Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
342/09.0TBCTB-J.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: EXECUÇÃO
INCIDENTE DA COMUNICABILIDADE DA DÍVIDA
TÍTULO EXECUTIVO
SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA DE PARTILHAS
PROCESSO DE INVENTÁRIO
Data do Acordão: 12/03/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO - C.BRANCO - JL CÍVEL - JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.741 Nº 1 CPC, 1691, 1695 CC
Sumário: I – Em princípio, o pedido, pelo exequente, na execução, para que seja declarada a comunicabilidade da dívida ao cônjuge executado, nos termos do artº 741º nº1 do CPC, apenas pode ser admitido quando o título executivo não é sentença, pois que, se o for, tal comunicabilidade deve ser impetrada na acção declarativa onde ela é proferida.

II - Porém, se os termos do processo declarativo não permitirem ou não se compaginarem com este incidente, como sucede no inventário, a comunicabilidade pode ser admitida na execução, mesmo que o título executivo seja a sentença, neste caso a homologatória da partilha.

III – O requerente do incidente apenas tem de invocar a comunicabilidade da dívida e não já a insuficiência dos bens próprios do executado.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO TRIBUNAL DA  RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

M (…), G(…), J (…) e R (…), instauraram, por apenso ao  processo de execução em que são exequentes, e ao abrigo do no n.º 1 do artigo 741.º CPC, o presente  incidente de comunicabilidade da dívida contra E (…).

Alegaram, em síntese:

A execução a que o presente incidente é apenso tem subjacente a sentença homologatória de acordo de partilha da herança proferida no processo de inventário instaurado por óbito de M (…) e de cuja herança o executado, A (…), foi administrador e cabeça-de-casal.

No processo de inventário foram-lhes adjudicadas verbas correspondentes a € 190.404,47 que o executado, apesar de obrigado, nunca entregou, conduzindo à sua cobrança coerciva.

A referida dívida é uma dívida do executado e da requerida uma vez que  os € 190.404,47 vieram à posse do executado e da requerida, ainda no estado de casados, na sequência de vendas de bens da herança de M (…) efectuadas pelos dois entre 2001 e 2003.

 A requerida reconheceu ter recebido e ter na sua posse tal quantia em dinheiro em acordo celebrado em Abril de 2005 com R (…).

Tal montante foi recebido pelo executado e pela requerida na vigência do casamento tendo integrado o património comum do casal e foi utilizado em proveito comum.

Concluem que a dívida é comum nos termos do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 1691.º do Código Civil.

2.

Foi proferida  a seguinte decisão liminar:

«Pelo exposto, decido julgar liminarmente improcedente o incidente de comunicabilidade da dívida deduzido pelos exequentes (…) contra E (…), por manifesta improcedência.»

3.

Inconformados recorreram os requerentes.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

A) A douta Sentença proferida no processo n.º 342/09.0TBCTB-J, do Juízo Local Cível de Castelo Branco – Juiz 3, que indeferiu liminarmente o incidente de comunicabilidade da dívida deduzido pelos recorrentes contra E (…), com fundamento da execução ter subjacente uma sentença condenatória, viola o disposto no artigo 741.º, n.º 1 do CPC.

B) A douta Sentença enferma de errada interpretação e aplicação da lei, concretamente do disposto no artigo 741.º, n.º 1 do CPC, ao excluir do seu âmbito a sentença homologatória do acordo de partilhas dado à execução contra o cabeça-de-casal.

C) A sentença homologatória de acordo de partilha, não tendo sido proferida no âmbito de uma ação declarativa condenatória, não tem a mesma natureza que as sentenças excluídas do âmbito do n.º 1 do artigo 741.º do CPC.

D) No processo de inventário não estão previstos mecanismos legais que permitam julgar a comunicabilidade de dívidas ao cônjuge do cabeça de casal, concretamente quanto à utilização em proveito comum que aquele fez das verbas em dinheiro que declarou estarem na sua posse.

E) Conclui-se, assim, que o Tribunal a quo deveria ter admitido o presente incidente nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 741.º do CPC, porquanto fundado no facto de se estar perante uma dívida que é também da responsabilidade da requerida, e não por estar na posse das verbas em dinheiro em dívida.

F) Não tendo ficado, nem podendo ter ficado, na sentença homologatória dada à execução, definida a responsabilidade do cônjuge do executado e cabeça de casal com base em dívida comunicável ou comum, não deveria o Tribunal a quo ter considerado o título dado á execução uma sentença excluída 741.º, n.º 1 do CPC.

G) Ao fazê-lo, violou o disposto no artigo 741.º, n.º 1 do CPC.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 635º nº4 e 639º  do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, a questão essencial decidenda é a seguinte:

(In)admissibilidade do incidente.

5.

Foram dados como provados os seguintes factos:

1. Encontra-se a correr execução nos próprios autos a que os presentes são apensos instaurada pelos requerentes contra A (…) que tem na sua base (título executivo) sentença homologatória de partilha proferida nos autos principais.

2. Inicialmente a execução foi instaurada contra A (…) e contra E (…)

3. A (…) deduziu embargos de executado a que corresponde o apenso “B” que foram declarados parcialmente procedentes tendo o valor da execução sido fixado em € 190.404,47.

4. No referido apenso “B” foi decidido:

“Pelo exposto, e uma vez que não há outras questões a apreciar, decide-se julgar os presentes embargos à execução deduzidos por A (…) contra M (…), G (…) e R (…)procedentes por provados quanto ao montante de € 400.000,00 (quatrocentos mil euros) e manifestamente improcedentes quanto ao montante de € 190.404,47 (cento e noventa mil quatrocentos e quatro euros e quarenta e sete cêntimos), prosseguindo, em consequência, a execução quanto a este montante, ou seja, quanto a € 190.404,47.”

5. E (…) deduziu embargos de executado a que corresponde o apenso “C” que foram declarados procedentes tendo a execução sido declarada extinta quanto a si.

6. Serve de base à execução sentença homologatória de partilha proferida nos autos principais de inventário.

 6.

Apreciando.

6.1.

A Srª Juíza decidiu, nos seguintes, sinóticos, termos:

«A execução a que os presentes autos são apensos foi instaurada contra A (…) e E (…)à data da instauração do processo de inventário casados mas separados judicialmente de bens e tem na sua base (título executivo) sentença homologatória de partilha proferida nos autos principais.

E (…) deduziu embargos de executada e a execução foi declarada extinta quanto a si.

Invocam, agora, os exequentes que a dívida é comum do executado e de E (…) que foram casados em comunhão geral de bens.

Ora, dispõe o n.º 1 do artigo 741.º do CPC que “movida execução apenas contra um dos cônjuges, o exequente pode alegar fundamentadamente que a dívida, constante de título diverso de sentença, é comum; (…).”.

Da leitura do artigo 741.º, n.º 1, do CPC, retiramos quatro pressupostos para que o exequente possa suscitar o designado incidente:

i. A acção executiva terá que ter sido proposta apenas contra um dos cônjuges;

ii. O título executivo que esteve na base desta acção executiva terá de ser extrajudicial;

iii. O exequente que quiser lançar mão deste incidente terá que o fazer no requerimento executivo, ou em requerimento autónomo até ao início das diligências para venda e adjudicação dos bens penhorados;

iv. E, por último, a alegação de comunicabilidade da dívida pelo exequente terá que ser fundamentada.

Ora, ainda que os demais pressupostos estejam verificados, o título que está na base da execução é uma sentença. E como decorre da disposição legal transcrita, o incidente de comunicabilidade da dívida só pode ser suscitado se o título dado à execução for extrajudicial.

De facto, baseando-se a execução em sentença que apenas constitua título executivo contra um dos cônjuges, o executado, que não chamou o cônjuge a intervir no processo declarativo, para o convencer da sua responsabilidade, não pode alegar no processo executivo que a dívida é comum. O chamamento à intervenção principal do cônjuge não demandado constitui um ónus do cônjuge demandado na acção declarativa, cuja inobservância preclude a invocação da comunicabilidade da dívida.

No caso concreto, a requerida E (…) teve intervenção no processo de inventário mas o executado e cabeça-de-casal não invocou que o montante adjudicado aos exequentes estivesse na posse daquela. A verdade é que à data da instauração da execução, a requerida era casada mas separada judicialmente de bens do cabeça-de-casal e, portanto, a estarem os bens na posse desta, era necessário que tal tivesse sido declarado pelo cabeça-de-casal, o que não ocorreu.

Os bens foram descritos como estando na posse do cabeça-de-casal e na posse dos herdeiros de R (…)

Assim sendo, não há título executivo contra ela nem poderia o executado invocar a comunicabilidade da dívida.

E poderão os exequentes alegar no processo executivo a comunicabilidade da dívida? Se na acção declarativa (inventário) não deduziram reclamação à relação de bens invocando que a posse dos montantes que lhes foram adjudicados estavam também na posse da requerida, não poderão invocar a comunicabilidade da dívida na execução…

De facto, é inequívoco que, apesar de o inventário não ser uma acção de condenação, o certo é que a sentença homologatória de partilhas fixa, após o seu trânsito em julgado, definitivamente, o direito dos interessados, nomeadamente quanto aos bens que lhes foram adjudicados – cfr. artigo 704.º, n.º 1 do CPC…

Alegam os requerentes que a requerida declarou num documento particular que os bens estavam na sua posse e na posse do cabeça-de-casal.

A verdade, porém, é que tal declaração não serve de base à presente execução, pelo que não está em causa a sua apreciação.

Invocam, por outro lado, os requerentes que as referidas quantias a entregar aos exequentes foram usadas em proveito comum do casal A (…) e E (…), mesmo após a separação judicial de bens, decretada no âmbito do processo n.º 1815/06.1TBCTB, da 1.ª Secção de Família e MenoresJ1 do Tribunal da Comarca de Castelo Branco.

A verdade, porém, é que tal alegação e eventual prova é, neste caso, inócua. De facto, ainda que a dívida seja comum, baseando-se a execução em sentença que apenas constitua título executivo contra um dos cônjuges (não obstante separados de bens ainda não foi efectuada a partilha dos bens comuns do casal), os exequentes que não reclamaram no processo de inventário que a posse do  montante que lhes foi adjudicado estava na posse da requerida, para a convencer da sua responsabilidade, não podem alegar no processo executivo que a dívida é comum.

Assim sendo, e tendo sido dada à execução uma sentença, não se verificam os pressupostos para a instauração do incidente de comunicabilidade da dívida.»

Já os recorrentes entendem que que a sua pretensão de verem declarada a comunicabilidade da dívida é possível nesta sede executiva, pois que no  inventário não estão previstos mecanismos legais que permitam julgar a comunicabilidade de dívidas, pelo que  não tendo ficado, nem podendo ter ficado, na sentença homologatória dada à execução, definida a responsabilidade do cônjuge do executado e cabeça de casal com base em dívida comunicável, tal, agora, pode, e deve, ser-lhe concedido demonstrar.

Perscrutemos.

Estatui o artº 741º nº1 do CPC.

«1 - Movida execução apenas contra um dos cônjuges, o exequente pode alegar fundamentadamente que a dívida, constante de título diverso de sentença, é comum; a alegação pode ter lugar no requerimento executivo ou até ao início das diligências para venda ou adjudicação, devendo, neste caso, constar de requerimento autónomo, deduzido nos termos dos artigos 293.º a 295.º e autuado por apenso.»

 

Vemos assim que, requisito essencial desta pretensão e sua conditio sine qua non é que, vg., o título executivo não seja uma sentença.

Se é uma sentença é suposto que na respectiva acção declarativa tenha sido definida a questão da comunicabilidade.

Podendo, assim, e se necessário, serem ambos os cônjuges demandados na execução.

Os recorrentes alegam que a natureza do processo de inventário não permite definir essa comunicabilidade.

E assim é.

O processo de inventário destina-se apenas a definir os quinhões dos interessados na partilha;  e a esposa do executado, até porque já estava separada judicialmente de bens, não era interessada direta na partilha.

Ademais, à data e no âmbito do inventário, o incumprimento ainda não se colocava, pelo que inexistia necessidade de já a estar a definir-se a comunicabilidade.

Assim, até por estes motivos, não urgia  que a questão da comunicabilidade ficasse definida no inventário.

Destarte, este é um caso em que o referido artº 741ºº nº1 tem de ser interpretado habilmente e em conformidade com a realidade que ao mesmo subjaz.

Consequentemente, e numa postura hermenêutica que respeite a sua teleologia, haverá de permitir que aos recorrentes seja dada a possibilidade, na execução, de provar a comunicabilidade.

A questão da  inexistência da posse ou titularidade dos bens por banda da requerida, relevou para aferir da sua ilegitimidade e da sua não abrangência pela sentença homologatória do inventário o que acarretou que ela não pudesse ser demandada como co-executada e co-obrigada principal; mas não impede, como se frisou no Acordão desta Relação do apenso C, que contra ela pudesse ser despoletado o incidente da comunicabilidade da dívida do marido.

Na  verdade, para este efeito, relevante não é posse ou não posse por banda da ex esposa do executado da quantia exequenda, pois que, independentemente de esta existir, ou não, a dívida pode, ou não, ser comunicável.

O que releva é saber se a dívida é, ou não, comum, ao abrigo, vg., da disposição legal citada – artº 1691º do CC.

Os requerentes assim o alegaram e há que conceder-lhes a possibilidade dessa prova, seguindo-se os termos dos números seguintes do citado preceito.

Há quem entenda que o incidente «…não será porém possível se forem penhorados apenas bens próprios do subscritor do título, e forem suficientes para garantir o pagamento» - Abílio Neto,  in Breves Notas ao CPC, 2005, p.248.

Não nos parece, sdr., ser de acolher esta interpretação.

A lei não impõe este requisito adicional.

O que bem se compreende.

É que a ratio do preceito assenta, em cumprimento da lei substantiva – artº 1695º do CC -  no pressuposto de se consecutir uma justa e equitativa distribuição pelo casal dos seus encargos, o que se atinge fazendo responder, ao menos e desde logo a título principal, bens comuns por dívidas comuns, e não onerando por estas,  aprioristicamente, os bens próprios de um dos cônjuges.

Procede, brevitatis causa, o recurso.

7.

Sumariando – artº 663º nº7 do CPC.

I – Em princípio, o pedido, pelo exequente, na execução, para que seja declarada a comunicabilidade da dívida ao cônjuge executado, nos termos do artº 741º nº1 do CPC, apenas pode ser admitido quando o título executivo não é sentença, pois que, se o for, tal comunicabilidade deve ser impetrada na acção declarativa onde ela é proferida.

II - Porém, se os termos do processo declarativo não permitirem ou não se compaginarem com este incidente, como sucede no inventário, a comunicabilidade pode ser admitida na execução, mesmo que o título executivo seja a sentença, neste caso a homologatória da partilha.

III – O requerente do incidente apenas tem de invocar a comunicabilidade da dívida e não já a insuficiência dos bens próprios do executado.

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda julgar o recurso procedente, revogar a decisão e ordenar o prosseguimento dos autos.

Custas recursivas na proporção da final sucumbência.

Coimbra, 2019.12.03.

Carlos Moreira ( Relator )

Moreira do Carmo

Fonte Ramos