Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
387/12.2TBTNV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: CONFISSÃO TÁCITA
ACORDO
FORÇA PROBATÓRIA
ARTICULADO SUPERVENIENTE
Data do Acordão: 07/02/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE TORRES NOVAS – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 484º, 1 E 490º, 2 DO CPC.
Sumário: I – O acordo das partes ou admissão por acordo, tanto por falta de contestação (art.484º, nº 1 CPC), como pela não impugnação dos factos (art. 490º, nº 2 CPC), tem sido concebido como uma confissão tácita ou presumida (fita confessio), ainda que distinta da confissão, sendo, no entanto, fonte de prova legal, ao assumir força probatória plena.
II - A confissão ficta (e a consequente força probatória) pode ser infirmada através de articulado superveniente quando haja um conhecimento posterior da inexistência dos factos inimpugnados, ou seja, é admissível a retratibilidade do facto admitido por acordo em articulado superveniente, com a alegação de uma situação contrária à admitida.
III - A Relação não pode modificar a resposta dada pelo tribunal a quo com fundamento numa presunção, se não ocorrer qualquer das hipóteses do art.712º do CPC.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

         1.1.- O requerente – N… - instaurou na Comarca de Torres Novas acção de insolvência, com forma de processo especial, contra a requerido – CLUBE DESPORTIVO DE … - com sede na ...

         Alegou, em resumo:

O requerente tem um crédito de natureza laboral sobre o requerido, que foi reconhecido em acção adrede proposta no Tribunal de Trabalho de Leiria, e porque não procedeu ao pagamento voluntário, instaurou a respectiva acção executiva a reclamar a quantia de € 17.265,76.

Sucede que o requerido não possui bens suficientes para satisfazer o crédito, que já ultrapassa actualmente os € 25.000,00, pois encontra-se em situação de insolvência (art.20 nº1 als. a), b), e) e g) CIRE).

Pediu a declaração de insolvência do requerido e a sua qualificação como culposa.

1.2. - O requerido deduziu oposição, defendendo-se, em síntese:

O não pagamento do crédito do requerente por si só não revela a impossibilidade do devedor satisfazer as duas obrigações e o requerido tem bens suficientes provenientes das receitas dos sócios, subsídios, possui direitos desportivos de formação, receitas da publicidade, pelo que encontra-se numa situação económica e financeira viável, não podendo ser considerado insolvente.

O requerente formulou o pedido de insolvência com base em factos falsos com prejuízo para o requerido.

Concluiu pela improcedência da acção e pediu a condenação do requerente a pagar-lhe a quantia de € 600,00, a título de danos não patrimoniais pela dedução infundada do pedido de insolvência.

1.3. - Na audiência foram admitidos os documentos juntos pelo requerido, entre os quais uma declaração de quitação de dívida datada de 23 de Agosto de 2004.

Elaborou-se a selecção dos factos assentes e a base instrutória.

Após exame pericial, procedeu-se à audição da prova testemunhal e decidiu-se a matéria de facto.

1.4. - Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença que decidiu:

a) Julgar a acção improcedente e absolver o requerido do pedido.

b) Condenar o requerente a pagar ao requerido, a título de indemnização por pedido infundado de insolvência, a quantia de € 600,00.

1.5. - Inconformado, o requerente recorreu de apelação, com as seguintes conclusões:

Não houve contra-alegações.


II - FUNDAMENTAÇÃO

2.1. – O objecto do recurso

As questões submetidas a recurso, delimitado pelas conclusões, são as seguintes: (1ª) Nulidade da sentença, (2ª) Impugnação de facto (quesitos 12º, 16º e 17º), (3ª) Contradição de facto (alínea D) e r.q. 13º), (4ª) A situação de insolvência.

2.2. – Os factos provados (descritos na sentença)

2.3. - 1ª QUESTÃO / A nulidade da sentença

As nulidades da sentença, taxativamente previstas no art.668 nº1 CPC, reconduzem-se a erro de actividade ou de construção, distinguindo-se do erro de julgamento (de facto ou de direito).

Contrariamente ao alegado pelo recorrente, não se verifica qualquer nulidade pela imputada omissão na sentença do facto descrito na alínea D) (factos assentes), dado que o mesmo está plasmado no ponto 3) dos factos provados.

Por outro lado, justificou a nulidade da sentença por excesso de pronúncia (quanto à condenação pelo pedido infundado de insolvência) com base no erro de julgamento, na medida em que considera deter legitimidade substantiva para requerer a insolvência, o que tanto basta para a respectiva improcedência.

2.4. - 2ª QUESTÃO / Alteração de facto

Convoca, porém, as regras da experiência comum para a alteração da resposta ao quesito 16º, dizendo que se efectivamente tivesse sido feito o pagamento seria normal que se opusesse à acção executiva (instaurada em 2004) com base nessa situação, o que não sucedeu.

É conhecida a clássica distinção entre prova directa e prova indirecta ou indiciária, incidindo aquela directamente sobre o facto probando, enquanto esta – também chamada de prova “circunstancial”, “de presunções”, de “inferências” ou “aberta” – reporta-se sobre factos diversos do tema de prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação da qual se infere o facto a provar (cf., por ex., MICHELE TARUFFO, La Prueba De Los Hechos, Editorial Trotta, pág.453 e segs.).

As presunções judiciais, também designadas materiais, de facto ou de experiência (art.349 do CC), não são, em rigor, verdadeiros meios de prova, mas antes “meios lógicos ou mentais ou operações firmadas nas regras da experiência“ (VAZ SERRA, RLJ ano 108, pág.352), ou, noutra formulação, “operação de elaboração das provas alcançadas por outros meios“ (ANTUNES VARELA, RLJ ano 123, pág.58 nota 2), reconduzindo-se, assim, a simples “prova da primeira aparência“, baseada em juízos de probabilidade. Na definição legal, são ilações que o julgador tira de um facto conhecido (facto base da presunção) para afirmar um facto desconhecido (facto presumido), segundo as regras da experiência da vida, da normalidade, dos conhecimentos das várias disciplinas científicas, ou da lógica.

Considerando que o tribunal, aquando da decisão da matéria de facto (art.653 do CPC), julgou “provado” o quesito 16º, coloca-se a questão de saber se, ao fazer a análise crítica da prova, nos termos do art.659 nº2 do CPC, poderia socorrer-se de uma presunção judicial para decidir que o pagamento não foi efectuado.

Se o tribunal da 1ª instância deu (ou não) como provado certo quesito e se para o efeito ele pôde utilizar prova testemunhal e máximas da experiência, também a Relação não pode alterar essa resposta devido exclusivamente a uma presunção, na medida em que a sua força probatória pode ter sido arredada devido aos depoimentos orais prestados pelas testemunhas perante o tribunal, pois tal seria um contra-senso (cf. CALVÃO DA SILVA, RLJ ano 135, pág.125). Por isso, a Relação não pode modificar a resposta dada pelo tribunal a quo com fundamento numa presunção, se não ocorrer qualquer das hipóteses do art.712 do CPC (cf., por ex., ANTUNES VARELA, RLJ ano 123, pág.49, TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., pág.416; Ac STJ de 21/9/95, C.J. ano III, tomo III, pág.15).

Resta a resposta ao quesito 17º, porque o Apelante entende que o relatório pericial é insuficiente.

A prova pericial é sempre apreciada livremente pelo tribunal juntamente com as restantes provas que foram produzidas sobre os factos que dela são objecto (arts.389 do CC, 591 e 655 do CPC).

         Como resulta claramente da fundamentação, para justificar a resposta ao quesito 17º, o tribunal valorou o relatório pericial, ao concluir ser “provável” que a assinatura tenha sido efectuada pelo requerente Nuno Pereira. É certo que na tabela constante do relatório, o “provável“ aparece hierarquicamente inferior ao “muito provável“ e “muitíssimo provável”, só que esse “grau” de probabilidade foi corroborado com outros meios probatórios, designadamente com o testemunho de … e documentos de fls. … (reconhecimento das assinaturas por semelhança na …).

Improcede a alteração de facto.

2.5. – 3ª QUESTÃO / A contradição de facto

O Apelante arguiu o vício da contradição entre o facto assente na alínea D) ( “Não logrou obter o pagamento de tal crédito”), e o facto da resposta ao quesito 13º da BI (“A requerida pagou ao requerente as quantias referidas em 2”).

Na verdade, as duas versões são inconciliáveis, antagónicas ou excludentes sobre o mesmo facto – pagamento e não pagamento do crédito do requerente.

Tem-se entendido que existindo contradição entre os factos assentes e a base instrutória (especificação e questionário, na anterior terminologia) deve, em princípio, prevalecer o facto assente, em virtude de se basear em elementos dotados de força probatória especial (confissão, acordo das partes e documento), considerando-se não escrita a resposta à base instrutória, conforme resulta do art. 646 nº4 CPC.

O facto assente na alínea D) (“Não logrou obter o pagamento de tal crédito”) foi inicialmente admitido por acordo, pois tendo sido alegado pelo requerente não foi objecto de impugnação, sendo que o requerido até parece expressamente admiti-lo, muito embora diga que, por si só, não tem o efeito pretendido da insolvência (“Na verdade, o não pagamento do crédito do requerente pelo requerido, só por si e em singelo, não pode levar à conclusão de que revela a impossibilidade do devedor satisfazer as suas obrigações (…) “).

O acordo das partes ou admissão por acordo, tanto por falta de contestação (art.484 nº1 CPC), como pela não impugnação dos factos (art. 490 nº2 CPC), tem sido concebida como uma confissão tácita ou presumida (fita confessio), ainda que distinta da confissão, sendo, no entanto, fonte de prova legal, ao assumir força probatória plena (cf., por ex., CASTRO MENDES, Do Conceito de Prova em Processo Civil, 1961, pág. 703; M ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, págs. 142).

Mas, contrariamente à confissão (expressa), que é irretractável (art.567 CPC), o mesmo não sucede quanto à admissão por acordo, sendo este um dos pontos divergentes entre ambos os regimes.

Admite-se, assim, que a confissão ficta (e a consequente força probatória) possa ser questionada ou infirmada através da nulidade ou anulabilidade da confissão, por aplicação directa ou analógica do art.359 do CC à admissão por acordo, ou ainda por meio do art. 506 CPC (articulado superveniente), quando haja um conhecimento tardio da inexistência dos factos inimpugnados e erroneamente se haver pensado que se tinham verificado ( cf., por ex., LEBRE FREITAS, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, pág. 267 e segs.).

O facto quesitado em 16º (“ A requerida pagou ao requerente as quantias referidas em 2”) resulta da junção em audiência, pelo requerido de documentos, entre os quais os documentos de quitação de dívida subscritos pelo requerente, em 23 de Agosto de 2004 (fls. …) e da alegação em requerimento de resposta ao da impugnação do requerente.

Aliás, foi só depois da admissão dos mesmos (cf. despacho de fls. 107) que se elaborou e consignou em acta (na sessão seguinte) a selecção dos factos (cf. acta de fls. 113 e segs.),

Ao requerer a respectiva junção, o requerido alegou:

“Os documentos cuja junção agora se requer visam a descoberta da verdade e boa decisão da causa, tendo apenas agora sido possível a sua junção, face à ausência do Sr. Presidente da Comissão Administrativa da requerida em funções no estrangeiro e tendo o seu regresso acontecido após a apresentação da oposição o que apenas nesta altura permitiu junto da F.P.F. obter a certidão junta. E ainda face ao espaço temporal que decorreu entre a data do referido processo de impedimento até aos dias de hoje”.

O requerente (em 4/4/2012) impugnou a letra e a assinatura de tais documentos de quitação, dizendo que a assinatura foi falsificada e que nunca recebeu qualquer pagamento, para concluir que foi o requerido quem os forjou a fim de proceder ao registo de novos contratos de jogadores, face ao impedimento decretado pela Federação Portuguesa de Futebol.

Em contrapartida, o requerido respondeu, alegando que o requerente, no dia 23 de Agosto de 2004, recebeu todas as quantias que lhe eram devidas, tal como declarou por documento cuja assinatura foi reconhecida junto da Associação de Futebol de … e que o referido pagamento foi efectuado em numerário.

A interpretação que se faz (segundo o critério dos arts.236, 238, 295 CC) é no sentido de que com a junção dos documentos de fls. 95 e 98 (declaração de quitação) e posterior alegação, o requerido procurou, desta forma, através de alegação superveniente, infirmar, retractar o facto admitido por acordo na oposição.

E tanto assim, precisamente em face desta alegação e da impugnação da letra e assinatura dos documentos de quitação, por se apresentarem controvertidos, foram objectos da base instrutória, cujo ónus da prova impendia sobre o requerido.

No sentido da retratibilidade do facto admitido por acordo em articulado superveniente, com a alegação de uma situação contrária à admitida (cf. LEBRE DE FREITAS, Confissão no Direito Probatório, pág. 479).

Por conseguinte, em virtude da alegação superveniente, o facto nem sequer deveria ter sido levado aos factos assentes e muito menos considerado como provado na sentença, na análise crítica imposta pelo art.659 nº 3 CPC.

Como os factos assentes não fazem caso julgado formal, atenta a natureza provisória e instrumental da fase da condensação (cf. Assento do STJ nº 14/94 de 26 de Maio, actualmente com valor de acórdão de uniformização) e dado que o facto da alínea D) ficou sem efeito (por causa da retractação), chega-se à conclusão de que não se verifica sequer qualquer contradição.

2.6. – 4ª QUESTÃO / A situação de insolvência

O requerente pediu a declaração de insolvência, alegando a existência de um crédito de natureza laboral (reconhecido judicialmente), bem como a situação de insolvência do requerido.

         O art.20 nº1 do CIRE (aprovado pelo DL nº53/2004 de 18/3) confere legitimidade para requerer a insolvência a “ qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito”.

         Para tanto, o requerente terá de alegar os factos que integram os pressupostos da declaração de insolvência, através de petição escrita (art.23 nº1 CIRE), e, para além da alegação de um ou mais dos factos que servem de base à presunção legal, tem ainda de justificar na petição a origem, natureza e montante do crédito, bem como indicar os respectivos meios de prova (art.25 do CIRE).

         Assim, como primeiro pressuposto da declaração de insolvência, o credor – quando requerente – terá que alegar e provar o seu crédito. E compreende-se, tendo em conta a finalidade do processo de insolvência (art.1º do CIRE), pois, como se justificou no preâmbulo do DL nº53/2004 de 18/3 (que aprovou o Código) – “o objectivo precípuo de qualquer processo de insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores (…).”

O conceito básico de insolvência traduz-se na impossibilidade de cumprimento pelo devedor das suas obrigações vencidas, conforme estatui o art.3º nº1 do CIRE – “É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas – correspondendo ao § 17, II, da Insolvenzgesetz alemã.

Para as sociedades de responsabilidade limitada, agora alargada às outras pessoas colectivas e patrimónios autónomos, prescreve art.3º nº2 do CIRE, enquanto norma especial, - “ são também considerados insolventes quando seja o seu passivo manifestamente superior ao activo, um e outro avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis”.

Assim, o que releva para a insolvência é a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do cumprimento evidenciam a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos.
Através de “factos-índices”, elencados nas alíneas do nº1 do art.20 do CIRE, o legislador estabeleceu presunções juris tantum de verificação da situação de insolvência do devedor, pelo que, feita a prova pelo requerente, caberá ao requerido o ónus da prova da sua solvência, como se extrai do art.30 nº4 do CIRE

A sentença recorrida julgou a acção improcedente porque, em síntese, o requente não comprovou a existência de qualquer crédito sobre o requerido. E porque considerou o pedido infundado, aplicou a sanção cominada no art.22 do CIRE, com desenvolvida fundamentação.

A pretensão recursiva do Apelante tinha como pressuposta a alteração de facto, mas uma vez inviabilizada, tanto basta para a confirmação da sentença.

         2.7. – Síntese Conclusiva

1.- O acordo das partes ou admissão por acordo, tanto por falta de contestação (art.484 nº1 CPC), como pela não impugnação dos factos (art. 490 nº2 CPC), tem sido concebida como uma confissão tácita ou presumida (fita confessio), ainda que distinta da confissão, sendo, no entanto, fonte de prova legal, ao assumir força probatória plena.

2.- A confissão ficta (e a consequente força probatória)  pode ser infirmada através de articulado superveniente quando haja um conhecimento posterior da inexistência dos factos inimpugnados, ou seja, é admissível a retratibilidade do facto admitido por acordo em articulado superveniente, com a alegação de uma situação contrária à admitida.

3.- A Relação não pode modificar a resposta dada pelo tribunal a quo com fundamento numa presunção, se não ocorrer qualquer das hipóteses do art.712 do CPC.


III – DECISÃO

Pelo exposto, decidem:

1)

         Julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.

2)

         Condenar o Apelante nas custas.

Jorge Arcanjo (Relator)

Teles Pereira

Manuel Capelo