposta ao art.º 26.º).

F- A ré procedeu à montagem da máquina referida em A) nas instalações da autora, tendo indicado o constante do manual de instruções e o seu funcionamento aos funcionários designados pela compradora (resposta ao art.º 1.º).

G. A máquina foi entregue e posta em funcionamento a 23 de Novembro de 2006 (resposta ao art.º 27.º).

H. A primeira presença dos técnicos da ré nas instalações da autora, em 23 de Novembro de 2006, coincide com a instalação, colocação em funcionamento, explicações e instruções à autora (resposta ao art.º 28.º).

I- A máquina referida em A) foi adquirida para afiar serras para cortar madeira (resposta ao art.º 2.º).

J. A autora conhecia as características da máquina referida em A) antes da sua aquisição e que estava a adquirir uma máquina padrão, sem nenhuma especificação (respostas aos art.ºs 24.º e 25.º).

K- Desde data não apurada, subsequente à aquisição da máquina e anterior a 14 de Fevereiro de 2007, a máquina não afiava as fitas de serra como tinha sido indicado na feira onde foi comprada (resposta ao art.º 3.º).

L- Quando se iniciava a serragem, a madeira ficava de forma irregular e mal serrada (resposta ao art.º 4.º).

M- As serras afiadas na máquina em causa nos autos duravam menos tempo do que as serras afiadas com recurso a outros meios (resposta ao art.º 8.º).

N- Aqueciam muito e ficavam queimadas nas pontas (resposta ao art.º 9.º).

O- O que fazia com que as fitas não afiassem (resposta ao art.º 10.º).

P- De tal forma que a autora solicitou os serviços técnicos da ré para a colocar a funcionar devidamente em 14/2/2007, 27/6/2007, 25/10/2007 e 6/12/2007 (respostas aos art.ºs 12.º, 14.º, 15.º e 16.º).

Q- Durante o período de funcionamento da máquina foi destruído número indeterminado, nunca superior a 10, de fitas de serra de 9,45 m (resposta ao art.º 18.º).

R- Durante o período de funcionamento da máquina foi destruído número indeterminado, nunca superior a 12, de fitas de serra de 5,25 m (resposta ao art.º 19.º).

S- Durante o período de funcionamento da máquina foi destruído número indeterminado, nunca superior a 11, de pedras mós – moelas com 350mm (resposta ao art.º 20.º).

T- Houve uma intervenção a 27 de Junho de 2007, que foi a 3.ª subsequente à compra e entrega da máquina (resposta ao art.º 29.º)?

U- Entre outros objectivos, a intervenção visou adaptar a máquina a uma forma de dente pretendida pela autora, o que não foi logrado (resposta aos art.ºs 30.º e 31.º).

V- Com data de 27/6/2007 o técnico da ré preencheu a ficha cuja cópia consta de fls. 13, epigrafada de “Servicio de asistencia técnica - parte diario de trabajo”, da qual fez constar:

“- Hacer proevas de arilado para conseguir la forma de diente que desea el cliente.

- Adjuntamos forma de diente que el cliente desea y no conseguimos realizar en la SAI 350

- Problemas detectados as la maquina. Se tiene que cambiar retenes, piston avance.

- Lampare completa – vibracion del cabezal quando supieza e bajar.

Nota: las sierras afiladas en la SAI 350 No cortan”, aqui se dando, quanto ao mais, por reproduzido o seu teor. (al. D).

W- A assistência prestada pelos técnicos da ré a que se refere P) não conseguiu colocar a máquina a fazer o dente pretendido pela autora (resposta ao art.º 21.º).

X- A máquina laborou pelo menos até 6 de Dezembro de 2007 (resposta ao art.º 32.º).

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De Direito

i. da existência de defeito e sua relevância

A demandante formulou em juízo pretensão anulatória do contrato de compra e venda celebrado com a ré, que cumulou com pretensão indemnizatória, que fundamentou na existência de vício impeditivo da utilização da máquina para o fim a que se destinava. Vejamos se lhe assiste razão.

Não está em causa terem autora e ré celebrado contrato de compra e venda, tendo por objecto a máquina identificada em A), mediante o pagamento pela compradora do valor de € 35 000,00 correspondente ao preço fixado, e que foi integralmente satisfeito pela aqui demandante.

Assente está igualmente que se trata de uma máquina automática para afiar serras de cinta, circulares e alternativas, com afiamento em húmido e aspiração, características estas conhecidas da compradora, que sabia estar a adquirir uma máquina padrão, sem nenhuma especificação (cf. o teor da al. J).

Consoante definição contida no n.º 1 do art. 913.º do Código Civil[1], a coisa vendida é defeituosa quando sofra de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que se destina - quando este não resultar do contrato atender-se-á, nos termos do n.º 2 do preceito, à função normal das coisas da mesma categoria- ou ainda quando não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim.

No referido normativo é assim possível distinguir quatro tipos de situações: vícios que desvalorizam a coisa; vícios que impedem a realização do fim a que a coisa se destina; falta de qualidades asseguradas pelo vendedor; e, finalmente, falta de qualidades necessárias à realização daquele fim[2].

Explicita Soares Martinez que “O vício corresponde a imperfeições relativamente à qualidade normal de coisas do mesmo tipo, enquanto a desconformidade representa uma discordância com respeito ao fim acordado.

(...) A falta de qualidade pode igualmente ser aferida em função do que foi assegurado; não quer dizer que a qualidade assegurada afaste o padrão de normalidade, mas pode completá-lo”[3].

Na mesma linha, refere Menezes Leitão que “(...) a lei faz incluir assim no âmbito da venda de coisas defeituosas, quer os vícios da coisa, quer a falta de qualidades asseguradas ou necessárias. Apesar de a distinção entre vícios e falta de qualidades não se apresentar tarefa fácil, parece que se poderá sustentar que a expressão “vícios”, tendo um conteúdo pejorativo, abrangerá as características da coisa que levam a que esta seja valorada negativamente, enquanto que a “falta de qualidades”, embora não implicando a valoração negativa da coisa, a coloca em desconformidade com o contrato”.[4]

No entanto, para que os defeitos, aqui em sentido amplo, possam desencadear o regime da venda de coisa defeituosa, torna-se necessário que eles se repercutam no programa contratual, originando, ou a sua desvalorização, ou a não correspondência com o que foi assegurado pelo vendedor, ou ainda a sua inaptidão para o fim a que é destinada (o que tanto pode ter na sua origem um vício da coisa como a falta de qualidades asseguradas pelo vendedor)[5]. Este impedimento da realização do fim a que a coisa se destina corresponde a uma concepção subjectivista do defeito, estando assim em causa as utilidades específicas que o comprador pretende que lhe sejam proporcionadas pela coisa. Todavia, esta indicação do fim tem que ser aceite pelo vendedor, ainda que tacitamente, podendo assim concluir-se que é defeituosa “(...) a coisa imprópria para o uso concreto a que é destinada contratualmente -função negocial concreta programada pelas partes- ou para a função normal das coisas da mesma categoria ou tipo se do contrato não resultar o fim a que se destina”[6]. Deste modo, quando as partes não hajam precisado contratualmente o fim específico a que a coisa vendida se destina, ou ainda quando subsista dúvida quanto a esse fim, a inidoneidade afere-se à luz da “função, nos termos do n.º 2 do art.º 913.º, o mesmo é dizer “pelo uso habitual”, “perfomance” ou função económico-social das coisas do mesmo tipo, com as qualidades normais ou típicas necessárias ou essenciais segundo o tráfico (…) para o desempenho desse destino normal”[7].

De volta ao caso que nos ocupa, revisitando a factualidade apurada, logo resulta evidente não ter a autora logrado demonstrar que destinava a máquina adquirida a operar um determinado e específico tipo de dente -ao qual, comprovadamente, não se adaptava- e que inserira tal destinação nas estipulações do contrato celebrado, assim vinculando a ré. Do mesmo modo, não resultou demonstrado que a ré vendedora tivesse assegurado que a máquina em causa detinha essa ou outras específicas qualidades, donde valer aqui a previsão supletiva do n.º 2 do art.º 913.º, aferindo-se a aptidão da máquina atendendo à função normal das coisas da mesma categoria.

À luz do que se deixou referido, e visto o acervo factual, incontornável é o facto da autora ter adquirido a máquina em causa para afiar serras de cinta, o que correspondia à sua destinação normal (vide o teor das als. B) e I). E a verdade é que os factos apurados evidenciam que o desempenho da máquina em causa, naquela que, repete-se, era a sua normal afectação, se revelou deficiente praticamente desde o seu início, nada tendo a ver com a sua inadequação a um específico dente pela autora pretendido (ao invés daquilo que, habilmente mas sem rigor, a ré destacou nas suas contra alegações) ou indevida utilização, bastando atentar na resposta negativa que mereceu o art.º 35.º da base instrutória a propósito formulado.

Com efeito, resultou provado que desde data não apurada, subsequente à aquisição da máquina, “rectius”, à sua instalação e entrega ocorridas a 23/11/2006, mas anterior a 14/2/2007, o equipamento em causa não afiava as fitas de serra como tinha sido indicado na feira onde foi comprada; quando se iniciava a serragem, a madeira ficava com uma forma irregular e mal serrada; as serras afiadas na máquina duravam menos tempo do que as afiadas com recurso a outros meios, aqueciam muito e ficavam queimadas nas pontas, o que fazia com que as fitas não afiassem. E tanto assim que a autora solicitou por diversas vezes a intervenção dos serviços técnicos da ré, a fim de colocarem a máquina a funcionar devidamente, o que ocorreu nos dias 14/2/2007, 27/6/2007, 25/10/2007 e 6/12/2007, tendo ainda ocorrido pelo menos uma outra intervenção antes do dia 27/6, uma vez que esta foi a terceira subsequente à compra e entrega da máquina, conforme assente em T). E no que respeita a esta específica intervenção, urge precisar que, ao invés do assinalado pela apelada, a mesma não teve unicamente em vista adaptar a máquina ao tipo de dente pretendido pela autora, mas também acorrer a deficiências, conforme aliás resulta claro do teor das als. U) e V), tendo o técnico da ré consignado expressamente na folha de obra que “las sierras afiladas en la SAI 350 no cortan”.

Logrou assim a autora fazer prova, conforme lhe competia atento o critério legal de repartição do “onus probandi” consagrado no art.º 342.º, que a máquina que pela ré lhe foi vendida funcionava deficientemente, por causa que lhe era inerente, e dentro do seu uso normal, tratando-se pois de coisa defeituosa. Com efeito, se a máquina se destinava a afiar serras e as serras ali afiadas não cortavam, estamos perante vício que a tornava inidónea para o fim a que se destinava. Deste modo, não se subscreve, neste passo, os considerandos expendidos na sentença recorrida, que considerou estarmos perante vício que desvalorizava a coisa, isto sem prejuízo de se sancionar a conclusão a que, neste conspecto, ali também se chegou, quanto à relevância do defeito.

Por força da remissão para o regime da venda de bens onerados é aplicável à venda de coisa com defeito o disposto nos artigos 905.º e seguintes, podendo assim o comprador requerer a anulação do contrato por erro ou dolo, desde que se verifiquem os requisitos da anulabilidade. Vale isto por dizer que, no caso de erro -e apenas dele nos ocuparemos, posto que nem ao de leve resultou indiciado o dolo da ré vendedora-, exige a lei a sua essencialidade e a cognoscibilidade para o declaratário nos termos dos art.ºs 251.º e 247.º. Erro essencial é aquele que levou o errante a concluir o negócio em si mesmo, e não apenas nos termos em que o foi, ou, noutra formulação, “o erro foi causa (…) da celebração do negócio e não apenas dos seus termos. O erro é essencial se, sem ele, se não celebraria qualquer negócio ou se celebraria um negócio com outro objecto ou de outro tipo ou com outra pessoa”[8], sendo que apenas o erro essencial é causa de anulabilidade. Exige ainda a lei, pela remissão para o art.º 247.º, que o declaratário conhecesse ou devesse conhecer a essencialidade do elemento sobre que incidiu o erro, dispensando o conhecimento ou cognoscibilidade do erro em si.

Quanto a este último aspecto, atendendo a que a demandante adquiriu a máquina com a finalidade de nela afiar serras de cinta, tarefa que aquela desempenhava de forma deficiente, pois que as serras ali afiadas não cortavam ou efectuavam cortes irregulares na madeira, daqui resulta que o erro incidiu sobre elemento essencial, essencialidade que era do conhecimento da vendedora, posto que a vendeu com aquela mesma finalidade, a conceder portanto à compradora o direito a anular o contrato e, consequentemente, por força do disposto no art.º 289.º, à repetição do preço pago, no montante de € 35 000,00 -irrelevando, para este efeito, que parte tenha sido satisfeito mediante dação em pagamento- contra a restituição à ré da máquina vendida.

O reconhecido direito à anulação é cumulável com a indemnização pelo denominado dano contratual negativo prevista no art.º 909.º (aplicável por força da remissão do art.º 913.º), embora confinada à vertente dos danos emergentes. Tal indemnização só não será devida nos casos em que o vendedor ignorava sem culpa o vício ou a falta de qualidade de que a coisa padece (art.º 915.º e n.º 2 do art.º 914.º), assim admitindo a lei que o vendedor se possa exonerar da responsabilidade pelo ressarcimento de tais danos mediante a prova, que lhe compete, da ignorância não culposa.

A autora formulou pretensão indemnizatória, reclamando a este título o pagamento da quantia de € 27 545,81, respeitando € 4 000,00 a danos de natureza não patrimonial e o restante a prejuízos decorrentes da paralisação da máquina e inutilização de fitas de serra e mós. A este respeito, tendo sido perguntado apenas quanto consta dos art.ºs 18.º a 20.º, resultou demonstrado que durante o período de funcionamento da máquina foi destruído número indeterminado, nunca superior a 10, de fitas de serra de 9,45 m; número indeterminado, nunca superior a 12, de fitas de serra de 5,25 m; e número indeterminado, nunca superior a 11, de pedras mós com 350mm sem que, todavia, se tenha estabelecido -tal não foi sequer perguntado- se a inutilização destes materiais resultou -foi causada- pelo deficiente funcionamento da máquina. E nada mais se provou, escassez de factos que obsta ao arbitramento de qualquer montante indemnizatório.

Aqui chegados, cabe agora indagar se o reconhecido direito da autora à anulação do negócio se extinguiu por caducidade, tal como afirmado na decisão recorrida, o que nos introduz na segunda questão enunciada.

       *

ii. da caducidade do direito de acção.

Estando em causa um erro do vendedor, o comprador está obrigado a denunciar o vício ou a falta de qualidade da coisa, tratando-se de móvel, nos prazos consagrados no n.º 2 do art.º 916.º -até 30 dias depois de conhecido o defeito [ou a ineficácia da sua reparação][9] e dentro de seis meses após a entrega- impondo-lhe ainda a lei que, após a denúncia, instaure a acção judicial respectiva no prazo assinado no preceito imediato. Assim, consoante dispõe o art.º 917.º “a acção de anulação por simples erro caduca, findo qualquer dos prazos fixados no artigo anterior sem o comprador ter feito a denúncia, ou decorridos sobre esta seis meses, sem prejuízo, neste último caso, do disposto no n.º 2 do artigo 287.º”.

No caso em apreço, tal como ponderado na decisão recorrida, encontra-se afastada a aplicação do regime previsto no artigo 287.º, quer porque não se fez prova do dolo da ré vendedora, quer porque o negócio foi cumprido nos seus elementos essenciais (cf. art.º 879.º).

Resultando dos autos que a coisa foi entregue no dia 23 de Novembro de 2006, desta data se conta o prazo de 6 meses para o exercício da denúncia (cf. art.º 922.º). O vício, tal como consta da sentença recorrida, que aqui se acompanha, foi conhecido em data não apurada, situada entre os dias 23 de Novembro de 2006 e 14 de Fevereiro de 2007, e pelo menos nesta altura a autora solicitou a sua reparação, donde ter que se haver a denúncia como tempestiva. Com efeito, desconhecendo-se embora desde quando era o vício conhecido da autora, sobre a ré recaía o ónus da prova de que sobre a data do seu conhecimento haviam decorrido mais de 30 dias (vide n.º 2 do art.º 342.º), o que nem sequer foi alegado.

Todavia, partindo da consideração de que o prazo de 6 meses de que a autora dispunha para instaurar a acção começou a correr daquele dia 14 de Fevereiro de 2007, concluiu-se na sentença recorrida que, à data em que a presente acção deu entrada em juízo, há muito tinha operado o prazo de caducidade consignado no art.º 917.º, razão pela qual se declarou extinto o direito que a demandante pretende fazer valer.

Contra tal solução insurge-se a apelante, defendendo que a ré não podia prevalecer-se de tal excepção, e isto com um duplo fundamento: porque não a invocou de forma a poder ser atendida, e porque à sua verificação obstava o reconhecimento do defeito. Vejamos, pois, se tais razões são de atender.

É incontroverso que a caducidade aqui estabelecida está subtraída ao conhecimento oficioso do Tribunal, sendo aplicável quanto preceitua o art.º 303.º, ex vi do disposto no n.º 2 do art.º 333.º. Deste modo, para ser eficaz, a caducidade tem de ser invocada (judicial ou extrajudicialmente) por aquele a quem aproveita.

Vigorando na nossa lei processual civil o princípio da concentração da defesa (cf. art.º 489.º, n.º 1), é na contestação que o réu deve deduzir todos os meios de defesa que possa opor à pretensão que contra ele é deduzida, seja por impugnação, seja por excepção, impondo-lhe ainda a lei -parte final do art.º 488.º- que especifique separadamente as excepções que deduza. Tal ónus, imposto ao réu contestante a partir da reforma de 1995/1996, foi justificada no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95 fazendo apelo a "razões de clareza e em concretização do princípio da boa fé processual (…), sendo maleabilizado o ónus de impugnação especificada, de forma que a verdade processual reproduza a verdade material subjacente".

Ora, analisada a contestação apresentada pela ré, constata-se não ter esta qualificado a defesa, tendo apresentado articulado sem qualquer especificação ou individualização, assim resultando incumprido o assinalado ónus. Mas quais as consequências decorrentes desta inobservância, uma vez que a lei é omissa a tal respeito?

Apoiando-se no recente aresto do STJ proferido no âmbito do processo n.º 628/03.7TCFUN.L1.S1, relatado pelo Ex.mº Sr. Conselheiro Lopes do Rego, defende a apelante que estamos perante uma ineficaz invocação da excepção peremptória que, como tal, não poderia ter sido conhecida pelo Sr. juiz “a quo”. Não cremos, todavia, que a doutrina ali expendida seja aplicável ao caso em apreço, e isto desde logo porque são distintas as situações que lhes subjazem[10]. Com efeito, na situação versada no acórdão do STJ, o réu limitara-se a invocar genérica e inconsequentemente a caducidade do direito à resolução do contrato, isto no âmbito de defesa que expressamente qualificara como defesa por impugnação e da qual individualizara aquela que deduzira por excepção (aqui tendo invocado a existência de autorização do senhorio para a realização das obras que constituíam o fundamento do pedido). Face a tal omissão, a sentença proferida em 1.ª instância omitiu, também ela, qualquer pronúncia sobre tal excepção, tendo o STJ decidido que dela não havia que conhecer em sede de recurso, tanto mais que o recorrente não arguira a nulidade da decisão.

Diferente é, porém, o caso dos autos, conforme se verificará.

No concernente à questão que nos ocupa, temos para nós que o ónus que recai sobre o réu de especificar separada e individualizadamente as excepções não pode cindir-se do ónus de impugnação especificada imposto ao autor pelo art.º 505.º. Por assim ser, "O desrespeito pela imposição da discriminação separada das excepções, traduzindo-se na sua dedução encapotada, deve ter como consequência … a inoperância do disposto no art. 505.º (admissão dos factos alegados pelo réu em sede de excepção quando não seja apresentada réplica ou nela não tenha sido considerada a excepção deduzida)”, pois "Mal se compreenderia de facto, que a parte pudesse beneficiar da prova decorrente da omissão de impugnar a matéria de excepção que, por culpa sua, a contraparte não entendeu como tal"[11]. Com efeito, sendo o incumprimento do aludido ónus susceptível de prejudicar o exercício do contraditório pela contraparte, a solução justa passa pelo levantamento do ónus de impugnação que a onera, assim se repondo o equilíbrio e garantindo um processo equitativo[12].

Sendo a apontada, cremos, a boa solução, nada obsta a que seja considerada a matéria de excepção se, quanto a ela, não resultou prejudicado o direito de defesa do autor, ou seja, se este tiver exercido de modo adequado e eficaz o contraditório.

Compulsados os autos, verifica-se que logo na petição inicial, e antecipando a arguição, pela ré, de eventual excepção da caducidade, a autora, depois de alegar que a máquina não funcionou, desde o seu início, nas condições e para os fins constantes da sua aquisição, razão pela qual solicitou a intervenção daquela por diversas vezes, “para que pusesse o equipamento a funcionar devidamente” (art.ºs 5.º a 7.º da p.i.), concluiu que “(…) das diversas vezes que a Ré efectuou intervenções para tentar pôr a máquina a funcionar, elas mostraram-se incapazes de solucionar o problema, e todas as esperanças que se iam sucessivamente alimentando acabavam por não ocorrer, adiando a solução definitiva, razão porque só em Outubro/Novembro se denunciou de forma definitiva a situação pelo que se intenta, e em prazo, a presente acção, porque afinal a máquina nunca cumpriu nem podia cumprir o fim para que foi adquirida” (vide art.º 19.º).

Na contestação, a ré, tendo impugnado especificadamente todos os alegados factos, contrapôs que após a entrega da máquina, em Novembro de 2006, a primeira intervenção técnica ocorreu em Junho de 2007, SETE MESES DEPOIS, conforme destacou, não se destinando à reparação de qualquer avaria mas antes à tentativa de adaptar o equipamento ao tipo de dente pretendido pela autora, reiterando ter a máquina funcionado sem queixas da compradora até 27 de Novembro de 2007 (vide art.ºs 17.º, 20.º e 27.º). Assim tendo alegado, concluiu depois no art.º 42.º “Face a tudo o que antecede impugna-se o alegado pela A. nos artigos 21.º e 22.º, já que se entende não lhe assistir qualquer motivo para a pretendida resolução da venda, tendo em conta que não existe motivo algum que sustente a dita devolução, nem está dentro do prazo legalmente estabelecido para o fazer”, reiterando no art.º 46.º que “Mesmo que a A. tivesse razão – o que não se admite a não ser por mera hipótese para raciocínio – sempre esta teria deixado caducar totalmente os prazos previstos no artigo 916.º, do CC”.

Os aludidos factos, a despeito da autora não ter replicado, ingressaram na base instrutória, tendo sido vertidos nos artigos 27.º a 33.º, sobre eles tendo incidido a actividade instrutória do Tribunal. Por assim ser, razão não havia para não ter a referida excepção por eficazmente invocada e sobre ela emitir pronúncia. Todavia, como resulta da alegação da ré que se deixou discriminada, invocou esta a caducidade decorrente da inobservância dos prazos prescritos no art.º 916.º, ou seja, a intempestividade da denúncia o que, todavia, não logrou provar, tendo a denúncia sido julgada tempestiva pelo Mmº juiz “a quo”, juízo que aqui se confirmou. Deste modo, vedado estava o conhecimento da caducidade fundada no decurso do prazo para interpor a acção judicial consagrado no art.º 917.º, por não invocada, o que decorre dos já citados artigos 302.º e 333.º, n.º 2.

Atento o exposto, não procedendo a excepção da caducidade por intempestividade da denúncia invocada pela apelada e não sendo de conhecer tal excepção com fundamento diverso e não invocado, procede parcialmente a acção conforme exposto em 1., resultando prejudicado o conhecimento da derradeira questão colocada pela apelante, a saber, se houve ou não reconhecimento do defeito para efeitos de paralisar a excepção (cf. art.ºs 660.º, n.º 2 e 713.º, n.º 2 do CPC).

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III. Decisão

Em face do exposto, e na parcial procedência do recurso, acordam os juízes da 1.ª secção cível deste Tribunal da Relação de Coimbra em revogar a sentença recorrida e, em consequência, decretam a anulação do contrato de compra e venda celebrado entre a autora A..., Lda. e a ré C..., sociedade comercial registada na Conservatória do Registo Mercantil de Barcelona sob o n.º (...), tendo por objecto a máquina identificada em A), condenando a apelada a restituir à apelante o montante de € 35 000,00 (trinta e cinco mil euros), mediante devolução do equipamento, absolvendo-se quanto ao mais.

Custas nesta e na 1.ª instância a cargo de apelante e apelada na proporção dos respectivos decaimentos (art.º 446.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).

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Sumário (n.º 7 do art.º 713.º do CPC)

I. O incumprimento, pelo réu, do ónus consagrado na parte final do art.º 488.º do CPC implica a libertação da contraparte do ónus de impugnação prescrito no art.º 505.º, assim se restaurando o equilíbrio entre as partes, pressuposto de um processo justo e equitativo;

II. Só assim não sucederá quando se demonstre que a omissão não prejudicou o exercício, cabal e esclarecido, do contraditório, por banda da contraparte;

iii. A caducidade da acção de anulação, por erro, da venda de coisa defeituosa, estabelecida no art.º 917.º do Código Civil, encontra-se subtraída ao conhecimento oficioso do Tribunal, carecendo, para ser eficaz, de ser invocada pela parte a quem aproveita (art.º 303.º, ex vi do disposto no n.º 2 do art.º 333, ambos os preceitos do Código Civil);

iv. Não pode o Tribunal julgar verificada a caducidade do direito de acção e decretar o efeito extintivo do direito da autora por terem decorrido mais de seis meses sobre a data da denúncia do defeito, se a ré invocou a aludida excepção mas com fundamento na intempestividade da denúncia, que não logrou provar.

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Maria Domingas Simões (Relatora)

Nunes Ribeiro

Helder Almeida

[1] Diploma a que pertencerão as disposições legais que doravante vierem a ser citadas sem menção da sua origem.

[2] Vide Menezes Leitão, ob. cit., pág. 119, aqui seguido de perto.

[3] Soares Martinez, ob. cit., pág. 130.

[4] Menezes Leitão, ob. e loc. cit.

[5] Ibidem.

[6] Prof. Calvão da Silva, “Da compra e venda de coisas defeituosas”, 4.ª edição, pág. 42.

[7] Ob. e loc. citados na nota anterior.

[8] V. Prof. Mota Pinto, ob. cit., págs. 508/509.

[9] Neste sentido, Calvão da Siva, ob. cit., pág. 76.

[10] Tal como resulta do sumário, que aqui se transcreve, agora integralmente : “1. Não pode considerar-se suscitada em termos procedimentalmente adequados a excepção peremptória de caducidade do direito de resolução de um contrato, incidente sobre direitos disponíveis, feita camufladamente na contestação, a propósito de defesa que se qualifica expressamente como por impugnação, sem que a parte alegue, como lhe cumpria, os factos concretos que indiciassem o momento em que o autor teve conhecimento do facto violador da disciplina contratual, conformando-se inteiramente o réu com a omissão de tal factualidade na base instrutória – e levando a que a sentença proferida, desconsiderando totalmente a questão da pretensa caducidade, omita de todo pronúncia sobre tal tema.

2. Neste caso, não é lícito ao réu/apelante – sem invocar a nulidade da sentença por omissão de pronúncia – limitar-se a colocar à apreciação da Relação a questão nova da caducidade, não apreciada na decisão impugnada e situada em matéria – a caducidade de direitos disponíveis – que não é do conhecimento oficioso do tribunal”.

[11] Prof. Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2008, p. 321

[12] V., neste preciso sentido, dando embora conta de divergências doutrinárias e jurisprudenciais, aresto da Rel. do Porto de 23/2/2010, processo n.º 7940/08.7 TBMTS, disponível em www.dgsi.pt. Qualificando a omissão como nulidade secundária, sanada se não arguida tempestivamente, o aresto do STJ de 3/2/2010, processo n.º 780/06.0 TTLRA.C1.S1, disponível  em www.dgsi.pt, de cujo sumário consta “VIII - A omissão daquela formalidade, podendo dificultar a percepção da parte contrária, quanto à caracterização da defesa apresentada, é susceptível de ter reflexos no cabal exercício dos seus direitos processuais e, consequentemente, vir a influir no exame e na decisão da causa, desse modo se assumindo como irregularidade apta a produzir nulidade, nos termos do artigo 201.º, n.º 1, do CPC, a qual, porém, não pode ser conhecida se apenas for suscitada no recurso de apelação, caso em que deve considerar-se sanada, por não ter sido arguida tempestivamente (artigos 202.º, 203.º, n.º 1, e 205.º, n.º 1, do CPC)”.