Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
269/05.4TAMGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: CRIME FISCAL
MULTA
RESPONSABILIDADE CIVIL
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA
INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL
Data do Acordão: 10/02/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA MARINHA GRANDE (3.º JUÍZO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 8.º, N.º 7, DO REGIME GERAL DAS INFRACÇÕES TRIBUTÁRIAS (RGIT)
Sumário: Padece de inconstitucionalidade material a norma do artigo 8.º, n.º 7, do RGIT, quando aplicável a gerente de ente colectivo que, tal como este, foi condenado, a título pessoal, pela prática da mesma infracção tributária.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do processo n.º 269/05.4TAMGR do 3.º Juízo do Tribunal Judicial da Marinha Grande foram os arguidos «A..., Lda», B... e C... condenados por sentença de 26.05.2010, a primeira pela prática, na forma continuada, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social p. e p. pelos artigos 7.º, 105º, n.ºs 1 e 4, 107.º, n.ºs 1 e 2 do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5/6, na redacção introduzida pela Lei 53-A/2006, de 29.12, os segundos pelo mesmo crime com referência ao artigo 6.º do citado diploma legal, respectivamente nas penas de 100 dias de multa, à taxa diária de € 20,00, no montante de € 2.000,00, de 70 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, no total de € 350,00, 50 dias de multa à taxa diária de € 5,00, no total de € 250,00, tendo-lhes sido, ainda, aplicada a sanção acessória de proceder à publicação da decisão.

2. Prosseguindo os autos, mediante promoção do Ministério Público, e exercido o contraditório, por despacho judicial de 04.02.2013, foi proferida decisão do seguinte teor:
«Termos em que na impossibilidade do pagamento da multa pela sociedade arguida, facto que o arguido não põe em causa, ao abrigo do disposto nos artigos 8.º/7 e 49 ambos do RGIT, declara-se o arguido C...civilmente responsável pelo pagamento da multa aplicada à sociedade arguida.
Após trânsito, notifique-se o arguido para proceder ao pagamento da multa em que a sociedade arguida foi condenada, com emissão da respectiva guia.
Notifique ambos com a informação de que a responsabilidade é civil e não criminal, porquanto não se coloca a questão suscitada da prisão subsidiária.»

2. Inconformado com o assim decidido recorre o arguido C..., extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

1. Por douto despacho com referência 3622946, veio o Mm. Juiz do Tribunal “a quo”, ao abrigo do disposto nos artigos 8.º, nº 7 e 49.º ambos do RGIT, declarar o ora civilmente responsável pelo pagamento da multa aplicada à sociedade arguida.
2. Acontece que tal decisão teve por base uma norma que foi recentemente declarada inconstitucional, conforme Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 1/2013 de 22 e Fevereiro de 2013, proferida no processo nº 373/2012.
3. Considerou o douto despacho sob recurso que o n.º 7 do artigo 8.º do RGIT, não é inconstitucional, lançando mão de uma interpretação literal sobre a aludida norma ao nível da responsabilidade solidária do arguido pelas dívidas da sociedade.
4. Acompanhando de perto o douto Acórdão do Tribunal Constitucional considerou o mesmo que:
5. “Em relação à norma do n.º 7 do artigo 8.º do RGIT, está em causa uma responsabilidade solidária de «quem colaborar dolosamente na prática de infracção tributária» pelas multas e coimas aplicadas à pessoa colectiva pela prática de infracção, e «independentemente da sua responsabilidade pela infracção quando for o caso».
6. Tal como no caso objecto de decisão do Tribunal Constitucional, também nos presentes autos, o tribunal de primeira instância condenou distintamente quer a sociedade comercial quer o seu gerente comercial em pena de multa pela prática, em coautoria material, de um crime de abuso de confiança fiscal contra a segurança social, e, com invocação do disposto no citado artigo 8.º, n.º 7, do RGIT, declarou este último responsável solidário pela multa aplicável à pessoa colectiva.
7. Também nos presentes autos faz sentido chamar à colação o princípio ne bis in idem consagrado no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição que proíbe que as normas penais possam sancionar substancialmente, de modo duplo, a mesma infração (cf. acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 244/93, 303/05, 356/06 e 319/12).
8. De acordo com o artigo 8.º, n.º 7, do RGIT, e, por força da comparticipação na prática da infração tributária, faz-se atuar em relação à pessoa singular, que age como representante da pessoa colectiva, a cumulação da responsabilidade penal própria com a responsabilidade solidária pelo cumprimento da sanção penal pecuniária imposta à pessoa colectiva.
9. Verificamos tal como no citado Acórdão que a responsabilidade solidária do gerente acresce à responsabilidade própria decorrente da sua comparticipação na prática da infração, o que aí está em causa é, não já transmissão de responsabilidade penal, mas a violação do princípio ne bis in idem.
10. Julgou o Tribunal Constitucional, inconstitucional, por violação do disposto no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição, a norma do artigo 8.º, n.º 7, do Regime Geral das Infracções Tributárias quando aplicável a gerente de uma pessoa colectiva que foi igualmente condenado a título pessoal pela prática da mesma infração tributária.
11. Pelo exposto padece a douta decisão do Mm. Juiz “a quo” de inconstitucionalidade, ao aplicar uma decisão assente numa norma que veio a ser declarada inconstitucional, tendo a mesma violado o princípio ne bis in idem consagrado no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição.

Termos em que deve ser dado provimento ao recurso e, devendo, em consequência, a decisão sob recurso ser revogada, fazendo-se dessa modo, JUSTIÇA!

3. Por despacho de fls. 692 foi o recurso admitido e fixado o respectivo regime de subida e efeito.

4. Na 1.ª instância, a Exma Magistrada do Ministério Público respondeu ao recurso nos seguintes termos:
«Afigura-se-nos que os argumentos do recorrente, dada a complexidade das questões em análise, merecem a Douta Apreciação do Tribunal Superior».
5. Na Relação pronunciou-se o Exmo. Procurador – Geral Adjunto, conforme parecer junto a fls. 720 a 726, no qual, além do mais, convoca decisões de sentido diferente, designadamente por parte do Tribunal Constitucional, concluindo no sentido da improcedência do recurso.

6. Cumprido o disposto no artigo 417.º, nº 2 do CPP, o recorrente não reagiu.

7. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso
                 
      De harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 412.º do CPP e conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito – [cf. acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19.10.1995, DR, I Série – A, de 28.12.1995].
No caso em apreço a questão colocada traduz-se em saber se o tribunal a quo, ao declarar a responsabilidade do arguido/recorrente, enquanto gerente da arguida/sociedade, pela pena de multa que a esta foi imposta por sentença condenatória num quadro em que ele próprio, na qualidade de gerente da pessoa colectiva, foi condenado – em pena de multa - juntamente com a sociedade pela prática do mesmo crime fiscal, convocando para tanto do n.º 7, do artigo 8º do RGIT, aplicou norma materialmente inconstitucional.

2. A decisão recorrida

É do seguinte teor o despacho em crise [transcrição parcial]:

«Requer o Ministério Público, após exercício do direito de contraditório, do arguido visado que o Tribunal declare que por força da falta de pagamento, voluntário ou coercivo (por falta de bens penhoráveis) em que a arguida A..., Lda foi condenada nos autos – por crime de abuso de confiança fiscal contra a Segurança Social, p. e p. pelo art. 7.º, 105/1 e 4, 107/1 e 2 da Lei 15/2001 de 5-6 (RGIT) – seja o arguido C...representante da sociedade arguida à data dos factos e também condenado pela prática do ilícito criminal, nos termos do art. 6.º, 105/1 e 4 e 107/1 e 2 do RGIT seja declarado responsável nos termos do art. 8.º/7 do RGIT.
Apreciando, dir-se-á:
Em face das condenações proferidas nos autos e das disposições legais aplicáveis, supra enunciadas e que aqui se dão por integralmente reproduzidas, somos também de entender na esteira daquele aresto, sem sombra de inconstitucionalidade que se conheça, e ainda mais recentemente do Ac. do TRCoimbra de 09-05-2012 … tirado por unanimidade que tal declaração é legal e deve ser efectuada no caso sub iudice verificados que se mostram os legais pressupostos. Aí se decidiu sumariamente assim: «1. Embora os n.ºs 1 e 7, do art.º 8º, do R.G.I.T., se inscrevam, conforme epígrafe, no âmbito da “responsabilidade civil pelas multas e coimas”, é distinto o campo de aplicação de um e de outro, tendo a disposição do n.º 7 um domínio específico e autónomo de intervenção, operando sem intermediação do n.º1.
2. Diversamente do que se estabelece no n.º 1, no n.º 7 não se está perante responsabilidade subsidiária relativamente aos agentes da infracção, mas sim em solidariedade em primeiro plano, podendo as dívidas ser originariamente exigidas, desde logo, aos responsáveis solidários, independentemente da existência de bens do autor da infracção.
3. No caso, tendo os representantes legais (sócios gerentes) da sociedade arguida sido condenados, como co-autores materiais, da prática do crime de abuso de confiança fiscal, por força do disposto nos n.ºs 7 e 8, do referido art.º 8º, do R.G.I.T., são solidariamente responsáveis pela multa (penal) imposta ao referido ente colectivo, nos termos do art.º 7º, do mesmo compêndio legislativo.
4. O referido n.º 7, do art.º 8.º, do R.G.I.T., não é inconstitucional».
Também no Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 21-03-2012, votado por unanimidade … se decidiu: «1. No artigo 8º, nº 1, do R.G.I.T., a responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes tem como fundamento a sua culpa pelo não pagamento da multa ou da coima aplicada à sociedade e, em consequência, o dano que resulta para a Administração Fiscal pela não obtenção de tal receita – por ter sido por culpa sua que o património da sociedade se tornou insuficiente para o seu pagamento ou, por culpa sua não tiver sido efectuado o pagamento.
2. E no n.º 7, do mesmo normativo, a responsabilidade solidária dos administradores e gerentes tem como fundamento a responsabilidade criminal destes, por terem colaborado dolosamente na prática da infracção tributária e por ter sido o seu comportamento ilícito determinante para a aplicação da pena, pelo que respondem solidariamente com os co-responsáveis pelas multas e coimas aplicadas pela prática da infracção.
Com efeito, analisa-se nessa decisão a norma em causa:
«Dispõe o artigo 8.º, n. 7, do RGIT que «Quem colaborar dolosamente na prática de infracção tributária é solidariamente responsável pelas multas e coimas aplicadas pela prática da infracção, independentemente da sua responsabilidade pela infracção, quando for caso disso.”
Interpretando literalmente a norma dúvidas não restam sobre a responsabilidade solidária do arguido pelas dívidas da sociedade, não no sentido de responsabilidade penal ou contra-ordenacional mas sim do dever indemnizatório que deriva do facto ilícito e culposo que é praticado pelo administrador ou gerente e que constituiu causa adequada do dano que resulta, para a administração fiscal, da não obtenção da receita em que se traduzia o pagamento da multa ou coima que eram devidas.
A circunstância de o montante indemnizatório corresponder ao valor da multa não paga apenas significa que é essa, de acordo com os critérios da responsabilidade civil, a expressão pecuniária do dano que ao lesante cabe reparar, que é necessariamente coincidente com a receita que deixa de ter dado entrada nos cofres da Fazenda Nacional – vide acórdãos do Tribunal Constitucional com os n.ºs 129/2009 e 150/2009, de 12/03/2009 e 25/03/2009, proferidos nos processos nºs 649/08 e 878/08, in www.tribunalconstitucional.pt.
No que concerne ao meio processual adequado a efectivar a responsabilidade civil previsto no artigo 8.º, n.º 7, é-o no processo penal – e não em processo autónomo – conforme assim o prevê expressamente o artigo 49.º do RGIT – “Os responsáveis civis pelo pagamento de multas, nos termos do artigo 8.º, desta lei intervêm no processo e gozam dos direitos de defesa dos arguidos compatíveis com a defesa dos seus interesses”.
No processo penal devem os arguidos (enquanto responsáveis civis) poder defender-se dos pressupostos de que a lei faz depender a sua responsabilidade civil.
Quando porém o arguido for igualmente condenado como autor do crime imputado à sociedade – como é o caso -, mostra-se necessariamente verificada a garantia de defesa dos seus interesses, esta traduzida na oportunidade que teve de se defender da prática do crime, isto é, da sua colaboração dolosa na prática da infracção – vide neste sentido os acórdãos da Relação do Porto de 27.05.2009 e 23.06.2010, processos 47/02.0IDPRT – B.P1 e 248/07.7IDPRT – AP.1, disponíveis em dgsi.pt. este último também quanto ao facto de a sentença penal condenatória nada dizer sobre a responsabilidade solidária do arguido relativamente ao pagamento da multa da sociedade, para o qual sobre esta matéria se remete».
Termos em que na impossibilidade do pagamento da multa pela sociedade arguida, facto que o arguido não põe em causa, ao abrigo do disposto nos artigos 8.º/7 e 49 ambos do RGIT, declara-se o arguido C...civilmente responsável pelo pagamento da multa aplicada à sociedade arguida.
Após trânsito, notifique-se o arguido para proceder ao pagamento da multa em que a sociedade arguida foi condenada, com emissão da respectiva guia.
Notifique ambos com a informação de que a responsabilidade é civil e não criminal, porquanto não se coloca a questão suscitada da prisão subsidiária.»

3. Apreciando

A questão para que somos convocados não é nova e tem merecido resposta de sentido não coincidente, designadamente por parte dos tribunais superiores, em cujos arestos vem explanados os fundamentos que suportam a respectiva posição [cf., vg. os acórdãos do TRP 12.04.2010, TRE de 20.03.2012, TRG de 16.03.2012, TRC de 21.03.2012], nuns casos desaplicando a norma do n.º 7 do artigo 8.º do RGIT, considerando enfermar a mesma de inconstitucionalidade material, noutros, pelo contrário, defendendo a sua conformidade com a Constituição.
Sobre a matéria já se pronunciou o Tribunal Constitucional, designadamente no acórdão n.º 1/2013 e, mais recentemente, nos acórdãos n.ºs 297/2013 e 354/2013, concluindo no primeiro pela inconstitucionalidade por violação do disposto no artigo 29º, n.º 5, da Constituição, da norma do artigo 8.º, nº 7 do Regime Geral das Infracções Tributárias quando aplicável a gerente de uma pessoa colectiva que foi igualmente condenado a título pessoal pela prática da mesma infracção tributária, decidindo nos demais no sentido da inconstitucionalidade «por violação do artigo 30º, n.º 3, da Constituição, a norma do artigo 8º, nº 7, do Regime Geral das Infracções Tributárias, na parte em que se refere à responsabilidade solidária dos gerentes e administradores de uma sociedade que hajam colaborado dolosamente na prática de infração tributária pelas multas aplicadas à sociedade».

Na situação em apreço, com relevância para o caso, decorre da sentença ter o arguido/recorrente a par, além do outro gerente, da sociedade arguida sofrido condenação – em pena de multa - pela prática do sobredito crime [abuso de confiança contra a segurança social, p. e p. pelos artigos 6.º, 105º, nºs 1 e 4 e 107º, nºs 1 e 2 do RGIT] por na qualidade de gerente da « A..., Lda.», agindo em nome e no interesse da sociedade, não haver entregue à Segurança Social as contribuições deduzidas das remunerações dos membros dos respectivos órgãos estatutários.
Após a prolação da sentença condenatória, não tendo resultado viável a cobrança voluntária ou coerciva da pena de multa imposta à « A...», mediante promoção nesse sentido por parte do Ministério Público, foi proferida a decisão ora em crise, declarando, por aplicação do artigo 8º, nº 7 do RGIT, o arguido C... civilmente responsável pelo pagamento daquela multa.
Decisão contestada pelo recorrente, o qual, chamando à colação o acórdão do Tribunal Constitucional nº 1/2013, defende a inconstitucionalidade material da norma do nº 7 do artigo 8º do RGIT, enquanto consagra a responsabilidade do órgão ou representante da pessoa colectiva que colabore dolosamente na prática do crime tributário – pela qual, como vimos, também sofreu condenação - por violação do princípio ne bis in idem [artigo 29.º, nº 5 da CRP].

Vejamos

Nos termos do n.º 7 do citado artigo 8.º «Quem colaborar dolosamente na prática de infracção tributária é solidariamente responsável pelas multas e coimas aplicadas pela prática da infracção, independentemente da sua responsabilidade pela infracção, quando for o caso».
Resulta inequívoco ter sido a coberto de tal preceito que o despacho recorrido declarou o arguido/recorrente responsável pela pena de multa aplicada à sociedade, igualmente, arguida no processo, sem embargo de o mesmo, com os fundamentos supra expostos, também haver sofrido, a título pessoal, condenação [pelo mesmo crime] em pena de multa.
Sendo este o quadro aderimos aos fundamentos do já citado acórdão do Tribunal Constitucional n.º 1/2013, do qual respigamos:
«Em relação à norma do n.º 7 do artigo 8.º do RGIT, está em causa uma responsabilidade solidária de «quem colaborar dolosamente na prática de infracção tributária» pelas multas e coimas aplicadas à pessoa colectiva pela prática da infracção, e «independentemente da sua responsabilidade pela infração, quando for o caso».
Prevê-se aí uma responsabilidade solidária, que permite que o pagamento das multas e coimas aplicáveis à pessoa colectiva no âmbito do respetivo processo criminal ou contraordenacional possa ser diretamente exigido ao devedor solidário. A obrigação incide sobre aquele que presta colaboração dolosa, abrangendo qualquer das situações de comparticipação na prática de infração tributária, e é cumulativa com a própria responsabilidade pessoal que dessa conduta possa resultar para o agente …
Ainda que a norma sindicada consagre uma responsabilidade solidária em relação a multas e coimas aplicadas pela prática de infração tributária, a questão de constitucionalidade suscitada, por efeito dos contornos do caso concreto, encontra-se confinada unicamente à previsão normativa que impõe ao administrador ou gerente uma obrigação solidária pelo pagamento de multas em que a pessoa colectiva tenha sido condenada em processo penal, e num caso em que o representante da pessoa colectiva foi condenado juntamente com esta por crime fiscal em coautoria material».
Após realçar a diferença entre a situação colocada e aquelas outras respeitantes às normas das als. a) e b) do n.º 1 do citado artigo 8.º  sobre as quais o Tribunal Constitucional já se pronunciou,  prossegue o aresto: «Não é curial, contrariamente ao que se afirma, por vezes na jurisprudência cível, reconduzir o regime constante do n.º 7 do artigo 8º, a uma forma de responsabilidade civil por facto próprio. O pressuposto da obrigação solidária é a colaboração dolosa na prática do crime tributário, e é essa conduta que torna o gerente responsável solidariamente pelas consequências jurídicas da condenação penal em que tenha incorrido a pessoa colectiva…
Ainda que a obrigação solidária surja qualificada formalmente como uma obrigação de natureza civil … ela não deixa de representar, na prática, uma consequência jurídica do mesmo ilícito penal pelo qual o gerente foi já punido, a título individual, através da aplicação direta da pena de multa. Isso porque a responsabilidade solidária assenta no próprio facto típico que é caracterizado como infração, que é imputado ao agente a título de culpa, e que arrasta não só a sua condenação individual como a condenação da pessoa colectiva no interesse de quem agiu.
A norma prevê, por conseguinte, não já uma mera responsabilidade ressarcitória de natureza civil, mas uma responsabilidade sancionatória por efeito da extensão ao agente da responsabilidade penal da pessoa coletiva.
(…)
Desde que, porém – como é o caso dos autos -, a responsabilidade solidária do gerente acresce à responsabilidade própria decorrente da sua comparticipação na prática da infração, o que aí está em causa é, não já a transmissão de responsabilidade penal, mas a violação do princípio ne bis in idem. Dito de outro modo, a transferência da responsabilidade penal da pessoa coletiva, por via da imposição da obrigação solidária, quando o responsável solidário é também condenado, a título individual, pela prática da infração corresponde à atribuição de diferentes consequências sancionatórias relativamente ao mesmo facto ilícito …», para concluir no sentido de que «a responsabilidade sancionatória decorrente dessa disposição está interdita por implicar uma dupla valoração do mesmo facto para efeitos penais» [destaque nosso] e, como tal, pelo julgamento de inconstitucionalidade por violação do disposto no artigo 29º, n.º 5, da Constituição, da norma do artigo 8º, n.º 7, do RGIT quando aplicável a gerente de uma pessoa colectiva que foi igualmente condenado a título pessoal pela prática da mesma infração fiscal.

Não obstante, ainda que outro fosse o entendimento, acolhendo os fundamentos dos acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 297/2013 e 354/2013 – defendendo estar em causa uma transmissão da responsabilidade penal - diferente não seria o juízo, agora, numa nova - mas, atentos os princípios em crise, sempre conexa - dimensão, qual seja por violação do artigo 30º, nº 3 da Constituição, concretamente do princípio da pessoalidade das penas, enquanto proibição de que «a pena recaia sobre uma pessoa diferente da que praticou o facto que lhe serve de fundamento».
Como referido no acórdão n.º 297/2013 outros obstáculos surgem ao n.º 7 do artigo 8º do RGIT «tais como o princípio da pessoalidade das penas, dedutível a partir do artigo 30º, n.º 3 da CRP», pois que tendo as sanções penais «uma natureza pessoalíssima, daí fluindo que a medida de tais sanções, assim como a própria moldura sancionatória que as baliza, há-de permitir sob pena de subversão completa daquela natureza, a valoração de fatores pessoais do agente e da sua conduta culposa …», natureza, essa, que o artigo 8º, nº 7, do RGIT, «ao determinar a responsabilidade sancionatória de quem tenha colaborado dolosamente na prática da infração, resultando quer a moldura sancionatória, quer a medida de tal responsabilidade, de critérios estranhos à conduta dos sujeitos aí responsabilizados, ou, pelo menos, de critérios que não permitem de todo respeitar a natureza pessoal e específica já assacada às sanções penais», compromete, sempre resultaria incontornável a inconstitucionalidade do preceito em causa por violação do sobredito princípio.

III. Decisão
Termos em que acordam os juízes na 5.º Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso, desaplicando a norma constante do n.º 7 do artigo 8.º do RGIT considerada materialmente inconstitucional por violação do disposto no artigo 29º, nº 5 da Constituição e - noutra dimensão – do princípio da pessoalidade das penas consagrado no artigo 30º, n.º 3 da CRP, revogando-se, em consequência, a decisão recorrida.

Sem custas


(Maria José Nogueira - Relatora)

(Isabel Valongo)