Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3211/11.0TALRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: INTERVENÇÕES E TRATAMENTOS MÉDICOS-CIRÚRGICOS
LEGES ARTIS
DOLO
NEGLIGÊNCIA
VIOLAÇÃO DO DEVER DE CUIDADO
Data do Acordão: 05/11/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA INSTÂNCIA CENTRAL - SEC. INS. CRIMINAL - J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 150.º, N.ºS 1 E 2, DO CP
Sumário: I - O tipo de crime do artigo 150.º, n.º 2, do CP, corporiza crime doloso, exigindo que o médico conheça e deseje a violação das legis artis e, para além disso, conheça e queira a criação do perigo previsto naquela norma.

II - No campo de análise de comportamento negligente, o cumprimento das legis artis afasta inexoravelmente qualquer averiguação quanto à observância, ou não, do dever de cuidado, por ser de entender, por força do art. 150.º, n.º 1, do CP, que se trata de um comportamento irrelevante para o direito penal.

Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, na secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

Os presentes autos foram instaurados com base na informação prestada pelo Hospital de (...) (actualmente integrado no Centro Hospitalar de (...) , EPE) relativa ao falecimento, no dia 27-11-2011, de A..., nascida a 5-5-1988, ocorrido aquando de um internamento hospitalar que teve lugar no período de 25 a 27-11-2011.

Por despacho de 24-11-2014, o Ministério Público determinou o arquivamento do inquérito, nos termos do artigo 277º, n.º 2 do CPP, dada a inexistência de indícios suficientes da prática de crime ([1]) – fls. 518/528.

Inconformado, o assistente B... (pai da falecida A... ) requereu a Abertura de Instrução, nos termos e com os fundamentos constantes de fls. 538 a 555, requerendo diligências instrutórias, e imputando às médicas intervenientes na 1ª cirurgia, pós-operatório e 2ª intervenção cirúrgica, I... e M... , a prática do crime de homicídio negligente p. e p. pelo artigo 137º, n.º 2 do Código Penal e do crime de omissão de tratamento médico-cirúrgico por violação das leges artis p. e p. pelo artigo 150º, n.º 2, do mesmo Código.

Após a realização do debate instrutório (fls. 719/723), foi proferida a decisão instrutória (fls. 724/735) que decidiu:

- não pronunciar I... e M... pela prática de um crime p. e p. pelo artigo 150º, n.º 2 do CP; e,

- pronunciar I... e M... pela prática de um crime de homicídio por negligência inconsciente p. e p. pelos artigos 137º, n.º 1 e 15º, al. b), ambos do Código Penal.


*

As arguidas I... e M... não se conformaram com tal decisão de pronúncia, e dela interpuseram recurso, apresentando a respectiva motivação, da qual extraíram as seguintes conclusões:

a) A arguida I... :

A) A recorrente não pode conformar-se com a aliás, douta decisão instrutória do Tribunal recorrido, na parte em que lhe é imputado a prática de um crime de homicídio por negligência inconsciente p. e p. no art. 137º, n.º 1 e artigo 15° al. b) do Código Penal, uma vez que entende, ter existido, por um lado, matéria de facto deficientemente apreciada face à prova produzida e, por outro, as conclusões jurídicas nem sempre se compaginarem com a factualidade provada mediante os elementos probatórios clínicos;

B) Nenhum elemento probatório novo foi junto que abalasse a fundamentação do despacho de arquivamento, nomeadamente de natureza clínica;

C) Quer do depoimento das testemunhas quer dos documentos clínicos constantes nos autos, não se infere que tivesse existido na presente situação qualquer negligência, omissão do dever de cuidado ou violação das legis artis por parte da arguida I... ;

D) Antes pelo contrário, ficou cabalmente demonstrado que existiu da parte da mesma arguida, uma avaliação prévia e um acompanhamento certo e práticas operatórias igualmente certas;

E) Existe nítida e total contradição na fundamentação da decisão instrutória bem como na apreciação da prova;

F) A recorrente I... diligenciou pela lavagem peritoneal e aspiração, realizou a prova de estanquidade gástrica com soro e betadine, o que também é aceitável, em vez do azul de metileno (cf. parecer do Dr. C... ponto 8 fls. 184 a 189), verificou a inexistência de extravasamento do líquido utilizado para a cavidade abdominal para drenagem do soro e sangue;

G) A arguida I... agiu de forma correta, tendo realizado a cirurgia com o que está tecnicamente estabelecido;

H) Aliás, este facto é consignado nos pareceres do Conselho Diretivo do Colégio da Especialidade de Cirurgia Geral e no do Conselho Médico-Legal do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, IP (fls. 393 a 395 e 516) quando evidenciaram que "A conduta do cirurgião antes, durante e após a intervenção cirúrgica foi correta";

I) Conclusão que teve por base "excertos do exame histopatológico efetuado na Delegação do Centro do INML, IP";

J) Em sede de instrução nenhuma prova foi produzida no sentido de abalar esta convicção clínica plasmada quer nas conclusões do Conselho Diretivo do Colégio da Especialidade de Cirurgia Geral (fls. 395), do Instituto de Medicina Legal e Ciências Forenses, IP (fls. 516 e do parecer do Dr. C... (fls. 184 a 189 e fls. 714 a 718);

K) Não foram tidos em conta os documentos de natureza clínica e os da especialidade que, refira-se uma vez mais, não foram abalados por nenhum elemento probatório trazido com a instrução;

L) Assim, não se vislumbra o fundamento para a pronúncia da arguida I... constante na decisão instrutória que aqui e agora se recorre;

M) Salienta-se que o Conselho Diretivo do Colégio da Especialidade de Cirurgia Geral (fls. 395) foi perentório ao afirmar que "Não é legítimo atribuir a causa da morte à pequena perfuração gástrica …" e "... A causa da morte poderá ter sido uma embolia pulmonar bilateral" cuja existência foi detetada no exame histopatológico e que essa sim, é capaz de provocar a morte;

N) Contrariamente ao que vem referido na decisão instrutória, a arguida I... visitou por duas vezes a paciente A... após a operação no dia 26 de novembro de 2011, tendo verificado que o pós-operatório estava a correr como o previsto e não voltou a ver a paciente porque não foi chamada pelos serviços sob as quais a referida paciente estava sob vigilância;

O) A arguida I... esteve ao serviço (urgência) durante o dia 26 de novembro de 2011 até às 20h00, altura em que terminou o trabalho e no dia seguinte não trabalhou porque era domingo;

P) Nunca mais foi contactada sobre a situação da A... , pelo que é alheia a tudo quanto ocorreu após a sua última visita clínica à enfermaria;

Q) Não existiu nenhuma conduta da arguida I... de não representação do facto, que foi o que justificou a decisão do Meritíssimo Juiz de Instrução (pg 9 da decisão) da subsunção ao crime de homicídio por negligência por parte da arguida agora recorrente;

R) Apesar de estar consignado em documento de natureza clínica e da especialidade, já aqui identificado, que não é legítimo atribuir a causa da morte à pequena perfuração gástrica mas sim à existência de "trombose/trombo embolia pulmonar bilateral", a decisão instrutória continua a referir que a A... faleceu devido a perfuração gástrica;

S) O Meritíssimo Juiz de Instrução fez tábua rasa de toda a prova documental de natureza clínica e da especialidade carreada para o processo;

T) De resto, a mesma decisão é contraditória quando refere que não foi realizada a prova de estanquidade gástrica com azul de metileno, quando mais à frente reconhece que a arguida I... diligenciou pela lavagem peritoneal e aspiração, bem como pela realização da prova de estanquidade com soro e betadine que também é aceitável, tudo conforme melhor se pode inferir da leitura de todos os pareceres e documentos de natureza clínica já aqui referidos;

U) De resto, a decisão instrutória após descrever os actos realizados pela arguida aqui recorrente acaba por não concretizar o procedimento material omitido pela I... , porque de facto não existiu omissão alguma;

V) A fls. 516 pode-se ler na consulta técnico-científica efetuada ao INML, IP que a cirurgia foi realizada "de acordo com o está tecnicamente estabelecido" e que "a observação e seguimento clínico pós-operatório" foi correta;

W) Da prova carreada para os autos e também na instrução é inequívoco que a arguida I... fez tudo o que tinha de fazer antes, durante e após a operação da A... ;

X) Após a operação a paciente ficou sob a vigilância do serviço de internamento e quando a arguida I... foi chamada acorreu de imediato, confirmando que o pós-operatório estava a decorrer dentro da normalidade, como previsto;

Y) A pós as 15h00 do dia 26 de novembro de 2011, a arguida I... não voltou a ser chamada pelos serviços sob os quais estava a A... sob vigilância, encontrando-se registado no diário clínico (fls. 428) que só às 22h00 é que foi chamado outro médico. A arguida a essa hora já tinha concluído o seu horário, pois tinha saído às 20h00;

Z) A arguida I... não realizou o crime de homicídio por negligência inconsciente p. e p. no art. 137 n.º 1 e art. 15° al. b) do Código Penal;

AA) A fundamentação do despacho de arquivamento do Ministério Público mantém-se, por ser expressão do que na realidade ocorreu e nenhum elemento probatório novo foi trazido ao processo aquando da instrução, que contrariasse minimamente tal decisão de arquivamento.

Nestes termos e nos melhores de direito requer a V.Exª. digne julgar o presente recurso procedente, substituindo a decisão de pronúncia da arguida I... por despacho que não pronuncie a mesma.


*

b) A arguida M... :

1. Mal andou o Tribunal a quo ao ter determinado a pronúncia das Arguidas I... e M... pelo crime de homicídio por negligência inconsciente, p. e p. pelos arts. 137º, n.º 1 e art. 15º, al. b) do Código Penal, porquanto da prova indiciária recolhida em sede de inquérito e de instrução não resultam indícios suficientes que, no caso concreto, tenha existido qualquer conduta negligente por parte da Recorrente - e bem assim da sua co-Arguida I... ­susceptível de ter criado, aumentado ou potenciado o perigo que se veio a verificar em concreto e a consequente morte de A... .

2. A decisão instrutória de que ora se recorre não interpreta correctamente a prova indiciária recolhida em sede de inquérito e instrução (documentos, depoimentos, inquirições, pareceres médicos), para além de desvalorizar as várias perícias realizadas nos autos, das quais resulta que o recurso a Betadine diluído em soro em vez do uso do azul de metileno em casos de suspeita de laceração ou de uma perfuração gástrica é igualmente aceitável e corresponde a uma boa prática médica.

3. O juiz tem o poder-dever de valorar e ponderar convenientemente todos os elementos carreados aos autos através das perícias, o que in casu, salvo o devido respeito, se não verificou. Nestes autos foram realizados três pareceres técnico-científicos e ainda um relatório elaborado no âmbito do inquérito hospitalar que foi ordenado, sendo que todos são unânimes em referir que o acompanhamento médico durante e após a 1ª intervenção cirúrgica foi correcto, suficiente, o necessário e completamente dentro do que sugerem as boas práticas médicas.

4. Resulta à saciedade em todos os pareceres que, no caso concreto, nada fazia prever tal resultado considerando que entre a 1ª e a 2ª8 cirurgias a paciente não tinha dores compatíveis com uma peritonite, para além de que a estanquicidade gástrica tinha sido testada com introdução de soro e betadine antes de terminar a 1ª intervenção, não tendo ocorrido extravasamento do mesmo pela cavidade abdominal.

5. Até às 06:30 horas do dia 27.11.2011 as Arguidas não podiam prever ou suspeitar que A... tinha uma perfuração gástrica decorrente da sua 1ª intervenção cirúrgica, tanto mais que tinha sido feito o teste de estanquidade pela Dr. 8 I... , cujo resultado foi negativo.

6. Não se pode argumentar que a demora das arguidas nos procedimentos em ordem a evitar a possível morte foi expressiva, desde logo porque, tendo sido feitos todos os testes possíveis para acautelar uma eventual perfuração, ainda, a terapêutica aplicada no pós-operatório perante os sintomas da paciente - que em nada apontavam para uma peritonite -, as arguidas não descuraram nenhum procedimento, tendo agido de acordo com as boas práticas médicas.

7. A perfuração gástrica que ocorreu na cirurgia do dia 25.11.2011, na qual interveio a Dr.ª I... como médica-cirurgiã e a Dr.ª M... como 1ª Ajudante, não consubstancia um erro médico censurável, isto é, não foram violadas as denominadas legis artis, e estas não tinham condições para verificar nessa intervenção a lesão e procederem à sua respectiva reparação.

8. Sobre esta matéria existem inúmeros estudos que apontam no sentido de que a percentagem de situações em que ocorre a perfuração gástrica e esofásica durante uma cirurgia de colocação de banda gástrica é aproximadamente de 0,8% (cfr. Parecer Médico de Cirurgia Geral do Dr. C... , fls. 185 e Relatório final do Hospital de (...) , de fls. 264), sendo, por isso, casos raros neste tipo de intervenções cirúrgicas. De todo o modo, estando em causa uma cirurgia da obesidade, e por força das condicionantes locais de ordem anatómica, existe sempre um risco natural de laceração dos tecidos provocada por instrumentos cirúrgicos, o qual é conhecido e admitido no quadro da ciência médica.

9. A... entrou no Hospital de (...) para realização de uma cirurgia programada, não se encontrando em risco de vida, tendo vindo a falecer subitamente num quadro de complicações que emergiram da 1ª intervenção a que foi sujeita e marcada para aplicação da banda gástrica.

10. Antes da realização desta intervenção cirúrgica, A... era acompanhada há cerca de 4 anos no Hospital de (...) , onde foi estudada e sujeita a consultas de psiquiatria e de anestesia, submetida a exames, de que são exemplo a endoscopia digestiva alta e exames pré-operatórios, tendo, durante todo esse percurso, sido cumpridos todos os procedimentos protocolados. Por outro lado, após todo este processo de avaliação, A... não revelou qualquer elemento que colocasse em dúvida a indicação cirúrgica, pelo que a operação foi marcada para o dia 25.11.2011.

11. A... deu então entrada no referido Hospital por volta das 12:20 horas do dia 25 de Novembro, tendo a cirurgia programada gastroplástica tido início pelas 14:45 horas desse mesmo dia. No acto cirúrgico, a Arguida I... , médica-cirurgiã, veio a deparar-se com dificuldade na abordagem da pars flacida e exposição do pilar do diafragma devido ao estômago ser muito volumoso, o que dificultou a passagem do goldfinger, pelo que a médica desistiu da colocação da banda gástrica e terminou a cirurgia.

12. Nessa mesma operação, a Arguida I... lacerou um vaso, facto que constatou logo, tendo procedido à respectiva reparação (cfr. Relatório Operatório de fls.118), sendo que ainda antes de terminar a cirurgia, foi realizado um teste de estanquicidade gástrica com introdução de 600 cm3 de soro com Betadine pela sonda nasogástrica, não tendo ocorrido extravasamento desse líquido pela cavidade abdominal, o que tranquilizou ambas médicas, tendo A... vindo a revelar sinais de recuperação da cirurgia.

13. Contudo, pelas 23:00 horas do dia 26.11.2011, porque o dreno apresentava ar, a Arguida M... tomou a decisão de realizar a prova do azul de metileno, sendo que, nessa altura, não foi verificado qualquer extravasamento dessa substância. Foram ainda dadas instruções ao corpo de enfermagem pela Arguida M... no sentido de ser vigiado o dreno de A... , tendo-a observado novamente por volta das 02:00 horas, não existindo nessa altura qualquer vestígio de azul de metileno.

14. Tal situação viria a inverter-se perto das 06:30 horas, altura em que surgiram vestígios dessa substância, o que motivou que a Arguida M... levasse A... para o bloco operatório, com vista a ser realizada uma laparotomia exploradora para detecção e reparação de eventual perfuração de víscera oca que só naquela altura se suspeitou. Já na sala de operações, A... sofreu várias paragens cardíacas, tendo sido sucessivamente reanimada, vindo a falecer às 08:40 horas.

15. Nessa 2ª intervenção, a Dr.ª M... ainda conseguiu proceder à incisão com abertura da cavidade abdominal, onde constatou existir uma pequena perfuração, inferior a 1cm de extensão, na face anterior do corpo gástrico, na sua porção alta, sendo certo que os achados operatórios não apresentavam sinais evidentes de peritonite generalizada ou abcesso localizado.

16. Verifica-se, pois, que a 1ª intervenção cirúrgica decorreu sem qualquer complicação adicional que suscitasse nos seus intervenientes qualquer preocupação especial, sendo que o prognóstico era, em absoluto, de uma recuperação de cirurgia perfeitamente normal.

17. É verdade que nessa cirurgia foi lacerado um pequeno vaso. No entanto, a Dr.ª I... laqueou o mesmo com agrafos, foi feita a lavagem peritoneal e aspiração, e bem assim, o teste de estanquidade que cumpriu todas as regras para o efeito. Ademais, ainda antes de terminar a cirurgia, foi colocado um dreno abdominal para drenagem de soro e sangue, decorrentes da referida laceração do vaso.

18. Objectivamente somos forçados a concluir - tal como concluiu o INML de Coimbra em sede de consulta técnico-científica (cfr. fls. 515 e 516) -, que a cirurgia foi realizada de acordo com o que está tecnicamente estabelecido e, apesar da complicação cirúrgica que se veio a verificar na operação, foram realizadas todas as práticas exigidas para o despiste de uma perfuração sem, infelizmente, a terem demonstrado.

19. De resto, como bem refere o Parecer do Dr. C... , em casos de laceração serosa pode não ser possível detectar precocemente qualquer perfuração, e só ser detectada passadas algumas horas de evolução conforme o desenvolvimento do quadro isquémico da lesão (cfr. relatório de fls. 185).

20. Também o próprio Hospital de (...) concluiu em sede de inquérito que se justifica que não fosse razoavelmente de exigir a detecção da lesão no acto cirúrgico, uma vez que se trata de um traumatismo que não evidenciou sinais, para além de que os dados objectivos disponibilizados apontam para que a fístula gástrica se tenha formado na noite de 26 para 27, ou seja, mais de 30 horas após a 1ª cirurgia.

21. Em declarações, o Director do Serviço de Cirurgia II do Hospital de (...) , Dr. Q... esclareceu: “Que o alegado sucesso na prova de estanquicidade, se compatibiliza com a evolução favorável da doente nas primeiras 24 horas do pós-operatório. Esse período de tendência para estabilização, aponta no sentido de concluir que a cirurgia terminou sem que o estômago tivesse sido perfurado. tendo uma possível laceração na sua parede evoluído no pós ­operatório por isquémia, vindo por necrose a atingir-se a dita ruptura da víscera. Que a possibilidade de produção de uma laceração na víscera durante o acto cirúrgico, é uma risco associado a intervenções desta natureza, pois que os instrumentos cavam um túnel, abrindo caminho entre tecidos e em zonas nem sempre visualizáveis em toda a sua extensão, especialmente em situações de más condições anatómicas, vide, casos de obesidade, com órgãos dilatados, unidos por tecidos e em compressão. Que a referida possibilidade, determina tecnicamente, que se proceda à prova de estanquicidade, a qual foi efectuada. Esta é a prática cirúrgica devida, a qual foi seguida." (cfr. depoimento de fls. 222 e ss).

22. O entendimento do Tribunal de que não cuidaram as arguidas de realizar a prova de estanquicidade gástrica com azul de metileno quando o haviam tido em consideração ao procederem à lavagem peritoneal, aspiração e colocação do dreno de soro e sangue, é incorrecto, porquanto o uso de Betadine diluído em soro - técnica de estanquicidade utilizada pelas Arguidas - é uma prática igualmente válida e aceite no quadro da ciência médica. Bastará, para tanto, confrontar o Parecer elaborado pelo Dr. C... e o Relatório Final do Hospital de (...) para concluirmos que se trata de uma prática válida.

23. Em tal Parecer é possível ler-se "8. O que está preconizado em vários centros de referência da cirurgia da obesidade, dever-se-á utilizar o azul de metileno, mas também é aceitável o uso de Betadine diluída em soro." (cfr. fls. 187).

24. Consta igualmente do Relatório Final do HSA:_"fff) Na suspeita de uma laceração ou de uma perfuração da referida natureza, dever-se-á fazer o teste do azul do metileno, a fim de comprovar acerca da existência ou inexistência de uma perfuração. ggg) É igualmente aceitável, que o referido teste se faça intra-operatoriamente, com o uso de Betadine diluído em soro." (cfr. fls. 260)

25. No entender do Dr. Q... a utilização de betadine é a metodologia correntemente aplicada e correctamente definida, esclarecendo que é utilizado o betadine e não o azul de metileno "por este último corante ser propício a tornar difícil a leitura dos restantes tecidos para neles proceder a reparações, visto que os tinge de uma forma difusa. Para avaliação em complicações pós-operatórias, então usa-se o azul de metileno diluído, também em quantidade moderada, pois o excesso na administração do mesmo por via oral, pode causar vómitos e outras iatrogenias. No pós-operatório o azul de metileno é utilizado, também porque neste caso, já não se confunde com outros fluidos que podem estar igualmente a ser drenados." (cfr. depoimento de fls. 224 e 225).

26. Não é pelo facto das Arguidas terem feito o teste de estanquicidade gástrica com recurso a Betadine e soro· ao invés do azul de metileno como refere a decisão de pronúncia - que faz incorrer as Arguidas em qualquer erro médico censurável ou que tal conduta corresponde a uma violação das regras da arte.

27. Às Arguidas não era exigível a detecção da lesão em apreço no decurso da 1ª intervenção cirúrgica, para além de que o teste de estanquicidade realizado por estas cumpriu todas as regras determinadas para o efeito, não tendo em consequência, praticado actos em desvio das regras da arte, isto é, por falta de cuidado ou ignorância,

28. Pelo que mal andou o Tribunal a quo ao ter dado como suficientemente indiciado os factos constantes dos pontos 15.17 e 15.19.

29. Consta dos registos clínicos e de enfermagem que instruem o processo clínico de A... que esta foi sempre vigiada, não se tendo verificado qualquer período de omissão dessa vigilância. Por outro lado, o seguimento que foi dado à paciente no pós-operatório, foi feito de acordo com a situação clínica e a intervenção cirúrgica realizada, nada fazendo prever ou suspeitar às Arguidas, ou até à equipa de enfermagem, a existência de qualquer complicação.

30. Em nenhum momento e até às 23:00 horas do dia 26.11.2011- altura em que a Arguida M... , por precaução, decidiu administrar à doente azul de metileno por via oral, no intuito de pesquisar eventual perfuração de víscera oca - foi verificado qualquer sintoma que pudesse apontar ou fazer suspeitar da complicação que A... estaria a desenvolver. O pós-operatório evoluiu favoravelmente nas primeiras 24 horas, nada fazendo prever o desfecho que se veio a verificar.

31. É certo que a paciente apresentava sangue e ar no dreno mas, tal como esclareceu o Director de Serviço Dr. Q... , tal existência "é justificável por ser natural que da intervenção resulte algum sangue na cavidade abdominal, bem como algum ar, neste caso próprio da técnica laparoscópica com insuflação de C02. Estas são circunstâncias normais e aceitáveis no pós­-operatório imediato deste tipo de cirurgia." (cfr. depoimento de fls. 222 e ss)

32. Consta dos registos clínicos que no 1° dia do pós-operatório (26.11.2011) que a doente foi observada pela equipa médica às 09:00, 15:00 e 23:00 horas, tendo ficado registado (cfr. Parecer Técnico-Científico elaborado pelo Conselho Directivo do Colégio da Especialidade de Cirurgia Geral, fls. 39): "Na primeira observação não existem dados relevantes, estando explícito: abdómen mole, depressível e sem sinais de irritação peritoneal. Dreno com cerca de 25/30 cc de sangue escuro; Às 15:00 horas está registado: inicia pelas 14:00h dor no braço e falta de ar. Por persistência inicialmente e agravamento posteriormente, foi prescrito calmante"; Na observação das 23:00 horas consta: "Por apresentar ar no saco de drenagem bebeu azul de metileno sem saída evidente pelo dreno. Hemodinamicamente estável. Abdómen livre."

33. Com referência ao dia 27 de Novembro, pelas 02:00 horas a doente é novamente observada pela médica M... tendo ficado registado: "Sinais vitais estáveis. Tem dor sem sinais de irritação peritoneal. Sem drenagem de azul de metileno pelo dreno. Pelas 07:00 horas iniciam-se as complicações, ficando registado: "doente em choque, consciente e obnubilada, pico febril, Sat 02 ­90%; hipotensão 90/60 mm Hg.", sendo que é nessa altura que é preparada para ir para o bloco por quadro clínico compatível com sépsis (cfr. citado Parecer Técnico-Científico).

34. De igual modo consta dos relatórios de enfermagem: "Dia 26/11 - 15h-23h: "doente queixosa, ..., sub-febril a fazer arrefecimento natural ... Por referir dor abdominal e no ombro direito fez analgesia prescrita durante o turno que surtiu algum efeito ingeriu água e tolerou ... Dreno com saída de líquido hemático + ar. Doente febril fez antipirético". No dia 27/11 - 23h-8h: "dte muito queixosa, às 6h30mn por a dte apresentar hipotensão e baixas oximetrias decidiu levar a doente para o bloco." (cfr. citado Parecer Técnico-Científico).

35. Já com referência ao período que distou entre as 15:00 e as 23:00 horas, testemunhou a Enf.ª F... : "... quando avaliou a doente A... , dos seus sinais vitais, a mesma manifestou dor e estava sub-febril, pelo que lhe foi administrado analgesia prescrita. Que foi avaliada a tensão arterial e a parte respiratória, esta na ordem dos 94% de saturação, pelo que foi colocada uma sonda nasal ficando a doente com uma saturação na ordem dos 98%. Foram verificados os pensos e os drenas, sendo que neste momento, verificou-se a existência de vestígios de sangue,· o que também naquela fase não foi considerado alarmante." (cfr. depoimento de fls. 275)

36. Relativamente às medidas tomadas pelas médicas M... , aqui Arguida, e H... , no dia 27 de Novembro, às 23:00 horas, é possível ler-se no Parecer do Dr. C... em resposta ao Quesito 1: "O aparecimento de um quadro sub-febril e de aparecimento de ar num pós operatório laparoscópico à priori não será só ar si sinal de gravidade porque são dois parâmetros que poderão frequentemente estar presentes. Por outro lado muitas vezes, por um esvaziamento abdominal mal conseguido, no fim da laparoscopia, do C02, pode levar no pós operatório ao aparecimento de uma dor abdominal com irradiação ao ombro direito por irritação do próprio diafragma. Apesar de se tratar de uma obesa com o IMC de 39,96, a descrição da palpação abdominal não refere quaisquer sinais de irritabilidade peritoneal que pudessem levar a uma suspeição de se estar face a uma peritonite. Contudo também queremos chamar a atenção de que, por vezes, um abdómen de um doente obeso com IMC > 35 pode apresentar dificuldades de interpretação devido ao excesso de panículo adiposo existente. A "falta de ar" não é mencionada nos dois registos (Médico e Enfermagem). Apesar de ter havido uma ligeira redução da SAT (94%) a quantidade administrada de O2 foi de 21/min, muito baixa, com uma imediata resposta para 98%. Em relação às drenagens não temos. quer clinica quer laboratorialmente, quaisquer indícios de a doente, nessa altura, estar em choque hemorrágico (líquido sangue escuro e controle da Hb nas análises tiradas às 7:58 do dia 27/11/2011 era de 13,1 g/dl). (cfr. Parecer Médico de Cirurgia Geral, fls. 715)

37. Concluindo este médico, aqui na qualidade de perito: "Parece-nos, face a estes factos, que as Dra. M... e H... , não apresentaram falta de zelo profissional, nas suas observações." (cfr. Parecer Médico de Cirurgia Geral, fls. 715)

38. Pergunta-se então, se no entender do Dr. C... , a conduta destas duas médicas foi a correcta, sendo que, quanto às drenagens não existe, quer clínica quer laboratorialmente quaisquer indícios de que A... nessa altura (23:00 horas) estava em choque hemorrágico. como chega o Tribunal de Leiria à conclusão de que as Arguidas I... e M... não cuidaram de detectar a tempo, nomeadamente até às 15:00 horas do dia 26/11, os efeitos da perfuração gástrica, pois que tal não resultou, ainda que indiciariamente, demonstrado.

39. Também resulta à evidência dos depoimentos prestados pelos enfermeiros que a vigilância foi constante e os sinais apresentados pela doente, pelo menos até às 06:30 horas do dia 27/11, não faziam suspeitar que nada de anormal se passasse (Cfr. depoimento da Ent.ª D... , a fls. 210 dos autos: "... a doente, esteve durante a noite, e de um modo geral, apelativa, manifestando mau estar, sendo certo que comunicativa, desperta e reactiva, com sinais vitais dentro dos parâmetros normais para a situação." (...) "Que a médica ou médicas sempre acorreram prontamente a doente nesse período. Que durante o seu turno, a doente esteve sempre acompanhada e vigiada, tendo a depoente falado bastante com ela.")

40. Também a Dr.ª H... , médica que acompanhou a Arguida M... na observação à doente por volta das 23:00 horas e novamente às 02:00 horas, referiu em sede de inquérito hospitalar que nada indiciava que a doente tinha perfuração gástrica, sendo que por mera precaução e, decorridos que estavam 24 horas sobre o acto cirúrgico, a Dra M... decidiu ministrar à doente azul de metileno para testar a estanquicidade do estômago (cfr. declarações de fls. 212 : "A doente apresentava o abdómen livre, estava orientada, bem-disposta e conversou. Face aos sintomas apresentados, por força do referido pico febril e também tendo em conta que no parecer da Dr.ª M... a doente estava ligeiramente dispneica, decidiram administrar antibioterapia para prevenir qualquer complicação do foro respiratório. Que nessa altura, o saco colector do dreno tinha vestígios de um líquido escuro, que admitiram como se tratando de sangue não recente, e portanto, naturalmente proveniente da drenagem do lavado do acto cirúrgico anterior, inexistindo sinais de sangue vivo. Que o saco também apresentava vestígios de ar, que sendo atribuído aos depósitos formados com a intervenção cirúrgica o que sucede naturalmente na via laparoscópica como fora o caso o certo é que, e porque já haviam assado mais de 24 horas sobre o acto, por mera precaução decidiram ministrar à doente azul de metileno para testar a estanquicidade do estômago, a qual, e segundo a Drª M... , havia sido testada no encerramento do acto cirúrgico com soro e betadine ").

41. É incorrecta e infundada a conclusão de que resulta como suficientemente indiciado que no pós­-operatório as Arguidas não diligenciaram tempestivamente pela realização de TAC, análises ou intervenção cirúrgica, por ser de prever em face da perfuração surgisse um agravamento a reparar com urgência.

42. Não tendo existido até às 06:30 horas do dia 27/11 quaisquer suspeitas tanto por parte das médicas arguidas e também da Dr.ª Mª H... , bem como do corpo de enfermagem, de que havia uma perfuração gástrica, naturalmente - parece-nos óbvio! - que não era possível prever que surgisse um agravamento da situação clínica da paciente que obrigasse a uma reparação urgente!

43. A eventual realização dos exames apontados pela decisão instrutória não permitia determinar a existência de uma perfuração.

44. A opção por uma TAC não ia ajudar porque havia ar (ar líquido) na cavidade - o que é normal nestas situações -, pelo que não permitia esclarecer se havia ou não perfuração. Por outro lado, a realização de análises também não ajudaria a determinar a existência de perfuração.

45. Sobre este assunto, o Parecer do Dr. C... é esclarecedor "Os exames microbiológicos, as Hemoculturas, devido à sua resposta não imediata não iriam interferir na avaliação imediata da evolução clínica. Quanto aos exames imagiológicos, não nos trariam muitas informações que pudessem ser úteis naquele momento (provavelmente ... ar + algum líquido abdominal) esperado às 24 horas do pós-operatório de uma laparoscopia" (cfr. Parecer, fls. 717).

46. Não era, portanto, possível às aqui Arguidas detectar mais cedo a perfuração gástrica desenvolvida por A... e, consequentemente, anteciparem a decisão da realização da cirurgia reparadora,

47. Bem andou o inquérito hospitalar que concluiu que "a degradação subida e galopante do estado de saúde da utente, não se pode atribuir a qualquer omissão de vigilância, que a não ocorrer tivesse determinado uma opção mais rápida para a realização da segunda cirurgia, para reparação da perfuração gástrica. O desfecho fatal, ocorreu assim num quadro de agravamento súbito e galopante do estado clínico da doente, devido ao choque com falência multiorgânica, originada na perfuração gástrica, sendo admissível a contribuição e a associação da etiologia séptica à trombose/ trombo embolia pulmonar bilateral." (cfr. relatório final, fls. 265).

48. No mesmo sentido pronunciou-se o Instituto Nacional de Medicina legal de Coimbra: "No pós­operatório imediato, consideramos que a doente teve o acompanhamento suficiente e necessário, completamente dentro do que sugerem as boas práticas. A solução tomada, logo que surgiu a suspeição de perfuração de víscera oca (cerca de 30 horas depois) foi a correta e em tempo certo. tendo-se confirmado perfuração gástrica. Infelizmente o desenlace final foi negativo, apesar das tentativas de reanimação realizadas na sala operatória, tendo a doente falecido em paragem cardiorrespiratóría após choque séptico causado por peritonite. (cfr. Parecer de fls. 515 e 516 dos autos)

49. Concluindo, por isso, o referido INML que: "1° a indicação da terapêutica cirúrgica corretamente realizada com estudo psicológico prévio e acompanhamento certo. 2° Cirurgia realizada de acordo com o que está tecnicamente estabelecido e apesar da complicação cirúrgica surgida (3 a 5% de complicações nos Centros de Referência) no ato cirúrgico, todas as práticas descritas para o seu despiste foram realizadas sem infelizmente a terem demonstrado. 3° Observação e seguimento clínico pós-operatório correto. 4° Logo que surgiu a hipótese clínica de perfuração víscera oca com a subsequente peritonite atuação cirúrgica correta e imediata. 5° Desenlace final de morte intraoperatória por falência cardíaca por choque séptico subsequente a peritonite (nada frequente com tão curta evolução - cerca de 40 horas). " (Cfr. Parecer do INML, fls. 515 e 516 dos autos).

50. Por último, o Parecer Técnico-Científico do Conselho Directivo do Colégio da Especialidade de Cirurgia Geral, a fls. 399: "Perante os dados do processo podemos concluir: A conduta do cirurgião antes, durante e após a intervenção cirúrgica foi correta;" (...) Do exposto, consideramos não ter havido uma prática compatível com a incompetência ou negligência. Não há violação das legis artis perante os factos. "

51. É absolutamente falso que as Arguidas tenham representado a laceração do vaso e descuidaram-se ao nível das consequências num período de tempo dilatado, não representando o resultado morte.

52. A perfuração não foi detectada na 1ª intervenção cirúrgica - nem isso era exigível às Arguidas - tendo estas realizado o competente teste de estanquidade através de betadine diluído em soro, pelo que, salvo o devido respeito por melhor opinião, obviamente que as Arguidas não podiam ter consciência da existência da ferida.

53. Pelo contrário, ao terem realizado o teste de estanquicidade, que se revelou negativo, ficaram estas confiantes de que inexistia qualquer perfuração, para além de que a doente evoluiu favoravelmente nas 24 horas do pós-operatório, não tendo sido verificados quaisquer sintomas que apontassem para qualquer peritonite até às 06:30 horas do dia 27/11, altura em que A... é prontamente levada para o bloco para reparação da perfuração, onde infelizmente viria a falecer.

54. Assim, mal andou o Tribunal recorrido ao ter considerado como suficientemente indiciado os factos vertidos nos pontos 15.18 e 15.19.

55. A decisão instrutória de que se recorre viola expressamente os artigos 163° n.º 2, 286°, 308.°, n.º 1 todos do Código de Processo Penal, art. 15° al. b) e 137° do Código Penal, o art. 32° da CRP, e bem assim o Princípio da Investigação ou da Verdade Material, Principio da Presunção de Inocência, Princípio da Tipicidade, o Princípio da Legalidade da Acção Penal.

Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve ser concedido provimento ao presente Recurso, e, em consequência, ser revogada a Decisão Instrutória proferida pela Secção de Instrução Criminal de Leiria (J1) na parte que determinou a pronúncia da Arguida e ora Recorrente (com as legais consequências no que respeita à co-Arguida I... ) e, em consequência seja substituída por outra que determine a sua despronuncia e o oportuno arquivamento dos autos.

 


*

Ao recurso da arguida M... respondeu o assistente, apresentando as seguintes conclusões:

A. A douta decisão instrutória apreciou corretamente os indícios existentes nos autos quanto à prática pela ARGUIDA de factos que integram um crime de homicídio negligente, p. e p. pelo artigo 137°, n.º1 e artigo 15º al. b) ambos do Código Penal, factos cuja prática foram determinantes para a morte da paciente A... . Porquanto,

B. No dia 25 de Novembro de 2011, pelas 21:30h A... deu entrada no bloco operatório do Centro Hospitalar de (...) , E.P.E., onde foi submetida a uma intervenção cirúrgica para colocação de uma banda gástrica, conforme consta do Relatório Operatório junto aos autos a f1s.118.

C. A... , foi alvo de um longo percurso de acompanhamento médico no Centro Hospitalar de (...) , E.P.E. iniciado em 2007 e foi proposta uma cirurgia de gástrica,

D. A intervenção cirúrgica foi dirigida pela Arguida (cirurgiã principal) I... , acompanhada pela aqui Arguida (ajudante) M... , com início pelas 12:30h.

E. Foi a mesma interrompida pela impossibilidade de colocação de banda gástrica "por não ter sido possível visualizar a ponta de goldfinger pelo estômago que era muito volumoso e por dificuldade de pneumoperitoneu adequado (cfr. fls. 118 do relatório operatório)."

F. No decurso do ato cirúrgico foi lacerado (rompido) um pequeno vaso, tendo a Arguida I... adotado o procedimento "laqueou com agrafos" (cfr. fls. 218 do auto de inquirição).

G. Procedimento esse, que no Relatório Operatório é designado por laparotomia exploradora laparoscopia, descrito por "abertura do pars flácida com bisturi elétrico mas com hemorragia que se controlou com agrafes".

H. Face à lesão supra mencionada a Arguida I... diligenciou pela "lavagem peritoneal e aspiração, realização da prova de estanquidade gástrica com soro e betadine, verificação da existência de extravasamento do líquido utilizado para a cavidade abdominal, colocação de dreno abdominal para drenagem de soro e sangue decorrentes da laceração então ocorrida num pequeno vaso".

I. No seguimento do procedimento supra aludido "foram dadas instruções ao pessoal da enfermagem para vigilância do dreno e do saco coletor (cfr. fls. 218 - depoimento da Arguida I... ).

J. Acresce que, perante tal situação a Arguida M... devia ter colocado a hipótese de tal laceração poder converter-se de imediato em perfuração da parede gástrica, e assim, acautelar, desde logo, qualquer complicação.

K. A corroborar tal afirmação vem o parecer do Dr. C... admitir como possíveis as perfurações gástricas e esofágicas durante a cirurgia da colocação da Banda Gástrica.

L. Mais admite ainda o Dr. C... , no seu parecer, que "na suspeita de uma laceração e/ou perfuração, dever-se-á fazer o teste do azul-de-­metileno, como comparativo de qualquer solução de continuidade, ou não, podendo, nos casos de laceração da serosa, não ser detetada precocemente qualquer perfuração, e só passadas algumas horas de evolução, conforme o desenvolvimento do quadro isquémico da lesão".

M. Tendo ocorrido uma lesão, a Arguida M... conjuntamente com a Arguida I... por precaução deviam ter adotado o procedimento de "realização de estanquidade gástrica com azul-de-metileno" em substituição da prova de estanquidade gástrica com soro e betadine.

N. Pois, sendo o betadine de cor acastanhada existiam grandes probabilidades de este se vir a confundir com os restos de sangue.

O. Diz ainda o Dr. C... no seu Parecer que a utilização do azul-de­-metileno é o fármaco que está preconizado em vários centros de referência da cirurgia da obesidade e não a utilização de soro e betadine.

P. Deste modo o fármaco que deveria ter sido administrado à paciente A... deveria ter sido o azul-de-metileno e não soro e betadine, como foi administrado.

Q. Deste modo, não se entende a razão pela qual as Arguidas M... e I... , não utilizaram o procedimento de azul-de-metileno.

R. Atuação e conduta que tinham o dever de adotar, mediante a possibilidade de produção de uma laceração na víscera.

S. Tal como defende o Dr. Q... , Diretor do Serviço de Cirurgia II do Centro Hospitalar de (...) , E.P.E, "a possibilidade de produção de uma laceração na víscera durante o ato cirúrgico determina tecnicamente que se proceda à estanquidade por azul-de-metileno (cfr. fls. 225 do depoimento)",

T. Técnica essa, que não tendo sido a utilizada pela Arguida não foi a adequada à prática cirúrgica devida, mas apenas a técnica aceitável que veio a mostrar-se insuficiente.

U. Além de que, no seu Parecer, o Dr. C... adianta que, "Nos casos em que a tunelização se tornar difícil, é correto não fazer outras manobras, fechar o doente e enviá-lo para uma equipa médica diferenciada".

V. Assim, quando a equipa médica se limita apenas a manter a doente sob vigilância no pós-operatório, sendo-lhe exigível uma especial atenção e um cuidado redobrado a qualquer sintoma que se verificasse nas primeiras 24 horas pós-operatório.

W. Pelas 22:00H ao sinal dado pela Enfermeira F... por ocorrência de um pico de febre associada "à saída de 400cc de sangue com ar", na paciente (cfr. fls. 275, depoimento da enfermeira F... ),

X. O que aliás já tinha sido verificado pelo enfermeiro E... "a doente apresentava o valor de 400cc na drenagem de conteúdo do dreno" (cfr. fls. 273 do depoimento e fls. 175 de registos).

Y. Intervém a aqui Arguida conjuntamente com a Dra. H... e como procedimento é dada a medicação para a febre e para as dores e administrado o azul-de-metileno pelas 23:00H

Z. Segundo o Parecer do Dr. C... "O azul-de-metileno é uma das medidas usadas na procura de soluções de continuidade nas vísceras ocas ... o seu aparecimento num dreno depende da localização da lesão e do tamanho da mesma e também da própria localização do dreno."

AA. Assim, era obrigação da Arguida ter ministrado atempadamente, o azul-de­-metileno à paciente A... e não apenas às 23:00h do dia 26 de Novembro de 2011, sabendo que o azul-de-metileno pode demorar algum tempo a sair pelo dreno.

BB. Quando muito, aos primeiros sintomas de alarme, ocorridos no dia 26, pelas 15:00H (08h antes da hora a que fora administrado) por forma a despistar a possibilidade desta apresentar uma fístula de víscera oca.

CC. Mais afirma a aqui arguida que durante a sua observação à paciente "achou-a um pouco dispneica" e ainda observou a "presença de ar no saco coletor do dreno" e ainda assim, considerou "tal facto de natural" (cfr. fls. 216 do depoimento).

DD.            Mas apesar disso, "como já tinham passado mais de 24H, por precaução, administrou à doente o azul-de-metileno via oral, no intuito de pesquisar eventual perfuração de víscera oca" (cfr. fls. 216 do depoimento da arguida).

EE. O que leva a crer que a pesquisa da existência de uma possível fístula a ser efetuada inicialmente com a utilização do azul-de-metileno detetaria a perfuração atempadamente.

FF. Deste modo, é visível que o azul-de-metileno deveria ter sido administrado, senão antes, aos primeiros sinais de alarme da paciente transmitidos e registados pelo enfermeiro E... (14H), quer pela enfermeira F... , cerca de 08H antes.

GG.            Ao não atuar de tal forma, a ora arguida contribuiu para a morte da paciente - reduzindo-lhe drasticamente a sua probabilidade de sobreviver (na senda da nova orientação jurisprudencial de "perda de chance''),

HH.            Se tal procedimento tivesse sido efetuado aquando dos primeiros sinais de alarme (ou antes) existiria tempo suficiente para se verificar o resultado do teste de azul-de-metileno e a paciente ser submetida a cirurgia atempadamente (cerca das 23h)

II. Aliás, sabendo a arguida que o azul-de-metileno pode demorar algum tempo a sair pelo dreno, esta poderia não o ter administrado, pois in casu não se podia esperar esse tempo para confirmar a perfuração gástrica ou intestinal, mas sim conduzir a paciente A... de imediato para o Bloco Operatório, TAC ou até na opinião do Dr. C... "poderiam ter sido feitos outros exames que provavelmente iriam a ajudar a gravidade ou não da situação clínica".

JJ. Mais, veja-se no Registo de sinais vitais atenta a linha de dor, constata-se que numa escala de 0 a l0, a paciente A... apresentava um valor de 7, quando estava sob o efeito dos seguintes medicamentos: Nolotil, Paracetamol, Petidina e Tramal.

KK. Todos estes medicamentos são analgésicos, logo aliviam as dores e alguns deles são antipiréticos, ou sejam, baixam a febre

LL. Logo mascaram os sintomas, ou seja, a carga analgésica é tão elevada que a dor não se manifesta na sua totalidade e a temperatura não sobe aos valores que subiria.

MM. Mas mesmo com esta carga analgésica e antipirética a dor apresentada pela paciente ascende ao valor de 7 e um estado febril com suores.

NN.            Atendendo-se que tinha sido administrado PETIDINA que é um analgésico opiáceo, da mesma família da morfina, medicamento que refira-se é um analgésico forte na escala analgésica, aparentemente desproporcional à situação, na medida em que nenhum procedimento chegou a ser realizado, nomeadamente, colocação da banda gástrica.

OO.            Ora para ter sido prescrito tal fármaco à paciente A... , foi porque se considerou que padecia de dores muito fortes e intensas.

PP. Sendo que, o único procedimento adotado foi ficar "em alerta e aguardar a visualização da saída do mesmo líquido" (cfr. fls. 276 do depoimento da enfermeira F... ).

QQ.            Acrescenta, ainda, o Dr. C... no seu Parecer "Pensamos que a monitorização mais frequente de mais sinais vitais como o leucograma, plaquetas, PCR, diurese, frequência respiratória (Sat 02), gasimetria arterial, associada a medidas de ressuscitação volemica adequada mais precoce e com uma entubação traqueal/ventilação mecânica mais precoce, poderiam ter beneficiado a doente no período de tempo que mediou a partir das 02h do dia 27 até à sua ida para o bloco."

RR. Não valorizou, assim, a Arguida os sintomas exibidos pela vítima que se foram manifestando desde a saída do pós-operatório pelas 14:29H do dia 25 até à sua morte pelas 05:40H do dia 27.

SS. Assim, tal como o Exmo. Sr. Dr. Juiz de Instrução veio a proferir na douta Decisão Instrutória "Não cuidaram as arguidas de detetar a tempo, os efeitos da perfuração gástrica aguda, nem em face disso realizar a prova de estanquidade gástrica com azul-de-metileno, quando haviam tido em consideração tal perfuração ao procederem à lavagem peritoneal e aspiração e colocação do dreno de soro e sangue."

TT. "Bem como no pós-operatório não diligenciaram tempestivamente pela realização de TAC, análises ou intervenção cirúrgica, por ser de prever em face da perfuração surgisse um agravamento a reparar com urgência."

UU. Assim, o traumatismo/laceração da parede gástrica ocorrida no ato cirúrgico consubstancia um erro médico censurável correspondente à violação da leges artis.

W. Razões que fundamentam a atuação negligente da Arguida, que, neste caso, tinha condições suficientes (sinais/sintomas/elementos) para fazer crer que podia tratar-se de uma fístula gástrica que era necessário reparar com urgência,

WW. E tinha a obrigação de o ter feito.

XX. Devendo ser proferida decisão instrutória que determine a pronúncia da Arguida e Recorrente pela prática de um crime previsto e punido pelo n.º 2 do artigo 150° do Código Penal.

YY. O Assistente demonstrou e produziu prova apta a demonstrar, sem sombra de dúvida, que não foi empregue a diligência expectável de uma profissional de medicina;

ZZ. Pois a mesma não logrou praticar, ou fazer praticar, os atos médicos necessários e suficientes a combater e eliminar as lesões de que a infeliz vítima padecia;

AAA. O Assistente produziu assim prova apta a demonstrar que A... teria boas hipóteses de sobrevivência, caso tivessem sido oportunamente efetuados os diagnósticos e tratamentos necessários;

BBB. Agiu assim a Arguida de forma livre, deliberada e consciente.

CCC. A qual com a sua conduta criou um perigo para a vida da paciente, agravado do resultado morte.

DDD. Agindo assim, a Arguida de forma livre e consciente

EEE. Cometendo um crime de homicídio por negligência p. e p. no art.137º n.º1 e art. 15º al. b) ambos do C.P.

Nestes termos e nos melhores de Direito, sempre com o mui douto suprimento de V/s Ex.as, requer-se a V/s Ex.as que dignem julgar a presente Resposta procedente, e manter a douta decisão de pronúncia da Arguida M... (crime de homicídio por negligência), devendo, ainda, ser proferida decisão instrutória que determine a pronúncia da Arguida e Recorrente pela prática de um crime previsto e punido pelo n.º 2 do artigo 150º do Código Penal.


*


A Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal a quo respondeu a ambos os recursos, defendendo que Da análise do teor das várias diligências probatórias, designadamente a recolha de depoimentos, informação e documentação clínica, relatório de autópsia, pedidos de pareceres médicos e técnico-científicos, que determinaram a final o despacho de arquivamento dos autos por parte do Ministério Público, e tendo presente os elementos de prova produzidos em sede de instrução, não nos repugna que se decida no sentido de que da prova indiciária recolhida em sede de inquérito e de instrução não resultam indícios suficientes que, no caso concreto, tenha existido qualquer conduta negligente por parte das arguidas susceptível de ter criado, aumentado ou potenciado o perigo que se veio a verificar e a consequente morte de A... , entendendo assim que não se mostram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do crime de homicídio por negligência inconsciente p. e p. pelos arts. 137º, n.º 1 e 15º, al b) do Código Penal.

E)


*

Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de ser dado provimento ao recurso das arguidas, com a consequente revogação do despacho proferido, o qual deverá ser substituído por outro de não pronúncia, porquanto:

O douto despacho recorrido considerou que as arguidas não cuidaram de detectar a tempo, nomeadamente até às 15h00 do dia 26/11/2011, os efeitos da perfuração gástrica aguda, nem realizar a prova de estanquidade gástrica com azul de metileno, bem como no pós-operatório não diligenciaram tempestivamente pela realização de TAC, análises ou intervenção cirúrgica, por se prever que em face da perfuração surgisse um agravamento a reparar com urgência.

Mais considerou que a demora em equacionar os procedimentos em ordem a evitar a possível morte é expressiva a partir das 15h00 e que era nesse momento e até às 23h00 que se exigia uma tomada de consciência do risco concreto, que foi desvalorizado pelas arguidas, risco esse que se concretizou em morte como previsível que era.

O Dr. C... admitiu como possíveis as perfurações gástricas e esofágicas durante a cirurgia da colocação da banda gástrica e que, em casos de laceração serosa pode não ser possível detectar precocemente qualquer perfuração, a qual pode só ser detectada passadas algumas horas de evolução conforme o desenvolvimento do quadro isquémico da lesão (relatório de fls. 185).

Mais admitiu que nos casos de cirurgia da obesidade está recomendado o azul de metileno, mas que também é aceitável o uso de betadine diluída em soro e que o facto de ter aparecido um quadro sub-febril e ar num pós operatório laparoscópico também só por si não é sinal de gravidade porque aparecem frequentemente.

O INML de Coimbra, na consulta técnico-científica, considerou que a cirurgia foi realizada de acordo com as técnicas estabelecidas e, que, apesar da complicação cirúrgica que se veio a verificar na operação, foram realizadas todas as práticas exigidas para o despiste de uma perfuração (fls. 515 e 516).

Mais considerou que a solução tomada, logo que surgiu a suspeição de perfuração de víscera oca (cerca de 30 horas depois) foi correcta e em tempo certo e que infelizmente o desenlace final foi negativo, apesar das tentativas de reanimação realizadas na sala operatória, tendo a doente falecido em paragem cardiorrespiratória após choque causado por peritonite.

O parecer técnico-científico do Conselho Directivo do Colégio da Especialidade de Cirurgia Geral concluiu, perante os dados do processo, que a conduta do cirurgião antes, durante e após a intervenção cirúrgica foi correcta, considerando, por isso não ter havido uma prática compatível com a incompetência ou negligência, nem violação das legis artis (fls. 399).

 Dispõe o art. 163.°, n.º 1 e 2 do Código de Processo Penal que o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador e, sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência.

Os pareceres citados consideram que a intervenção das arguidas durante e depois da cirurgia foi correcta, considerando não ser compatível com incompetência ou negligência, nem violadora das legis artis.

Mesmo assim, o M.º JIC considerou haver indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos do crime de homicídio por negligência, p. e p. pelos artigos 137.°, n.º 1 e 15.°, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal, por entender que as arguidas mataram a paciente A... , agindo com negligência, por não procederem com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, estavam obrigadas e de que eram capazes, não chegando sequer a representar a possibilidade de realização do facto.

No entanto, a prova pericial colhida nos autos aponta toda no sentido que as arguidas agiram com o cuidado a que as circunstâncias as obrigava e que foi correcta toda a sua intervenção durante e depois da operação. Como, não basta divergir para o julgador percorrer caminho diferente dos peritos, tem que fundamentar a divergência e, não o tendo feito, com uma divagação sobre o mito da certeza científica, devem prevalecer os juízos técnico-científicos.

Perante este quadro de insuficiente prova indiciária contra as arguidas de que tenham incorrido na prática do crime que lhes foi imputada na pronúncia, parece-me mais previsível em julgamento a absolvição do que a condenação.

Foi cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417º do CPP., tendo apresentado resposta:

- a arguida M... , acompanhando e subscrevendo na íntegra o Parecer do Ministério Público, e mantendo o argumentos enunciados na Motivação do recurso que interpôs; ……. e,

- o assistente, pugnando pela manutenção da decisão de pronúncia, tendo acrescentado: “uma vez que os pareceres juntos aos autos foram solicitados pelo Hospital (...) , entidade que nomeou os peritos, e na qual trabalhavam ambas as arguidas e recorrentes, tais pareceres não podem ser considerados como juízos técnico-científicos. Uma vez que tais pareceres não obedecem aos requisitos formais exigidos não podem ser considerados juízos técnico-científicos, pelo que, a contrario sensu prevalece o princípio da livre apreciação da prova consignado no art. 127º do CPP. Nos presentes autos não estamos perante juízos técnico-científicos, mas meras opiniões”.

Os autos tiveram os vistos legais.


***

II – FUNDAMENTAÇÃO

Vejamos como o Mmº Juiz a quo fundamentou a sua decisão instrutória:

 “ I. RELATÓRIO

§1. Inconformado com o arquivamento, B... , assistente nos presentes autos, veio requerer abertura de instrução, com os fundamentos constantes a fls. 538 a 555, imputando a prática de um crime de homicídio por negligência p. e p. no art. 137 n.º 2 e um crime de tratamentos médicos sob violação de leges artis a I... e M... .

§2. Procedeu-se à produção da prova requerida, indeferindo-se a peritagem, e realizou-se debate instrutório.

§3. Nada obsta ao conhecimento do objecto do processo, inexistindo outras questões prévias ou incidentais que importe conhecer.

II. FUNDAMENTAÇÃO

§4. Os autos foram arquivados nos termos do parecer da Medicina Legal. Claramente o mesmo é simples e conclusivo e em nada releva sob o prisma jurídico da aferição da negligência.

§5. Para a pronúncia, não obstante não ser necessária a certeza da existência da infracção, os factos indiciários deverão ser suficientes e bastantes por forma que, logicamente relacionados e conjugados, consubstanciem um todo persuasivo da culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade de condenação no que respeita aos factos que lhe são imputados. A suficiência dos indícios de futura condenação do arguido, aferida por um juízo de prognose, em face das regras da experiência comum e livre apreciação da prova, tem de ser compatibilizada com os princípios in dubio pro reo e da presunção da inocência. Este princípio da presunção da inocência constitucionalmente consagrado no artigo 32 n.º 2 da C.R.P., encontra-se também inscrito no art. 6.° n.°2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, onde se estabelece que «Qualquer pessoa acusada de uma infracção presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada.». Em suma, e na perspectiva que se segue, na fase de instrução, aquando da prolação do despacho de pronúncia ou não pronúncia, deve-se ter presente na valoração da prova os princípios da presunção da inocência e in dubio pro reo bem como o uso feito desses princípios se da decisão a elaborar resultar que (e não na perspectiva dos sujeitos processuais ou algum deles) ao valorar a prova se chegou a um estado de dúvida insanável sobre a suficiência dos indícios para o arguido vir a ser condenado e, face a tal estado, optou-se a tese desfavorável ao mesmo, pronunciando-o.

§6. Por outro lado, impõe-se que os indícios sejam suficientes. Neste âmbito, alguma divergência. Probabilidade é um conceito distinto de aleatoriedade. Esta traduz o carácter incerto dos acontecimentos futuros, enquanto a probabilidade é o conceito que, embora partindo da incerteza dos acontecimentos futuros, realiza um juízo de certeza sobre a constante de frequência desses mesmos acontecimentos.

§7. Do acervo probatório constante nos autos, importa escalpelizar:

§8. Prova documental:

§9. Relatório operatório de fls. 118: constatou-se o corte de vaso e aí assinala-se o procedimento resultante.

9.1. Parecer de Dr. C... a fls. 187 (fls. 184 a 189): “na suspeita de uma laceração dever-se-á fazer o teste de azul de metileno”, o que não foi feito logo no pós-operatório.

9.2. Registos médicos, de enfermagem, e de sinais vitais a fls. 105 a 119, 172 a 180, e fls. 298 a 343.

§10. Prova testemunhal:

10.1. Inquirição do enfermeiro E... a fls. 273.

10.2. Inquirição da enfermeira F... a fls. 275.

10.3. Inquirição da enfermeira D... a fls. 209.

10.4. Inquirição da enfermeira G... em sede de instrução.

§11. Prova pericial:

11.1. Relatório de autópsia de fls. 38 a 42.

§12. Prova por declarações:

12.1. Declarações das arguidas.

§13. Está em causa saber se a causa da morte resulta do descuido intempestivo na laceração de vaso ocorrido na primeira intervenção cirúrgica.

§14. A formulação de um juízo indiciário do cometimento dos factos delituosos pelo agente, fundamento próprio da decisão de pronunciar, não pode, como é óbvio, fundar-se num juízo de certeza quanto a esse cometimento, pois de outro modo, a fase da instrução tornaria perfeitamente inútil a efectivação da fase do julgamento. Aquela formulação, pela própria natureza das coisas (pois que repousa em indícios) acarreta, necessariamente uma natural margem de dúvida, isto é, uma formulação ao nível discursivo no condicional.

§15. Assim, indicia-se que:

15.1. A 25 de novembro de 2011 às 12.30 h. A... deu entrada no bloco operatório do Centro Hospitalar (...) para colocação de banda gástrica como consentiu, tendo a intervenção cirúrgica iniciado às 12.30h. e sob a direcção de Dra. I... sob auxílio de Dra. M... .

15.2. Por não ter sido possível visualizar a ponta de “goldfinger” pelo estômago que era muito volumoso e por dificuldade de pneumoperitoneu adequado concluiu-se pela impossibilidade de colocação da banda gástrica.

15.3. Entretanto foi lacerado um pequeno vaso aquando da abordagem à pars flácida o que causou hemorragia, laqueando-se com agrafos.

15.4. A Dra. I... , em face da lesão aludida em 22.3, diligenciou pela lavagem peritoneal e aspiração, realização da prova de estanquidade com soro e betadine, verificação de inexistência de extravasamento do líquido utilizado para a cavidade abdominal, e colocação de dreno abdominal para drenagem de soro e sangue.

15.5. Tendo a doente ficado sob vigilância.

15.6. Pelas 14.00h. do dia 26 de novembro, o enfermeiro E... observa 400 cc na drenagem de conteúdo do dreno e contactou Dra. M... , a qual ficou de contactar o médico assistente.

15.7. A Dra. I... constatou drenagem com conteúdo hemático e ar, e não mais contactou a doente.

15.8. Entretanto estava a parte respiratória nos 94% de saturação tendo sido colocada sonda nasal por parte da enfermeira F... ficando a doente com saturação de 98%, bem como por esta foi verificado drenos e pensos, tendo verificado vestígios de sangue.

15.9. Pelas 22.00h. ocorre um pico de febre associada à saída de 400 cc de sangue com ar.

15.10. Intervêm Dra. M... e Dra, H... e como procedimento é dada medicação para a febre e dores e administrado o corante azul de metileno pelas 23.00h.

15.11. Pelas 2.00h foi verificada a inexistência de qualquer saída de metileno.

15.12. Pelas 5.00h. foi verificada a inexistência de qualquer saída de metileno, apesar do maus estar da doente.

15.13. Pelas 6.00h. a doente é observada, detectando-se hipertensão, taquicardia, e hipertermia, diminuição da saturação de oxigénio e azul de metileno no dreno.

15.14. Ao longo do pós-operatório é verificado dreno com conteúdo hemático e ar de 400 cc até às 22h. do dia 26 e 1000cc pelas 00.00 do dia 27, dor abdominal, diminuição de saturação de oxigénio, agitação psocomotora, hipotensão, vestígios de sangue, dispneica, apelativa e mau estar.

15.15. É efectuada laparotomia exploradora por suspeita de perfuração de víscera oca e consequente reparação, e pelas 8.00h. Dr. Q... colocou cateter central, tendo a doente entrado em paragem cardíaca.

15.16. Às 8.40 h. A... falece devido a perfuração gástrica aguda  complicada de peritonite produzida no contexto da operação cirúrgica aludida em 22.1.

15.17. Não cuidaram as arguidas de detectar a tempo, nomeadamente até às 15.00h. do dia 26, os efeitos da perfuração gástrica aguda, nem em face disso realizar a prova da estanquidade gástrica com azul de metileno, quando o haviam tido em consideração ao procederem à lavagem peritoneal e aspiração e colocação do dreno de soro e sangue.

15.18. Bem como no pós-operatório não diligenciaram tempestivamente pela realização de TAC, análises ou intervenção cirúrgica, por ser de prever que em face da perfuração surgisse um agravamento a reparar com urgência.

15.19. Agiram as arguidas de forma livre e consciente.

§16. Assim, não se indiciam outros factos com pertinência ao caso

16.1. Nomeadamente aqueles que o assistente assinala como meio de prova.

§17. Está em causa a negligência no âmbito de um tratamento médico. E quando se fala de negligência, não se fala de vontade. E neste âmbito importa assinalar que se trata de um âmbito especializado e uma área de risco. É certo que esta existirá em toda atividade dita de risco, gerando a necessária imprevisibilidade que lhe confere feição. O que se deve perquirir, todavia, é se houve ou não incremento do risco e não se restringir a afirmar que esse sempre existirá. O cuidado é o reverso do perigo. E na medida daquele é que este é diminuído. De igual modo, não está em causa uma actividade profissional, sendo irrelevante as inquirições acerca das qualidades profissionais das arguidas.

§18. Está em causa um procedimento levado a cabo pelas arguidas entre os dias 25 e 27 de novembro de 2011 tendo por paciente A... .

§19. Quando a intervenção médica se coloca em direção da cura, encontra-se um risco já existente e uma tentativa por afastá-lo ou diminuí-lo. O risco está nas consequências da própria enfermidade que, se não tratada, levará a consequências indesejadas e destrutivas. O paciente que se apresenta enfermo já se encontra em situação de risco. Ao médico, importa diminuí-lo ou eliminá-lo.

§20. No caso concreto, representada a laceração do vaso, não foi feito o procedimento material e temporalmente bastante em ordem a não agravar (incrementar) o risco próprio da actividade, risco esse conhecidos pelas arguidas, e que representaram o facto ao terem consciência da ferida, mas que descuidaram-se ao nível das consequências num período de tempo dilatado, não representando o resultado morte (art. 15 b) do C.P.).

§21. Em relação a pareceres, nomeadamente de ordens profissionais, os mesmos devem merecer uma leitura cuidada porquanto área que o magistrado, em regra, não domina. E deve-se cuidar sobretudo para que a prova pericial não se baseie em presunções. O processo de ilação é uma faculdade exclusiva da esfera de competência do magistrado. A prova deve apresentar os indícios, para que o juiz possa realizar a inferência. O perito deve aclarar os fatos ao juiz, mas não substituí-lo, realizando inferências lógico-jurídicas. Ao perito cabe situar o magistrado quanto ao procedimento médico utilizado, a escola de medicina a que adere o profissional, os standards tomados em conta, o que era aconselhável segundo a ciência e aquilo que, de fato, fora realizado.

§22. Não é dado ao perito valorar a conduta médica e, assim, concluir pela existência ou inexistência de descuido ou culpa, pois, de contrário, estaria em verdadeiro exercício da jurisdição. Tal responsabilidade cabe unicamente ao magistrado ([2]).

§23. Mas importa outrossim atender que não se permite ao magistrado esconder-se sob o manto de uma pseudo autoridade científica do perito e, assim, esquivar-se do poder-dever de valoração e ponderação dos elementos trazidos aos autos. Importa ter em mente que nem sequer os dados científicos conferidos pelo perito, por mais competente que esse seja (o que será afirmação sempre incerta), poderão ter crédito inquestionável. Como adverte TARUFFO, o mito da ciência que fornece sempre certeza absoluta está em tempos de crise e vale ter em conta que a ciência poderá trazer informações relevantes para a avaliação do fato, as quais, entretanto, poderão ser incompletas, vagas, sujeitas à revisão ou discutíveis, sem a capacidade de por si só resolver o problema da veracidade dos fatos afirmados ([3]).

§24. Na moderna dogmática jurídico-penal a negligência inconsciente é a colocação de um risco que o agente seria capaz de prever, e lhe era exigível estar alertado para tal ([4]).

§25. No caso concreto a demora das arguidas em equacionar os procedimentos em ordem a evitar a possível morte é expressiva, tendo o seu nível de alerta sido dado a partir das 15 horas. E era nesse momento e até às 23 horas que se exigiria uma tomada de consciência do risco concreto, o qual é desvalorizado pelas arguidas, risco esse que se concretizou em morte como previsível que o era.

§26. As suas condutas de não representação do facto importam a subsunção ao crime de homicídio negligente inconsciente p. e p. no art. 137 n.º 1 do C.P. e art. 15 al. b) do C.P..

§27. Por este facto, não está em causa a subsunção à norma do art. 150 n.º 2 por esta norma fazer aplicação da subsidiariedade no âmbito do concurso de normas.

§28. De igual modo, não se pode equacionar a negligência grosseira porquanto não se vislumbra dos factos indiciados uma especial densificação do descuido, isto é, que o descuido fosse flagrantemente patente (n.º 2 do art. 137 do C.P.).

III. DECISÃO

§29. Por tudo exposto, decide-se não pronunciar I... e M... da prática de um crime p. e p. no artigo 150 n.º 2 do C.P.;

§30. Por tudo o exposto, decide-se pronunciar I... , nascida a 21.12.1967, filha de J... e de L... , natural de (...) , e residente na R. (...) Marinha Grande e M... , nascida a 21.07.1960, filha de N... e de O... , natural de (...) , e residente (...) Sebal, em processo comum com intervenção do tribunal singular, porquanto:

30.1. A 25 de novembro de 2011 às 12.30 h. A... deu entrada no bloco operatório do Centro Hospitalar (...) para colocação de banda gástrica como consentiu, tendo a intervenção cirúrgica iniciado às 12.30h. e sob a direcção de Dra. I... sob auxílio de Dra. M... .

30.2. Por não ter sido possível visualizar a ponta de “goldfinger” pelo estômago que era muito volumoso e por dificuldade de pneumoperitoneu adequado concluiu-se pela impossibilidade de colocação da banda gástrica.

30.3. Entretanto foi lacerado um pequeno vaso aquando da abordagem à pars flácida o que causou hemorragia, laqueando-se com agrafos.

30.4. A Dra. I... , em face da lesão aludida em 22.3, diligenciou pela lavagem peritoneal e aspiração, realização da prova de estanquidade com soro e betadine, verificação de inexistência de extravasamento do líquido utilizado para a cavidade abdominal, e colocação de dreno abdominal para drenagem de soro e sangue.

30.5. Tendo a doente ficado sob vigilância.

30.6. Pelas 14.00h. do dia 26 de novembro, o enfermeiro E... observa 400 cc na drenagem de conteúdo do dreno e contactou Dra. M... , a qual ficou de contactar o médico assistente.

30.7. A Dra. I... constatou drenagem com conteúdo hemático e ar, e não mais contactou a doente.

30.8. Entretanto estava a parte respiratória nos 94% de saturação tendo sido colocada sonda nasal por parte da enfermeira F... ficando a doente com saturação de 98%, bem como por esta foi verificado drenos e pensos, tendo verificado vestígios de sangue.

30.9. Pelas 22.00h. ocorre um pico de febre associada à saída de 400 cc de sangue com ar.

30.10. Intervêm Dra. M... e Dra, H... e como procedimento é dada medicação para a febre e dores e administrado o corante azul de metileno pelas 23.00h..

30.11. Pelas 2.00h foi verificada a inexistência de qualquer saída de metileno.

30.12. Pelas 5.00h. foi verificada a inexistência de qualquer saída de metileno, apesar do maus estar da doente.

30.13. Pelas 6.00h. a doente é observada, detectando-se hipertensão, taquicardia, e hipertermia, diminuição da saturação de oxigénio e azul de metileno no dreno.

30.14. Ao longo do pós-operatório é verificado dreno com conteúdo hemático e ar de 400 cc até às 22h. do dia 26 e 1000cc pelas 00.00 do dia 27, dor abdominal, diminuição de saturação de oxigéneo, agitação psocomotora, hipotensão, vestígios de sangue, dispneica, apelativa e mau estar.

30.15. É efectuada laparotomia exploradora por suspeita de perfuração de víscera oca e consequente reparação, e pelas 8.00h. Dr. Q... colocou cateter central, tendo a doente entrado em paragem cardíaca.

30.16. Às 8.40 h. A... falece devido a perfuração gástrica aguda  complicada de peritonite produzida no contexto da operação cirúrgica aludida em 22.1.

30.17. Não cuidaram as arguidas de detectar a tempo, os efeitos da perfuração gástrica aguda, nem em face disso realizar a prova da estanquidade gástrica com azul de metileno, quando haviam tido em consideração tal perfuração ao procederem à lavagem peritoneal e aspiração e colocação do dreno de soro e sangue.

30.18. Bem como no pós-operatório não diligenciaram tempestivamente pela realização de TAC, análises ou intervenção cirúrgica, por ser de prever que em face da perfuração surgisse um agravamento a reparar com urgência.

30.19. Agiram as arguidas de forma livre e consciente.

30.20. Realizaram as arguidas um crime de homicídio por negligência inconsciente p. e p. no artigo 137 n.º 1 e artigo 15 al. b) do Código Penal.

§31. Prova:

31.1. Documental: relatório de autópsia a fls. 38; processo clínico de fls. 105 a 119, 172 a 180, 298 a 343; pareceres de fls. 185, 254, 516.

31.2. Testemunhal: H... (fls. 212), Q... (fls. 222), E... (fls. 273), F... (fls. 275), D... (fls. 209); Dr. C... (Hospital de (...) ) e Dr. R... (Hospital de (...) ), como consultores técnicos.

(…).”.


***


APRECIANDO

Tendo em conta as conclusões da motivação dos recursos e que estas limitam os seus objectos, a questão suscitada e a decidir, consiste em saber se nos autos existem indícios suficientes que justifiquem a pronúncia das arguidas I... e M... pela prática do crime de homicídio por negligência inconsciente p. e p. pelos artigos 137º, n.º 1 e 15º, al. b), ambos do Código Penal.


*

A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art. 286º do CPP).

E, tal como resulta dos artigos 277º, n.º 2 e 308º, n.º 1, ambos do CPP, um dos fundamentos do arquivamento do inquérito pelo MP e do despacho de não pronúncia proferido pelo Juiz de Instrução é a insuficiência dos indícios da verificação do crime ou de quem foram os seus agentes.

Com efeito, estabelece este último preceito que “Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.”

Contrariamente ao que acontecia na vigência do CPP de 1929, fornece-nos agora a lei o conceito de indícios suficientes.

Assim, preceitua o artigo 283º, n.º 2 do CPP ([5]) que “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.

Aliás, este era também o sentido dado por Luís Osório ([6]) quando afirmava que “devem considerar-se indícios suficientes, aqueles que fazem nascer em quem os aprecia a convicção de que o réu poderá vir a ser condenado”. 

Por sua vez, refere o Prof. Figueiredo Dias ([7]) que “os indícios só serão suficientes, e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a absolvição”. Mais acrescenta que “tem razão Castanheira Neves quando ensina que na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final, só que a instrução preparatória (e até a contraditória) não mobiliza os mesmos elementos probatórios e de esclarecimento e, portanto, de convicção, que estarão ao dispor do juiz na fase de julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença, pode ser bastante ou suficiente para a acusação”.

Com este grau de exigência, ou seja, “ao exigir-se a possibilidade razoável de condenação e não uma possibilidade remota, visa-se, por um lado, não sujeitar o arguido a vexames e incómodos inúteis e, por outro lado, não sobrecarregar a máquina judiciária com tramitações inúteis, em obediência, aliás, ao traçado nas alíneas 1 e 2 da Lei n.º 43/86, de 30 de Setembro (a Lei de autorização legislativa ao abrigo da qual foi publicado o DL n.º 78/87, de 17 de Fevereiro, que aprovou o Código de Processo Penal)” ([8]). 

Também a jurisprudência tem entendido que “nas fases preliminares do processo, não se visa alcançar a demonstração da realidade dos factos, antes tão só indícios, sinais, de que um crime foi cometido por determinado arguido, constituindo as provas reunidas nessa fase pressuposto, não da decisão de mérito, mas da decisão processual da prossecução dos autos para julgamento”.

Entendem as recorrentes que a decisão instrutória deve ser revogada, e substituída por outra que não as pronuncie pela prática do crime de homicídio por negligência inconsciente.

Ora, face à exposição efectuada sobre o que deve entender-se por indícios suficientes, poderá concluir-se que no caso sub judice os factos consubstanciadores do referido ilícito se mostram suficientemente indiciados?

Afigura-se-nos que não, desde já adiantamos.


*

Antes, porém, uma questão prévia:

Para além do crime de homicídio por negligência, pretendia o assistente a pronúncia das arguidas pela prática do crime de omissão de tratamento médico-cirúrgico por violação das leges artis p. e p. pelo artigo 150º, n.º 2, do Código Penal.

A decisão instrutória, tendo considerado que a conduta das arguidas se subsumia ao crime de homicídio negligente inconsciente p. e p. pelos artigos 137º, n.º 1 e 15º al. b) do CP, concluiu que “Por este facto, não está em causa a subsunção à norma do art. 150º n.º 2 por esta norma fazer aplicação da subsidiariedade no âmbito do concurso de normas”, pelo que não pronunciou as arguidas pela prática deste crime.

Estabelece o artigo 150º:

«1- As intervenções e os tratamentos que, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com a leges artis, por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental, não se considera ofensa à integridade física.

2- As pessoas indicadas no número anterior que, em vista das finalidades nele apontadas, realizarem intervenções ou tratamentos violando as leges artis e criarem, desse modo, um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde são punidas com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, se pena mais grave lhes não couber por força de outra disposição legal.»

Desde logo, a conduta prevista no n.º 2 do artigo 150º não é expressamente punida a título negligente.

No plano objectivo, a infracção configura um crime específico próprio com a estrutura de um crime de perigo concreto. No tipo subjectivo só é punível o dolo, que tem de abarcar para além da intervenção com violação das leges artis, o perigo (para a vida, para o corpo ou para a saúde) ([9]).

Segundo Vera Lúcia Raposo ([10]) “O art. 150º/2 do CP corporiza aquilo a que vulgarmente se chama negligência médica, mas na realidade exige uma atuação dolosa. (…) Exige-se assim que o médico conheça e deseje a violação das leges artis e, para além disso, conheça e deseje a criação do perigo. Ou seja, o dolo imposto pela norma (para a qual basta o dolo eventual) deverá revelar-se a dois níveis: primeiro, na própria violação das leges artis; depois, na criação do perigo a que a norma se refere.”

Entendemos pois, que não existe qualquer relação de subsidiariedade entre tais preceitos (artigos 137º/1 e 150º/2).


*

Foram as arguidas pronunciadas pela prática de um crime de homicídio por negligência inconsciente p. e p. pelos artigos 137º, n.º 1 e 15º al. b) do Código Penal.

Tal ilícito negligente pressupõe que:

- o agente assuma um comportamento comissivo ou omissivo;

- esse comportamento viole o dever (objectivo e subjectivo) de cuidado;

- a verificação do resultado morte de uma pessoa;

- a imputação desse resultado à conduta do agente.

Ou seja, recaindo sobre o agente «um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado» (art. 10º do CP), para que se possa imputar a alguém uma conduta negligente, o artigo 15º do CP exige que ela tenha violado quer o dever objectivo, quer o dever subjectivo de cuidado.

O dever objectivo de cuidado é o dever de actuar com a diligência adequada a evitar a produção do evento danoso.

Quanto à diligência subjectiva – cuidado de que o agente é capaz – o cumprimento do dever de cuidado assenta, antes de mais, na prudência; pois, «o acto decisivo de prudência é a eleição, a escolha da decisão a tomar, que consiste na diligência. E daí que a negligência seja o aspecto mais característico da falta de prudência (ou de diligência). A diligência subjectiva é a prudência de que é capaz cada qual» ([11]).

Ainda neste artigo 15º se considera a “culpa consciente” – na alínea a) – quando o agente prevê a possibilidade de realização do facto ilícito e tem dela consciência; ou seja «a representa». E, na alínea b) trata-se da “culpa inconsciente”, quando o agente não previu, não teve consciência, «não representa» a possibilidade de realização do facto ilícito.

Por sua vez, a negligência grosseira constitui um grau essencialmente aumentado ou expandido de negligência; implica uma especial intensificação da negligência não só ao nível da culpa, mas também ao nível do tipo de ilícito, verificando-se naqueles casos em que o agente revela uma atitude particularmente censurável de leviandade o de descuido perante o comando jurídico-penal ([12]).

Deste modo, para que o resultado em que se materializa o ilícito típico possa fundamentar a responsabilidade não basta a sua existência fáctica, sendo indispensável que possa imputar-se objectivamente à conduta e subjectivamente ao agente. O mesmo é dizer que a responsabilidade só se verifica quando existe nexo de causalidade entre a conduta do agente e o evento ocorrido.

Determinada acção ou omissão será causa de certo evento se, tomadas em conta todas as circunstâncias conhecidas do agente e as mais que um homem normal poderia conhecer, essa acção ou omissão se mostrava à face da experiência comum como adequada à produção do referido evento, havendo fortes probabilidades de o originar ([13]).

Se bem que a adequação só acontecerá num prognóstico objectivo “a posteriori” feito pelo Juiz.

A existência de nexo causal entre a acção ou omissão do agente e o resultado produzido, se é condição necessária da imputação objectiva, não o é suficientemente; é ainda necessário que o evento seja objectivamente previsível como consequência da violação do dever objectivo de cuidado, ou seja, da diligência objectiva, diligência que toma, em relação a cada espécie de crime, o sentido do cuidado exigido para evitar o mal desse crime ([14]).

O juízo de censura, nos crimes negligentes como nos crimes dolosos, representa a relação do agente com o facto injusto, enquanto lho imputa como seu e por isso que no dolo o facto é imputado ao agente enquanto previsto e querido (art. 14º), e na negligência lhe é imputado enquanto, embora não directamente querido, era previsível e em razão dessa previsibilidade deveria o agente actuar com o cuidado a que está obrigado e é capaz para evitar a produção do facto injusto (art. 15º) ([15]).

O Código Deontológico da Ordem dos Médicos ([16]) impõe ao médico o dever de prestar ao doente os melhores cuidados ao seu alcance ([17]) e de actuar em conformidade com as leges artis ([18]).

De igual modo, a Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e da Medicina (que foi ratificada por Portugal e entrou em vigor na ordem jurídica portuguesa, em 1 de Dezembro de 2001) impõe, no seu artigo 4º, sob a epígrafe “Obrigações profissionais e regras de conduta” que «Qualquer intervenção na área da saúde, incluindo a investigação, deve ser efectuada na observância das normas e obrigações profissionais, bem como das regras de conduta aplicáveis ao caso concreto

As leges artis, visando a realização correcta do acto profissional, são primacialmente regras profissionais (regras de arte) e só mediatamente regras que impõem deveres de diligência, já que não se concebe a realização correcta de um acto profissional, sem o cuidado devido ([19]).

Como sublinha Helena Moniz ([20]) “Também no âmbito da actividade médica/clínica a eventual responsabilidade penal por negligência deve fundamentar-se na realização de uma conduta com violação de um dever objectivo de cuidado, na realização de uma conduta diferente da conduta devida e esperada. Tem de ser provado que, se o dever de cuidado tivesse sido cumprido, o resultado não se teria produzido, ou teria sido possível evitar a sua produção.

No âmbito da prática médica, a avaliação do dever de cuidado devido e esperado deve ter em conta não só as regras deontológicas, mas também as guidelines e orientações do colégio da especialidade. Acresce um outro elemento delimitador do dever de cuidado – o princípio da precaução, enquanto meio complementar de averiguação da conformidade da conduta com o cuidado devido. A violação deste cuidado é relevante dado que o fim com que a actividade foi realizada é irrelevante para o preenchimento do tipo de ilícito negligente. Isto é, uma vez realizada a conduta com clara violação do dever de cuidado estamos perante uma conduta típica.

Mas, quando analisamos a conduta negligente no âmbito da prática médica, esta conclusão tem que ser corrigida tendo em conta as regras existente no nosso CP. Na verdade, de acordo com o estipulado no art. 150º, n.º 1, do CP, o cumprimento das leges artis constitui um indício, ope legis, de não violação do dever de cuidado - o cumprimento das leges artis permite logo dizer, sem haver sequer uma análise da situação concreta (ainda que de forma objectiva), que se trata de um comportamento não típico, por força daquele dispositivo legal. Pelo contrário, em todas as outras actividades, a simples violação das leges artis constitui um indício, de que se violou um dever de cuidado, que se praticou uma conduta típica. É sempre necessário averiguar em seguida se a conduta (produtora de um resultado espacio-temporalmente distinto) ainda assim poderá ser integrada nas margens do risco permitido. (…)

Entre nós, o simples cumprimento da leges artis afasta automaticamente qualquer análise do comportamento (nomeadamente, afasta qualquer averiguação quanto ao cumprimento, ou não, do dever de cuidado) por se entender, por força do art. 150º, n.º 1, do CP, que se trata de um comportamento irrelevante para o direito penal. A conduta realizada com as finalidades previstas no art. 150º, n.º 1, ainda que geradora de um resultado infeliz, não será escrutinada quanto a uma possível violação de um dever de cuidado, sempre que se conclua que aquela conduta foi realizada de acordo com todas as regras da actividade médica”.


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Vejamos, entre outros, os factos dados como indiciados:

 1. A 25 de novembro de 2011 às 12.30 h. A... deu entrada no bloco operatório do Centro Hospitalar (...) para colocação de banda gástrica como consentiu, tendo a intervenção cirúrgica iniciado às 12.30h. e sob a direcção de Dra. I... sob auxílio de Dra. M... .

2. Por não ter sido possível visualizar a ponta do “goldfinger” pelo estômago que era muito volumoso e por dificuldade de pneumoperitoneu adequado concluiu-se pela impossibilidade de colocação da banda gástrica.

3. Entretanto foi lacerado um pequeno vaso aquando da abordagem à pars flácida o que causou hemorragia, laqueando-se com agrafos.

4. A Dra. I... , em face da lesão aludida em 3., diligenciou pela lavagem peritoneal e aspiração, realização da prova de estanquicidade com soro e betadine, verificação de inexistência de extravasamento do líquido utilizado para a cavidade abdominal, e colocação de dreno abdominal para drenagem de soro e sangue.

5. Tendo a doente ficado sob vigilância.

6. Pelas 14.00h. do dia 26 de novembro, o enfermeiro E... observa 400 cc na drenagem de conteúdo do dreno e contactou Dra. M... , a qual ficou de contactar o médico assistente.

7. A Dra. I... constatou drenagem com conteúdo hemático e ar, e não mais contactou a doente.

8. Entretanto estava a parte respiratória nos 94% de saturação tendo sido colocada sonda nasal por parte da enfermeira F... ficando a doente com saturação de 98%, bem como por esta foi verificado drenos e pensos, tendo verificado vestígios de sangue.

9. Pelas 22.00h. ocorre um pico de febre associada à saída de 400 cc de sangue com ar.

10. Intervêm Dra. M... e Dra. H... e como procedimento é dada medicação para a febre e dores e administrado o corante azul de metileno pelas 23.00h.

11. Pelas 2.00h foi verificada a inexistência de qualquer saída de metileno.

12. Pelas 5.00h. foi verificada a inexistência de qualquer saída de metileno, apesar do mau estar da doente.

13. Pelas 6.00h. a doente é observada, detectando-se hipertensão, taquicardia, e hipertermia, diminuição da saturação de oxigénio e azul de metileno no dreno.

14. Ao longo do pós-operatório é verificado dreno com conteúdo hemático e ar de 400 cc até às 22h. do dia 26 e 1000cc pelas 00.00 do dia 27, dor abdominal, diminuição de saturação de oxigénio, agitação psocomotora, hipotensão, vestígios de sangue, dispneica, apelativa e mau estar.

15. É efectuada laparotomia exploradora por suspeita de perfuração de víscera oca e consequente reparação, e pelas 8.00h. Dr. Q... colocou cateter central, tendo a doente entrado em paragem cardíaca.

16. Às 8.40h. A... falece devido a perfuração gástrica aguda  complicada de peritonite produzida no contexto da operação cirúrgica aludida em 22.1.


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Quanto aos elementos probatórios:

--- Para além das declarações das arguidas M... (fls. 215/217) e I... (218/220); e do depoimento das testemunhas S... (fls. 205/206 – médica anestesista que foi chamada cerca das 7.15h da manhã de 27 Nov.), D... (fls. 209/210 – enfermeira que fez turno na noite de 26Nov.), H... (fls. 212/214 – médica que no dia 26 Nov. estava de serviço à Urgência com a colega/arguida M... , tendo ambas observado a doente cerca das 23h, das 2 horas da manhã e pelas 6.30h do dia 27), Q... (fls. 222/225 – médico, acompanhou o caso da assistência prestada à falecida A... enquanto Director do Serviço de Cirurgia II, do Hospital de (...) , tendo participado na segunda intervenção cirúrgica a que a mesma foi submetida na madrugada de 27Nov.), E... (fls. 273/274 – enfermeiro que no dia 26-11-2011 estava de serviço na Cirurgia II, tendo prestado cuidados à A... após a operação), F... (fls. 275/276 – enfermeira que assumiu o turno das 15:00 às 23:00 horas na Cirurgia II; foi-lhe passado o turno pelo seu colega E... do turno anterior), P... (fls. 628 – enfermeira no Hospital (...) , no Serviço de Cirurgia II);

Há a considerar:

--- os Registos médicos, de enfermagem e de sinais vitais juntos aos autos, a fls. 105/119, 172/180 e 298/343;

--- o relatório de autópsia (fls. 38/42) que concluiu:

  1. a morte de A... foi devida a perfuração gástrica aguda, complicada de peritonite;

  2. estas lesões traumáticas constituem causa adequada de morte;

  3. tais lesões traumáticas, bem como as restantes descritas, denotam haver sido produzidas por instrumento de natureza cortante ou actuando como tal, podendo ter sido produzidas em contexto de atitude terapêutica, como consta da informação;

  4. os exames bacteriológicos efectuados no líquido peritoneal detectaram Proteus mirabilis (bacilo gram negativo que frequentemente é causa de septicemia em doentes hospitalizados); ………. e,

--- os pareceres de fls. 184/189 e fls. 714/718 (ambos do Dr. C... ), de fls. 393/395 (do Colégio da Especialidade de Cirurgia Geral), de fls. 515/516 (do Conselho Médico-Legal do Instituto de Medicina Legal, IP-Coimbra).


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Consta do despacho recorrido:

Está em causa um procedimento levado a cabo pelas arguidas entre os dias 25 e 27 de Novembro de 2011 tendo por paciente A... .

Está em causa a negligência no âmbito de um tratamento médico.

Está em causa saber se a causa da morte resulta do descuido intempestivo na laceração de vaso ocorrido na primeira intervenção cirúrgica.

No caso concreto, representada a laceração do vaso, não foi feito o procedimento material e temporalmente bastante em ordem a não agravar (incrementar) o risco próprio da actividade, risco esse conhecido pelas arguidas, e que representaram o facto ao terem consciência da ferida, mas que descuidaram-se ao nível das consequências num período de tempo dilatado, não representando o resultado morte (art. 15 b) do C.P.).

No caso concreto a demora das arguidas em equacionar os procedimentos em ordem a evitar a possível morte é expressiva, tendo o seu nível de alerta sido dado a partir das 15 horas. E era nesse momento e até às 23 horas que se exigiria uma tomada de consciência do risco concreto, o qual é desvalorizado pelas arguidas, risco esse que se concretizou em morte como previsível que o era.

Tendo concluído o Mmº Juiz a quo que (estes os factos 17, 18 e 19 dados como indiciados na decisão recorrida):

- Não cuidaram as arguidas de detectar a tempo, os efeitos da perfuração gástrica aguda, nem em face disso realizar a prova da estanquicidade gástrica com azul de metileno, quando haviam tido em consideração tal perfuração ao procederem à lavagem peritoneal e aspiração e colocação do dreno de soro e sangue.

- Bem como no pós-operatório não diligenciaram tempestivamente pela realização de TAC, análises ou intervenção cirúrgica, por ser de prever que em face da perfuração surgisse um agravamento a reparar com urgência.

- Agiram as arguidas de forma livre e consciente.

Entendemos que as questões suscitadas, e as conclusões a que chegou o Mmº JIC, encontram resposta nas diligências probatórias realizadas, designadamente nos Pareceres Médicos juntos aos autos (dos quais destacaremos alguns excertos, tendo em conta os quesitos formulados).

Assim,

A- Parecer do Dr. C... (Chefe de Serviço de Cirurgia II do Hosp. de (...) – com experiência em cirurgia bariátrica, tendo sido indicado como perito pela Sociedade Portuguesa de Cirurgia), a fls. 185/189:

1- A perfuração com cerca de um cm na parede do estômago, pode ter surgido por isquémia dos tecidos na sequência de eventual laceração superficial causada durante a intervenção cirúrgica de 2011.11.25?

1. As perfurações gástricas e esofágicas durante a cirurgia da colocação de Banda Gástrica (BG) são possíveis. A percentagem da perfuração gástrica/laceração nesta cirurgia é aproximadamente de 0,8%. A perfuração mais frequente e de maior gravidade, devido a uma dificuldade de dissecção, ocorre na face posterior, quando da confecção de um "túnel" retro gástrico para a passagem da respectiva BG, sendo responsável pelo aparecimento da fístula, sépsis e eventual morte.

Devido à hipertrofia gástrica que estes doentes apresentam, por vezes pode haver pequenos traumatismos não perfurantes mas lesivos para a serosa gástrica, provocados na feitura do pneumoperitoneu, com a utilização de uma agulha de Veres ou quando da introdução dos respectivos trocares. Muitas vezes esses traumatismos comportam-se como pequenas zonas de isquemia que poderão evoluir, se houver qualquer compromisso de irrigação vascular, para uma posterior fístula gástrica, que pode evoluir mais ou menos rapidamente consoante a gravidade do traumatismo.

2- Em caso afirmativo, tal perfuração detectada na 2a cirurgia (pouco depois das 8 horas do dia 27-11, cerca de 40 horas após a 1ª cirurgia), é compatível com a inexistência de azul de metileno no dreno às 23 horas de 26-11, o qual havia sido administrado a essa hora, apenas tendo surgido vestígios do mesmo por volta das 7 horas do dia 27-11?

2. Na suspeita de uma laceração e/ou perfuração, dever-se-á fazer o teste do azul de metileno, como comprovativo da qualquer solução de continuidade, ou não, podendo, nos casos de laceração da serosa, não ser detectada precocemente qualquer perfuração, e só passadas algumas horas de evolução, conforme o desenvolvimento do quadro isquémico da lesão. O habitual é que nos casos de existência de fistulas haja extravasão do azul de metileno quase imediata após a ingestão, que parece não ter sido o caso na doente presente.

3- A dificuldade ou impossibilidade de colocação da banda gástrica aquando da 1ª intervenção, alegadamente devido a "existência de um estômago muito volumoso, não foi possível visualizar a ponta do Goldfinger", é em regra nas intervenções programadas desta natureza, apenas detectável durante o acto cirúrgico?

3. A dificuldade da colocação da BG depende de vários factores quer referentes ao doente quer dependentes da experiência da equipa cirúrgica. Por vezes devido à hipertrofia gástrica acompanhada de uma hipotonia muscular (observa-se muito em doentes que previamente puseram Balão Gástrico) e a um componente fibrótico posterior, a tunelização posterior toma-se muito trabalhosa podendo daí advir uma complicação de repercussão grave que será a laceração e/ou perfuração da parede posterior do estômago ou mesmo na junção esófago-gástrica. Assim sendo, nos casos em que a tunelização se tornar difícil, é correto não fazer outras manobras, fechar o doente e envia-lo para uma equipa mais diferenciada.

4- A produção de lacerações na parede gástrica é um risco natural das intervenções cirúrgicas desta natureza?

4. Sim, quer provocado na introdução da agulha de Veres e ou trocares, quer na manipulação de pinças e instrumentos cirúrgicos, como até do próprio estômago.

5- Em que medida?

5. Depende, como acima foi dito, da experiência do grupo cirúrgico mas estará inserido entre os 0,2 a 0,8%, segundo a literatura científica internacional.

6- E pode ocorrer sem que seja por influência de uma conduta menos atenta e cuidada do cirurgião?

6. Sim.

7- Em caso afirmativo, porquê?

7. Como também foi dito anteriormente, devido a muitas condicionantes locais, de ordem anatómica (cavidade abdominal estreita no andar superior, dificuldade de acesso aos pilares diafragma por excesso de gordura, fibrose, fragilidade da serosa gástrica, zonas de isquemia ...), e relacionadas com o instrumental cirúrgico.

8- A técnica relatada quanto ao primeiro acto cirurgico, de verificação da estanquicidade do estômago "com introdução de 500 cc de soro com Betadine" é correcta e adequada?

8. O que está preconizado em vários centros de referencia da cirurgia da obesidade, dever-se-á utilizar o azul de metileno, mas também é aceitável o uso da Betadine diluída em soro.

9- O que se vem de referir quanto a laceração da parede gástrica, é aplicável aos casos de perfuração?

9. Sim.

10- A narrada evolução da doente no pós-operatório da 1ª intervenção, no sentido de que os sinais de perfuração do estômago só surgirem após cerca de 40 horas, é explicável à luz da ciência médica?

10. Tal como consta dos registos dos diários clínicos e de enfermagem, é fisiopatologicamente possível.

11- Se sim, em que termos?

11. Por todos os factores atrás referidos, salientando-se uma conjugação adipocítica com um deficit isquémico localizado, tal como anteriormente referido.

16- É detectável uma relação entre a morte da doente, e uma actuação tomada na assistência à mesma em contrariedade a regras de actuação devidas em casos desta natureza?

16. Os achados intraoperatórios sugerem existência de peritonite secundária a perfuração gástrica reconhecida, presumivelmente já com algumas horas de evolução (exsudado hemato-purulento), corroborado à posteriori, com os achados intraoperatórios e o isolamento microbiológico nesse liquido intra peritoneal, de um Proteus mirabilis. Estes aspectos e a situação da doente confirmam a existência de choque séptico com ponto de partida abdominal, que, se tivesse sido valorizado mais precocemente, teria originado uma intervenção cirúrgica mais atempada.


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B- Parecer do Dr. C... a fls. 714/718 (na sequência do anterior Parecer, requereu o Assistente a fls. 294/295 o esclarecimento de terminados pontos, e por despacho de fls. 629 determinou o Mmº Juiz a quo que os autos fossem facultados ao Sr. Perito):

1. As medidas tomadas pelas Drªs M... e H... no dia 26 às 23h estiveram de acordo com o quadro clínico da falecida A... (febre, alguma falta de ar e com 900 ml de sangue perdido)?

1. O aparecimento de um quadro sub-febril e de aparecimento de ar num pós operatório laparoscópico à priori não será só por si sinal de gravidade porque são dois parâmetros que poderão frequentemente estar presentes. Por outro lado muitas vezes, por um esvaziamento abdominal mal conseguido, no fim da laparoscopia, do C02, pode levar no pós operatório ao aparecimento de uma dôr abdominal com irradiação ao ombro direito por irritação do próprio diafragma.

Apesar de se tratar de uma obesa com o IMC de 39,96, a descrição da palpação abdominal não refere quaisquer sinais de irritabilidade peritoneal que pudessem levar a uma suspeição de se estar face a uma peritonite. Contudo também queremos chamar a atenção de que, por vezes, um abdómen de um doente obeso com IMC > 35 pode apresentar dificuldades de interpretação devido ao excesso de panículo adiposo existente. A "falta de ar" não é mencionada nos dois registos (Médico e Enfermagem). Apesar de ter havido uma ligeira redução da SAT 02 (94%) a quantidade administrada de O2 foi de 21/min, muito baixa, com uma imediata resposta para 98%. Em relação às drenagens não temos, quer clínica quer laboratorialmente, quaisquer indícios de a doente, nessa altura, estar em choque hemorrágico (líquido sangue escuro e o controle da Hb nas análises tiradas às 7:58 do dia 27/11/2011 era de 13,1 g/dl). Parece-nos, face a estes factos, que as Dra M... e H... , não apresentaram falta de zelo profissional, nas suas observações.

7. As Drªs M... , I... e H... quando observaram a A... nos dias 26 e 27/11 não deviam ter mandado proceder a exames complementares, designadamente laboratoriais e/ou imagiológico ou até microbiológico?

7. Na nossa opinião poderiam ter sido feitos outros exames que provavelmente iriam ajudar a avaliar a gravidade ou não da situação clínica. Os exames microbiológicos, as Hemoculturas, devido à sua resposta não imediata não iriam interferir na avaliação imediata da evolução clínica. Quanto aos exames imagiológicos, não nos trariam muitas informações que pudessem ser úteis naquele momento (provavelmente .... ar + algum líquido abdominal...) esperado às 24h do pós operatório de uma laparoscopia.

8. Não era imperioso saber-se o valor da Hemoglobina da Tânia?

8. Na nossa opinião, a Hb, seria o exame complementar de menor importância, porque a anemia tem sinais clínicos muito diagnósticos e de rápida detecção.

9. E verificar se existia aumento da PCR?

9. Poderia ajudar se o resultado fosse muito elevado. No entanto seria mais útil a seguir às 24h do pós operatório para despiste da instalação de uma sepsis, mas a inflamação pós operatória normal também leva a aumentos da própria PCR.

10. Não era aconselhável a realização de uma TAC?

10. Pensamos que não traria muitas informações que pudessem ser úteis naquele momento ( ar + algum liquido abdominal...) esperado às 24h do pós operatório de uma laparoscopia.

11. Sabendo-se que o azul de metileno pode demorar algum tempo a sair pelo dreno não foi imprudente apenas ter sido tomada essa medida?

11. O azul de metileno é uma das medidas usadas na procura de soluções de continuidade nas vísceras ocas ... o seu aparecimento num dreno depende da localização da lesão e do tamanho da mesma e também da própria localização do dreno.


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C- Parecer do Colégio da Especialidade de Cirurgia Geral,  a fls. 393/395 que concluiu:

«consideramos não ter havido uma prática compatível com incompetência ou negligência. Não há violação das legis artis perante os factos».


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D- Parecer do Conselho Médico-Legal do Instituto de Medicina Legal, IP-Coimbra), a fls. 515/516 (este parecer foi solicitado pelo MP nestes autos, cfr. fls. 386, “para que o Conselho Médico-Legal se pronunciasse sobre se existe ou não, no caso dos autos, um nexo causal entre a prática clínica e a morte de A... , ambas ocorridas no Centro Hospital de (...) , EPE, e a haver, em que termos tal se verificou):

«No relatório operatório consta que por dificuldades técnicas e má visualização durante o ato operatório se optou por não colocar a banda gástrica, ainda assim realizaram-se os testes necessários e aconselhados para estudo da estanticidade gástrica (introdução de 500CC de soro com betadine) e colocou-se dreno multitubular.

No pós-operatório imediato, consideramos que a doente teve o acompanhamento suficiente e necessário, completamente dentro do que sugerem as boas práticas. A solução tomada, logo que surgiu a suspeição de perfuração da víscera oca (cerca de 30 horas depois) foi a correta e em tempo certo, tendo-se confirmado perfuração gástrica.

Infelizmente o desenlace final foi negativo, apesar das tentativas de reanimação realizadas na sala operatória, tendo a doente falecido em paragem cardiorrespiratória após choque séptico causado por peritonite.

Assim somos do seguinte parecer:

1º Indicação da terapêutica cirúrgica corretamente realizada com estudo psicológico prévio e acompanhamento certo.

2º Cirurgia realizada de acordo com o que está tecnicamente estabelecido e apesar da complicação cirúrgica surgida (3 a 5% de complicações nos Centros de Referência) no ato cirúrgico, todas as práticas descritas para o seu despiste foram realizadas sem infelizmente a terem demonstrado.

3º Observação e seguimento clínico pós-operatório correto.

4º Logo que surgiu a hipótese clínica de perfuração víscera oca com a subsequente peritonite atuação cirúrgica correta e imediata.

5º Desenlace final de morte intraoperatória por falência cardíaca por choque séptico subsequente a peritonite (nada frequente com tão curta evolução – cerca de 40 horas).

Consideramos não terem sido feridas as “leges artis”, não só durante a cirurgia como no seguimento posterior do doente, pois a complicação surgida após a primeira cirurgia é passível de acontecer (tal como já referido tais complicações nos Centros de Referência estão entre os 3% a 5%).»


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Ora, face à transcrição dos Pareceres efectuada, verificamos que o Mmº JIC desconsiderou os mesmos, pois, caso contrário não teria dado como indiciados os factos 17, 18 e 19 da decisão recorrida.

Isto, ainda que se considere que a única prova pericial é o Parecer do Conselho Médico-Legal do Instituto de Medicina Legal.

Estabelece o artigo 159º do CPP que:

«1- As perícias médico-legais e forenses que se insiram nas atribuições do Instituto Nacional de Medicina Legal são realizadas pelas delegações deste e pelos gabinetes médico-legais.

2- Excepcionalmente, perante manifesta impossibilidade dos serviços, as perícias referidas no número anterior podem ser realizadas por entidades terceiras, públicas ou privadas, contratadas ou indicadas para o efeito pelo Instituto. (…)»

Com efeito, segundo a Lei Orgânica do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Dorenses, I.P, (Dl n.º 166/2012, de 31 Julho) compete ao conselho médico-legal exercer funções de consultadoria técnico-científica e emitir pareceres sobre questões técnicas e científicas no âmbito da medicina legal e de outras ciências forenses – art. 7º, n.º 1, als. a) e b).

Acrescentando o n.º 2 que A consulta técnico-científica pode ser solicitada pelo membro do Governo responsável pela área da justiça, pelo Conselho Superior da Magistratura, pela Procuradoria-Geral da República ou pelo presidente do conselho diretivo do INMLCF, I.P..

Quanto à apreciação da prova indiciária há a considerar os seguintes preceitos do Código de Processo Penal:

Artigo 127º «Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade julgadora.».

Artigo 151º «A prova pericial tem lugar quando a percepção ou apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos.».

Artigo 163º «1- O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador. 2- Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência.»

Portanto, a prova pericial é uma excepção ao princípio da livre apreciação da prova previsto no artigo 127º do CPP pois, aquela só pode ser afastada quando o julgador fundamentar a divergência, conforme artigo 163º do mesmo diploma.

A este propósito escreveu o Prof. Germano Marques da Silva ([21]) que “a presunção que o artigo 163º n.º 1 consagra não é uma verdadeira presunção, no sentido de ilação, o que a lei tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido; o que a lei verdadeiramente dispõe é que, salvo com fundamento numa crítica material da mesma natureza, isto é, científica, técnica ou artística, o relatório pericial se impõe ao julgador. Não é necessária uma contraprova, basta a valoração diversa dos argumentos invocados pelos peritos e que são fundamento do juízo pericial.

Compreende-se que assim seja. Com efeito, se a lei prevê a intervenção de pessoas dotadas de conhecimentos especiais para a valoração da prova, seria de todo incompreensível que depois admitisse que o pressuposto da prova pericial não tivesse qualquer relevância, mas já é razoável que o juízo técnico, científico ou artístico possa ser apreciado na base de argumentos da mesma natureza”.

Como escreveu Figueiredo Dias ([22]) «se os dados de facto que servem de base ao parecer estão sujeitos à livre apreciação do juiz – que, contrariando-os, pode furtar validade ao parecer – já o juízo científico ou parecer propriamente dito só é passível de uma crítica igualmente material ou científica. Quer dizer: perante um certo juízo cientificamente provado, de acordo com as exigências legais, o tribunal guarda a sua inteira liberdade, no que toca à apreciação da base de facto pressuposta; quanto, porém, ao juízo científico, a apreciação há-de ser científica também, e estará, por conseguinte subtraída em princípio à competência do tribunal».

“O perito realiza quase sempre um prévio labor perceptivo sobre os factos e objectos a respeito dos quais deve emitir o seu relatório. Por conseguinte o perito é, antes de mais, um percepcionador ou, nas palavras de Stein, é um receptor da prova nos mesmos termos que o juiz porquanto examina com os seus próprios sentidos os factos e objectos sobre os quais recaiu ou vai recair a actividade probatória das partes” ([23]).

No caso vertente, o Mmº Juiz a quo, ao pronunciar as arguidas, divergiu dos juízos periciais, sem todavia fundamentar essa divergência, designadamente, explicando as razões (também recorrendo a considerações de índole científica e técnica) por que, não obstante o teor dos mesmos, entendeu que “representada a laceração do vaso, as arguidas não efectuaram o procedimento material e temporalmente bastante em ordem em não agravar (incrementar) o risco próprio da actividade médica, risco que conheciam mas que descuidaram, não tendo representado o resultado morte”, e ainda que, “a demora das arguidas em equacionar os procedimentos em ordem a evitar a possível morte foi expressiva”. Acresce que, também não concretizou os procedimentos que, em seu entender, foram omitidos pelas arguidas.

Concluiu o Conselho Médico-Legal que não foram feridas as leges artis, nem durante a cirurgia, nem no seguimento posterior da doente.

Por conseguinte, não se vislumbrando má prática médica, tendo as arguidas aplicado as regras generalizadamente reconhecidas da prática e da ciência médica, teremos de concluir que usaram de cuidado e, inexistindo a violação do dever de cuidado que caracteriza o tipo de ilícito negligente, a sua conduta não pode ser considerada um crime (designadamente o de homicídio por negligência inconsciente, imputado na decisão recorrida), apesar do infeliz desenlace.

Como sublinha Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues ([24]) «A observância das leges artis exclui, em princípio, o chamado erro médico, designadamente na sua modalidade, porventura a mais relevante de “erro de tratamento”. Dizemos “em princípio” pois, se perfilharmos a noção amplíssima de erro médico (…) todo o erro em que incorre o médico no tratamento dos seus doentes, casos existem em que o erro é meramente acidental, inerente ao elevado risco do exercício da medicina, sem que se possa falar em qualquer violação das leges artis nem, tão pouco, em violação do dever objectivo de cuidado, pois apesar da maior diligência possível por parte do médico, existe sempre a possibilidade de um acidente imprevisível ou inevitável que não reflecte qualquer menosprezo pela observância das regras da arte médica».

Deste modo, apontando a prova indiciária recolhida, tanto no inquérito como na instrução, no sentido de que as arguidas agiram com respeito pelas regras técnicas adequadas aos procedimentos exigíveis, impunha-se a não pronúncia das arguidas.


*****


III – DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:

- Julgar procedentes os recursos e, em consequência, revoga-se a decisão instrutória, na parte em que pronunciou as arguidas I... e M... pela prática de um crime de homicídio por negligência inconsciente p. e p. pelos artigos 137º, n.º 1 e 15º al. b) do Código Penal.

Sem tributação.


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Coimbra, 11 de Maio de 2016

(Elisa Sales - relatora)

(Paulo Valério - adjunto)


[1] - «Compulsados os autos e, designadamente os elementos probatórios reunidos de natureza clínica, extrai-se dos mesmos o entendimento de que, na presente situação, houve um estudo prévio e um acompanhamento certos e uma prática operatória e de seguimento de A... corretas.
Os quais afastam a ocorrência no presente caso de eventual omissão do dever de cuidado ou de violação das denominadas legis artis, seja por acção seja por omissão, por parte dos vários intervenientes hospitalares, entre estes se contando médicos, enfermeiros e demais pessoal a prestar serviço no Centro Hospitalar de (...) , EPE, que, porventura, tivesse causado a morte de A... .»
[2] - “Se o perito indica regras em vez de fatos, isso significa que colabora com o juiz na dedução dos fatos, a qual exige, precisamente, a aplicação e, portanto, o conhecimento de tais regras. Esta nota da colaboração ou da assistência ao juiz é comum tanto ao perito que indica unicamente as regras, como ao que à vez as indica e as aplica: não existe aqui diversidade senão na medida, mais intensa ou mais limitada, segundo os casos. Portanto, o caráter essencial da perícia na dedução é sempre o de que o perito deduz ou fornece os elementos necessários para deduzir, por incumbência do juiz... A função do perito é, portanto, no campo da dedução, perfeitamente paralela à que foi reconhecida por mim no campo da percepção, uma vez que se trata de uma função essencialmente unitária: em ambos os casos o perito aparece não como uma fonte de prova, e sim como um meio de integração da atividade do juiz”, cfr. CARNELUTTI F., A prova civil; apêndice de Giacomo P. Augenti; tradução de Lisa Pary Scarpa. Campinas: Bookseller, 2005, p. 118/119
[3] - Apud La prova scientifica nel processo civile. In: Rivista trimestrale di diritto e procedura civile. Milano: Dott-Giuffrè, anno LIX, nº4, Dezembro, 2005, p. 1090.
[4] - BRITO, Ana Bárbara Sousa e, A Negligência Inconsciente: entre a Dogmática Penal e a Neurociência, Almedina, 2015, p. 310 a 330, 335 a 407, 427 a 431.
[5] - Alteração da Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto.
[6] - In Comentário ao Código de Processo Penal Português, Vol. IV, pág. 411.
[7] - In Direito Processual Penal, Vol. I, págs. 133 e 155.
[8] - António Tolda Pinto, in a Tramitação Processual Penal, 2ª edição, pág. 701.
[9] - Manuel da Costa Andrade, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, pág. 313.
[10] - in Do ato médico ao problema jurídico, Almedina, 2015, pág. 166/167.
[11] - Cavaleiro Ferreira, Lições de Direito Penal (parte geral), I, Verbo, 1992, pág. 308.
[12] - Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, pág. 113.
[13] - Galvão Teles, in Manual do Direito das Obrigações.
[14] - Cavaleiro Ferreira, ob. cit., pág. 304.
[15] - Germano Marques da Silva, in Problemas Fundamentais de Direito Penal, Homenagem a Claus Roxin, Univ. Lusíada Editora, Lisboa 2002, pág. 151.
[16] - Regulamento n.º 14/2009, da Ordem dos Médicos, Diário da República n.º 8, II Série, de 11 de Janeiro de 2009.
[17] - Artigo 31.º (Princípio geral) «O médico que aceite o encargo ou tenha o dever de atender um doente obriga-se à prestação dos melhores cuidados ao seu alcance, agindo sempre com correcção e delicadeza, no exclusivo intuito de promover ou restituir a saúde, conservar a vida e a sua qualidade, suavizar os sofrimentos, nomeadamente nos doentes sem esperança de cura ou em fase terminal, no pleno respeito pela dignidade do ser humano.»
[18] - Artigo 33.º (Condições de exercício) «1. O médico deve exercer a sua profissão em condições que não prejudiquem a qualidade dos seus serviços e a especificidade da sua acção, não aceitando situações de interferência externa que lhe cerceiem a liberdade de fazer juízos clínicos e éticos e de actuar em conformidade com as leges artis. (…)»
Artigo 35.º (Tratamentos vedados ou condicionados) «1. O médico deve abster-se de quaisquer actos que não estejam de acordo com as leges artis.  2. Exceptuam-se os actos não reconhecidos pelas leges artis, mas sobre os quais se disponha de dados promissores, em situações em que não haja alternativa, desde que com consentimento do doente ou do seu representante legal (…)».
[19] - Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues, A Negligência Médica Hospitalar na Perspectiva Jurídico-Penal, Estudo sobre a responsabilidade criminal médico-hospitalar, Almedina, 2013, pág. 154.
[20] - Helena Moniz, Risco e negligência na prática clínica, Revista do Ministério Público, 130, Abril/Junho 2012, págs. 89/90.
[21] - in Curso de Processo Penal, vol. II, pág. 178.
[22] - in Direito Processual Penal, vol. 1º, pág. 209.
[23] - Clement Durán, La Prueba Penal, pág. 467 e ss, citado por Santos Cabral, em “Código de Processo Penal” Comentado, Almedina, 2014, pág. 643.
[24] - ob. cit., págs 41/42.